Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2990/21.0T8LRS.L1-2
Relator: JOÃO PAULO VASCONCELOS RAPOSO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
COMPROPRIEDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
SUBSTITUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (da responsabilidade do relator):
I. O processo especial de prestação de contas, na sua forma provocada, está estruturado processualmente em duas fases, uma inicial, de definição da existência da obrigação, e uma consecutiva, de prestação e apreciação das contas propriamente ditas;
II. A primeira fase, vestibular e facultativa, culmina com uma decisão determinativa da obrigação de prestar contas, que não deve ser meramente genérica, mas determinativa do conteúdo e extensão objetiva da obrigação que declare;
III. Quando um comproprietário de uma parte fisicamente autonomizada do prédio indiviso sustente, por qualquer razão, que as contas devem ser prestadas relativamente a todo o prédio e não apenas à parte que administra, essa posição deve ser entendida como uma impugnação material aos fundamentos da obrigação, impondo uma decisão sobre a mesma;
IV. É nula, por omissão de pronúncia, a decisão proferida em processo de prestação de contas que, não apreciando os fundamentos de impugnação à obrigação, se limite a fixar prazo aos réus para prestarem contas;
V. Quando o único objeto da apelação seja a própria nulidade da decisão recorrida, não se mostra possível operar qualquer substituição pelo tribunal ad quem, impondo-se devolver a decisão à 1.ª instância.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão:
I. Caracterização do recurso:
I.I. Elementos objetivos:
- Apelação – 1 (uma), nos autos;
- Tribunal recorrido – Juízo Local Cível de Loures - Juiz 4;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – Ação de prestação de contas n.º 2990/21.0T8LRS.L1;
- Decisão recorrida – Despacho.
--
I.II. Elementos subjetivos:
- Recorrentes:
- --;
- --;
- --. –
- Recorridos:
- --;
- --. --
--
I.III. Síntese dos autos:
- Instauraram os aqui reclamados ação de prestação de contas contra as aqui reclamantes, invocando qualidade comum de herdeiros de --- e pedindo que as rés prestem contas da administração de imóvel, integrado nessa herança e não partilhado;
- Designadamente, alegam que:
- O prédio em causa tem natureza urbana, é composto por 6 divisões com utilização independente (A, B, C, D, E e F), sito na ---, Camarate, não está descrito no Registo Predial e mostra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ---, da união de freguesias de Camarate, Unhos e Apelação;
- Tal inscrição matricial mostra-se feita sem determinação de parte ou de direito, a favor do autor ---; da ré ---; do autor ---; da ---e da cabeça de casal da herança de ---;
- Quem procede à administração e gestão de facto do imóvel é a Ré ---, coadjuvada pela Ré ---;
- No dia 1/3/2014, as rés ---e ---, assim como o autor --- deram de arrendamento a uma sociedade (identificada) a divisão com utilização independente “D”, correspondente a um armazém;
- A renda de tal contrato era depositada na conta bancária da ré ---;
- No dia 15/4/2015, as rés ---e ---, assim como o autor --- deram de arrendamento a uma outra sociedade (identificada) a divisão com utilização independente “E”, correspondente a um outro armazém;
- A renda de tal contrato era depositada na conta bancária da ré ---;
- Em data indeterminada do ano 2005, a ré ---e o autor --- deram de arrendamento a uma outra sociedade (identificada) a divisão com utilização independente “F”, correspondente a um outro armazém;
- A renda de tal contrato era depositada na conta bancária da ré ---;
- Este contrato cessou em 2018, sendo que no dia 1/7/2018, as rés ---e ---, assim como o autor --- deram de arrendamento a uma outra sociedade (identificada) esta divisão com utilização independente “F”;
- A renda de tal contrato era depositada na conta bancária da ré ---;
- As rés nunca prestaram contas das rendas recebidas.
- As rés, citadas, contestaram e reconvieram, pugnando pela improcedência da ação e pedindo condenação dos autores/reconvindos a prestarem contas da administração de outras áreas do mesmo imóvel, que descrevem (divisões A, B e C);
- Assim, designadamente:
- Admitem que os três armazéns referidos na petição inicial (D; E e F) estão arrendadas, não impugnando o alegado recebimento de rendas;
- Invocam que outras três divisões (A, B e C) são utilizadas exclusivamente pelos requerentes, pessoalmente ou por meio de sociedades por si detidas, cedendo-as a terceiros onerosamente;
- As requeridas têm o direito de solicitar a prestação de contas relativas a tais divisões aos requerentes, sendo que tais contas não poderão ser prestadas de forma correta e completa se não englobarem todas as divisões do prédio.
- Findos os articulados, foi designada data para tentativa de conciliação, remarcada, designadamente por via de pedido das partes no sentido de chegarem extrajudicialmente a acordo;
- Realizou-se tentativa de conciliação, não tendo as partes chegado a acordo, mas informando da existência de negociações e solicitando prazo para a sua conclusão;
- A solicitação do tribunal, foi depois prestada nova informação nos autos, dando as partes conta de se encontrarem em negociações;
- Foi, na sequência de tal informação, proferido despacho ordenando que os autos aguardassem nos termos do art.º 281.º do CPC, com vista a eventual declaração de deserção;
- requerido o seguimento dos autos, com informação de inexistência um acordo entre as partes, veio a ser proferido despacho com o seguinte teor:
- Tendo há muito decorrido o prazo inicialmente solicitado pelas Rés na sua contestação, notifique-as, agora, para a apresentação das contas, como protestado, no prazo de 10 dias, considerando que a decisão sobre a admissibilidade da reconvenção em nada contende com a necessidade de assim procederem.
