Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2477/23.7T8VNF-A.G1
Relator: FERNANDO CABANELAS
Descritores: DISPENSA DE REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
PREVISÕES LEGAIS DE DISPENSA
PEDIDO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
DIREITO POTESTATIVO DAS PARTES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Do cotejo dos artigos 591º, 592º, e 593º, todos do CPC, retiram-se três conclusões imediatas: o primeiro estabelece o princípio geral, o da realização de audiência prévia, e os dois restantes os casos em que, respetivamente, a mesma não se realiza ou pode ser dispensada.
2. Tendo o juiz do processo prolatado despacho a dispensar a realização de audiência prévia, e tendo uma das partes requerido a realização da mesma, ao abrigo do artº 593º, nº3, do CPC, terá de ser realizada tal diligência, por potestativamente requerida.
Decisão Texto Integral:
 Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório:

Em 1 de janeiro de 2024 foi prolatado despacho saneador onde, além do mais, se decidiu:
Dispensa de audiência prévia
Estabelece o artigo 593.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que “[n]as ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º”, nomeadamente proferir despacho saneador, determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, e proferir o despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Uma vez que a audiência prévia se destinaria apenas aos fins previstos nas alíneas d) e f), n.º 1 do artigo 591.º do referido diploma legal, – designadamente proferir despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, nos termos do artigo 596.º do Código de Processo Civil, – bem como as questões a resolver não revestem especial complexidade, dispenso a realização daquela audiência, nos termos do citado artigo 593.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Em 18 de janeiro de 2024, os ora recorrentes fizeram requerimento com o seguinte teor:
AA e mulher, Réus nos autos em referência, notificados do despacho proferido, vêm requerer a realização de uma Audiência Prévia, nos termos conjugados dos art.s 593º nºs 2 al. c) e 3 e 596º do CPC.
Pedem a V. Exa. deferimento.

Em 25 de janeiro foi prolatado o seguinte despacho:
Ref. 18.01.2024, cfr. fls. 69: Vieram os RR. requerer a realização de uma Audiência Prévia, nos termos conjugados dos art.s 593º nºs 2 al. c) e 3 e 596º do CPC, no entanto o RR. não suscitaram qualquer questão, pelo que se indefere o requerido, por meramente dilatório, cfr. artigo 593.º, n.º 3 do CPC.

Os réus apelaram deste despacho, formulando as seguintes conclusões:
1ª- O despacho recorrido indeferiu o requerimento de Audiência Prévia apresentado pelos Réus com o argumento de que estes «não suscitaram qualquer questão» quando o apresentaram – além de o ter classificado de «meramente dilatório».
2ª- Principia o art. 593º nº 3 do CPC, dispensando o Juiz a Audiência Prévia, se alguma delas pretender reclamar dos despachos previstos nas alíneas b) a d) do número anterior do preceito, pode requerer, em 10 dias, a realização de audiência prévia;
3ª- deste texto do preceito que basta que uma parte pretenda reclamar dos despachos a que o mesmo se reporta para, ipso facto, lhe assistir o direito de requerer a realização de Audiência Prévia.
4ª- Sem ter de, nesse requerimento, suscitar desde logo as questões que nessa Audiência pretende apresentar, uma vez que a lei não lho impõe – na Audiência, a parte explanará os fundamentos e razões pelas quais a requereu.
5ª- a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores é unânime nesse sentido; cfr: o Acórdão da Relação de Lisboa de 2023.10.17 (Proc. nº 7827/21.8T8LSB-C.L1-1):«Opondo-se alguma das partes à dispensa de realização da audiência prévia, esta deve obrigatoriamente realizar-se».
6ª- No mesmo sentido: Acórdãos da mesma Relação de 2018.03.22 (Proc. nº 1920/14.0YYLSB-A.L1-6), de 2022.05.26 (Proc. nº 15919/16.9T8LSB-B.L1-2) e da Relação de Évora de 2012.06.17(Proc. nº 931/19.4T8OLH.E1), parcialmente transcritos na presente alegação.
7ª- Em suma: não impende sobre a parte que requerer a realização de Audiência Prévia, posteriormente à prolação do despacho que entendeu dispensá-la, o ónus de nesse requerimento suscitar as questões que nessa mesma Audiência pretende levantar.
8ª- Mais se conclui que não houve qualquer intuito «dilatório» na apresentação do requerimento em causa (cfr. o Ac. RP de 2007.10.25 (Proc. nº 07...), também parcialmente transcrito na presente alegação.
9ª- No despacho recorrido encontra-se interpretado e aplicado por forma inexata o art. 593º nº 3 do CPC.
Termos em que deverá o recurso merecer provimento, revogando-se o despacho recorrido, em conformidade com as conclusões que antecedem.
Com o que apenas se fará JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações. 
Os autos foram aos vistos dos excelentíssimos adjuntos.
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II – Questões a decidir:

