Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
275/21.1T8BRG.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
PEDIDOS SUBSTANCIALMENTE INCOMPATÍVEIS
IMPROCEDÊNCIA DE PEDIDOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – É inepta a petição inicial em que se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis, vício este que, a ocorrer, conduz à nulidade de todo o processo (art. 186º, nºs 1 e 2, al. c) do CPC).
II - “A incompatibilidade substancial dos pedidos verifica-se quando os efeitos jurídicos que com eles se pretendem obter estão, entre si, numa relação de oposição ou contrariedade, de tal modo que o reconhecimento de um é a negação dos demais.
Como o autor os apresenta a todos simultaneamente, e no mesmo plano, torna-se impossível discernir qual é, na realidade, a pretensão que pretende ver judicialmente reconhecida”.
III – “[P]ara que a petição inicial seja inepta não basta que as pretensões cumuladas sejam incompatíveis; é necessário também que a incompatibilidade entre elas conduza à ambiguidade do pedido”.
A impossibilidade de compreensão de qual é a verdadeira pretensão do autor gera a ineptidão da petição inicial e a consequente nulidade de todo o processo, na medida em que coloca o tribunal numa situação que o impede em absoluto de exercer o poder jurisdicional, resolvendo o litígio e decidindo o conflito de interesses, porquanto a atitude do autor, ao não manifestar a sua pretensão em termos adequados, formulando pretensões inconciliáveis do ponto de vista substancial e que se excluem reciprocamente, equivale a existência de uma “contradição no objeto do processo que impede a sua necessária identificação”.
IV - A contradição lógica ou a coerência substantiva dos pedidos não se confundem com a improcedência.
V - Os pedidos de pagamento de indemnização equivalente ao valor da renda, até à restituição do locado, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 1045º do CC, e de pagamento de uma indemnização elevada ao dobro, ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 1045º do CC, para o caso de atraso na restituição da coisa locada, não são substancialmente incompatíveis, visto que, por um lado, não se excluem reciprocamente, pois o segundo pedido foi formulado apenas para a hipótese de haver atraso na restituição, e, por outro lado, não existe ambiguidade ou ininteligibilidade da pretensão formulada, pois compreende-se claramente que o primeiro pedido se refere à situação em que não há mora na entrega e o segundo é formulado para o caso de ocorrer mora.
VI - Estes dois pedidos não podem proceder de forma cumulativa, sendo necessário aferir se há, ou não, mora na entrega do locado e, na afirmativa, determinar o momento temporal em que a mesma se verificou.
Porém, esta matéria prende-se com a (im)procedência dos dois pedidos, e não com a sua incompatibilidade substancial geradora de ineptidão.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

RELATÓRIO

AA veio propor contra EMP01... – EMPRESA MUNICPAL DE HABITAÇÃO DE ... ação declarativa, com processo comum, pedindo que:

1. se considere resolvido o contrato de arrendamento e, consequentemente, se ordene à ré que entregue o imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens, nos termos do nº 3 do art. 1083º e nº 1, 1ª parte do art. 1048º, ambos do CC;
2. declarado resolvido o contrato de arrendamento, se condene a ré à restituição da coisa locada e ao pagamento de indemnização equivalente ao valor da renda atá à restituição do local (art. 1045º, nº 1, do CC);
3. em caso de atraso na restituição da coisa locada, se condene a ré ao pagamento de indemnização elevada ao dobro, até à efetiva restituição (art. 1045, nº 2, do CC);
4. se condene a ré no pagamento das rendas vincendas, acrescidas de juros e mora até efetivo e integral pagamento.