- Na sequência deste despacho, vieram as aqui reclamantes apresentar requerimento com o seguinte teor (transcrição dos trechos relevantes):
- As Rés apresentaram a sua contestação e terminaram a mesma nos seguintes termos:
(...), requer a V. Excia. se digne receber a presente CONTESTAÇÃO e, por via dela, ser a ação declarada improcedente, por não provada, com as legais consequências, devendo ser apuradas as contas (receitas, despesas e demais encargos) de todas as divisões Administradas pelos Requerentes e Requeridas, para apuramento do saldo final total.
Por mera cautela de patrocínio, caso assim, não se entenda, tendo em conta o período em questão e a necessidade de obter toda a documentação para o apuramento dos valores das receitas, das despesa e encargos, requerem, desde já, nos termos do disposto no artigo 941º n.º 2 do C. Processo Civil, a concessão de prazo, não inferior a 90 dias para a apresentação e tais contas.
MAIS REQUER a V. Excia. se digne receber a presente RECONVENÇÃO e, por via dela, declarar o pedido reconvencional procedente, por provado e, consequentemente:
a) Serem os Requerentes condenados a prestar contas, relativas às divisões A, B e C, desde março de 2014 até à presente data;
b) Serem os Requerentes condenados a pagar às Requeridas o saldo que vier ser apurado.
c) (...).
(...)
e) Em nenhum momento, talvez por erro e/ou lapso que muito se penitenciam, as Rés ficaram convictas de que já estariam em prazo para proceder à prestação de contas.
f) Aliás, ficaram a aguardar os termos ulteriores do processo.
g) Por outro lado, até à apresente data, não foram notificadas de qualquer decisão e/ou despacho, no sentido de que teriam de prestar contas e qual o prazo que teriam para o efeito
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, requer-se, muito respeitosamente, a V. Excia. se digne ordenar a reforma do presente despacho, porquanto não existe qualquer decisão e/ou despacho a ordenar a prestação de contas, seguindo-se os ulteriores termos legais
- Na sequência deste requerimento, foi proferido despacho com o seguinte teor:
No âmbito da sua contestação, as Requeridas defenderam deverem ser apuradas não só as contas referentes às divisões que administram, mas a todas, assistindo-lhes, por isso, o direito a reconvir.
Não tendo sido contestada a obrigação de prestação de contas, mas apenas sido defendida a obrigação de também os Requerentes virem a fazê-lo, os autos aguardam o cumprimento desta obrigação pelas Requeridas, o que haveria de ter sido feito já na peça processual que apresentaram.
Estando há muito decorrido o prazo de 90 dias (a contestação foi apresentada em Maio de 2021), notifique-as para assim procederem, no prazo de 10 dias.
- Nada tendo sido dito ou requerido pelas rés, aqui reclamantes, foi proferido novo despacho, com o seguinte teor:
Pese embora não se encontrando ainda a decorrer a fase de saneamento, atentos os termos processuais concretos que se seguirão, por via da não apresentação das contas pelas demandadas, cumpre desde já decidir sobre a admissibilidade do seu pedido reconvencional – artigo 6.º, n.º1, do Cód. Processo Civil.
Como bem sumariado pela Veneranda Relação de Lisboa, em 13/10/2022 (processo n.º 12238/20.0T8LSB-A.L1-8), «I– A natureza especial da acção de prestação de contas representa um obstáculo à dedução da reconvenção, atentas as regras particulares de instrução e julgamento das contas, consagradas no art.º 945º, do NCPC. II– O processo especial de prestação de contas não é adequado a discutir a compensação de créditos já que o crédito do autor apenas se apura a final.».
São razões que subscrevemos na íntegra, na esteira, aliás, de toda a doutrina ali citada.
No sub judice, tais considerandos saem reforçados, posto que as Rés não apresentaram contas, não tendo, por isso, reconhecido a existência de qualquer crédito, pelo que não se mostram preenchidos os pressupostos previstos nas alíneas a), b) ou c) do n.º2 do artigo 266.º do Cód. Processo Civil.
Por todo o exposto, não admito o pedido reconvencional.
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- Deste despacho vieram as rés interpor recurso;
- Tal recurso não foi admitido pelo tribunal a quo, sustentando-se que só poderia ser objeto de apelação com a decisão final;
- Desta decisão reclamaram as rés-recorrentes;
- Por decisão sumária desta Relação foi dado provimento à reclamação e admitido o recurso interposto, a subir de imediato, nos autos de prestação de contas e com efeito suspensivo;
- Na sequência, foi ordenada a subida dos autos. –
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II. Objeto do recurso:
II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações:
A) As recorrentes não se conformam com o despacho/decisão, porquanto o tribunal a quo, não poderia proferir uma decisão, sem resolver as questões prévias necessárias, devidamente suscitadas em sede de Contestação. Não tendo existido qualquer julgamento e/ou decisão sobre as questões levantadas em sede de contestação, não obstante, as Rés, por mera cautela de patrocínio terem requerido prazo nunca inferior a 90 dias, para prestarem contas, caso se entendesse ser o processo adequado para o efeito, deveria o tribunal sanear e decidir tais questões e não tomar a decisão que tomou, sem decidir sobre tais questões.