Nos termos do disposto nos artºs 608º, nº2, 609º, nº1, 635º, nº4, e 639º, do CPC, as questões a decidir em sede de recurso são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas que o tribunal deve conhecer oficiosamente, não sendo admissível o conhecimento de questões que extravasem as conclusões de recurso, salvo se de conhecimento oficioso.
As questões a decidir são, assim, apurar as consequências da não realização de audiência prévia, negando pedido de uma das partes nesse sentido.
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III – Fundamentação:

A. Fundamentos de facto:
Os factos provados com relevância para a decisão do presente recurso são os constantes do relatório deste acórdão.
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B. Fundamentos de direito. 
Alegou o recorrente que, face ao disposto no artº 593º, nº3, do CPC, tendo sido pedida a realização de audiência prévia, a mesma não podia ter sido dispensada.
Vejamos se é assim.

Dispõe o artº 593º, do CPC que:
1 - Nas ações que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização da audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º.
2 - No caso previsto no número anterior, nos 20 dias subsequentes ao termo dos articulados, o juiz profere:
a) Despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;
b) Despacho a determinar a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º;
c) O despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º;
d) Despacho destinado a programar os atos a realizar na audiência final, a estabelecer o número de sessões e a sua provável duração e a designar as respetivas datas.
3 - Notificadas as partes, se alguma delas pretender reclamar dos despachos previstos nas alíneas b) a d) do número anterior, pode requerer, em 10 dias, a realização de audiência prévia; neste caso, a audiência deve realizar-se num dos 20 dias seguintes e destina-se a apreciar as questões suscitadas e, acessoriamente, a fazer uso do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 591.º.

O artº 595º, nº1, b), do CPC, tem a seguinte redação:
1. O despacho saneador destina-se a:
(…)
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Por seu turno, o artº 591º, nº1, b), do CPC estatui o seguinte:
1.Concluídas as diligências resultantes do preceituado no nº2 do artigo anterior, se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins seguintes:
(…)
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar as exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.
Do cotejo dos artigos 591º, 592º, e 593º, todos do CPC, retiram-se três conclusões imediatas: o primeiro estabelece o princípio geral, o da realização de audiência prévia, e os dois restantes os casos em que, respetivamente, a mesma não se realiza ou pode ser dispensada.
Como resulta da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 113/XII (PL 521/2012, de 22 de novembro de 2012), na génese da Lei nº 41/2013, “Há um manifesto investimento na audiência prévia, entendida como meio essencial para operar o princípio da cooperação, do contraditório e da oralidade. Tem-se presente que a audiência preliminar, instituída em 1995/1996, ficou aquém do que era esperado, mas há também a convicção de que, além da inusitada resistência de muitos profissionais forenses, certos aspetos da regulamentação processual acabaram, eles próprios, por dificultar a efetiva implantação desta audiência no quotidiano forense. (…) A audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados.
(…) Numa perspetiva de flexibilidade, mas nunca descurando a assinalada visão participada do processo, prevê-se que o juiz, em certos casos, possa dispensar a realização da audiência prévia. Nessa hipótese, o juiz proferirá despacho saneador, proferirá despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas de prova, programando e agendando ainda os atos a realizar na audiência final, estabelecendo o número de sessões e a sua provável duração.” - vide AcRL 06-06-2019, processo nº 21172/16.7T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, tal como os demais infra citados.
 Nos presentes autos, o tribunal recorrido decidiu dispensar a realização da citada diligência, não estando verificada nenhuma das hipóteses legalmente contempladas de dispensa ou não realização de audiência prévia.
José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, no seu Código de Processo Civil anotado, vol. 2º, 4ª edição, pág. 651, tecem, a este propósito, as seguintes considerações: “Não obstante o juiz ter dispensado a audiência prévia, esta ainda pode ter lugar por iniciativa das partes: basta que alguma delas o requeira, nos termos do nº 3. O requerimento só é, porém, admissível, se a parte, além de observar o prazo de 10 dias após a notificação dos despachos previstos no nº 2, “pretender reclamar” de algum dos referidos nas alíneas b) a d).
(…)
A redação do nº 3 é pouco clara, pois não se alcança se a parte deve deduzir os fundamentos da reclamação logo que apresenta o requerimento, ou se os pode deduzir mais tarde, na audiência prévia, sendo suficiente, no referido prazo de 10 dias, manifestar a intenção de reclamar e identificar as questões que levantará na audiência. Inclinamo-nos para a segunda solução (neste sentido, Ramos de Faria – Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao CPC, nº 3.2, da anotação ao artº 593), embora então também se coloque o problema de saber o que sucederá se a parte, na audiência prévia, afinal não deduzir qualquer reclamação. Julga-se que, neste caso, a audiência prévia deve ser encerrada, não se chegando a fazer uso do disposto na alínea c) do nº 1 do artº 591 (cfr. o nº 3, parte final).