Como fundamento dos seus pedidos alegou, em síntese, que deu de arrendamento à ré um imóvel, do qual é proprietária, mediante o pagamento da renda mensal de € 225.
A ré não procedeu ao pagamento da renda respeitante ao mês de outubro de 2019 nem das rendas subsequentes, não obstante ter sido ter sido interpelada por diversas vezes para o fazer e para fazer cessar a mora no prazo de 10 dias.
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Regularmente citada, a ré contestou invocando a inadequação do meio processual utilizado pela autora e a impossibilidade originária da lide porquanto o contrato de arrendamento que a ré invoca cessou em 30.9.2019, em consequência de oposição à renovação comunicada pela autora.
A cessação do contrato ocorrida em 30.9.2019 implica ainda que não são devidas as rendas peticionadas.
Pugnou pela procedência das exceções invocadas e pela improcedência da ação.
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A autora respondeu às exceções invocadas, pugnando pelo seu indeferimento.
Na sequência da alegação por parte da ré de que o contrato de arrendamento cessou em 30.9.2019, que considerou integrar uma confissão, a autora apresentou requerimento em 28.4.2021 no qual veio dizer que pretende reduzir e alterar os pedidos iniciais, os quais deverão passar a ter a seguinte redação:

[O Tribunal deverá]:
“1 - efetivar a cessação do contrato de arrendamento com efeitos a dia 30 de setembro de 2019, e consequentemente condenar a ré à restituição da coisa locada e ao pagamento de indemnização equivalente ao valor da renda até à restituição do locado, cfr. nº 1, do artigo 1045º do CC;
2 - em caso de atraso na restituição da coisa locada, condenar a ré, solidariamente, ao pagamento de indemnização elevado ao dobro, até à efetiva restituição, cfr. nº 2 do artigo 1045º do CC.”
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Em 27.9.2021 foi proferido despacho (ref. Citius 175098636) que determinou que a autora prestasse esclarecimentos.
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Em 8.10.2021, a autora apresentou requerimento (ref. Citius 12047773) no qual prestou esclarecimentos e requereu a intervenção de BB como associado da ré.
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Por despacho de 19.11.2021 (ref. Citius 176208708) foi admitida a intervenção principal provocada do chamado do lado passivo e determinada a sua citação.
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O chamado foi citado editalmente, por se encontrar em parte incerta, e o Ministério Público foi citado em sua representação, não tendo apresentado contestação.
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Em 20.1.2023 foi proferido despacho (ref. Citius 182328053) que julgou improcedentes as exceções de erro na forma de processo e de impossibilidade originária da lide.
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Em 12.1.2024 foi proferido despacho (ref. Citius 188537558) que:
a) fixou à causa o valor de € 17 550,00;
b) admitiu a alteração dos pedidos por acordo, ao abrigo do disposto no art 264º do Cód Civil (pedidos esses que consistem em “(a) efectivar a cessação do contrato de arrendamento com efeitos a 30/09/2019 e consequentemente condenar a ré a restituir a coisa locada e ao pagamento de uma indemnização equivalente ao valor da renda, até à restituição do locado, nos termos previstos no art 1045º, n.º 1 do Cód Civil; (b) em caso de atraso na restituição da coisa locada, condenar a ré, solidariamente, ao pagamento de uma indemnização elevada ao dobro, até efectiva restituição, nos termos do art 1045º, n.º 2 do Cód Civil”);
c) indeferiu liminarmente, por manifesta improcedência, o pedido subsidiário formulado pela autora (pedido esse que consiste em “c) subsidiariamente, para a eventualidade de vir a concluir estarem reunidos os pressupostos para se considerar o contrato de arrendamento renovado, nos termos prescritos no art 1056.º, do Cód. Civil, a autora pretende a condenação da ré a ver resolvido o contrato de arrendamento);
d) decidiu “absolver a ré da instância, por ineptidão da pi, em virtude de ter deduzido pedidos substancialmente incompatíveis, nos termos supra expostos, constituindo uma excepção dilatória de conhecimento oficioso (art 186º, n.º 2, al. b) e c) e 577º, al. b) do Cód de Proc Civil).”
*
A autora não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:


