Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
335/22.1T8MDL-A.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
ARTICULADO SUPERVENIENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- O regime do processo especial de inventário não se encerra nas normas especiais que se inscrevem no seu Título XVI, havendo, sempre, que ter em consideração a norma geral do art. 549º, do mesmo Código e, por isso, além das disposições que lhes são próprias, as disposições gerais e comuns e estabelecido para o processo comum.
- Deste modo, a apresentação por parte do cabeça-de-casal, de articulado superveniente, com o objectivo de ampliar ou modificar a relação de bens pode ser deferida ao abrigo do disposto no art. 588º, do C.P.C., desde que se contenha na fase que culmina com a decisão destinada à determinação dos bens a partilhar.
Decisão Texto Integral:
Relator – Des. José Manuel Flores
1ª - Adj. Des. Sandra Melo
2ª - Adj. Des. Maria Amália Santos

ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório

- Recorrente(s): AA;

- Recorrido/a(s): BB.
*
No presente inventário por morte de CC, veio a cabeça-de-casal e aqui Recorrente apresentar, em 30.8.2023, a relação de bens.
Nessa está incluída a verba nº 2, com o seguinte descritivo: “A quantia de trinta mil, cento e quarenta e sete euros e trinta cêntimos correspondente ao montante do seguro de capitalização/poupança denominado "... PPR 2017 1? série", titulado pela apólice ...65, resgatado e creditado na conta de depósito à ordem ne ...28 do Banco 1..., S.A., após o óbito do inventariado, em poder do interessado BB (documentos 2 a 4) 30.147,30 €”
Entretanto, o Recorrido reclamou dessa relação de bens em requerimento de 20.9.2023, inclusive da relação da verba nº 2.
A Recorrente respondeu.
O Tribunal deferiu diligências instrutórias (11.11.2023).
Em 14.12.2023 a Apelante requereu a adição de uma nova verba.
Em 24.11.2023, a Apelante requereu a alteração da descrição da verba nº 2, em suma, nos seguintes termos: Resultando das referidas comunicações que a apólice ...65 foi reposta em vigor, deverá o teor da verba 2 passar a ser o seguinte, o que desde já se requer: “A quantia de trinta mil, quatrocentos e onze euros e quarenta e seis cêntimos, correspondente ao montante do seguro de capitalização/poupança denominado “... PPR 2017 1ª série” titulado pela apólice ...65, associado à conta de depósito à ordem nº ...28 do Banco 1..., S.A…………………….…………………………………..….………………...30.411,46 €” - cfr. documento 4
Notificado, o requerido e aqui Recorrido nada disse.
Em 14.12.2023, a Cabeça de casal requereu a junção de documento bancário e pediu o aditamento à relação de bens de uma verba como o seguinte teor: “A quantia de treze mil, seiscentos e cinquenta e cinco euros e setenta e cinco cêntimos que se encontra depositada na conta de depósito nº  ...25 do Banco 1..., com sede em 16 rue ..., ... ..., em ... …………………..13.655,75 € - cfr. documentos 1 e 2
Notificado, o Requerido nada disse, sendo certo que não foi respeitado o prazo para o mesmo se pronunciar, dado que, logo em 27.12.2023, o Tribunal a quo proferiu despacho no qual, além de mais, declarou o seguinte: “Vem a cabeça-de-casal requerer a alteração do teor da verba n.º 2 da relação de bens. Por extemporâneo – cf. artigo 1102º e 1104º do Código de Processo Civil – indefere-se a alteração requerida.” (…) Quanto ao pedido de aditamento à relação de bens, por extemporânea (nos termos dos artigos 1102º e 1104º do Código de Processo Civil), indefere-se o requerido.
Notifique.
*
Inconformada com tal decisão, dela interpôs a Cabeça-de casal o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula as seguintes
conclusões:
1ª Nos termos do disposto no artigo 588º, nº 1, do CPC “Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.”
2ª Por sua vez, o nº 2 do mencionado artigo 588º clarifica que são “supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.”
3ª O facto que fundamenta o requerimento de alteração do teor da verba nº 2 da relação de bens é objectivamente superveniente, na medida em que ocorreu após o termo do prazo para apresentação da relação de bens.
4ª Com efeito, em 30 de Agosto de 2023 (data da apresentação da relação de bens), conforme resulta dos documentos 2 a 4 que a instruíram, o PPR titulado pela apólice ...65 tinha sido objecto de um pedido antecipado de resgate e o respectivo reembolso creditado na conta do inventariado dias após o óbito.
5ª Entretanto, na sequência do processo de averiguações instaurado pela Companhia de Seguros, no dia 31 de Outubro de 2023, a cabeça de casal foi informada de que a apólice em causa tinha sido reposta e de que estava disponível para resgate pelos herdeiros e, no dia 17 de Novembro de 2023, do respectivo valor bruto.
6ª Por sua vez, o pedido de aditamento à relação de bens tem por base um facto subjectivamente superveniente, porquanto, não obstante o depósito já existisse quando a relação de bens foi apresentada, a cabeça de casal só dele teve conhecimento após a informação recebida do Banco 1..., datada de 8 de Dezembro de 2023.
7ª Donde que, o facto de terem decorrido os prazos previstos nos artigos 1102º e 1104º do CPC, não impede a possibilidade de apresentação dos requerimentos em crise, na medida em que ambos têm por fundamento factos supervenientes.
8ª Acresce que essa superveniência resulta dos documentos apresentados com os requerimentos em causa e não foi ainda proferida decisão homologatória da partilha, sequer decisão sobre a reclamação contra a relação de bens, pelo que não se verifica nenhum dos obstáculos à invocação de factos supervenientes constantes do artigo 588º, nº 1 e 2 do CPC.
9ª Pelo acima exposto, entende a recorrente que o douto despacho recorrido viola o disposto no artigo 588º, nºs 1 e 2, do CPC.
 10ª Por consequência, deverá revogar-se parcialmente o despacho proferido, ordenando-se que seja substituído por outro que, admitindo os requerimentos em crise, ordene (i) a alteração do teor da verba 2 em conformidade com a informação recebida da Companhia de Seguros e (ii) o aditamento à relação de bens de uma nova verba referente ao depósito que a cabeça de casal entretanto descobriu que o inventariado tinha no Banco 1....
(…)
Nestes termos, nos mais de Direito e, sempre, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, alterando-se o douto despacho em conformidade com o supra alegado.

