Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES | ||
Descritores: | HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO NULIDADE DA CESSÃO SIGILO BANCÁRIO PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/27/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I – A nulidade de um negócio jurídico com fundamento na contrariedade à lei pressupõe a existência de uma norma legal que proíba, direta ou indiretamente, a sua celebração. II – Assim, sucede com a norma do art. 6.º/1 do CSC que proíbe a celebração de negócios que não sejam nem necessários nem convenientes à prossecução do fim das sociedades comerciais, o qual consiste na obtenção de lucros a serem repartidos pelos seus sócios ou atribuídos ao sócio único, no caso das sociedades unipessoais. III – O fim não deve ser confundido com o objeto da sociedade, o qual consiste na atividade ou conjunto de atividades que a sociedade se propõe realizar para alcançar aquele. IV – A cessão de créditos que têm a sua fonte em negócios jurídicos de natureza bancária, importando apenas a transmissão do lado ativo da relação obrigacional, não é, em si mesma, um ato de natureza bancária nem implica, para o cessionário, o exercício de qualquer atividade exclusiva das instituições de créditos e das sociedades financeiras. V – Assim, a cessão de créditos bancários a uma sociedade que não é instituição de crédito nem sociedade financeira não é proibida pelo art. 8.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31.12. VI – A cessão de créditos bancários não é proibida nem pela norma do art. 78 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, nem pela do art. 6.º/1 do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados, que se apresentam como meras normas de conduta. VII – A violação de tais normas pelo cedente, através (i) da comunicação ao cessionário de informações cobertas pelo sigilo que não sejam as estritamente necessárias à cobrança do crédito ou (ii) da transmissão de dados pessoais do cedido sem que sejam observados os cuidados exigidos pela lei, pode gerar responsabilidade civil, criminal ou contraordenacional, mas não determina a nulidade do negócio jurídico de que resulte a cessão de créditos. VIII – Este entendimento permite o equilíbrio entre o direito de crédito do cedente e os direitos do cedido que são tutelados pelas referidas normas, pelo que a norma que assim delas se retira por via interpretativa não afronta o direito de personalidade à reserva da vida privada e familiar do cedido, consagrado no art. 26/1 e 2 da Constituição da República. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães *** I.1) Por sentença de 19 de junho de 2020, nos autos principais, foi decretada a insolvência de AA e fixado em 30 dias o prazo para a reclamação de créditos. Dentro desse prazo, o Banco 1..., SA (Banco 1...), reclamou créditos junto do administrador da insolvência, os quais foram por este reconhecidos na lista a que se refere o n.º 2 do art. 128 do CIRE. Não tendo sido objeto de impugnação, esses créditos foram verificados e graduados na sentença proferida a 19 de março de 2024, no apenso E. Entretanto, por requerimento apresentado a 19 de março de 2023, EMP01..., SA, requereu a sua habilitação como cessionária daqueles créditos alegando, em síntese, que os mesmos lhe foram cedidos pelo Banco 1... através de contrato de cessão de créditos entre ambos celebrado no dia 14 de outubro de 2022. Notificado, o insolvente apresentou contestação na qual alegou, em síntese, que: desconhece o valor pelo qual foi feita a cessão dos créditos; não aceitou essa cessão; a aquisição de créditos litigiosos é ato que não faz parte do objeto social da requerente, pelo que a cessão é nula “nos termos do art. 294 do Código Civil e por violação do disposto nos arts. 6.º/1 e 397/2 do CSC” (sic); os “documentos que supostamente titulam a cessão não documentam qualquer acordo entre cedente e cedida” (sic); “são meras declarações negociais”, atribuídas a esta e “desacompanhadas de provas da existência de qualquer pagamento (que expressamente referem) e sem que atestem a declaração negocial de aceitação pela requerente” (sic); nessa medida, “violam o disposto nos arts. 577 e 578 do Código Civil, sendo nulos para efeitos do disposto nos arts. 294 e 286 do mesmo diploma” (sic); a cessão é ainda nula uma vez que a cessionária “não cumpria as exigências apertadas do RGICSF, por não possuir nem o tipo social necessário, sem o objeto social, nem o capital mínimo necessário, não havendo qualquer escrutínio de qualquer entidade pública (…) sobre a sua organização interna e sobre os titulares dos seus órgãos sociais” (sic); a cessão é nula, nos termos do disposto nos arts. 280 e 294 do CPC, porque implicou, por parte da cedente, a violação do sigilo profissional a que estava obrigada, nos termos do art. 78 do RGICSF, e a transmissão de dados pessoais, com a consequente violação do RGPD. O Banco 1... não apresentou contestação. No dia 1 de fevereiro de 2024, foi proferida sentença a julgar procedente o incidente e a habilitar a requerente como cessionária dos créditos reclamados pelo Banco 1.... *** 2) Inconformado, o insolvente (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor:I. Andou mal o Tribunal a quo quando decidiu pela habilitação da sociedade EMP01..., S.A, admitindo-a a intervir nos autos como parte legítima. II. O tribunal a quo deveria ter considerado a incapacidade da cessionária. III. É forçoso reconhecer-se que a alegada cessão de créditos foge na integra a objeto social da empresa adquirente, pois do lado da cessionária não se vislumbra que esta tenha como objeto a aquisição de créditos litigiosos. IV. É o próprio tribunal a quo que menciona que os respetivos órgãos da sociais têm o DEVER de não exceder o seu objeto social. V. Tendo em consideração o caso em concreto, não deixa dúvida nenhuma de que, a entidade cessionária excedeu o seu objeto social. VI. Pelo que deve entender-se que a alegada cessão de créditos sempre seria nula, nos termos do artigo 294 do Código Civil e por violação do disposto nos artigos 6º n.º 1 e 397º n.º 2 do CSCom. VII. Por outro lado, o tribunal a quo deveria ter declarado que a cessão de créditos realizada violou o exposto no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), bem como o segredo bancário e a violação do regime da proteção de dados pessoais. VIII. É indiscutível que, a cessionária não é uma instituição de crédito ou sociedade financeira e tão pouco reúne as condições exigidas no citado diploma para as referidas instituições ou sociedades e, nessa medida, é indiscutível que a Requerente não está habilitada ao exercício das atividades que estão reservadas àquelas instituições. IX. Apesar do tribunal a quo referir que, no seu entendimento, a aquisição dos créditos em causa não envolver o efetivo exercício pela cessionária de nenhuma das referidas atividades naquele regime jurídico e que estão reservadas às instituições de créditos, tal não é necessariamente verdade. X. Isto porque, tendo-lhe sido cedido um crédito bancário, necessariamente, terá a cessionária necessariamente e obrigatoriamente de desenvolver uma qualquer daquelas atividades previstas no Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF). XI. Nessas circunstâncias, resulta que a cessão de créditos efetuada envolve o exercício das atividades que, por força do citado diploma, estão reservadas às instituições de crédito. XII. O que está em causa é uma cessão da posição contratual que, enquanto tal, envolveu a transmissão da totalidade do crédito e tudo o que advém do mesmo. XIII. Existe, portanto, impedimento à admissibilidade da cessão de créditos resultante da circunstância da cessionária não ser uma instituição de crédito; XIV. Pelo que, a cessão dos créditos em causa implica que a cessionária exerça qualquer atividade ou praticar qualquer ato que estejam reservados às instituições de créditos. XV. Demais, e como se disse na contestação, ocorreu in casu, violação do segredo bancário e da lei de proteção de dados na operação da cessão de créditos em crise e que tem implicações na validade dessa cessão. XVI. Conforme disposto no art. 78.