“I. O presente recurso tem como objeto a matéria de Direito da decisão proferida nos presentes autos que julgou inepta a petição Inicial apresentada pela Autora, ora Recorrente por entender existir incompatibilidade substancial de pedidos.
II. Entendeu o Tribunal a quo que o que pretendia a Recorrente seriam duas indemnizações, sendo uma pela ocupação indevida do locado consequência da verificação da oposição, válida e eficaz, à renovação,
III. e outra pelo atraso na entrega do imóvel.
IV. Contudo, a Recorrente, no pedido que formulou, não se contradizer ou incompatibiliza.  
V. O artigo 1045.º do Código Civil compreende duas moras distintas do locatário que não restituiu a coisa no termo do contrato.
VI. A mora na entrega da coisa locada, que se encontra claramente prevista na disciplina que rege o n.º 1 do artigo 1045.º do Código Civil, 
VII. e a mora do n.º 2, relativamente à mora no cumprimento do n.º 1 do mesmo preceito legal.
VIII. Existem, por isso, duas moras, a mora do n.º 1, de quantitativo igual à renda em singelo e, a mora no cumprimento da entrega do locado, em que a indemnização é elevada ao dobro.
IX. Assim, e no que respeita ao primeiro pedido, o mesmo tem por base a cessação do contrato por oposição e a restituição do imóvel. 
X. O Arrendatário está em falta desde a data de cessação, originando a obrigação de pagamento da indemnização correspondente ao valor da renda. (Neste sentido, o Ac. do TRL, de 16/05/2023, no âmbito do processo n.º 2066/20.8T8LRS.L1-7)
XI. No que respeita ao segundo pedido, o mesmo visa uma indemnização elevada ao dobro no caso de atraso, leia-se «mora», na restituição da coisa locada (Neste sentido, o Ac. do STJ, de 12/12/2023, no âmbito do processo n.º 7895/20.0T8LSB.L1.S1)
XII. Tal possibilidade extrai-se do próprio sentido literal do preceito legal.
XIII. Pelo que a Autora, ora Recorrente, apenas seguiu a lógica e o sentido literal da disposição legal, não se podendo, salvo melhor opinião, entender-se pela incompatibilidade entre os pedidos.
XIV. Ao contrário o que entendeu o Tribunal a quo, e com o devido respeito que o mesmo nos merece, a Recorrente articulou pedidos que se enquadram.
XV. Pelo exposto, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 554.º, 577.º, alínea b) e 186.º do Código de Processo Civil, preceito este que não deveriam ter tido a interpretação e conclusão que lhes foi dada.”
*
A ré contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida......
*
O Ministério Público, em representação do chamado ausente, contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida ....
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
*
Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão a decidir consiste em saber se a petição inicial é, ou não, inepta.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos relevantes para a questão a decidir são os que se encontram descritos no relatório e os mesmos resultam do iter processual.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como referido, a questão a decidir consiste em saber se a petição inicial é inepta.

Mercê da alteração do pedido apresentada pela autora - que veio a ser admitida no despacho proferido em 12.1.2024 (ref. Citius 188537558), o qual, nesta parte, não foi objeto de recurso - os pedidos formulados são os seguintes:

“a) efectivar a cessação do contrato de arrendamento com efeitos a 30/09/2019 e consequentemente condenar a ré a restituir a coisa locada e ao pagamento de uma indemnização equivalente ao valor da renda, até à restituição do locado, nos termos previstos no art 1045º, n.º 1 do Cód Civil;
(b) em caso de atraso na restituição da coisa locada, condenar a ré, solidariamente, ao pagamento de uma indemnização elevada ao dobro, até efectiva restituição, nos termos do art 1045º, n.º 2 do Cód Civil”.

A decisão recorrida considerou que estes dois pedidos são substancialmente incompatíveis e, em consequência, julgou verificada a exceção de ineptidão da petição inicial.

De acordo com o disposto na al. c) do nº 2 do art. 186º, do CPC, a petição inicial diz-se inepta quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis, vício este que, a ocorrer, conduz à nulidade de todo o processo, de acordo com o disposto no nº 1 do mesmo artigo.

Recorrendo às palavras de Alberto dos Reis (in Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3º, Coimbra Ed., 1946, pág. 156) a “incompatibilidade substancial que conta para a ordem jurídica é a que resulta do facto de as pretensões produzirem efeitos jurídicos contraditórios (...).
Exemplo nítido de incompatibilidade substancial: o autor pede simultaneamente a anulação e o cumprimento de determinado contrato. A anulação supõe a nulidade do contrato, ao passo que o cumprimento supõe a validade, de modo que pretender ao mesmo tempo a anulação e o cumprimento é pretender efeitos jurídicos contraditórios.”