Já Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, no seu Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 692, ponto 8, defendem que se está perante um caso de audiência potestativa: “O artº 593º, nº3, confere às partes (embora baste que uma se manifeste) a possibilidade de determinar a realização da audiência prévia que o juiz começou por dispensar – trata-se, pois, de uma audiência potestativa, sendo essa a única via que as partes têm para reagir àquelas três espécies de despachos que o juiz proferiu unilateralmente. Significa isto que, no quotidiano forense, o juiz deve ponderar as vantagens que podem resultar da imediata convocação da audiência prévia, já que a celeridade potencialmente alcançada por via da sua dispensa pode ser prejudicada pela futura reação de alguma das partes, requerendo a realização da audiência”.
Estes mesmos autores manifestam discordância sobre a posição supra transcrita de Lebre de Freitas e de Isabel Alexandra, alegando que é “entendimento que não subscrevemos, não só por falta de apoio mínimo no texto legal, mas também porque contraria o sentido do esquema processual instituído, que aposta nas virtualidades da audiência prévia e no que esta assegura em termos de concentração processual, de oralidade e de projeção do andamento subsequente do processo.
Face à letra da lei, afigura-se-nos que o pedido de audiência prévia formulado ao abrigo do disposto no artº 593º, nº3, do CPC configura um direito potestativo das partes, constituindo o juiz titular do processo no poder dever de marcar a audiência prévia.
Paulo Ramos de Faria, in Regime processual civil experimental – A gestão processual no processo declarativo comum experimental, Cejur, 2009, pág. 48, diz que o poder é vinculado quando o juiz deve pronunciar-se no único momento determinado por lei, no único sentido por esta admitido e com as exatas formalidades por ela prescritas, tendo o juiz que proceder à realização da mesma.
É o que sucede no caso vertente, impondo-se a realização da audiência prévia. Aí, e só aí, e realizada a mesma, poderão ser formulados juízos sobre o alegado caráter impertinente ou dilatório da mesma (e a lei processual faculta meios de reação em sede de apreciação global do processo, quais sejam a litigância de má-fé e a taxa sancionatória excecional).  
Não é processualmente possível antecipar o que vai ser alegado na audiência prévia, de forma a considerar que esta não tenha qualquer efeito útil ou sequer influência na decisão a tomar. Ou seja, e em tese, há que admitir a possibilidade de o julgador, na sequência da auscultação das partes, vir depois a ser confrontado com uma posição jurídica que não havia considerado, suscetível de o fazer infletir a sua opinião, e com reflexos na matéria que entende ser necessário apurar e provar.
Face à obrigatoriedade de marcação da audiência prévia, tem assim de ser revogado o despacho recorrido, o que se delibera, determinando-se a realização da audiência prévia e a anulação dos atos posteriores que sejam incompatíveis com a referida omissão.
No que tange à imputação das custas, não tendo havido a apresentação de contra-alegações e consequente vencimento, e tendo os recorrentes tirado proveito do recurso, as custas ficarão a seu cargo, nos termos do artº 527º, nº1, parte final, do CPC.
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V – Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto e revogar o despacho que indeferiu a marcação de audiência prévia, com a consequente anulação dos atos posteriores que sejam incompatíveis com a referida omissão; mais se delibera determinar o prosseguimento dos autos nos termos expostos com prolação de despacho a convocar as partes para audiência prévia, seguindo-se os ulteriores termos.
Custas pelos recorrentes – artº 527º, nº1, parte final, do CPC.
Notifique.
Guimarães, 27 de junho de 2024.

Relator: Fernando Barroso Cabanelas.
1º Adjunto: Pedro Maurício.
2ª Adjunta: Alexandra Maria Viana Parente Lopes.