B) Até à apresente data, as partes não foram notificadas de qualquer outra sentença.
C) Ora, independentemente do mérito da contestação (ou não), o Tribunal a quo tinha o dever, face à contestação apresentada sobre a existência da obrigação e/ou questionados os termos em que as contas devem ser apresentadas, de apreciar tais questões e decidir sobre a concreta obrigação de prestação de contas e o objeto dessa prestação.
D) Essa decisão é um pressuposto prévio e necessário para se prosseguir para 2ª fase deste processo especial em que nos encontramos. Aliás, tal decisão, tem mesmo natureza prejudicial e impõe-se, com força de caso julgado, na 2ª fase, porque delimita a prestação e o seu objeto, o que impede que, nesta 2ª fase, se venha a discutir novamente a obrigação e/ou o objeto dessa mesma obrigação.
E) Salvo o devido respeito, mas no presente caso concreto, não foi proferida qualquer decisão com caracter definitivo, tendo o Tribunal optado decidir, por mero despacho, que o direito das Rés estava precludido antes de uma decisão final sobre a obrigação de prestar contas, o que constitui uma verdadeira nulidade processual.
F) No caso em apreço, não há dúvida que não foi seguida a tramitação processual prevista, ao ter sido proferido despacho que determina e que entende estar precludido do direito das Rés a prestarem contas, sem que tivesse havido lugar à realização da audiência de discussão e julgamento e/ou sentença sobre o mérito da causa.
G) Nessa medida, o despacho proferido nos autos no qual a Meritíssima Juíza a quo reconhece que se encontra precludida a possibilidade de prestação de contas por parte das Rés, sem qualquer outra decisão é, salvo o devido respeito, um despacho ilegal por não estar verificada nenhuma das situações em que lhe era legalmente permitido dispensar a realização desse ato processual, ou seja, da própria sentença.
H) Dito de outro modo, o despacho foi proferido em violação da tramitação legalmente estabelecida para o presente processo especial de prestação de contas, o que constitui nulidade processual, nos termos previstos no citado artigo 195º nº 1 do C. Processo Civil.
I) Por outro lado, no caso dos autos, apesar de ter havido uma tentativa de conciliação as partes não foram, posteriormente e previamente notificadas de que o Tribunal estaria em condições de conhecer do mérito da causa.
J) As Rés que se encontravam a aguardar os trâmites normais do processo foram brindadas com uma verdadeira sentença surpresa que refere que se encontra precludida a possibilidade de prestarem contas.
K) Temos assim que foi cometida nos autos uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa e se converte numa nulidade processual (artigo 196.º do C. Processo Civil), a qual se invoca para os devidos efeitos legais.
L) É entendimento das recorrentes que a douto despacho/sentença violou o disposto no n° 3 do artigo 3° do C. Processo Civil, integrando a violação do princípio do contraditório, o que, salvo melhor opinião, consubstancia a prática de uma nulidade processual, que influiu no exame ou decisão da causa.
M) Na verdade, dispõe o n° 3 do art° 3° do C. Processo Civil que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o principio do contraditório, não lhe sendo licito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem...”
N) A não observância do princípio do contraditório, no sentido de ser concedida às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre as questões que importe conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constituiu uma nulidade processual nos termos do artigo 195° n.º 1 do C. Processo Civil, obedecendo a sua arguição á regra geral prevista no artigo 197º do C. Processo Civil.
O) Com o devido respeito, a solução preconizada pelo Tribunal não tem qualquer sustentabilidade legal.
P) O despacho/sentença recorrida viola as disposições constantes dos artigos 3º, 6º, 195º n.º 1, 196º, 197º, 547º, 590º, 591º e 592º do C. Processo Civil; artigo 20º n.º 1 e 4 da Lei Fundamental
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A autora, notificada, contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos:
A. O Tribunal apenas tem de proferir decisão sobre a obrigação de prestação de contas quando o réu contestar a obrigação de prestação de contas.
B. No caso dos autos, as Rés não contestaram a obrigação de prestação de contas, apenas pretendendo que os Autores, também eles, fossem obrigados a prestar contas, sobre frações que não são objeto dos presentes autos.
C. Assim sendo, o Tribunal a quo não tinha de proferir qualquer decisão no sentido de determinar que as Rés, aqui Recorrentes, tinham de prestar contas, antes de as notificar nesse sentido.
D. O douto despacho recorrido não se encontra viciado de qualquer nulidade, tendo o Tribuna a quo se limitado a cumprir com as normas legais que regulam a ação especial para prestação de contas.
