Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
142/23.4T8VRL-B.G1
Relator: FERNANDO CABANELAS
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
CONDENAÇÃO DAS PESSOAS AFETADAS A INDEMNIZAREM OS CREDORES POR CRÉDITOS NÃO SATISFEITOS
QUANTIFICAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO
VERIFICAÇÃO E RECONHECIMENTO DE CRÉDITOS
NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A nulidade por omissão de pronúncia, prevista no artº 615º, nº1, alínea d), do CPC, ocorre quando o juiz não conhece de todos os pedidos deduzidos, de todas as causas de pedir e exceções invocadas, e todas as exceções de que oficiosamente lhe caberia conhecer.
2. Não tendo, no caso dos autos sido proferida sentença de verificação de créditos (nem de verificação ulterior de créditos), transitada em julgado, porque o processo de insolvência foi julgado extinto por falta de massa, das duas, uma:
- ou no apenso de reclamação de créditos decorreu o prazo para impugnação da lista provisória de créditos reconhecidos e não reconhecidos pelo AI, e não houve impugnações, e aí esta converteu-se em definitiva;
- ou não decorreu aquele prazo de impugnação e o tribunal recorrido não podia atender aos créditos reconhecidos pelo AI na fixação da indemnização. do art. 189º, n.º 2, al. e), porque aqueles créditos não estavam reconhecidos e os credores e a devedora nem sequer tiveram oportunidade de os impugnar.
3. Tendo o recorrente pedido que se indicassem quais os créditos que deveriam ter-se por verificados, tem tal pretensão de improceder, por não poderem ser considerados verificados créditos fora dos apensos respetivos, sede processual própria para o efeito.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

Por sentença prolatada em 12 de fevereiro de 2024, foi decidido:
Pelo exposto, nos termos do disposto nos arts. 191º nº1, al. c) e 189º nºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o tribunal qualifica como culposa a insolvência de EMP01..., Lda., pessoa coletiva nº ...36, com sede no Loteamento ..., ..., loja ..., ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número e, em consequência:
a) Declara-se afetado pela qualificação AA;
b) Decreta-se a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros pelo período dois anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c) Determina-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA;
d) Condena-se AA a indemnizar os Credores da Insolvente, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, pelo montante correspondente a 25% do valor dos créditos verificados e reconhecidos.
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Custas do incidente pelo afetado pela qualificação – art. 303º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Registe e notifique. (…).

