Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1625/24.4T8TVD.L1-7
Relator: RUTE SABINO LOPES
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
MÚTUO HIPOTECÁRIO
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
DIVERSA QUALIFICAÇÃO JURIDICA
COMPOSIÇÃO DE QUINHÃO
CONTRIBUIÇÕES DOS COMUNHEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2025
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (da responsabilidade da relatora):
1 – A circunstância de um dos comunheiros – num contexto em que cada comunheiro detém uma quota de 50% de um imóvel - suportar em maior percentagem a aquisição do imóvel não tem a virtualidade de alterar a proporção da respetiva quota.
2 - Ainda que seja reconhecido que a cumulação dos pedidos de divisão de coisa comum e de reconhecimento do crédito de uma partes, seguem forma processual diferente, o objetivo de alcançar uma justa composição do litígio exige que se considere deverem ser discutidas no âmbito do mesmo processo todas as questões relativamente ao imóvel sobre as quais as partes discordam efetivamente. Rejeitar a cumulação neste caso, é falhar na solução de buscar e encontrar no processo uma solução equitativa e definitiva para o dissenso a que o tribunal é chamado a resolver.
3 - Se o autor formulou de modo impreciso a sua pretensão – designadamente entendendo que os valores que pagou a mais deveriam refletir-se proporcionalmente nas quotas do bem detido em compropriedade, quando o que pretende é ser ressarcido do que pagou a mais além da sua quota, deve o tribunal, ao abrigo do dever de gestão processual interpretar e corrigir a qualificação jurídica dessa pretensão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
RELATÓRIO
1 A recorrente instaurou a presente ação de divisão de coisa comum contra o recorrido formulando, a final, o seguinte pedido:
“Nestes termos, e nos melhores de direito que V.Exa. doutamente suprirá, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, fixadas as quotas de cada um, em consequência, ordenar que se proceda à divisão do imóvel, adjudicando-o a uma das partes ou procedendo à sua venda, com a repartição do respetivo valor”.
2 Alegou, em síntese, que recorrente e recorrido são legítimos proprietários, em regime de compropriedade da fração autónoma que identifica, o qual foi adquirido por ambos, por contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, pelo montante de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), cujo pagamento foi efetuado da seguinte forma:
- a título de sinal foi efetuado o pagamento apenas a expensas da ora A., de € 15.500,00 (quinze mil e quinhentos euros);
- O restante valor foi pago com recurso ao empréstimo bancário contraído por ambas as partes.
3 O réu foi citado e não deduziu oposição.
4 O tribunal de primeira instância proferiu o seguinte despacho:
“Estabelece o art. 925.º, do Código de Processo Civil, na parte que aqui importa Todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requererá se proceda à divisão Do expressamente plasmado pelo supra transcrito preceito legal, se extrai que a presente acção especial tem, como único objectivo, a obtenção de divisão de uma coisa comum, em caso de dissídio entre os proprietários, quanto a essa mesma divisão.
Atento o previsto pelo art. 926.º, do Código de Processo Civil, apenas no caso de o juiz verificar que a questão suscitada não pode ser sumariamente decidida é que os autos prosseguem sob a forma de processo comum.
Considerando o pedido de divisão de uma fracção autónoma (ao qual não se mostra deduzida oposição), entendemos não se vislumbrar complexidade que justifique que os autos sejam tramitados sob a forma de processo ordinário comum.
Compulsados os autos, constatamos que não se mostra contestada a indivisibilidade, em razão da substância, da fracção autónoma cuja divisão se peticiona. Analisada a certidão de registo predial relativa à fracção autónoma em causa, não subsistem dúvidas de que o mesmo configura prédio urbano, sob regime de propriedade horizontal.
Estabelece o artigo 209.º, do Código Civil que são divisíveis as coisas que […]podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição do valor ou prejuízo para o uso a que se destinam.