Aponta ainda como exemplos de pedidos substancialmente incompatíveis o pedido de anulação de um testamento e o pedido de entrega de um legado instituído nesse testamento e o pedido de despejo de um prédio com o pedido de anulação do arrendamento ou com o pedido de pagamento das rendas que se vencerem após a procedência da ação.

Em sentido idêntico, Rodrigues Bastos (in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. I, págs. 388 e 389) refere que “[a] incompatibilidade substancial dos pedidos verifica-se quando os efeitos jurídicos que com eles se pretendem obter estão, entre si, numa relação de oposição ou contrariedade, de tal modo que o reconhecimento de um é a negação dos demais.
Como o autor os apresenta a todos simultaneamente, e no mesmo plano, torna-se impossível discernir qual é, na realidade, a pretensão que pretende ver judicialmente reconhecida”.

No mesmo alinhamento de ideias, afirma-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 17.03.1994, (P 0068516, in www.dgsi.pt) que “[h]á pedidos substancialmente incompatíveis, quando se contrariam uns aos outros de tal forma que não se podem conciliar, não se sabendo bem qual a verdadeira pretensão do demandante”.

É precisamente esta impossibilidade de compreensão de qual é a verdadeira pretensão do autor que gera a ineptidão da petição inicial e a consequente nulidade de todo o processo, na medida em que coloca o tribunal numa situação que o impede em absoluto de exercer o poder jurisdicional, resolvendo o litígio e decidindo o conflito de interesses, porquanto a atitude do autor, ao não manifestar a sua pretensão em termos adequados, formulando pretensões inconciliáveis do ponto de vista substancial e que se excluem reciprocamente, equivale ao que Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in CPC Anotado, Vol. 1º, pág. 379) denominam como uma “contradição no objeto do processo que impede a sua necessária identificação”.

Importa, porém, ter em conta que a incompatibilidade substancial de pedidos, para efeitos de qualificação da petição inicial como inepta, só existe se houver sido deduzida uma cumulação real de pedidos, já não havendo qualquer obstáculo à dedução de pedidos substancialmente incompatíveis desde que deduzidos de forma subsidiária ou alternativa, pois, nestas hipóteses, a cumulação é apenas aparente ou latente, na medida em que a apreciação de um excluirá o conhecimento do outro, não sendo considerados em conjunto.

E “[t]ambém quanto à cumulação de pedidos incompatíveis há que ter em conta a irrelevância dos vícios no enquadramento jurídico dos factos de que resulte a improcedência de algum dos pedidos cumulados. (...) Com efeito, para que a petição inicial seja inepta não basta que as pretensões cumuladas sejam incompatíveis; é necessário também que a incompatibilidade entre elas conduza à ambiguidade do pedido” (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, Vol. I, pág. 379).

Daí que, como afirma Rui Pinto (in CPC Anotado, Vol. I, pág. 319), “deve haver nexo lógico entre a causa de pedir e o pedido e deve existir coerência substantiva no interior de uma pluralidade de causas de pedir ou de pedidos.” Todavia, “não se pode confundir nem a contradição lógica, nem a coerência substantiva, com a improcedência”.

Definidos os contornos legais das situações de incompatibilidade substancial de pedidos, importa verificar se, no caso em apreço, a autora formulou pedidos enquadráveis nessa categoria.

Relembramos que a autora pediu ao tribunal para:
a) efectivar a cessação do contrato de arrendamento com efeitos a 30/09/2019 e consequentemente condenar a ré a restituir a coisa locada e ao pagamento de uma indemnização equivalente ao valor da renda, até à restituição do locado, nos termos previstos no art 1045º, n.º 1 do Cód Civil;
(b) em caso de atraso na restituição da coisa locada, condenar a ré, solidariamente, ao pagamento de uma indemnização elevada ao dobro, até efectiva restituição, nos termos do art 1045º, n.º 2 do Cód Civil”.