º do RGICSF, os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional estão vinculadas ao dever de segredo ou sigilo não lhes sendo permitido, sem autorização do cliente, revelar ou utilizar informações respeitantes, designadamente, aos nomes dos clientes e operações bancárias com eles celebradas, ressalvadas as exceções previstas na lei e, mais concretamente, no art. 79.º do referido diploma legal. XVII. A Lei n.º 58/2019 de 08/08 dispõe, no seu art. 6.º que: “O tratamento de dados pessoais só pode ser efetuado se o seu titular tiver dado de forma inequívoca o seu consentimento ou se o tratamento for necessário para: a) Execução de contrato ou contratos em que o titular dos dados seja parte ou de diligências prévias à formação do contrato ou declaração da vontade negocial efetuadas a seu pedido; (…) e) Prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados.” XVIII. E o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) da União Europeia, acima citado, dispõe em termos semelhantes nos respetivo art. 6.º. XIX. Ora, sendo inadmissível, em face da lei, a cessão de créditos efetuada, a inadmissibilidade do tratamento/comunicação dos dados ao cessionário é obviamente ilegítima, e carece, concomitantemente do consentimento do respetivo titular, conforme exigido no art. 5.º, n.º 1, alínea b), da citada Lei e do citado Regulamento XX. O tratamento dos dados assim efetuado é inteiramente incompatível com as finalidades para as quais eles haviam sido recolhidos. XXI. É necessário que a cessão de créditos seja feita em concordância com todas as normas e princípios aplicáveis à proteção de dados, exigindo-se, por um lado, a necessidade de obtenção de autorização da CNPD para o seu tratamento (arts. 27.º e 28.º, n.º 1, alínea c) da LPDP) e exigindo-se, por outro lado, que o responsável pelo tratamento de dados garanta a observação das medidas de segurança previstas no artigo 15.º da LPDP, por força do previsto no artigo 7.º, n.º 2 do mesmo diploma legal e que o cessionário fique também obrigado a garantir a observação dos direitos que assistem ao titular dos dados – o que não se verifica no presente caso. XXII. Refira-se que, no caso, essas medidas de segurança não terão sido observadas, uma vez em momento algum a cessionária assumiu a qualidade de responsável pelo tratamento dos dados e a observância dos direitos que assistem ao titular dos dados e nem sequer sabemos se foi (ou não) obtida autorização da CNPD. XXIII. Não existindo, sequer, qualquer indício de que a CNPD autorizasse o tratamento dos dados nessas circunstâncias, tal como mencionado pelo Tribunal a quo. XXIV. Pelo que, a cessão de créditos enferma de nulidade, nos termos do disposto nos arts. 280.º e 294.º do CC., que expressamente se invoca. XXV. Bem como, com a manutenção da decisão, considerar a decisão que resulta da conjugação do disposto nos artigos 6.º da LPDP, arts. 27.º e 28.º, n.º 1, alínea c) da LPDP e arts. 280.º e 294.º do CC, interpretadas no sentido de ser permitido a derrogação do segredo bancário e da lei de proteção de dados na operação da cessão de créditos, inconstitucionalidade, por violação do exposto no artigo 26º da CRP, em particular do principio do direito pessoal à reserva da vida privada o que aqui expressamente se invoca.” Pediu que, na procedência do recurso, seja revogada a sentença, declarando-se a nulidade da cessão de créditos, “nos termos do exposto nos artigos 280º, 294. do Código Civil e por violação do disposto nos artigos 6º n.º 1 e 397º n.º 2 do CSCom, ou, mantendo a decisão, considerar a decisão que resulta da conjugação do disposto nos artigos 6.º da LPDP, arts. 27.º e 28.º, n.º 1, alínea c) da LPDP e arts. 280.º e 294.º do CC, interpretadas no sentido de ser permitido a derrogação do segredo bancário e da lei de proteção de dados na operação da cessão de créditos, inconstitucional, por violação do exposto no artigo 26º da CRP, em particular do principio do direito pessoal à reserva da vida privada.” A requerente (daqui em diante, Recorrida) não apresentou resposta. O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem. Foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos. *** II.As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC). Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação. Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos: 1.ª Erro na interpretação das normas dos arts. 6.º/1 e 397 do CSC e dos arts. 280 e 294 do Código Civil, por não ter sido declarada a nulidade do contrato de que resultou a cessão de créditos com fundamento no facto de a aquisição de créditos litigiosos estar excluída do objeto social da Recorrida; 2.ª Erro de interpretação das normas do art. 8.º/1 do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL n.º 298/92 de 31.12, e dos arts. 280 e 294 do Código Civil, por não ter sido declarada a nulidade do contrato de que resultou a cessão de créditos com fundamento no facto de este importar a transmissão de um crédito de natureza bancária, sendo assim ato próprio de uma atividade cujo exercício está vedado à cessionária; 3.ª Erro de interpretação das normas do art. 78 do RGICSF e dos arts. 280 e 294 do Código Civil, por não ter sido declarada a nulidade do contrato de que resultou a cessão de créditos com fundamento no facto de este ter importado a transmissão de informações em relação às quais o cedente estava obrigado a manter sigilo; 4.ª Erro de interpretação das normas dos “artigos 6.º da LPDP, arts. 27.º e 28.º, n.º 1, alínea c) da LPDP” (sic)e dos arts. 280 e 294 do Código Civil, por não ter sido declarada a nulidade do contrato de que resultou a cessão de créditos com fundamento no facto de este ter importado a transmissão de dados pessoais de terceiros que ao cedente cabia guardar; 5.ª Inconstitucionalidade “da decisão” (sic) “que resulta da conjugação do disposto nos artigos 6.º da LPDP, arts. 27.º e 28.º, n.º 1, alínea c) da LPDP e arts. 280.º e 294.º do CC, interpretadas no sentido de ser permitido a derrogação do segredo bancário e da lei de proteção de dados na operação da cessão de créditos, por violação do exposto no artigo 26º da CRP, em particular do principio do direito pessoal à reserva da vida privada.” *** III.1).1. Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos: 1. Por Contrato de Cessão de Créditos, assinado em 14 de outubro de 2022, o Banco 1..., S.A. cedeu o(s) crédito(s) identificados como: 20_2626287805_LET; 20_5780536870_DDA; 20_18055596_RLS; 20_221487871_CLS_20_311842407_OCV; 70_1504288623_MLS, que detinha sobre o(s) requerido(s) e todas as garantias acessórias a ele(s) inerentes, à EMP01..., S.A., conforme documento n.º 1 junto com a p.i., cujo teor se dá por reproduzido. 2. A referida cessão incluiu a transmissão de todos os direitos, garantias e acessórios inerentes ao(s) crédito(s) cedido(s), designadamente da(s) hipoteca(s) constituída(s) sobre o(s) prédio(s) em causa. 