Assim, são divisíveis as coisas corpóreas que possam ser fraccionadas sem alteração da sua substância, sem diminuição do seu valor (sem detrimento da coisa) e sem prejudicar o uso a que se destinam. Em todos os outros casos, as coisas são (por natureza) indivisíveis.
Não obstante, a verdade é que a questão não está em saber se a coisa é divisível em termos materiais ou físicos, visto que, nesta acepção, quase tudo é divisível. O critério da divisibilidade é essencialmente jurídico, sendo que, para além dos critérios de divisibilidade previstos nesse normativo, a lei estabelece casos de indivisibilidade legal.
Neste conspecto, nos termos do disposto no art. 1422.º-A, n.º 3, do Código Civil, que não é permitida a divisão de fracções em novas fracções autónomas.
Fica, desta forma, vedada a possibilidade de fraccionamento material e físico da fracção autónoma em causa.
Assim, entendemos que nada obsta ao prosseguimento dos autos para apreciação da pretensão de divisão de coisa comum, nos termos previstos pelo art. 929.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, reconhecendo-se a indivisibilidade, em razão da sua própria natureza, do imóvel a dividir.
Sendo, desde já, possível face à alegação das partes e o expressamente previsto pelo art. 1403.º, n.º 2, do Código Civil determinar os quinhões dos interessados na compropriedade, em 1/2, para a Requerente e 1/2, para o Requerida, cumpre, desde já, designar conferência de interessados, nos termos e para os efeitos previstos pelo art. 929.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
*
Para a realização da conferência de interessados, designo o próximo dia 11.03.2025, pelas 14:30 horas.”
5 A apelante, inconformada com a decisão do tribunal de primeira instância, recorreu. Concluiu as alegações, em suma, da seguinte forma:
CONCLUSÕES DA APELANTE
1- Vem o presente Recurso de Apelação interposto da Decisão Sumária proferida a fls…,com a Ref.ª 163946522, em 13 de fevereiro de 2025 nos supra identificados autos, julgando improcedente a pretensão, deduzida pela Requerente, ora Apelante, na sua petição inicial, no sentido de ser decidida a questão da diferença quantitativa das quotas dos comproprietários, com a fixação da quota da Requerente e da quota do Requerido em medida diversa da de metade para cada um deles, nos termos do nº 2 do artigo 1403º do CPC.
2 - A Apelante suscitou a questão da diversidade quantitativa das quotas entre os consortes que não foi realisticamente refletida na escritura celebrada.
3 - As quotas dos consortes presumem-se quantitativamente iguais, na falta de indicação em contrário no título constitutivo, conforme dispõe o artigo 1403.º, n.º 2, 2ª parte, do Código Civil. Mas tal presunção pode ser ilidida.
4 - A posição adotada pelo Tribunal a quo viola as normas previstas nos artigos 9.º e 350.º do Código Civil, fazendo uma incorreta interpretação do espírito da lei, tratando como inilidível uma presunção que não o é.
5 - A Decisão Apelada, não apreciou, nem valorou, e deveria tê-lo feito, a matéria de facto alegada nem a prova apresentada e requerida pelo Apelante, limitando- se a fixar a quota-parte de cada consorte em 50%.
6 - Entende o Apelante que, na ação de divisão de coisa comum, na sua fase declarativa, pode fazer valer o seu direito a ter uma quota quantitativamente diferente da Apelada por ter comparticipado com montantes manifestamente superiores na aquisição dos imóveis.
7 - Veja-se, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.11.1996, “Na fase declarativa da ação de divisão de coisa comum, pode discutir-se a proporção dos quinhões de cada comproprietário”.
8 - Entende a Apelante que a Decisão Apelada deve ser revogada na parte “Da fixação dos quinhões de cada Consorte”, devendo ao Tribunal a quo ser ordenado, nos termos do disposto do n.º 3, do artigo 926.º, do CPC, a mandar seguir os termos do processo comum, apreciando a matéria de facto alegada e, bem assim, a prova documental e testemunhal requerida e a produzir, seguindo a tramitação de processo comum ordinário, dando, assim, oportunidade à Apelante de afastar a presunção legal de igualdade de quotas dos comproprietários.