Estes dois pedidos não são substancialmente incompatíveis no sentido de que não se excluem mutuamente.

O pedido formulado em a) refere-se à indemnização prevista no nº 1 do art. 1045º do CC e o pedido formulado em b) refere-se à indemnização prevista no nº 2 mesmo artigo.
Trata-se de duas indemnizações diferentes que se aplicam a situações fácticas também diferentes.

Com efeito, dispõe o nº 1 do art. 1045º que se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, exceto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida. Acrescenta o nº 2 do mesmo artigo que logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a referida indemnização é elevada ao dobro.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela (in CC Anotado, Vol. II, 3ª ed., pág. 406) “[s]e, findo o contrato, não houver mora do locatário quanto à obrigação de restituição da coisa locada, nem fundamento para este consignar em depósito, o contrato prolonga-se até à entrega da coisa, devendo o locatário continuar a pagar, agora a título de indemnização, a renda ou aluguer convencionado. Indemnização justa, visto que ele continua a usar a coisa em prejuízo do locador - mas indemnização de natureza claramente contratual”.
Acrescentam estes autores que “[p]revê ainda o nº 2 a hipótese de haver mora do locatário (...). Nesse caso, a sua responsabilidade aumenta, fixando a lei como indemnização o dobro da que resultaria no caso previsto no número anterior” (sublinhados nossos).

De onde resulta, nas palavras do Acórdão do STJ de 20.11.2012, (P 1587/11.8TBCSC.L1.S1 in www.dgsi.pt com bold apócrifo) que “o art. 1045º prevê duas situações diversas. No primeiro caso, o locador, não existindo mora na entrega da coisa por banda do locatário, fica com o direito de receber deste (que continua a fruir do locado) uma indemnização correspondente ao valor do arrendamento convencionado até ao momento da entrega da coisa. No segundo, existindo mora na entrega do locado, então o senhorio terá o direito a receber do locatário o dobro do valor das rendas convencionadas, em relação ao período entre a constituição da mora e a efectiva entrega do locado. Isto, independentemente dos prejuízos efectivos que o senhorio sofra. Através do disposto do nº 1 visa-se compensar o senhorio pela privação do uso do locado. Já pelo determinado no n°2 pretende-se retribuir o locador pela não restituição do bem locado em devido tempo por culpa do locatário”.

Pinto Furtado (in Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 4ª ed., pág.169) afasta-se da doutrina dominante e faz uma interpretação diferente do preceito em análise dizendo que há que distinguir “duas moras diferentes do locatário que não restituiu a coisa no termo do contrato: a mora na entrega da coisa locada, que se encontra claramente prevista na disciplina do nº 1; e a mora do nº 2 que, sendo expressamente aí referida a ‘indemnização’, só poderá ser, estritamente, a do próprio pagamento da renda ou aluguer em singelo, a que o nº 1 alude.
Ou seja: a mora, de quantitativo legal à renda ou aluguer em singelo, do nº 1; e a mora no pagamento dessa quantia, em que ‘a indemnização é elevada ao dobro’”.

Não obstante a existência de interpretações divergentes do preceito, de qualquer delas resulta que nos nºs 1 e 2 do art. 1045º se consagram indemnizações diferentes e assentes em pressupostos fáctico-jurídicos diversos.

No caso em apreço, a autora peticionou, na al. a), o pagamento de indemnização equivalente ao valor da renda, até à restituição do locado, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 1045º, e, na al. b), o pagamento de uma indemnização elevada ao dobro, ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 1045º.
O pedido formulado na al. b) ao abrigo do nº 2 foi deduzido para o caso de atraso na restituição da coisa locada.
Os dois pedidos não são substancialmente incompatíveis, visto que, por um lado, não se excluem reciprocamente, tendo o pedido da al. b) sido formulado apenas para a hipótese de haver atraso na restituição, e, por outro lado, não existe ambiguidade ou ininteligibilidade da pretensão formulada pela autora, pois compreende-se claramente que o pedido da al. a) se refere à situação em que não há mora na entrega e o da al. b) é formulado para o caso de ocorrer mora.