3. A requerente é uma sociedade comercial com o seguinte objeto: “Compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, bem como a administração dos imóveis, propriedade da sociedade, incluindo o seu arrendamento, e quaisquer outros atos ou transações diretamente relacionadas com as mencionadas atividades.” *** 1).2. Sendo os factos que antecedem manifestamente insuficientes para substanciar as declarações de vontade que constituem o contrato celebrado entre a Requerente e o Requerido Banco 1..., acrescentam-se ainda, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 607/4, ex vi do art. 663/2, ambos do CPC, os seguintes, todos eles provados através do documento autêntico apresentado com o requerimento inicial:4. O referido Contrato de Cessão de Créditos foi celebrado através de escritura pública lavrada no Cartório da Notária BB; 5. Através dessa escritura pública, CC e DD, na qualidade de procuradores do Banco 1..., primeiro outorgante, e EE, na qualidade de administrador de EMP01..., SA, segunda outorgante, declaram: “Que o Banco 1... celebrou um conjunto de contratos de financiamento, sendo titular dos respetivos créditos, que se encontram melhor identificados no documento complementar um à presente escritura (…) que adiante se arquiva como parte integrante da mesma (…); que alguns dos créditos se encontram garantidos por hipotecas, que recaem sobre os imóveis melhor descritos e identificados no documento complementar número dois à presente escritura (…) que adiante se arquiva e se considera parte integrante da mesma (…); que o Banco 1... está interessado em ceder e a cessionária está interessada em adquirir os créditos resultantes dos contratos identificados no documento complementar um à presente escritura; (…) que, pela presente escritura, o Banco 1... cede à cessionária os créditos, conjuntamente com todas as garantias (incluindo, designadamente, as hipotecas incidentes sobre os imóveis identificados no documento complementar número dois à presente escritura), e outros acessórios dos mesmos que, pela sua natureza, possam ser transmitidos, nos termos do art. 582.º do Código Civil, incluindo, sem limitar; que a presente cessão tem carácter oneroso, pelo que a cessionária paga ao Banco 1... o preço de € 9 196 873,46; que o pagamento do preço respeitante à presente cessão é feito pela cessionária o seguinte modo: (…); que a cessionária aceita a presente cessão de créditos, nos termos exarados;” 6. No referido anexo um estão discriminados, entre outros, os seguintes créditos: *** 2).1. Assentes os factos, vejamos a resposta a dar às questões enunciadas, começando por precisar que estamos no âmbito de um incidente de habilitação de cessionário, previsto no art. 356 do CPC.[1] A sua procedência tem, portanto, como pressuposto que tenha havido, na pendência da causa, um ato de transmissão entre vivos do direito em litígio, permitindo-se, então, a modificação dos sujeitos na lide (cf. art. 262, a)), mediante a habilitação do cessionário na posição processual do cedente. Até que essa habilitação ocorra, o cedente continua a ter legitimidade para a causa, agora como substituto do cessionário (art. 263/1). Um e outro são a mesma parte sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (art. 581/2) e ambos ficam vinculados ao caso julgado da sentença que vier a ser proferida, como resulta expressamente do disposto no art. 263/3.Apesar de esta norma, ao referir que a sentença produz efeitos em relação ao adquirente, ter subjacente que a transmissão do direito ocorreu na pendência de uma ação declarativa, conjugando-se, assim, com a do n.º 1 do mesmo preceito, quando fala em transmissão “da coisa ou direito em litígio, tanto a doutrina como a jurisprudência têm admitido a habilitação no âmbito do processo executivo. Neste sentido, Rui Pinto, A Ação Executiva, reimpressão, Lisboa: AAFDL, 2020, p. 283; João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 022, p. 613; Miguel Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online, p. 136, Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 13.ª ed., Coimbra: Almedina, 2024, p. 233; António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 413. Na jurisprudência, RE 10.11.2022 (1137/18.5T8BJA-A.E1), relatado por Albertina Pedroso. Por identidade de razões, é de admitir a habilitação do cessionário de um crédito reclamado e reconhecido em processo de insolvência. *** 2).2. Requerida a habilitação, em cumprimento do disposto nos arts. 293 e 294, a parte contrária é notificada para contestar, em dez dias, sob a cominação da prova dos factos alegados pelo requerente, sem prejuízo das exceções do art. 568. Na contestação, pode ser invocada a invalidade do ato de cessão, com qualquer fundamento de nulidade ou anulabilidade da lei substantiva, ou alegado que a realização deste teve como finalidade dificultar a posição processual do contestante. Ao contrário do que sucede na habilitação baseada na sucessão mortis causa, o requerente tem direito de resposta. Caso não o exerça, os factos que substanciam a matéria de exceção invocada pelo contestante consideram-se admitidos por acordo: arts. 574/2 e 587/1. Neste sentido, expressamente, Salvador da Costa, Os Incidentes cit., p. 237. *** 2).3. Isto dito, no caso, demonstrada documentalmente, pela cessionária, a celebração do contrato de que resultou a cessão dos créditos reclamados pelo Banco 1... e adrede reconhecidos, o insolvente, sujeito passivo do crédito cedido, veio deduzir oposição alegando, além do mais, a nulidade daquele negócio jurídico. Em suporte, repristinou parte dos argumentos que foram colocados à apreciação do Tribunal da Relação de Coimbra no recurso decidido através do Acórdão de 7.09.20221 (1254/19.4T8ANS-B.C1), relatado por Maria Catarina Gonçalves. Mais concretamente, invocou, de forma indiscriminada, as normas dos arts. 280 e 294 do Código Civil, conjugadas com as normas que, no seu entender, proíbem: (i) a aquisição de direitos de crédito litigiosos por sociedades que não tenham a prática desses atos como seu objeto social; (ii) a aquisição de direitos de crédito emergentes de negócios jurídicos de natureza bancária por sociedades que não estejam autorizadas ao exercício da atividade bancária; (iii) a aquisição de direitos de crédito cujo exercício implique a transmissão, do cedente para o cessionário, de informações cobertas pelo dever de sigilo a que aquele está obrigado; (iv) a aquisição de direitos de crédito que importa a transmissão do cedente para o cessionário de dados pessoais do devedor.Perante isto, impõe-se que comecemos por analisar os arts. 280 e 294 do Código Civil e o modo como se relacionam entre si, chamando depois à discussão cada uma das restantes normas aduzidas pelo Recorrente em suporte da exceção perentória invocada na contestação à habilitação. *** 3) O art. 280, como a respetiva epígrafe (Requisitos do objeto negocial) indicia, estabelece os requisitos de validade do objeto negocial: a possibilidade física e legal, a conformidade à lei, a determinabilidade e o respeito quer pela ordem jurídica quer pelos bons costumes. A falta de algum destes requisitos gera, em princípio, a nulidade do negócio jurídico.De acordo com a lição de Heinrich Hörster / Eva Dias da Silva (A Parte Geral do Código Civil Português, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, pp. 578-579), “o objeto do negócio jurídico varia conforme a natureza deste e compreende os efeitos a que o negócio tende, bem como aquilo sobre que aqueles efeitos incidem.” Na primeira situação, o objeto diz-se imediato; na segunda mediato. Deve, porém, particularizar-se que, em rigor, não existem coisas contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes, impossíveis ou indetermináveis. Apenas o dever de prestar uma coisa poderá ser contrário à lei, à ordem pública ou aos bons costumes, impossível ou indeterminável. Assim, o termo objeto usado neste concreto contexto refere-se apenas ao conteúdo do negócio jurídico (Elsa Vaz de Sequeira “Art. 280.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: AAFDL, 2023, p. 837). Com interesse para a decisão do recurso, dir-se-á que o objeto do negócio é legalmente impossível (n.