E. Caso as Rés, aqui Recorrentes, entendessem pela necessidade de proferimento de decisão sobre a contestação – no que não se concede, mas que se alvitra por mero dever de patrocínio –, então teriam de ter recorrido do despacho de 04-11-2023, que determinou que a decisão sobre a admissibilidade da reconvenção, não contendia com a necessidade de apresentação das contas, bem como do despacho de 10-07-2024, em que o Tribunal a quo expressamente referiu que entendia que as Rés não tinham contestado a obrigação de prestação de contas, pelo que tinham de apresentar as mesmas.
F. Não tendo interposto recurso de tais doutos despachos, as Rés, aqui Recorrentes, aceitaram a cristalização da obrigação de prestação das contas, e as consequências da sua não apresentação.
G. Pelo que, não se pode assacar qualquer vício ao douto despacho recorrido.
H. O presente recurso consubstancia uma utilização abusiva do processo, com argumentação dilatória, e que terá, como fito, obstar, pelo máximo tempo possível, à apresentação das contas, e ao pagamento do valor a ser apurado, pelo que se requer que seja aplicada uma taxa sancionatória excecional, nos termos do disposto no artigo 531.º, do CPC.
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II.II. Questões a apreciar:
Cumpre decidir se a decisão a quo enferma de algum vício, como suscitado pelas recorrentes e, em conformidade, decidir se deve manter-se o decidido quanto à obrigação de prestação de contas pelos recorrentes.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
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II.III. Apreciação do recurso:
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Os elementos a atender são os que constam da supra referida síntese.
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Da necessidade de apresentação de contas pelos recorrentes:
Ainda que quase autoexplicativa, deve assinalar-se a existência de uma obrigação de prestação de contas por quem administra bens em compropriedade.
Estabelece o art.º 573.º do Código Civil (CC) um dever genérico do titular de um direito de ser informado por quem esteja em condições de prestar as informações necessárias, norma que estabelece o grande quadro desta matéria, concretizado em múltiplas manifestações concretas da obrigação de prestar contas, em diferentes institutos de direito civil.
Entres estes está a situação jurídica da propriedade comum, que confere a quem administre a coisa a obrigação de prestar contas aos consortes.
Neste âmbito, estabelece o art.º 1405.º do CC a regra geral de exercício conjunto dos direitos que pertencem ao proprietário singular, assim como de participação nas vantagens do bem na proporção das quotas na comunhão.
Quanto à administração propriamente dita, estabelece o art.º 1407.º uma regra supletiva de administração pela maioria dos consortes, expressamente remetendo para o regime de administração das sociedades civis (art.º 985.º), devidamente adaptado, conferindo a todos uma igual legitimidade para tal exercício.
Quer isto dizer, portanto, que qualquer consorte pode administrar o bem comum, mas fica obrigado a prestar contas da sua gestão aos demais.
Vertendo ao caso, a situação apresentada tem uma configuração atípica, na medida em que o bem em compropriedade mostra-se fisicamente dividido em seis unidades autónomas, geridas por diferentes consortes – os tais seis armazéns identificados de A a F.
O prédio em compropriedade é, portanto, composto por seis armazéns independentes, sendo cada um deles administrado autonomamente e gerando receitas próprias.
De acordo com o que consta dos autos, foi estabelecido um acordo de administração entre os consortes, por meio do qual ficou estabelecido que as recorrentes ficaram a administrador três dos armazéns e os recorridos outros tantos.
Nada há a sindicar quanto à licitude deste consenso que, aliás, não foi questionada pelas partes.
A regra que estabelece igual direito à administração, correspondida em participação proporcional nos proveitos, é meramente supletiva e, portanto, um acordo como o estabelecido não põe em causa qualquer disposição inderrogável.
Pode até dizer-se, numa análise geral, que decorre do acordo até um propósito de igualação nos proveitos, como se infere uma intenção genérica de desnecessidade de prestação de informações permanentes pela gestão de cada armazém.
Neste sentido, o acordo é uma espécie de partilha de administração, dividindo em igual número as unidades físicas autónomas e estabelecendo uma base de correspondente autonomia de ganhos entre comproprietários.
Isto não quer dizer, pelo contrário, que se possa considerar que existiu um acordo de partilha do bem, em sentido próprio, ou sequer algum acordo de dispensa de prestação de contas.
O acordo pode ser referido em termos simples por "cada um administra o seu armazém e obtém os respetivos proveitos", não traduzindo uma qualquer manifestação de vontade além desta, que também se não pode presumir.
Nos termos das disposições legais supra referidas, cada consorte tem obrigação de dar contas aos demais da sua administração, independentemente dos acordos concretos que possam ter celebrado quanto à forma de administração e distribuição dos proveitos do bem.
A rés/recorrentes têm, em síntese final quanto a este ponto, o dever de prestar contas da sua administração, isto é, dos "seus" armazéns, como, pelo contrário, os autores/recorridos terão também idêntica obrigação, quanto àqueles que são por si geridos.
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Perante este quadro jurídico, como interpretar a posição assumida pelos réus na sua contestação?