9 - Sem conceder, as tornas devidas terão sempre de ser calculadas tendo em conta a contribuição efetiva de cada uma das partes para a aquisição dos imóveis objeto dos autos, através da compensação de créditos, pois, só assim, se alcançará uma justa composição do litígio.
10 - O Tribunal a quo, ao abrigo do dever de gestão processual, previsto no artigo 6.º do CPC, deveria ter reconfigurado o pedido efetuado pela Apelante num crédito autónomo, de forma a ser a Apelante ressarcida dos valores que despendeu além da sua quota. Em abono veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 13.07.2021, Processo 967/20.2T8CSC.L1-7.
11 – Deve assim a decisão ser revogada, na parte na parte “da fixação dos quinhões de cada consorte”, prosseguindo os autos sob a forma de processo ordinário comum, nos termos e para os efeitos no disposto do n.º 3 do artigo 926.º do código de processo civil.
12 - Sem Conceder, ao abrigo do dever de gestão processual previsto no artigo 6.ºdo CPC deverão os presentes autos prosseguir os termos de processo comum, nos termos dos artigos 37.º, n.º 2 e 3 e 926º n.º 3 do CPC, discutindo-se e decidindo-se a questão relativa aos valores despendidos pela Apelante que excedam 50% da sua quota.
OBJETO DO RECURSO
6 O objeto do recurso é delimitado pelo requerimento recursivo, podendo ser restringido, expressa ou tacitamente pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC). O tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC).
7 À luz do exposto, o objeto deste recurso consiste em analisar e decidir se o tribunal a quo errou ao mandar prosseguir os autos, sem considerar a pretensão da apelante de que a composição dos quinhões reflita a situação real de contribuição.
FUNDAMENTOS DE FACTO
8 Com interesse para a decisão, importa considerar o que resulta descrito no relatório que antecede.
CONHECIMENTO DO OBJETO DO RECURSO
Nota prévia
9 Na análise das questões objeto de recurso, todas as referências jurisprudenciais respeitam a acórdãos publicados em www.dgsi.pt, exceto quando expressamente mencionada publicação diferente.
Enquadramento legal
10 O enquadramento legal relevante a considerar na análise e solução deste caso é o seguinte :
1403.º, n.º 2, do Código Civil
Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo.
Artigo 37.º, n.ºs 1 a 3, do Código de Processo Civil
1 - A coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a cumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia.
2 - Quando aos pedidos correspondam formas de processo que, embora diversas, não sigam uma tramitação manifestamente incompatível, pode o juiz autorizar a cumulação, sempre que nela haja interesse relevante ou quando a apreciação conjunta das pretensões seja indispensável para a justa composição do litígio.
3 - Incumbe ao juiz, na situação prevista no número anterior, adaptar o processado à cumulação autorizada.

Artigo 555.º, n.º 1, do Código de Processo Civil
1 - Pode o autor deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação.
*
Artigo 527º, nº 1 do Código de Processo Civil
A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.
Enquadramento da questão
11 A apelante intentou ação de divisão de coisa comum, reconhecendo, desde logo, a indivisibilidade do bem.
12 O imóvel mostra-se registado a favor de ambas as partes, na proporção de 50% para cada uma.
13 A ação de divisão de coisa comum “comporta duas fases fundamentais: uma, de natureza declarativa, que visa decidir sobre a existência e os termos do direito à divisão invocado, a qual só se desenvolve quando haja contestação ou, inexistindo esta, quando a revelia do réu for inoperante (art.º 926.º, n.º 2); outra, de índole executiva, em que se materializa (fundamentalmente, por meio de perícia, a propósito da divisão em substância) o direito já definido na fase declarativa ou afirmado sem contestação, pelo autor – Código de Processo Civil anotado de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, 3ª ed. Almedina, vol. II, p. 381.