º 1 do art. 280, 3.ª proposição) quando a ordem jurídica não prevê tipos negociais ou meios para a sua realização ou quando não o admite sequer nas relações privadas e é contrário à lei quando o negócio, sendo legalmente possível, é contrário a normas imperativas. O art. 294, por seu turno, sob a epígrafe “negócios celebrados contra a lei”, diz que “[o]s negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.” Verifica-se uma aparente sobreposição entre a previsão deste preceito e a do n.º 1 do art. 280 na parte relativa à contrariedade à lei, compreendendo-se, portanto, que haja quem os aproxime, fazendo convergir o respetivo âmbito de aplicação. É o caso de Heinrich Hörster / Eva Moreira da Silva (A Parte Geral cit., p. 578), que consideram o segundo como concretizador do primeiro. Na jurisprudência, os dois preceitos foram aplicados de forma cumulativa e indiscriminada em STJ 27.02.2009 (08S2573), relatado por Vasques Dinis, STJ 30.09.2010 (69/06.4TBVLN.G1.S1), relatado por Oliveira Vasconcelos, STJ 20.03.2012 (7279/08.8TBMAI.P1.S1), relatado por Fonseca Ramos, STJ 27.06.2012 (248/07.7VIS.C1.S1), relatado por Fernandes da Silva, STJ 11.04.2013 (1269/09.0TVLSB.L1.S1), relatado por Paulo Sá, STJ 13.11.2014 (4103/12.0TBSXL.L1.S1), relatado por Fonseca Ramos, STJ 25.11.2014 (526/12.3TBPVZ.P1.S1), relatado por Fonseca Ramos, STJ 17.12.2014 (397/11.7TTMTS.P1.S1), relatado por Leones Dantas, e STJ 25.06.2015 (868/12.8TTVNF.P1.S1), relatado por Mário Belo Morgado. Já para José Ferreira Gomes (“A nulidade do negócio jurídico por contrariedade à lei (artigos 294.º e 280.º/1): normas de conduta v. normas de validade”, Revista de Direito Civil, III, 2018, 2, pp. 323-349) os dois preceitos complementam-se, mas têm origens históricas e sentidos normativos próprios e distintos: o n.º 1 do art. 280 “encontra a sua origem no art. 617/4 do Código de Seabra e delimita diretamente o objeto dos negócios jurídicos, circunscrevendo a sua aptidão para a produção de efeitos jurídicos: é nulo o negócio cujas prestações a realizar em seu cumprimento sejam contrárias a norma imperativa”; o art. 294, “diferentemente, dá continuidade ao art. 10.º do Código de Seabra que (…) determinava as consequências da ilicitude do processo inerente à prática do ato jurídico. De acordo com esta perspetiva, estaria em causa a exigência do cumprimento das formalidades exigidas por lei para a validade prática do ato ou o respeito por proibições relativas à celebração do negócio.” Independentemente de entendermos que o âmbito de aplicação das duas normas é convergente ou complementar, o que nos parece inequívoco é que a estatuição de ambas – a nulidade do negócio jurídico – pressupõe a violação de uma norma de validade, não sendo suficiente a violação de uma mera norma de conduta. Dito de outra forma, tanto uma como a outra “associam a nulidade à violação de normas que vedam a própria existência do contrato” e não a “este ou àquele comportamento” (José Ferreira Gomes, loc. cit., p. 324). A distinção entre normas de validade e normas e conduta é feita por José Ferreira Gomes (loc. cit., pp. 328-329) nos seguintes termos: “As normas de conduta, enquanto normas primárias, são dirigidas à modelação ou conformação do comportamento e determinadas por um escopo de prevenção e reparação de consequências danosas. A sua violação convoca tendencialmente a aplicação de regras de responsabilidade, incluindo de responsabilidade civil, destinadas à reparação dos danos causados. As normas de validade, enquanto normas secundárias, são dirigidas à proteção da regular formação da vontade na celebração do negócio e à conformação do mesmo em função de valorações essenciais do sistema jurídico. A sua violação determina a invalidade do negócio celebrado.” O autor acrescenta (idem) que, “[p]erante o princípio geral de dissociação entre as normas de conduta e as normas de validade, assente na não confundibilidade da sua fundamentação, do seu escopo e das suas consequências, é o intérprete-aplicador chamado a identificar, em cada caso concreto, a natureza das normas em causa, para efeitos da determinação das consequências da sua violação. Se, num sentido diverso, se confundissem normas de comportamento e de validade, assistiríamos a um efeito expansivo das causas de invalidade com um impacto destrutivo sobre a segurança jurídica, assente na confiança das partes na produção dos efeitos jurídico-negociais. Assim, por exemplo, a violação de qualquer dever de informação pré-negocial poderia implicar a nulidade do negócio jurídico.” *** 4).1. Assim delimitados os campos e os pressupostos de aplicação dos arts. 280/1, na parte relevante, e 294 do Código Civil, vejamos se as restantes normas indicadas pela Recorrente, quando conjugadas eles, determinam a nulidade do negócio jurídico de cessão de créditos, começando pelas que constam dos arts. 6.º/1 e 397 do CSC.Sobre as deste último preceito não se justificam grandes delongas. Assim, diz o art. 397, sob a epígrafe “Negócios com a sociedade”, que: “1 - É proibido à sociedade conceder empréstimos ou crédito a administradores, efetuar pagamentos por conta deles, prestar garantias a obrigações por eles contraídas e facultar-lhes adiantamentos de remunerações superiores a um mês. 2 - São nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, diretamente ou por pessoa interposta, se não tiverem sido previamente autorizados por deliberação do conselho de administração, na qual o interessado não pode votar, e com o parecer favorável do conselho fiscal ou da comissão de auditoria. 3 - O disposto nos números anteriores é extensivo a atos ou contratos celebrados com sociedades que estejam em relação de domínio ou de grupo com aquela de que o contraente é administrador. 4 - No seu relatório anual, o conselho de administração deve especificar as autorizações que tenha concedido ao abrigo do n.º 2 e o relatório do conselho fiscal ou da comissão de auditoria deve mencionar os pareceres proferidos sobre essas autorizações. 5 - O disposto nos n.os 2, 3 e 4 não se aplica quando se trate de ato compreendido no próprio comércio da sociedade e nenhuma vantagem especial seja concedida ao contraente administrador.” Como facilmente se constata, estão aqui em causa, essencialmente, liberalidades realizadas pela sociedade em benefício dos seus administradores e contratos celebrados entre ela e estes. Os primeiros são, tendencialmente, contrários ao fim da sociedade, conceito que iremos abordar; os segundos potenciam as situações de conflito de interesses dos membros dos órgãos sociais, que são quem forma e atua a vontade da sociedade. Este regime é alargado às sociedades que estejam em relação de domínio ou grupo. Ora, o contrato celebrado entre o Banco 1... e a Recorrida de que resultou a cessão de créditos não se inclui em qualquer uma das categorias previstas, seja no n.º 1, seja no n.º 2 do preceito, o que tornar despropositada a tese do Recorrente. *** 4).2. Vejamos agora o art. 6.