Recorde-se que estes não contestaram diretamente a obrigação de prestação de contas, ou a alegação de base que a sustenta (a referida circunstância de administrarem três armazéns integrados no bem comum), sustentando apenas que as contas devem ser prestadas relativamente a todos os armazéns (portanto, não apenas quanto àqueles por si administrados), simultaneamente deduzindo reconvenção para que fossem prestadas contas pelos autores/recorridos quanto àqueles que gerem.
Antes de avançar na resposta, deve referir-se que o recurso em apreciação é de um despacho que não admitiu a reconvenção deduzida.
Não consta como objeto recursório, por não ter sido indicado pelos recorrentes como tal, a decisão de não admissão da reconvenção.
A despeito dessa omissão, não se pode considerar que o conhecimento da reconvenção deduzida se mostra já definitivamente impedido, na medida em que, assentando o recurso numa invocação de nulidade total do despacho recorrido, a ser procedente, levaria a que todo este perdesse a sua eficácia decisória e, consequentemente, voltasse a questão da admissibilidade da reconvenção a ficar em aberto.
Essa não é, em todo o caso, questão a conhecer diretamente neste recurso.
Estabelecido isto, volta-se à questão colocada: - Deve considerar-se que os réus/recorrentes, ao dizerem que as contas devem ser prestadas relativamente a todos os armazéns e não apenas aos administrados por si, contestaram a obrigação ou aceitaram-na?
De acordo com as premissas da decisão recorrida, essa posição equivale a uma aceitação da obrigação que, associada à declaração de inadmissibilidade da reconvenção, levou a uma primeira fixação de prazo para prestação, depois à sua prorrogação e, finalmente, à declaração de incumprimento da obrigação e à transferência do direito para os autores/recorridos.
Assinale-se que, nos termos dos números 2 e 3 do art.º 942.º do Código de Processo Civil (CPC), a existência de uma contestação à obrigação de prestação de contas determina a necessidade de prolação de decisão sobre a questão – se a obrigação não for contestada, o direito do réu limita-se à faculdade de requerer uma extensão de prazo para apresentar contas (n.º 2), se o for, o autor pode responder, sendo produzidas provas e proferida decisão, podendo as partes ser relegadas para discussão em processo comum, se o tribunal entender que a existência da obrigação não pode ser sumariamente decidida (n.º 3).
A estrita literalidade destas normas não permite responder à questão apresentada, mas a sua interpretação racional e teleológica torna claro o caminho a seguir.
Antes de avançar, deve referir-se que, nos termos do acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 5/2021 (Diário da República, série I, de 25/11/21)1 é admitida revista do acórdão que decida da existência da obrigação de prestar contas.
Voltando às normas, pode dizer-se que as referências constantes do n.º 3 do art.º 942.º à necessidade de produção de provas e à decisão do juiz de mandar as partes para os termos do processo comum, tornam claro o respetivo sentido.
A lei pretende separar claramente as situações em que o processo de prestação de contas tenha duas fases bem marcadas (a declaração da obrigação e a prestação de contas propriamente dita), prevendo até que a primeira fase seja decidida autonomamente, em processo comum (quando a complexidade das questões a decidir o imponha), das situações em que tenha apenas uma fase – a referida apresentação, propriamente dita.
A fronteira estabelece-se na contestação da obrigação, mas esta contestação não pode ser uma manifestação inócua de intenção, ou sequer uma mera formulação de uma posição jurídica, terá que ser uma contestação dos factos fundamentadores da existência de uma obrigação de prestar contas, isto é, à verdadeira existência de uma administração de bens alheios (ou parcialmente alheios) ou a qualquer necessidade de delimitação, objetiva ou subjetiva, da obrigação.
A referência à necessidade de produzir provas, bem como à eventual remessa para processo comum leva a que este sentido normativo se imponha – a contestação deve ser de facto, à matéria relativa ao conteúdo da administração; não uma contestação de direito, que procure enquadrar factos indisputados ou efetuar a sua subsunção jurídica de forma diversa da propugnada.
Sendo esta a interpretação racional que resulta da regra processual, é também compatível com a sua teleologia, que decorre da natureza especial do processo.
A especialidade do processo de prestação de contas situa-se na fase da sua apresentação propriamente dita, para onde a gestão do processo deve ser dirigida, com a agilidade que a sua natureza impõe. A fase inicial é de declaração da obrigação.
Esta fase de declaração da obrigação apresenta-se a como meramente vestibular, devendo até ser dispensada, quando não existam dúvidas acerca da respetiva existência. É, portanto, uma fase facultativa e será também tendencialmente sumária.
Neste sentido, não se pode dizer que os réus-recorrentes tenham contestado o essencial da sua obrigação, isto é, que tenham posto em causa que se encontrem a administrar bens comuns e a recolher proveitos dessa administração e, portanto, que tenham a obrigação de informar todos os consortes dessa administração.
O que os réus contestam é a (eventual) condenação no pagamento de um saldo de administração da parte por si gerida, desconsiderando o saldo da administração da parte gerida pelos autores-recorridos.
Tem sido entendido que, uma vez apurado um saldo de administração, quem prestou contas fica condenado no pagamento do respetivo valor (assim, designadamente, acórdão da Relação de Coimbra de 16/12/2015, Sílvia Pires, trc.pt)2, entendimento que se estendeu já até à declaração de exequibilidade da sentença de prestação de contas que omita qualquer condenação no pagamento de um saldo (assim, cf. Relação de Évora de 27/1/2022, --- Imaginário)3.