14 O tribunal de primeira instância, na fase declarativa, considerou as quotas de 50% para cada uma das partes, como resulta do registo não relevando a alegação da apelante de que suportou sozinha o sinal de compra da casa, no valor de 15.500,00 euros e estar a suportar os custos inerentes à compropriedade do imóvel e pretendendo que à luz de tais circunstâncias deverão correspondentemente ser fixadas as quotas de cada uma das partes no imóvel.
Ação de divisão de coisa comum – fixação de quotas
15 Nos termos do artigo 925.º do Código de Processo Civil, quem pretenda pôr termo à indivisão requer que, fixadas as quotas respetivas, se proceda à divisão em substância, à adjudicação ou à venda do bem, com repartição de valor. Com a petição inicial deve ser apresentada toda a prova.
16 De acordo com o artigo 1403.º do Código Civil, no caso da compropriedade, o critério para aferir das quotas de cada comproprietário é o título constitutivo. Na falta dessa indicação no título, há a presunção de igualdade de quotas, que pode ser ilidida.
17 Ora, neste caso, existe um título constitutivo — escritura pública — que determina expressamente a proporção de 50% para cada uma das partes.
18 A apelante, embora não conteste o que consta do título constitutivo, pretende, para efeitos da presente ação de divisão de coisa comum, que a sua quota reflita os valores que pagou a mais na aquisição do bem.
19 Tal não é possível, pelos motivos que citamos de seguida, a partir de um excerto do Ac. TRL, de 13/7/2021, Pr. 967/20.2T8CSC.L1-7, que sumariza de forma clara os fundamentos:
“Sendo os modos de aquisição da compropriedade os mesmos de aquisição da propriedade, previstos nos Artigo 1316º do Código Civil, qualquer «posterior modificação quantitativa da repartição de quotas entre os consortes corresponderá a um ato de alienação, estando sujeito às respetivas normas de forma e publicidade» - Ana Prata (Coord.), Código Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2017, p. 215. Conforme referem Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., p. 349, «(…) a medida inicial das quotas pode ser modificada por acordo ulterior dos contitulares. O acordo de modificação está sujeito às regras de forma e de publicidade a que tem de obedecer o ato constitutivo da comunhão.» Cada comunheiro pode dispor de toda ou parte da sua quota (Artigo 1408º, nº1, do Código Civil), pode aumentar a sua quota por inversão do título da posse e subsequente usucapião ou pode renunciar ao seu direito, acrescendo a sua quota aos restantes – cf. José Alberto Vieira, Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, pp. 367-368.
Atento este regime e vigorando o princípio da tipicidade ou do numerus clausus em sede de direitos reais (cf. Artigo 1306º nº1, do Código Civil), a circunstância de um dos comunheiros – num contexto em que cada comunheiro detém uma quota de 50% - suportar sozinho (ou em maior parte) as amortizações do mútuo hipotecário contraído para aquisição do imóvel não tem a virtualidade de alterar a proporção da respetiva quota, majorando-a na mesma proporção dos encargos que suporta além da metade que lhe compete. Com efeito, os comunheiros devem participar «nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas» (nº1 do Artigo 1405º do Código Civil) de modo que se um comunheiro assumir unilateralmente encargos que excedam a sua quota de 50%, ficará credor do outro pelo valor excedente.”
20 Em sentido idêntico, no Ac. TRC, de 12/9/2017, Pr. 1229/14.0T8LRA.C1, entendeu-se que a presunção de igualdade das quotas só pode ser afastada por meio de elementos do próprio título de constituição.
21 E, no Ac. TRL, de 12/9/2019, Pr. 260/11.1TVLSB.L1-2, foi referido que o facto de ficar demonstrado que uma das partes pagou mais do que a outra não é suficiente para afirmar que as quotas dos consortes são diferentes daquelas que ficaram declaradas no título constitutivo.