º/1, segundo o qual “[a] capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, excetuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.”Esta norma convoca o conceito de fim da sociedade – isto é, do interesse humano que é prosseguido pelos sócios e tutelado pelo legislador através da ficto iuris que é a atribuição de personalidade jurídica a um quid que não está naturalmente vocacionado para ser sujeito de Direito. Ora, o fim da sociedade é, em regra, o lucro. Este consiste, na definição de Coutinho de Abreu (Curso de Direito Comercial, II, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, p. 29), no “ganho traduzível num incremento do património da sociedade.” Na verdade, o legislador pressupõe, no Código das Sociedades Comerciais, um conceito genérico de sociedade, que resulta, pelo menos em parte, do art. 980 do Código Civil. Deste resulta que o fim da sociedade é o da obtenção de um lucro para repartir entre os sócios ou, tratando-se de uma sociedade unipessoal, atribuir ao sócio. Dir-se-á, assim, que um ato praticado em nome da sociedade que não seja nem necessário nem conveniente à prossecução do lucro está para além do limite da sua capacidade. Como este é definido pela lei, terá de concluir-se que semelhante ato é nulo, nos termos previstos no art. 294 do Código Civil, por violação de um preceito de carácter imperativo, conforme é entendimento, cremos que unânime, na doutrina. A propósito, cf. Coutinho de Abreu, Curso cit., p. 15; Alexandre de Soveral Martins, “Art. 6.º”, AAVV, Coutinho de Abreu (coord.), AAVV, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, I, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017, pp. 121-122, e “Da personalidade e capacidade jurídicas das sociedades comerciais”, AAVV, Coutinho de Abreu (coord.), Estudos de Direito das Sociedades, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, p. 113. Este último autor explica que a imperatividade do art. 6.º/1 resulta de o seu regime proteger inequivocamente interesses de terceiros, em particular dos credores. Acrescenta que a adoção de um certo tipo de sociedade também não é inócua: “[m]esmo que o tipo escolhido seja o da sociedade em nome coletivo, isso significa que a responsabilidade dos sócios é, ainda assim, subsidiária em relação à da sociedade. Como nuns casos só a sociedade responde e noutros é a sociedade que responde em primeiro lugar, é compreensível que a lei apenas permita a prática de atos em nome da sociedade que sejam necessários ou convenientes à prossecução do fim lucrativo.” Com o fim a que se refere a norma do art. 6.º/1 do CSC não se confunde o objeto social que se encontra identificado no contrato de sociedade (cf. art. 11 do CSC). Este consiste na atividade ou atividades que, no quadro da personalização jurídico-coletiva, serão exercidas em ordem à prossecução daquele. Dito de uma forma prosaica, o objeto social é o meio para atingir o fim social. A distinção entre os dois, que resulta do art. 980 do Código Civil, é expressa no n.º 4 do art. 6.º, onde se diz que “[a]s cláusulas contratuais e as deliberações sociais que fixem à sociedade determinado objeto ou proíbam a prática de certos atos não limitam a capacidade da sociedade, mas constituem os órgãos da sociedade no dever de não excederem esse objeto ou de não praticarem esses atos.” Com esta norma, o legislador procurou adaptar o direito interno às exigências resultantes do n.º 1 do art. 9.º da Primeira Diretiva sobre Sociedades (Diretiva 68/151/CEE), de 9 de março de 1968, de acordo com o qual “a sociedade vincula-se perante terceiros pelos atos realizados pelos seus órgãos, mesmo se tais atos forem alheios ao seu objeto social, a não ser que esses atos excedam os poderes que a lei atribui ou permite atribuir a esses órgãos.” Resulta da norma acabada de transcrever que o objeto social não limita a capacidade das sociedades comerciais ou, nas palavras de João Espírito Santos (Sociedades por Quotas e Anónimas. Vinculação: Objeto Social e Representação Plural, Coimbra: Almedina, 2000, p. 215), “não pode consistir num elemento de demarcação negativa da respetiva capacidade de direito.” Não tem relevo externo. É certo que os órgãos da sociedade têm o dever de não o exceder. Mas a infração deste dever não inquina os atos praticados. Tem relevo apenas no plano interno, nas relações entre os órgãos da sociedade e a própria sociedade, podendo, inclusive, conduzir à responsabilização dos membros daqueles. Estas singelas considerações, que nada acrescentam ao que se pode ler no citado RC 7.09.2021, evidenciam o erro de que parte a recorrente: confunde o fim com o objeto social e aplica a este o regime imperativo daquele. Deste modo, notando que nada permite concluir que a aquisição créditos é contrária ao fim de uma sociedade comercial, independentemente do seu objeto, apresenta-se como axiomática a resposta negativa à 1.ª das questões elencadas. *** 5).1. Passamos para a segunda questão.Não suscita qualquer dúvida que o art. 8.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31.12, consagra o princípio da exclusividade, o qual tem uma dupla formulação (António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, Coimbra: Almedina, 1998, p. 157): (i) só as instituições de crédito podem “exercer a atividade de receção, do público, de depósitos ou outros fundos reembolsáveis, para utilização própria” (n.º 1); (ii) só as instituições de crédito e as sociedades financeiras podem exercer, a título profissional, as atividades referidas nas alíneas b) a i) do n.º 1 do art. 4.º, com exceção da consultoria referida na última destas alíneas (n.º 2). Em síntese, apenas as instituições de crédito e as sociedades financeiras podem exercer, a título profissional, atividades bancárias. Como bem se compreende, estamos perante uma injunção imposta por razões públicas, pelo que também não suscita dúvida que um qualquer negócio enquadrável na previsão da norma, celebrado por uma sociedade que não seja nem instituição de crédito nem sociedade financeira, será nulo nos termos do disposto no art. 294 do Código Civil. Simplesmente, como bem se evidencia no citado RC 7.09.2021, a aquisição de créditos que têm a sua fonte em negócios jurídicos de natureza bancária não é, em si mesma, um ato de natureza bancária nem implica, para o cessionário, o exercício de qualquer atividade que, nos termos referidos, são exclusivas das instituições de créditos e das sociedades financeiras. Isto resulta da própria natureza da cessão de créditos, designadamente quando contraposta à figura da cessão da posição contratual. Como se sabe, a cessão de créditos, prevista nos arts. 577 e ss. do Código Civil, mais não é que uma forma de transmissão do crédito, que se opera por virtude de um negócio jurídico, normalmente um contrato celebrado entre o credor (cedente) e um terceiro (cessionário). Como alerta Luís Menezes Leitão (Cessão de Créditos, reimpressão, Coimbra: Almedina, 2016, p. 285), não constitui um tipo negocial autónomo, mas antes uma disciplina de efeitos jurídicos, que podem ser desencadeados por qualquer negócio transmissivo (art. 578 do Código Civil)) e que se reconduz, no essencial, a dois fenómenos: a sucessão no direito de crédito, mediante o qual a posição de credor passa a ser ocupada por sujeito diferente daquele que era o credor originário num programa obrigacional já existente (art. 577 do Código Civil); e a deslocação de valor do património do cedente para o cessionário. O cessionário passa, assim, a ser o titular ativo do direito de crédito, o que vale por dizer que é ele – e já não o cedente – quem pode exigir a prestação a que o devedor está obrigado. Mas o cedente permanece como parte no âmbito da relação contratual que tenha originado o crédito. A transmissão dessa qualidade apenas ocorreria se tivesse sido celebrada uma cessão da posição contratual. É certo que não é possível isolar em termos absolutos o direito de crédito da posição contratual da qual ele emerge: por um lado, também os acessórios do crédito são transmitidos para o cessionário e, por outro, o devedor pode opor ao cessionário quaisquer exceções que possua contra o cedente (art. 585 do Código Civil)), incluindo a exceção de não cumprimento do contrato (art. 424 do Código Civil). Mas isto não descaracteriza o essencial da figura: parte no contrato continua a ser o cedente. *** 5).2. Isto tem importância quando o crédito transmitido tenha como fonte um contrato bilateral em que a realização da contraprestação a que o cedente está obrigado exija, por força de uma disposição legal, determinada qualidade. Como este continua a ser o devedor, apenas dele – e não já do cessionário – pode o cedido exigir o ato de cumprimento. E, logo, apenas ele tem de revestir a qualidade que a realização deste pressupõe. Tendo isto em conta, compreende-se a afirmação, feita em RL 18.11.2008 (3301/2008-1), relatado por Maria do Rosário Barbosa, no sentido de que a transmissão de um crédito bancário, através de um contrato de compra e venda, “é uma operação comercial e não operação bancária” e adere-se à conclusão expressa no citado RC 7.09.2021 segundo a qual, na prática, o direito adquirido pelo cessionário “relativamente a esses créditos apenas se reconduz ao direito de reclamar e exigir o respetivo cumprimento, sem que isso envolva o exercício de qualquer atividade ou a prática de quaisquer atos que estejam reservados por lei às instituições de crédito.” A resposta à segunda questão é, portanto, negativa. *** 6).1. Avançamos para a 3.