O Recorrido não apresentou contra-alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[2] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[3]
No caso, as questões enunciadas pela recorrente reconduzem-se à tempestividade dos pedidos formulados por si, cabeça de casal, relativamente à alteração da relação de bens previamente apresentada.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos (cf. art. 662º, do Código de Processo Civil)
São os que emergem do processo, nomeadamente os acima relatados.

2. Direito
Perante os requerimentos formulados pela cabeça de casal em 24.11. e 14.12.2023, acima reproduzidos, o Tribunal recorrido decidiu indeferi-los por extemporaneidade, invocando o disposto no art. 1102º e 1104º, do Código de Processo Civil.
Em discordância, a Apelante defende que os mesmos se enquadram no dispositivo do art. 588º, do Código de Processo Civil, porque constituem factos que são, respectivamente, objectiva e subjectivamente supervenientes.

Será assim?
Olhando isoladamente ao regime do citado art. 1102º, do Código de Processo Civil, na verdade não encontramos, nessa norma ou noutra do novo regime do processo de inventário inserto nesse Código, qualquer permissão literal para a admissão dos requerimentos em apreço.
Todavia, desde que este regime voltou a esse Código, é impossível ignorar que estamos perante um processo especial cujo regime não se encerra nas normas especiais que se inscrevem no seu Título XVI, havendo, sempre, que ter em consideração que a norma geral do art. 549º, do mesmo Código dita que: 1 - Os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum.
Ora, de acordo com o estabelecido no art. 588º, desse mesmo Código, (1) os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão. (2) Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.
Posto isto, não ignoramos que, como refere Pedro Pinheiro Torres[4], neste novo regime se pretendeu aumentar a responsabilidade das partes obrigando-as a conferir especial atenção a todas as questões que considerem relevantes no momento da apresentação dos seus articulados, sejam estes a petição do inventário ou a oposição, bem como “procurou valorizar-se o processo de partes, configurado pelos articulados, o que, de modo significativo, se traduz na imposição ao requerente do inventário, quando este se arrogue ser titular (por direito ou obrigação legal) do exercício das funções de cabeça de casal, de um ónus de alegação e prova em tudo semelhante ao cometido a um qualquer autor numa acção judicial, passando a competir-lhe, nos termos do artigo 1097.º do CPC, trazer aos autos os elementos de identificação e prova suficientes para que sejam conhecidos a causa de pedir (abertura de sucessão) a sua legitimidade e os demais interessados, todos os elementos que entenda poderem influenciar a partilha, e a relação dos bens e dos créditos e dívidas da herança, deste modo se reunindo naquela peça processual diversos actos até aqui dispersos.
No entanto, como vem sendo entendido pela jurisprudência[5] (cf. art. 8º, nº 3, do C.C.) e doutrina[6] que se debruçou sobre este aspecto particular desse novo regime, a fase dos articulados e instrução prévias à definição do objecto do inventário nos termos estipulados no art. 1109º e 1110º, do C.P.C., estabelecida nesse novo regime, não deixa de comportar a admissibilidade de articulados supervenientes que está prevista para o processo comum no citado art. 588º e é, portanto, com as devidas adaptações, uma possibilidade neste processo especial.
Essa superveniência pode ser objectiva ou subjectiva, conforme decorra da cronologia do facto ou do tempo em que o mesmo foi conhecido pela parte interessada em introduzi-lo na discussão.