Quer isto dizer que a contestação tem um conteúdo útil e um intuito concreto – impedir que os comproprietários possam ser condenados no pagamento do saldo de gestão, efetuando compensação sobre o direito aos proveitos da administração dos consortes que exigem contas.
Se a impugnação for assim entendida, e porque a ação de prestação de contas determina naturalmente uma dimensão condenatória no pagamento do saldo que se apure, existe uma verdadeira controvérsia factual subjacente ao conteúdo da obrigação.
Neste contexto, pode até dizer-se que o pedido dos autores é verdadeiramente artificioso, porque limita a obrigação de prestação de contas a uma parte do bem em compropriedade, omitindo os seus próprios proveitos sobre o bem.
Neste ponto de análise ganha pertinência o quadro legal de regulação da matéria que, pode dizer-se, não está especificamente previsto para este tipo de casos (como, tantas vezes, a lei não está, por ser incapaz de acompanhar a criatividade humana).
Em termos simples, a lei está pensada para uma administração de todo o bem comum por um dos consortes e é a partir dessa premissa que estabelece a obrigação de prestar contas e, se for o caso, estabelece também a condenação do administrador no saldo de gestão.
Num caso em que os comproprietários dividem fisicamente o bem, de forma artificial, i.e., não separando o bem em novas unidades jurídicas, mas limitando-se a separá-lo para efeitos de administração, a única forma de obter um saldo de administração correto é considerando a administração de todo o bem.
O princípio contido na regra é esse – as contas do bem em compropriedade devem ser prestadas de forma unitária, relativamente a toda a unidade, não de forma segregada, de acordo com as conveniências e o interesse de algum consorte.
Assim interpretada a contestação, ela contém uma verdadeira impugnação da obrigação de prestar contas, não porque infirme a existência de uma administração de bens alheios, mas porque afirma que essa administração não se estende a todo o bem, associada à afirmação da necessidade de apresentação unitária das mesmas.
Perante esta posição, antes de deter expressamente atenção nos vícios invocados no despacho recorrido, que caminhos poderia tomar o tribunal num contexto processual como o dos autos?
Configuram-se, a priori, quatro possibilidades.
- Ou admitia a dedução de reconvenção, estabelecendo uma obrigação recíproca de prestação de contas quanto às partes fisicamente autonomizadas do prédio, caminho que, como referido, o tribunal a quo expressamente indeferiu (ainda que a questão não seja objeto direto deste recurso);
- Ou estabelecia uma obrigação de prestação de contas da administração de todo o prédio pelos consortes a quem elas são exigidas e, nesse caso, impunha aos réus a obrigação de prestarem contas da administração dos proveitos de todo o bem, mesmo das partes não administradas por si, conferindo-lhes necessariamente a faculdade de solicitarem as informações que tivessem por pertinentes à contraparte;
- Ou estabelecia uma obrigação de prestação de contas das partes autonomizadas do prédio administradas pelos réus, mas expressamente ressalvando a não condenação no pagamento de qualquer saldo, até que fosse apurado o saldo de administração da parte do prédio administrado pelos autores:
- Ou, por fim, estabelecia uma obrigação de prestação de contas e de pagamento do saldo apurado, como peticionada, relegando quaisquer outras contas, outro saldo e eventual existência de compensação para discussão para outra sede (caminho que, aparentemente, terá sido o seguido pelo tribunal a quo, ainda que não desenvolvendo este juízo, pelo menos expressamente).
A verdade é que este caminho desconsidera a realidade efetiva do prédio e da sua administração (prédio com seis divisões, correspondentes a outros tantos armazéns autónomos, três dos quais serão administrados pelas rés e outros três administrados pelos próprios autores).
A realidade da administração do bem em compropriedade é um pressuposto necessário da prestação de contas. É uma verdadeira questão de delimitação objetiva e subjetiva da obrigação e, no limite, até de declaração de inexistência da mesma (importa não esquecer que a inscrição apurada é meramente matricial e pode existir uma situação substantiva de comunhão hereditária e, nesse caso, a obrigação de prestar contas poderá ser, prima facie, do cabeça de casal).
Nesse sentido, fechando este ponto, pode concluir-se que o tribunal a quo seguiu um caminho decisório baseando-se num pressuposto que, devidamente analisado, não tem sustentação jurídica – que os réus não contestaram a obrigação de prestar contas.
A verdade é que a posição destes deve ser entendida como uma verdadeira contestação à obrigação, não à sua existência geral, mas ao seu conteúdo e extensão.
A partir desta consideração pode avançar-se.
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b) Da invocada nulidade do despacho recorrido:
Qualificam os recorrentes esta omissão como uma nulidade processual à luz do art.º 195.º do CPC, convocando também para sustentar esta invocação o regime de proibição de decisões-surpresa estabelecido pelo art.º 3.º n.º 3 do CPC.
Nos termos do art.º 195.º n.º 1 do CPC, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
De acordo com esta argumentação, tratar-se-ia de uma decisão não esperada, determinativa deste vício.