ª questão.Como resulta do disposto n.º 1 do art. 577 é requisito da cessão de créditos a inexistência de impedimentos legais ou contratuais à transmissão do crédito. Não há qualquer norma que proíba, de forma expressa, a cessão de créditos bancários. É sabido que nas situações em que o legislador entendeu que havia motivos ponderosos para interditar a cessão de créditos não deixou de o dizer, consagrando impedimentos, sejam eles absolutos – por obstaculizarem a que o crédito seja cedido a qualquer pessoa –, sejam eles relativos – por só obstarem a que crédito seja cedido a certas e determinadas pessoas. Assim, constituem exemplos de direitos que não podem ser cedidos a terceiros o direito de preferência, salvo convenção em contrário (art. 420 do Código Civil), o direito a alimentos (art. 2008 do Código Civil), o crédito a retribuição na parte em que seja impenhorável (art. 280 do Código do Trabalho) e os créditos provenientes do direito à reparação por acidente de trabalho (art. 78 da Lei n.º 98/2009, de 4.09). São exemplos de impedimento relativos os créditos litigiosos, que o legislador não quer que sejam cedidos àqueles que, direta ou indiretamente, possam influenciar o resultado do processo onde estão a ser contestados (art. 579 do Código Civil). A Recorrente entende, porém, que a cessão de créditos bancários é proibida, de forma indireta, pelo art. 78 do RGICSF uma vez que importa, necessariamente, a comunicação, pelo cedente ao cessionário, de informações que estão protegidas pelo sigilo bancário a que aquele está obrigado. *** 6).2. Diz o art. 78 do RGICSF que:“1 - Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços. 2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias. 3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.” Consagra-se aqui o segredo bancário, com o qual se visa tutelar, a um tempo, interesses públicos, relacionados com o regular funcionamento da atividade bancária, e, a outro, interesses privados, sejam dos bancos, relacionados com o direito à reputação e à liberdade de empresa, sejam dos clientes, relacionados com a situação patrimonial que tantas vezes é expressão da vida privada. É indiscutível que a cessão de créditos emergentes de negócios de natureza bancária envolve a transmissão para o cessionário de todas as informações necessárias à identificação do crédito e do respetivo devedor, elementos que estão a coberto pelo sigilo bancário. A demonstrá-lo está a norma do art. 586 do Código Civil que impõe ao cedente a obrigação de entregar ao cessionário “os documentos e outros meios probatórios do crédito, que estejam na sua posse.” Sendo estes os dados, que dizer? Centrando a atenção nos interesses do cliente, é do senso comum que, ao estabelecer relações contratuais com o banco, seja através da abertura de contas, pedidos de empréstimo ou outro tipo de contratos, o cliente fornece ao banco informações variadas, de cariz pessoal e patrimonial. Para além disso, os bancos têm igualmente acesso a essas informações, por exemplo, através da consulta dos movimentos bancários efetuados com cartões de crédito ou outros meios de pagamento. Isto permite que os bancos tomem conhecimento de aspetos da vida dos clientes. Neste sentido, Diogo Leite de Campos (“Sigilo Bancário e Direito Constitucional”, AAVV, O Sigilo Bancário, Lisboa: Edições Cosmos, 1997, p. 116) escreve, expressivamente, que “uma parte importante da vida pessoal do cidadão está espelhada na sua conta bancária.” Compreende-se, por isso, que parte da doutrina aponte como um dos fundamentos do segredo bancário o direito de personalidade à reserva da vida privada e familiar dos clientes, de acordo com o art. 26/1 e 2 da Constituição da República e o art. 80 do Código Civil, que integra não só zonas da esfera pessoal, mas também profissional e económica. Assim, Capelo de Sousa (“O segredo bancário - em especial, face às alterações fiscais da Lei n.º 30-G/2000 de 29 de dezembro”, Dereito: Revista Xurídica da Universidade de Santiago de Compostela. Vol. 11, N.2 (2002), pp. 45-110). O autor acrescenta que o segredo bancário tem também fundamento no direito geral de personalidade, previsto no art. 70/1 do Código Civil, o qual abrange, nomeadamente, o direito ao desenvolvimento da própria personalidade. Na jurisprudência do Tribunal Constitucional merece destaque o Acórdão n.º 278/95, de 31 de maio, no qual se concluiu que a “situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, incluindo as operações ativas e passivas nela registada, faz parte do âmbito de proteção do direito à reserva da intimidade da vida privada, condensado no artigo 26.º n.º 1 da Constituição, surgindo o segredo bancário como um instrumento de garantia deste direito.” Acrescentou-se que “tendo em conta a extensão que assume na vida moderna o uso de depósitos bancários em conta corrente, é, pois, de crer que o conhecimento dos movimentos ativos e passivos reflete grande parte da particularidade da vida económica, pessoal, ou familiar dos respetivos titulares. Através da investigação e análise das contas bancárias, torna-se assim possível penetrar na zona mais estrita da vida privada. Pode dizer-se, de facto, que, na sociedade moderna, uma conta-corrente pode constituir a bibliografia pessoal em números.” Este entendimento é, porém, contrariado por Saldanha Sanches (“Segredo bancário e tributação do lucro real”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, Lisboa: Ministério das Finanças, 1995, p. 27). Para este autor, o ordenamento jurídico português cria, com toda a clareza, uma importante distinção entre a intimidade da vida pessoal e familiar, com uma proteção decisiva daquilo que constitui o núcleo central da esfera pessoal de cada cidadão, e entre a reserva que pode acompanhar a vida privada, a qual poderá ser objeto de uma disponibilidade implícita, após a realização de uma ponderação de interesses sujeita ao princípio da proporcionalidade. É nesta que se situam os interesses tutelados pelo segredo bancário, o que resulta, desde logo, do facto de o banco não poder exigir informações de carácter estritamente pessoal aos seus clientes. A informação a que este tem acesso situa-se, pelo menos diretamente, na esfera patrimonial do seu cliente. Como quer que seja, o direito ao sigilo bancário, seja ou não enquadrado no âmbito do direito à intimidade da vida privada, constitucionalmente consagrado, não é um direito absoluto. Assim foi entendido no citado Acórdão do TC n.