No caso, se atentarmos aos requerimentos em apreço, podemos concluir que, em ambos os casos, estamos perante factos subjectivamente supervenientes, já que se reconduzem a bens cuja existência nos moldes referidos foi conhecida pela Requerente depois de findo o prazo estabelecido no art. 1102º, nº 1, do C.P.C., conforme atestam os documentos que juntou com ambos requerimentos (de Outubro e Dezembro de 2023).
É até possível que no primeiro caso estejamos também perante facto objectivamente superveniente mas sobre essa cronologia não temos prova nos autos.
De qualquer modo, basta para a previsão do citado art. 588º, nºs 1 e 2, que ocorra essa superveniência subjectiva, pelo que, tendo em conta que ainda estamos em fase prévia ao julgamento da relação de bens e/ou da definição do objecto da partilha, nos termos dos arts. 1109º e 1110º, do C.P.C., aplicando o dispositivo do citado art. 588º, nºs 1 a 3, com a devida adaptação, julgamos que ambos os requerimentos supervenientes em apreço estão tempo e devem ser admitidos liminarmente a fim de se produzir o contraditório previsto no seu nº 4.
De acordo com este silogismo, deve proceder inteiramente a apelação.
Tendo em conta a regra do art. 527º, do Código de Processo Civil, não se imputarão custas às partes, sem prejuízo das custas de parte devidas a final.  

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida.
Em sua substituição (art. 665º, do C.P.C.), decide-se admitir liminarmente os requerimentos de modificação da verba nº 2 e aditamento de nova verba, aqui apreciados, determinando-se que, em primeira instância, o Requerido seja notificado para sobre estes se pronunciar, no prazo de 10 dias.

Sem custas, sem prejuízo das custas de parte.
N.
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Sumário[7]:
- O regime do processo especial de inventário não se encerra nas normas especiais que se inscrevem no seu Título XVI, havendo, sempre, que ter em consideração a norma geral do art. 549º, do mesmo Código e, por isso, além das disposições que lhes são próprias, as disposições gerais e comuns e estabelecido para o processo comum.
- Deste modo, a apresentação por parte do cabeça-de-casal, de articulado superveniente, com o objectivo de ampliar ou modificar a relação de bens pode ser deferida ao abrigo do disposto no art. 588º, do C.P.C., desde que se contenha na fase que culmina com a decisão destinada à determinação dos bens a partilhar.
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Guimarães, 27-06-2024


[1] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
[2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
[4] In NOTAS BREVES DE APRESENTAÇÃO DO PROCESSO DE INVENTÁRIO NA REDAÇÃO DADA PELA LEI N.º 117/2019, DE 13 DE SETEMBRO – Inventário: Novo Regime, CEJ, 2020, p.21
[5] Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12.9.2023, in https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/4b36fba36b8e0bc080258a3c004da616?OpenDocument ; Acs. do Tribunal da Relação do Porto, de 14.12.22, in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e4f9b84975f137aa8025893c004e983c?OpenDocument, de 9.2.2023, in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e4f9b84975f137aa8025893c004e983c?OpenDocumenthttp://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e01ba7fc299f977a80258996003839ac?OpenDocument ; Tribunal da Relação de Guimarães, 22.9.2022, in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e4f9b84975f137aa8025893c004e983c?OpenDocumenthttp://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e01ba7fc299f977a80258996003839ac?OpenDocument
[6] Cf. Pedro Pinheiro, ob. cit., p. 23, quando admite que o interessado possa apresentar articulado superveniente para, v.g., apresentar reclamação à relação de bens
[7] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.