O Ministério Público apelou da decisão, formulando as seguintes conclusões:
1º. Na sentença que proferiu no apenso de qualificação de insolvência, de que ora se recorre, a Mma. Juiz decidiu condenar AA numa indemnização fixada em 25% dos créditos verificados e reconhecidos que não tiverem sido satisfeitos.
2º. Porém, não declarou desde logo que créditos é que deveriam ser havidos por verificados e reconhecidos, ainda que apenas para o feito de quantificar a indemnização que fixou.
3º. Essa declaração revelava-se necessária, uma vez que quer no apenso de reclamação de créditos quer no apenso de verificação ulterior a instância foi declarada extinta por inutilidade superveniente em virtude de não terem chegado a ser apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente.
4º. E além de necessária essa declaração era ainda perfeitamente possível, dispondo o tribunal para esse efeito não só da lista de créditos reconhecidos, que só não foi homologada por inutilidade perante a inexistência de bens apreendidos, como ainda de toda a documentação que os credores entregaram ao administrador de insolvência aquando das respetivas reclamações de crédito e bem assim daquela outra documentação que foi diretamente apresentada ao tribunal no apenso de verificação ulterior de créditos.
5º. Cabendo notar que para o referido efeito de quantificar da indemnização a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes, nos termos do artigo 11º do CIRE.
6º. Ao não declarar desde logo que créditos é que deveriam ser havidos por verificados e reconhecidos o tribunal não deu cabal cumprimento ao disposto no artigo 189º nº4 do CIRE, onde precisamente se estabelece que ´ao aplicar o disposto na alínea e) do nº2, o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas`, a não ser que ´tal não seja possível em virtude de o tribunal não dispor dos elementos necessários para calcular o montante dos prejuízos sofridos`, o que não era o caso.
7º. Não deu ainda cabal cumprimento ao disposto no artigo 608º nº2 do CPC, onde se estabelece que o juiz deve resolver em sentença – leia-se, integralmente – todas as questões cujo conhecimento oficioso lhe for imposto por lei (´não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras`).
8º. Esta circunstância constitui uma omissão de pronúncia que fere a sentença de nulidade, nos termos do artigo 615º nº1 al. d) do CPC.
9º. O interesse do Ministério Público neste recurso resulta do carácter misto – não só indemnizatório mas também sancionatório – que se entende assistir à indemnização a que se refere o artigo 189º nº2 al. e) do CIRE.
10º. Termos em que, na procedência do alegado, se deverá declarar nula a sentença ora alvo de recurso e ordenar a sua substituição por outra que declare desde logo como verificados e reconhecidos, para efeitos de fixação do montante da indemnização, os créditos que como tal foram feitos constar pelo administrador de insolvência na lista de créditos reconhecidos oportunamente junta aos autos, e bem assim aqueles que o merecerem, de entre os que foram alvo da intentada verificação ulterior de créditos.
Assim se fará a costumada JUSTIÇA.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar se a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia e se violou o disposto no artº 189º, nº 4, do CIRE, e no artº 608º, nº2, do CPC.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:
1 – EMP01..., Lda., pessoa coletiva nº ...29, com sede na Quinta ..., ..., ..., em ..., matriculada na Conservatória do Registo Comercial sob o mesmo número, foi declarada insolvente por sentença de 12/05/2023, transitada em julgado.
2 - A declaração de insolvência foi requerida em 18/01/2023, pelos credores, aqui requerentes.
3 – A requerida tem como objeto social a construção e reparação de edifícios (residenciais e não residenciais), demolições, terraplanagens, vias, calçadas, pavimentação em betuminoso, betão, armaduras; compra e venda e aluguer de viaturas; pinturas, cerâmicos, rebocos, capoto, pladur; compra e venda e aluguer de matérias de construção, cofragem e escoramentos, constituída em 30 de junho de 2020.
4 – Em março de 2022 foram apreendidos documentos contabilísticos à empresa insolvente, no âmbito do inquérito n.º 456/20.... do DIAP de ....
5 – Após os factos referidos em 4, foi solicitado pelo administrador da insolvência, por escrito, os documentos contabilísticos da insolvente, sem resposta por parte do seu gerente.
6 – Na sequência dos factos descritos em 4, o contabilista não forneceu ao administrador da insolvência quaisquer elementos contabilísticos da requerida, não dispondo este de qualquer informação acerca da contabilidade da mesma.
7 – Em finais de 2022, na sede da requerida laborava um ginásio, sem que nela fosse exercida qualquer atividade da empresa insolvente.
8 – Da certidão permanente da requerida consta o registo da prestação de contas referente ao exercício de 2020.
9 – O processo de insolvência foi encerrado, por insuficiência da massa insolvente, em 07/09/2023 e encerrado o estabelecimento.
Factos Não Provados
(i) que a requerida nunca teve quaisquer trabalhadores ao seu serviço; (ii) que o gerente da requerida celebrou o contrato de empreitada com os requerentes, sabendo que a empresa não ia executar a obra (iii) a situação de insolvência da sociedade requerida já se verificava alguns anos antes de ter sido requerida.
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B. Fundamentos de direito. 

Atenta a precedência imposta pelo artº 608º, nº 1 e 2 do CPC ex vi artº 663º, nº2, do mesmo diploma, importa tecer breves considerações sobre a alegada nulidade por omissão de pronúncia (conclusão 8ª) que o recorrente imputa à sentença, sendo certo que o tribunal recorrido, aquando da prolação de despacho de recebimento do recurso, se pronunciou sobre a mesma, nos termos e para os efeitos do artº 617º, nº1, e 641º, nº1, do CPC, em termos que merecem a nossa concordância, pouco tendo nós a acrescentar.
O artº 615º, nº 1, alínea d), do CPC, estatui que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Abrantes Geraldes (Recursos no novo Código de Processo Civil, 2014, 2ª edição, página 139) refere que “É frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objeto do recurso que deve ser centrado nos aspetos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades-
Ora:
- A falta de especificação dos fundamentos de facto jamais pode confundir-se com a falta de prova ou mesmo com a falta de consideração de determinados factos; e mesmo a enunciação dos fundamentos de direito deve ajustar-se às concretas circunstâncias;
- A contradição entre os fundamentos e a conclusão e, mais ainda, a invocação de alegadas ambiguidades e obscuridades da sentença não pode servir para justificar a discordância quanto ao que foi decidido;
- A omissão de pronúncia deve limitar-se a questões que tenham sido alegadas ou que sejam de conhecimento oficioso, não servindo as alegações para introduzir novas questões que não foram submetidas ao tribunal a quo;
- O excesso de pronúncia, ao invés, terá que considerar se as questões foram ou não foram alegadas ou se são ou não de conhecimento oficioso;
- A condenação em quantidade ou em objeto diverso do pedido deve ser resultado de uma séria comparação entre o que consta da petição e da sentença.
Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, in CPC anotado, anotação ao artº 615º, referem que “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (artº 608º, nº 2), o não conhecimento de pedido, de causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídicas, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado.”
O recorrente imputa à sentença a referida nulidade à alínea d), do respetivo dispositivo, porque, alegadamente, “não declarou desde logo que créditos é que deveriam ser havidos por verificados e reconhecidos, ainda que apenas para o efeito de quantificar a indemnização que fixou.
Imputa ainda à sentença a violação do disposto no artº 189º, nº4, do CIRE, e 608º, nº2, do CPC.
Sem razão, porém.