º 278/95, onde se pode ler: “O segredo bancário não é um direito absoluto, antes pode sofrer restrições impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Na verdade, a tutela de certos valores constitucionalmente protegidos pode tornar necessário, em certos casos, o acesso aos dados e informações que os bancos possuem relativamente às suas relações com os clientes.” É por isto que não se questiona o direito do banco demandar judicialmente o seu cliente em caso de incumprimento das obrigações contratuais assumidas por este, o que pressupõe, necessariamente, a revelação de informações que estão cobertas pelo segredo, como sejam o conteúdo dos contratos celebrados e a própria situação de incumprimento. Se colocarmos uma hipótese de descoberto em conta, em que se exige que o banco alegue, na petição inicial da ação de cumprimento, todos os movimentos bancários, facilmente concluímos que a prossecução do interesse do banco pode implicar a revelação indireta de factos que se situam na esfera restrita da intimidade da vida pessoal do seu cliente. Está então em causa a tutela do direito de crédito do banco. Ora, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado (inter alia, Acórdãos n.ºs 494/94, de 12.07.1994, 451/95, de 6.07.1995, e 318/99, de 26.05.1999, todos disponíveis em tribunalconstitucional.pt) da garantia constitucional do direito de propriedade privada pode extrair-se a garantia (constitucional também) do direito do credor à satisfação do seu crédito. O equilíbrio entre este direito e o direito do cliente à preservação do segredo é feito mediante a cedência desta no que for estritamente necessário para a salvaguarda daquele. Por esta razão, o art. 78 do RGICSF não pode ser visto como uma norma de validade – isto é, como uma norma que interdita, ainda que de forma indireta, a celebração de contratos que tenham como efeito a cessão de créditos bancários. Com efeito, a cessão de créditos bancários, como a cessão de créditos em geral, mais não exprime que a livre disponibilidade de um ativo patrimonial por parte do seu titular. A transmissão deste a terceiro, com o objetivo de evitar os encargos da ação de cumprimento ou os riscos decorrentes do insucesso desta, constitui, ainda, o exercício de um direito que beneficia, também, de tutela constitucional. Assim, o que a norma exige é apenas que o banco transmita as informações estritamente necessárias ao exercício do direito objeto da cessão por parte do cessionário. Se o fizer, a sua conduta será lícita, porque levada a cabo na prossecução de um interesse legítimo, com respeito pelo princípio da proporcionalidade; na hipótese contrária, os efeitos da ilicitude serão sentidos à margem do negócio de que resultou a cessão, na relação entre o cedente e o cedido e passarão pela obrigação daquele indemnizar, sem prejuízo da sua eventual responsabilidade criminal (art. 195 do Código Penal). Neste sentido, estamos perante uma norma de conduta. Assim, pode ver-se, a propósito desta mesma questão, o Acórdão do Bundesgerichtshof XI ZR 195/05, de 27.02.2007, disponível em https://dejure.org/. É este, também, o entendimento expresso no citado RC 7.09.2021, onde se escreve que “a entender-se – como pretendem os Apelantes – que o segredo bancário e a legislação de proteção de dados vedavam a possibilidade de tais elementos/informações serem transmitidos ao cessionário no âmbito de um contrato de cessão de crédito, tal significaria, na prática, que as instituições de crédito estavam impedidas de efetuar cessões de créditos sem autorização do cliente. Sucede que uma tal solução não parece corresponder à solução pretendida pelo legislador, uma vez que, aquilo que seria normal, nessa situação, é que o legislador tivesse previsto expressamente a inadmissibilidade legal daqueles negócios sem o consentimento do devedor e, a nosso ver, a legislação em causa – referente ao sigilo bancário e à proteção de dados pessoais – não pode ser vista como meio indireto e enviesado de consignar a inadmissibilidade desses negócios, sendo certo que não é essa a sua finalidade e o seu objetivo. O raciocínio correto – em nosso entender – será o de que, não estando vedada por lei a possibilidade de a instituição de crédito ceder os seus créditos sem consentimento do cliente, essa cessão é admissível e válida ao abrigo do disposto no art. 577.º do CC e, sendo admissível e válido esse negócio, também não poderá deixar de considerada legítima a transmissão dos dados necessários à identificação do crédito cedido e respetivo devedor, na medida em que essa transmissão é inerente e indispensável à cessão do crédito e corresponderá, naturalmente, a uma obrigação do cedente perante o cessionário.” A resposta à terceira questão é, portanto, também ela negativa. *** 7).1. O que acabamos de expor dá-nos também a resposta à quarta questão.Entende a Recorrente, mais uma vez na senda das conclusões do recurso que foi apreciado no citado RC 77.09.2021, que o negócio de que resultou a cessão de créditos bancários é proibido, de forma indireta, pelo “art. 6.º da Lei n.º 58/2019 de 08.08” (sic), e pelo art. 6.º do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) da União Europeia. É patente a falta de cuidado da Recorrente na indicação das normas: a Lei n.º 58/2019, de 8.08, aprovou a Lei de Proteção de Dados Pessoais, assegurando a execução na ordem jurídica nacional, do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados (RGPD); o seu art. 6.º diz quais são as atribuições e competência da Comissão Nacional de Proteção de Dados, não tendo, portanto, o conteúdo que lhe foi atribuído pela Recorrente na conclusão XVII; este conteúdo corresponde ao art. 6.º da Lei n.º 67/98, de 26.10, que o art. 66/1 da Lei n.º 58/2019 revogou expressamente. Prosseguindo, diremos que entende-se por dados pessoais, de acordo com a definição dada pela alínea a), do n.º 1 do art. 5.º do RGPD, a “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular.” O Considerando 26 do RGPD estabelece que os princípios da proteção de dados aplicam-se a qualquer informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável. Tendo em conta a abrangência desta definição, é evidente que a cessão de créditos bancários tem necessariamente subjacente a transmissão para o cessionário de dados pessoais do cliente devedor (v.g., o nome, o número de bilhete de identidade ou cartão de cidadão, o número de identificação fiscal, a morada, a profissão, o número de telefone, e email), alguns dos quais podem situar-se na esfera da intimidade constitucionalmente protegida, nos termos referidos no ponto anterior. Impõe-se, assim, que o tratamento dos dados seja feito com respeito por três princípios, expressos no citado art. 5.º/1, a), do RGPD, a saber, a licitude, a lealdade e a transparência. Vamos centrar a atenção no primeiro, começando por dizer tratamento lícito é aquele que deve ser entendido como permitido, legítimo e realizado de acordo com a lei. Nos termos do Considerando 40 do RGPD: para que o tratamento seja lícito, os dados pessoais deverão ser tratados com base no consentimento do titular dos dados em causa ou noutro fundamento legítimo, previsto por lei, quer no presente regulamento quer noutro ato de direito da União ou de um Estado-Membro referido no presente regulamento, incluindo a necessidade de serem cumpridas as obrigações legais a que o responsável pelo tratamento se encontre sujeito ou a necessidade de serem executados contratos em que o titular dos dados seja parte ou a fim de serem efetuadas as diligências pré-contratuais que o titular dos dados solicitar. Segundo o art. 6.