Sem embargo do antedito, é evidente que os dois pedidos não podem proceder de forma cumulativa, sendo necessário aferir se há, ou não, mora na entrega do locado e, na afirmativa, determinar o momento temporal em que a mesma se verificou.
Porém, esta matéria prende-se com a (im)procedência dos dois pedidos, e não com a sua incompatibilidade substancial geradora de ineptidão, sendo ainda de referir que se os elementos factuais constantes dos autos não forem suficientes para concluir pela existência de mora e aferir do momento da sua constituição, tal patologia justificará que se convide a parte a suprir as insuficiências da alegação de facto, mas já não que se conclua pela existência do vício de ineptidão da petição inicial com a consequente nulidade de todo o processo.

Em conclusão, resulta do antedito que os pedidos formulados nas als. a) e b) não são substancialmente incompatíveis, pelo que não ocorre ineptidão da petição inicial com esse fundamento.

A decisão recorrida no dispositivo refere que foram deduzidos pedidos substancialmente incompatíveis, situação enquadrável na al. c) do nº 2 do art. 186º do CPC, que já supra analisámos. Porém, refere também a al. b), relativa à contradição entre o pedido e a causa de pedir, situação à qual faz também alusão na motivação.
Por assim ser, e sendo certo que se trata de matéria de conhecimento oficioso, importa igualmente analisar se ocorre esta causa de ineptidão da petição inicial.

De acordo com o estatuído no art. 186º, nº 2, al. b) do CPC, a petição é inepta quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir.

O pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor.
A causa de pedir traduz-se no facto jurídico material e concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo.

A petição inicial (...) deve apresentar-se sob a forma de um silogismo, ao menos implicitamente enunciado, que estabeleça um nexo lógico entre as premissas e a conclusão; em tal silogismo, a premissa maior é constituída pelas razões de direito invocadas, a premissa menor é integrada pelas razões de facto e o pedido corresponderá à conclusão. Por isso mesmo, a causa de pedir não deve estar em contradição com o pedido, o que não se confunde com a simples desarmonia entre pedido e causa de pedir. Um caso de evidente contradição será o de o autor arguir a nulidade do contrato e concluir pela condenação do réu no pagamento de uma prestação emergente desse mesmo contrato. Assim também quando se alega a nulidade de determinada compra e venda (...) e se conclui pedindo o reconhecimento do direito de preferência do autor relativamente ao bem objeto do negócio” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa in CPC Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 233).
“[S]e o pedido deve ser a consequência ou o corolário lógico da causa de pedir, numa ideia de silogismo, a contradição entre esses dois elementos implica a impossibilidade de a petição cumprir a sua função; em rigor, este motivo de ineptidão resulta de um verdadeiro antagonismo entre o pedido e a causa de pedir, e não de uma mera desadequação entre uma coisa e outra” (Castro Mendes in Direito Processual Civil Vol. III, pág. 49).

No caso em apreço, a autora invocou como causa de pedir a existência de um contrato de arrendamento, o qual cessou, por oposição à renovação, em 30.9.2019, sem que o locado lhe tenha sido restituído. Os pedidos formulados em a) e b) consistem na condenação na restituição do locado, no pagamento de indemnização equivalente ao valor da renda, até à restituição, nos termos previstos no art 1045º, n.º 1 do Cód Civil e, em caso de atraso na restituição, no pagamento de uma indemnização elevada ao dobro, até efetiva restituição, nos termos do art 1045º, n.º 2 do Cód Civil.

Estes pedidos apresentam um nexo lógico com a causa de pedir, inexistindo contradição entre ambos.
A circunstância, referida na decisão recorrida, de não se retirar da petição inicial nem do pedido o momento a partir do qual a autora entende que o arrendatário se constituiu em mora, não gera qualquer incompatibilidade entre os pedidos e a causa de pedir, apenas justificando que, caso se considere necessário, se convide a autora a apresentar esclarecimentos sobre essa questão.
Por outro lado, a entender-se, como faz o tribunal recorrido, que a mora ocorre em 30.9.2019, data em que cessou o contrato de arrendamento, tal significa unicamente que só procederia o pedido da al. b), formulado para a hipótese de atraso na restituição da coisa, e improcederia o da al. a), formulado para a hipótese de não ocorrer mora. Ou seja, a questão coloca-se ao nível de improcedência, e não, como entendeu a decisão recorrida, de contradição entre os pedidos e a causa de pedir.