Recordemos a redação do segmento do dispositivo posto em causa:
d) Condena-se AA a indemnizar os Credores da Insolvente, no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do respetivo património, pelo montante correspondente a 25% do valor dos créditos verificados e reconhecidos.
Como o próprio recorrente alegou, não foram apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente, tendo sido extinta a instância nos apensos de reclamação de créditos e de verificação ulterior de créditos com tal fundamento, decorrente do encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa, nos termos do disposto no artº 230º, nº 1, alínea d), do CIRE.
Tais decisões transitaram em julgado.
E, por força de tal extinção, a menção a créditos “verificados” não é rigorosa. Não houve créditos verificados. Mas, não obstante, é perfeitamente percetível o sentido da decisão, percebendo-se que os 25% referidos no dispositivo se referem à lista de créditos reconhecidos apresentada pelo senhor administrador da insolvência, nos termos do artº 129º, do CIRE, não resultando sequer do processo que tenha havido impugnações à mesma.
A questão que se poderia colocar no caso vertente, em tese, era se essa remissão foi correta.

Não tendo, no caso dos autos sido proferida sentença de verificação de créditos (nem de verificação ulterior de créditos), transitada em julgado, porque o processo de insolvência foi julgado extinto por falta de massa, das duas, uma:
1. ou no apenso de reclamação de créditos decorreu o prazo para impugnação da lista provisória de créditos reconhecidos e não reconhecidos pelo AI, e não houve impugnações, e aí esta converteu-se em definitiva;
2. ou não decorreu aquele prazo de impugnação e o tribunal recorrido não podia atender aos créditos reconhecidos pelo AI na fixação da indemnização. do art. 189º, n.º 2, al. e), porque aqueles créditos não estavam reconhecidos e os credores e a devedora nem sequer tiveram oportunidade de os impugnar.  

Todavia, não foi isto que o recorrente pediu, pelo que o hipotético erro de julgamento está subtraído à nossa apreciação. Ao invés, pediu que fossem indicados na sentença quais os créditos que se deveriam ter por verificados, o que, fora dos apensos respetivos, não é processualmente possível.
E, pese embora a apontada falta de rigor na sentença, ao fazer menção a créditos verificados, manifestamente não se pode falar de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos em que a lei a configura, nos termos supra expostos. O tribunal recorrido indicou os créditos que deveriam ser tomados em consideração. Se essa indicação foi corretamente efetuada é questão diferente.
A menção do artº 189º, nº4, do CIRE, que refere que o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas, não deve ser interpretada literalmente como uma exigência impositiva de um valor concreto, se do dispositivo da sentença, como é o caso, resulta perfeitamente percetível o objeto da condenação. A falta de rigor formal não é confundível com violação de lei, sendo ainda certo que, repete-se, não poderiam ser considerados verificados créditos fora dos apensos respetivos, sede processual própria para o efeito.
De igual forma, não vislumbramos a apontada falta de “cabal cumprimento ao disposto no artº 608º, nº2, do CPC”.
Para além da apontada inteligibilidade do decisório nos termos supra expostos, o tribunal recorrido conheceu integralmente do que lhe era imposto, não se vislumbra como o tribunal recorrido, em violação do trânsito em julgado da decisão de encerramento do apenso de verificação ulterior de créditos, onde nem sequer foi feita a citação prevista no artº 146º do CIRE, e onde o ali requerente, simples particular, não interpôs qualquer recurso das decisões, poderia vir agora decidir pela verificação dos créditos “que o merecerem, de entre os que foram alvo da intentada verificação ulterior de créditos.” Mais, a montante, colocava-se a questão da legitimidade ativa do ora recorrente quanto a tal pedido, sendo certo que a única petição inicial apresentada em sede de verificação ulterior de créditos o foi por um particular (ao contrário do que aconteceu no apenso de reclamação de créditos), no caso um condomínio, estando em causa interesses estritamente privatísticos, não se divisando de onde pudesse estar em causa a invocada necessidade de defesa da legalidade democrática subsumível ao disposto no artº 4º, nº1, alínea a), do Estatuto do Ministério Público (vide requerimento de interposição de recurso).
Tornam-se desnecessárias, desta forma, quaisquer outras considerações.
Revela-se assim totalmente improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, que assim se delibera julgar improcedente.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.
Notifique.
Guimarães, 27 de junho de 2024.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1º Adjunto: José Alberto Martins Moreira Dias.
2º Adjunto: José Carlos Pereira Duarte.