º/1 do RGPD, “[o] tratamento só é lícito se e na medida em que se verifique pelo menos uma das seguintes situações: a) O titular dos dados tiver dado o seu consentimento para o tratamento dos seus dados pessoais para uma ou mais finalidades específicas; b) O tratamento for necessário para a execução de um contrato no qual o titular dos dados é parte, ou para diligências pré-contratuais a pedido do titular dos dados; c) O tratamento for necessário para o cumprimento de uma obrigação jurídica a que o responsável pelo tratamento esteja sujeito; d)O tratamento for necessário para a defesa de interesses vitais do titular dos dados ou de outra pessoa singular; e) O tratamento for necessário ao exercício de funções de interesse público ou ao exercício da autoridade pública de que está investido o responsável pelo tratamento; f) O tratamento for necessário para efeito dos interesses legítimos prosseguidos pelo responsável pelo tratamento ou por terceiros, exceto se prevalecerem os interesses ou direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais, em especial se o titular for uma criança.” Compreende-se, deste modo, que se imponham ao banco, aquando da cessão de créditos, especiais cuidados no que tange aos dados pessoais do cliente. Esta afirmação tem implícita a ideia de que o art. 6.º do RGPD não veda a celebração de negócios que produzem o efeito em questão, o que é afirmado, de resto, por Nelson Ricardo Pereira da Rocha (A proteção dos Dados do Cliente Bancário na Cessão de Crédito em Incumprimento, Lisboa, FDUL, 2016, pp. 62-64, disponível em https://repositorio.ul.pt/), à luz da revogada Lei n.º 67/98, de 26.10, mas que permanecem atuais: “No âmbito de uma cessão de NPL, o fundamento da cessão de dados será o contrato de cessão de créditos celebrado entre as partes, que se traduz, as mais das vezes uma compra e venda de créditos. Sem repetir o que aquando da caracterização do instituto se disse, ele encontra-se previsto no artigo 577.º do CC, prevendo o mesmo artigo que a cessão de créditos dispensa o consentimento do devedor. Ora, parece-nos que, ao dispensar o consentimento do devedor, a cessão de créditos dispensará igualmente o consentimento do devedor também relativamente à cessão dos seus dados, garantido que seja, no entanto, que o tratamento dos seus dados seja feito nos termos da LPDP. Porém, e porque estão em causa dados sujeitos a sigilo bancário, a LPDP impõe ao responsável um cuidado adicional porquanto estamos em presença de dados considerados sensíveis. Assim, o responsável pelo tratamento de dados deve ainda garantir a observação das medidas de segurança previstas no artigo 15.º da LPDP, por força do previsto no artigo 7.º, n.º 2 do mesmo diploma legal, que visam conferir uma proteção reforçada aos titulares de dados particularmente sensíveis, como são os dados bancários. Do ponto de vista da LPDP, entendemos que o fundamento para o tratamento de dados residirá na alínea e) do artigo 6.º da LPDP, nos termos da qual é fundamento para o tratamento de dados “a Prossecução de interesses legítimos do responsável pelo tratamento ou de terceiro a quem os dados sejam comunicados, desde que não devam prevalecer os interesses ou os direitos, liberdades e garantias do titular dos dados”. Ora, resulta claro que a legitimidade para o tratamento emergirá do facto de, para a execução do contrato celebrado entre o cedente e o cessionário – que é o responsável pelo tratamento – ser necessário o tratamento dos dados pessoais dos devedores cedidos. Acresce que, ao responsável pelo tratamento de dados que recebe os dados do terceiro – no presente caso, do cedente –, não obstante não proceder à recolha original dos dados, fica também obrigado a garantir a observação dos direitos que assistem ao titular dos dados. Neste sentido, devem ser garantidos o direito de acesso aos dados, bem como a toda a informação relativa ao tratamento de dados, nos termos do artigo 10.º, n.º 1 da LPDP, por remissão do n.º 3 do mesmo artigo.” *** 7).2. Perante o que antecede, a conclusão que se impõe é que, também aqui, estamos perante normas de conduta que, como tal, não interditam a transmissão dos créditos bancários. Tal como sucede com a norma do art. 78 do RGICSF, as consequências da sua inobservância situam-se noutro patamar: por um lado, podem dar lugar à responsabilidade civil do cedente no confronto com o titular dos dados (cf. art. 33 da Lei n.º 58/2019); por outro, podem fazer aquele incorrer em responsabilidade criminal ou contraordenacional, consoante a concreta infração cometida (arts. 37 e ss. da Lei n.º 58/2019).Foi também neste sentido que a questão foi decidida no citado Acórdão do Bundesgerichtshof XI ZR 195/05, de 27.02.2007, à luz do § 398 do BGB, onde se diz, em termos semelhantes aos do art. 577 do Código Civil, que “[u]m crédito pode ser transferido do credor para o credor por meio de um contrato com outra pessoa (Abtretung). Com a celebração do contrato, o novo credor assume o lugar do credor anterior”, e dos §§ 43 e 44 da Bundesdatenschutzgesetz (BDSG). Pode ali ler-se que (tradução nossa): “A nulidade da cessão devido a uma violação das disposições de proteção de dados é prejudicial porque, em muitos casos, ela anularia a abtretbarkeit fundamentalmente desejada pelo legislador das dívidas de dinheiro de acordo com o § 398 BGB. Em vez disso, de acordo com o § 28, parágrafo 1, frase 1, n.º 2 da BDSG, a permissibilidade da transmissão das informações necessárias para a exigência de cessionário dependeria do resultado do equilíbrio dos interesses legítimos do banco cedente na sua divulgação e dos interesses legítimos do mutuário na sua não divulgação, o que teria que ser realizado separadamente em cada caso individual. Não se pode presumir que o legislador tenha desejado tal resultado, especialmente à luz das disposições do § 354a do HGB e do § 22d, § 4 do KWG, nos quais, sob as condições lá mencionadas, até mesmo uma proibição contratual de cessão de acordo com o § 399, alternativa 2, do BGB, não impede a cessão da pretensão, fortalecendo assim a transferibilidade das dívidas de dinheiro, especialmente das instituições financeiras. Por esse motivo, o argumento apresentado pela posição contrária, de que a sanção da nulidade da cessão seria necessária para a realização do direito constitucional à autodeterminação informativa (cf. Schantz VuR 2006, 464, 467), também não convence. Além disso, a violação das disposições de proteção de dados não é apenas - como a violação do sigilo bancário - sancionada por meio de uma reclamação de danos civis, mas também por meio das disposições de multa e penal do §§ 43, 44 da BDSG.” A resposta à quarta questão é, portanto, também negativa. *** 8) Passamos para a quinta questão, cuja resposta já foi dada nos dois pontos anteriores: a interpretação feita, no ponto 4), do art. 78 do RGICSF, e a interpretação feita, no ponto 5), do art. 6.º do RGPD, como normas de conduta e não como normas de validade, permitem um ponto de equilíbrio entre os interesses do cedido e os do cedente. As normas assim obtidas por via interpretativa não configuram, portanto, uma violação do “artigo 26º da CRP, em particular do principio do direito pessoal à reserva da vida privada.” A tutela deste é suficientemente garantida, ex ante, pela consagração dos ilícitos criminais e contraordenacionais referidos.*** 9) Concluímos que improcedem as conclusões do recurso.Vencido, o Recorrente deve suportar as custas, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie: art. 527 do CPC. *** IV.Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em: Julgar o presente recurso improcedente; Confirmar a decisão recorrida; Condenar o Recorrente no pagamento das custas, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo. * Guimarães, 27 de junho de 2024 Os Juízes Desembargadores, Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães 1.º Adjunto: Maria Gorete Morais 2.º Adjunto: José Alberto Martins Moreira Dias [1] Pertencem ao CPC vigente as disposições legais indicadas sem menção expressa da respetiva proveniência. |