22 Ainda nos Acs. TRL de 8/5/2012, Pr. 2800/09.8T2SNT.L1-7, e TRL de 13/7/2021, Pr. 967/20.2T8CSC.L1-7 se diz, no mesmo sentido, que a atribuição da percentagem da quota de cada uma dos comproprietários se fixa no momento da sua aquisição, sendo irrelevante para alterar tal proporção que, cessada a união de facto entre os comproprietários, apenas um deles tenha vindo a proceder ao pagamento das prestações do empréstimo hipotecário contraído para fazer face à sua aquisição.
23 Neste caso, pese embora a autora alegue ter contribuído com montante superior para a aquisição do imóvel, não pode ver refletida essa desproporção nas quotas das partes, fixadas na escritura.
24 Questão diversa é perceber, à luz da efetiva pretensão da apelante, se a pode obter nestes autos e, em caso afirmativo, como.
Cumulação de pedidos
25 A apelante, ao interpor esta ação de divisão de coisa comum, pretendeu não apenas a divisão do bem detido em compropriedade, mas também o reconhecimento, nessa divisão, de que contribuiu com montante superior para a aquisição. Uma cumulação de pedidos, portanto.
26 A apelante não formulou, assim, a sua pretensão. Como vimos, formulou-a impropriamente sob a forma de formação dos quinhões para efeitos de divisão. Voltaremos a esta questão adiante.
27 Por ora, importa perceber se é possível cumular os pedidos de divisão de coisa comum e de reconhecimento do crédito que um dos comunheiros detenha sobre o outro relativamente à aquisição do bem.
28 A cumulação de pedidos é genericamente admitida se os pedidos forem compatíveis e não houver circunstâncias que impeçam a coligação – artigo 555.º do Código de Processo Civil. Impedem a cumulação, diferentes formas de processo respeitantes a cada pedido ou incompetência do tribunal para um dos pedidos. Ainda que os pedidos correspondam a formas de processo diferentes, o juiz pode autorizar a cumulação com vista a garantir uma justa composição do litígio – artigo 37.º do Código de Processo Civil.
29 Ainda que reconheçamos que a cumulação dos pedidos de divisão de coisa comum e de reconhecimento do crédito de uma partes, seguem forma processual diferente, o objetivo de alcançar uma justa composição do litígio exige que se considere deverem ser discutidas no âmbito do mesmo processo todas as questões relativamente ao imóvel sobre as quais as partes discordam efetivamente. Retirar ao comunheiro a possibilidade discutir na ação de divisão de coisa comum e poder ver nela reconhecidos e pagos (na fase executiva) os créditos respeitantes à aquisição, impondo-lhe dessa forma a dedução de ação autónoma para o reconhecimento dos seus créditos, é falhar na solução de buscar e encontrar no processo uma solução equitativa e definitiva para o dissenso a que o tribunal é chamado a resolver. Resolver a parte da ação relativamente à qual inexiste litígio e deixar de fora as questões que de facto dividem as partes, é falhar na prossecução desse objetivo.
30 Seguimos, assim, a jurisprudência que entende admissível a cumulação dos pedidos de divisão de coisa comum e de crédito do cônjuge, em respeito a despesas relativas à aquisição. Quer a propósito da cumulação de pedidos, quer, similarmente, a propósito da admissibilidade da reconvenção, quando é o reconvinte quem pretende fazer o acerto dos valores que pagou a mais na aquisição do bem comum.
31 A título de exemplo, citamos o Ac. TRL, de 24/11/2022, Pr. 1342/22.0T8CSC.L1-2, e o AC. TRL, de 12/9/2024, Pr. 1166/23.7T8SXL.L1-8, onde se defende que os comproprietários podem discutir na ação de divisão de coisa comum os créditos que para eles emerjam do pagamento além da respetiva quota parte de despesas, para o que deve ser admitida a cumulação do pedido de cessação da indivisão com o pedido de reconhecimento do crédito alegadamente emergente da liquidação do empréstimo contraído para aquisição do imóvel a fim de esse crédito ser compensado com o crédito de tornas que da divisão advenha para o outro comproprietário.