Diga-se que é objeto de ampla controvérsia a qualificação do vício de desrespeito pelo contraditório, decorrente de violação do estatuído pelo art.º 3.º n.º 3 do CPC (a propósito, com amplas referências jurisprudenciais, Lemos Jorge e Ramos Faria, Julgar Digital)4.
Em todo o caso, considerando que o tribunal a quo declarou, por duas vezes, que as rés e recorrentes deveriam apresentar contas, concedendo-lhe dois prazos para o efeito, não se configura como uma surpresa a decisão tomada, pelo menos no momento em que foi reiterada, com a concessão de um prazo adicional para o efeito de apresentação de contas (diga-se que o primeiro despacho sobre a questão não foi sequer objeto de recurso).
Existe uma decisão e não se pode qualificá-la como surpresa.
Será que se pode qualificar esta omissão de decisão como nulidade, à luz do que dispõe o art.º 195.º?
Seguindo o que diz Miguel Teixeira de Sousa (CPC online, p. 22)5, o n.º 1 estabelece dois elementos para esta nulidade inominada: o elemento normativo e o elemento consequencial.
O elemento normativo abrange duas situações distintas: (i) a prática ou a omissão indevida de um acto; (ii) a omissão indevida de uma formalidade imposta por lei.
Continuando a seguir este professor (loc cit.), a nulidade refere-se exclusivamente ao acto enquanto elemento do procedimento, isto é, enquanto elemento da tramitação da causa. A nulidade processual cominada no n.º 1 decorre da prática ou da omissão indevida de um acto em função da tramitação do processo ou da inobservância de uma formalidade na prática de um desses actos, acrescentando que é equivocado reconduzir à nulidade atípica regulada no n.º 1 qualquer vício respeitante ao conteúdo do acto.
Considerando o teor da decisão recorrida e o contexto processual em que foi proferida, pode dizer-se, com segurança:
a. Que foi proferida uma decisão, i.e., que não existe uma omissão propriamente dita;
b. Que essa decisão teve como pressuposto a inexistência de uma contestação relativa à obrigação de prestação de contas;
c. Que a decisão, na medida em que foi até reiterada, não foi proferida sem que a parte se pudesse ter pronunciado;
d. Que, pelo contrário, a decisão não assentou nos pressupostos materiais e processuais em que deveria ter assentado, aparecendo desviada da que devia ter sido proferida – impunha-se uma declaração da obrigação de prestar contas, e respetiva delimitação, e foi proferida uma decisão de fixação de prazo para as apresentar que, uma vez desrespeitado, deu lugar a uma decisão de concessão do direito à contraparte.
Sendo este o enquadramento relevante, deve entender-se que a falta apontada deve ser qualificada como uma invocação de um vício de omissão de pronúncia.
A arguição dos recorrentes, com a particularidade de se referir a um processo especial com as especificidades supra referidas (imposição de decisão da questão de existência da obrigação de prestação de contas apenas nos casos de impugnação da obrigação), reconduz-se materialmente a esse vício, em sentido próprio.
Atente-se, antes de mais, que os recorrentes sustentam que o tribunal não decidiu uma questão que devia ter conhecido.
Diga-se, seguidamente, que não se pode dizer que o tribunal tenha absolutamente omitido uma decisão, na medida em que declarou reiteradamente que os réus/recorrentes deviam apresentar contas, tendo até fixado dois prazos para o efeito. O que foi omitido (considerando esta expressão no seu sentido natural e, por agora, não jurídico) foi a consideração de uma contestação à obrigação e, por consequência, uma decisão expressa desta questão prévia, ou inicial.
A falta ou excesso de pronúncia, prevista e estatuída pela al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do Código de Processo Civil (CPC) mostra-se verificada quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Equivale ao chamado erro de atividade ou erro na construção da decisão, não se confundindo com um erro de julgamento, de facto ou direito, que se refere ao próprio conteúdo da decisão (cfr., a propósito, por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça STJ - de 11/10/2022, Isaías Pádua, dgsi.pt)6.
Não se trata, portanto, de uma decisão de uma dada matéria factual de modo desconforme com a prova ou apresentar um enquadramento jurídico que não possa ser sustentado. Trata-se apenas de não seguir um iter de avaliação e decisão que pondere devidamente todo o objeto do litígio, que é o mesmo que dizer, que resolva todas as questões submetidas a decisão, mas apenas aquelas que o são.
Disse-se no anteriormente referido acórdão do STJ, a propósito do que deva entender-se por "questão a resolver na sentença", que o conceito de “questão”, deve ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, dele sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (neste sentido, veja-se também o acórdão STJ de 8/2/2024, Nuno Pinto de Oliveira, loc. cit)7.
Esta ligação direta entre o conceito de questão, para este efeito, e os de pedido e causa de pedir, é uma ideia essencial a reter, como o é, pela negativa, a independência da mesma face aos argumentos ou motivos esgrimidos pelas partes – sendo certo que o tribunal não está também vinculado à qualificação jurídica feita por estas.
Uma questão é aquilo que o tribunal tem que decidir para verificar da sustentação do pedido, tendo por base a causa de pedir apresentada. Não são questões os meros argumentos apresentados no processo.