Resulta de quanto se expôs que os pedidos formulados nas als. a) e b) não são substancialmente incompatíveis, nem se encontram em contradição com a causa de pedir, pelo que não ocorre ineptidão da petição inicial com estes fundamentos.

Nestes termos, procede o recurso com a consequente revogação, nesta parte, da decisão recorrida.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado procedente, é a recorrida responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada, por ter ficado vencida, sendo que o Ministério Público se encontra isento do seu pagamento (art. 4º, nº 1, al. a) do RCP).

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a sentença recorrida na parte em que absolveu a ré da instância, por ineptidão da petição inicial, em virtude de ter deduzido pedidos substancialmente incompatíveis e contraditórios com a causa de pedir, determinando o prosseguimento dos autos.
Custas da apelação pela recorrida, visto que o Ministério Público se encontra isento do seu pagamento (arts 527º do CPC e 4º, nº 1, al. a) do RCP).
Notifique.
*
Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I – É inepta a petição inicial em que se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis, vício este que, a ocorrer, conduz à nulidade de todo o processo (art. 186º, nºs 1 e 2, al. c) do CPC).
II - “A incompatibilidade substancial dos pedidos verifica-se quando os efeitos jurídicos que com eles se pretendem obter estão, entre si, numa relação de oposição ou contrariedade, de tal modo que o reconhecimento de um é a negação dos demais.
Como o autor os apresenta a todos simultaneamente, e no mesmo plano, torna-se impossível discernir qual é, na realidade, a pretensão que pretende ver judicialmente reconhecida”.
III – “[P]ara que a petição inicial seja inepta não basta que as pretensões cumuladas sejam incompatíveis; é necessário também que a incompatibilidade entre elas conduza à ambiguidade do pedido”.
A impossibilidade de compreensão de qual é a verdadeira pretensão do autor gera a ineptidão da petição inicial e a consequente nulidade de todo o processo, na medida em que coloca o tribunal numa situação que o impede em absoluto de exercer o poder jurisdicional, resolvendo o litígio e decidindo o conflito de interesses, porquanto a atitude do autor, ao não manifestar a sua pretensão em termos adequados, formulando pretensões inconciliáveis do ponto de vista substancial e que se excluem reciprocamente, equivale a existência de uma “contradição no objeto do processo que impede a sua necessária identificação”.
IV - A contradição lógica ou a coerência substantiva dos pedidos não se confundem com a improcedência.
V - Os pedidos de pagamento de indemnização equivalente ao valor da renda, até à restituição do locado, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 1045º do CC, e de pagamento de uma indemnização elevada ao dobro, ao abrigo do disposto no nº 2 do art. 1045º do CC, para o caso de atraso na restituição da coisa locada, não são substancialmente incompatíveis, visto que, por um lado, não se excluem reciprocamente, pois o segundo pedido foi formulado apenas para a hipótese de haver atraso na restituição, e, por outro lado, não existe ambiguidade ou ininteligibilidade da pretensão formulada, pois compreende-se claramente que o primeiro pedido se refere à situação em que não há mora na entrega e o segundo é formulado para o caso de ocorrer mora.
VI - Estes dois pedidos não podem proceder de forma cumulativa, sendo necessário aferir se há, ou não, mora na entrega do locado e, na afirmativa, determinar o momento temporal em que a mesma se verificou.
Porém, esta matéria prende-se com a (im)procedência dos dois pedidos, e não com a sua incompatibilidade substancial geradora de ineptidão.
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Guimarães, 27 de junho de 2024

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) José Carlos Pereira Duarte
(2º/ª Adjunto/a) Alexandra Maria Viana Parente Lopes