32 No mesmo sentido, ainda, o Ac. TRL, de 12/9/2024, Pr. 1166/23.7T8SXL.L1-8 defendendo a inexistência de incompatibilidade na apreciação dos dois pedidos.
33 Pelo que, sem necessidade de mais argumentos, pela bondade dos apresentados nas decisões citadas, concluímos que nada obsta à cumulação das ditas pretensões.
Adequação processual
34 Voltamos à questão de formulação imprópria do pedido.
35 O pedido da apelante na ação limitou-se à fixação das quotas de cada um dos comproprietários em função dos valores com que efetivamente contribuíram para a aquisição, que, como vimos, não é possível, atenta a natureza do bem e do título constitutivo.
36 Também, como constatámos, a apelante, não o tendo formulado desta forma, pretendeu cumular o pedido de divisão de coisa comum com o de crédito relativamente aos valores despendidos a mais.
37 No Ac. TRL, de 12/9/2024, Pr. 1166/23.7T8SXL.L1-8, decidiu-se que se o autor formulou de modo impreciso a sua pretensão – designadamente entendendo que os valores que pagou a mais deveriam refletir-se proporcionalmente nas quotas do bem detido em compropriedade, quando o que pretende é ser ressarcido do que pagou a mais além da sua quota, deve o tribunal, ao abrigo do dever de gestão processual interpretar e corrigir a qualificação jurídica dessa pretensão, respeitando assim a pretensão material do autor: ser ressarcido dos valores despendidos além da quota.
38 E, como resulta do acórdão, acima mencionado, proferido no Processo 967/20.2T8CSC.L1-7, “considera-se, deste modo, que o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da ação, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exata caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo lícito ao tribunal, alterando ou corrigindo tal coloração jurídica, convolar para o decretamento do efeito jurídico adequado à situação litigiosa, sem que tal represente o julgamento de objeto diverso do peticionado.
Importa, assim, considerar que é de reconfigurar juridicamente o pedido da ré, impropriamente formulado, que, de qualquer forma, poderá ser cumulado com o pedido de divisão de coisa comum e considerar que, à luz da confissão do réu resultante da falta de contestação, deverá ser reconhecido pelo tribunal de primeira instância o valor do crédito da apelante.”
39 Neste caso, como já vimos, o que a apelante verdadeiramente pretende é ser ressarcida dos valores pagos a mais no âmbito da divisão do bem. Haverá, pois, que interpretar a sua pretensão dessa forma e, à luz da mesma e dos factos provados por força da confissão do réu, definir os montantes que devem integrar o seu crédito, à luz do procedimento aludido no artigo 926.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
40 Por esse motivo, a decisão recorrida deve ser revogada, a fim de a questão ser decidida pelo tribunal de primeira instância nos termos acima referidos.
Custas
41 Nos termos do artigo 527.º, do Código de Processo Civil, o apelado deverá suportar as custas (na modalidade de custas de parte), porque vencido, face à decisão proferida na presente apelação.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que determinou a marcação de conferência de interessados, ordenando que o processo prossiga os ulteriores termos processuais adequados à apreciação do pedido da autora/recorrente de ressarcimento dos valores que despendeu além da sua quota, à luz dos factos que alegou.
Custas pelo apelado.
O presente acórdão mostra-se assinado e certificado eletronicamente.

Lisboa, 18 de novembro de 2025
Rute Lopes
Luís Lameiras
Edgar Taborda Lopes, com o seguinte voto:
"Vencido, mantendo a posição assumida no Acórdão de 07 de outubro de 2025 (Processo 7799/21.9T8ALM.L1-7) e pelas razões aí expostas."