Depurando esta análise, pode concluir-se, portanto, que será irrelevante a circunstância de as partes terem valorizado ou desvalorizado um determinado elemento dos autos. O que releva será saber se, estando esse elemento no processo, é ou não importante para a apreciação do pedido, nos termos delimitados pela causa de pedir apresentada pelo autor/requerente.
Estabelecida esta base, para apreciar da existência de uma falta de pronúncia há que partir, necessariamente, do teor da decisão.
É o caso.
O tribunal construiu a decisão determinativa da prestação de contas, em prazo que fixou, no pressuposto, que se afigura incorreto, de inexistência controvérsia factual quanto à obrigação.
Existindo matéria decisória a estabelecer quanto à própria existência e conteúdo da obrigação de prestar contas, a decisão devia ter seguido um caminho decisório diverso, firmando-se nesta questão inicial e, só depois de estabelecida a mesma, definindo o conteúdo e prazo das contas a prestar.
Como supra referido, o tribunal considerou verificada uma obrigação de prestação de contas pelos réus, de forma segmentada e não relativa a todo o bem (isto é, apenas aos três armazéns por si administrados e não aos seis que o compõem), partindo do pressuposto que essa obrigação foi incontestada.
Pelas razões também supra referidas, o verdadeiro enquadramento da contestação, considerando a atipicidade material do litígio, é de existência de uma contestação da obrigação, se não em absoluto, nos termos materiais que foram delimitados pelos autores, aqui recorridos.
É fundada, portanto, a asserção inicial que o tribunal não conheceu de uma questão que devia conhecer, questão esta pode ser assim resumida: – têm, ou não, os comproprietários que prestar contas apenas da parte do prédio que administram, estando os demais consortes (e requerentes de informação) a administrar a parte restante e a colher os respetivos proveitos?
Chegando a este ponto, não está ainda afirmada uma omissão de pronúncia relevante, i.e., de um vício na construção da decisão.
Para tanto não basta demonstrar que uma questão não foi conhecida na sentença. É essencial estabelecer que deveria tê-lo sido.
A este nível impõe-se enquadrar devidamente o tema em apreço, considerando o seu valor substantivo, de um lado, e a própria estrutura deste processo, de outro.
Em termos substantivos, é manifesto que a questão tem relevo para o pedido e relaciona-se diretamente com a causa de pedir – que contas devem os comproprietários.
Em termos processuais, é objeto central desta ação a existência de uma obrigação, incluindo a sua extensão objetiva.
É, portanto, também, de forma clara, uma questão que o tribunal deveria conhecer, sendo aliás o objeto exclusivo da decisão inicial do processo.
Não o tendo feito, verifica-se omissão de pronúncia, que cumpre declarar.
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c) Das consequências da omissão de pronúncia.
Verificada a nulidade, por omissão de pronúncia, impõe-se avaliar das respetivas consequências.
O CPC, pelo art.º 665.º n.º 1, estabelece uma regra de substituição do tribunal a quo, dispondo que, ainda declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação.
Diz, António Abrantes Geraldes8, a propósito da anulação de uma decisão que não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários.
Sucede, no caso, que a única questão suscitada pelo recurso é a própria nulidade o que, de imediato, retira base a qualquer conhecimento adicional.
Neste sentido, seguindo ainda Abrantes Geraldes (loc. cit.), o tribunal de recurso, por regra, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665.º, n.º 2, argumento que, a contrariu, pressupõe, evidentemente, que haja mais questões a apreciar na apelação além da própria nulidade.
Ficando o recurso limitado a este tema, nenhum outro objeto recursório permanece, impondo-se determinar à 1.ª instância que profira, em substituição da decisão recorrida, uma outra que aprecie expressamente a obrigação de prestar de contas.
Essa decisão deverá, além da declaração da obrigação em geral (isto é, se existe, na pessoa dos réus ou, eventualmente, noutra esfera jurídica, v.g. no contexto de administração de património hereditário), deverá também definir o seu âmbito concreto (isto é, se relativa a todo o bem ou apenas às partes juridicamente indivisas, mas física e economicamente autonomizadas do mesmo, correspondentes aos três armazéns indicados pelos autores).
É o que se decide, concedendo-se a apelação.
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III. Decisão:
Face ao exposto, concede-se a apelação e, anula-se a decisão recorrida, determinando-se a sua substituição por outra que aprecie a existência da obrigação de prestar contas pelas rés e, caso a estabeleça, fixe o seu respetivo objeto e extensão, nos demais termos supra referidos.
Custas pelos recorridos.
Notifique-se e registe-se. –
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Lisboa, 20 de novembro de 2025
João Paulo Vasconcelos Raposo
António Moreira
Inês Moura
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1. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 5/2021 | DR
2. Prestação de contas. Finalidade da ação. Prestação forçada de contas. Critério de julgamento das contas apresentadas pelo autor – Tribunal da Relação de Coimbra
3. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora
4. As outras nulidades da sentença cível | Julgar
5. 02 CPC online - 186-202 (vs. 2021.06).pdf - Google Drive
6. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
7. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
8. Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, 2020, pág. 381.