Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
56/22.5GABTC.G1
Relator: CRISTINA XAVIER DA FONSECA
Descritores: SENTENÇA
FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DA SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - É na fundamentação de facto que reside a principal força (ou fraqueza) de uma decisão judicial.
II - É dever do julgador explicar de forma inteligível o modo como chegou à prova (ou falta dela) de cada facto.
III - Isso exige que a linguagem empregue seja clara, acessível e simples: são factos da vida, a explicar com termos que todos possam entender.
IV - Se do teor da motivação, não resultar perceptível a referência a meios de prova para algum dos factos dados como provados, há falta de fundamentação e consequente nulidade da sentença (art. 379.º, n.º 1, a), do Código de Processo Penal).
Decisão Texto Integral:
Neste processo n.º 56/22.5GABTC.G1, acordam em conferência as Juízas na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 56/22...., a correr termos no Juízo Local Criminal de ..., Comarca de Vila Real, em que é arguido AA, foi proferida sentença que o condenou:

- pela prática de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelos arts. 348.º, n.º 1, a), e n.º 2, do Código Penal, 146.º, l), do Código da Estrada, e 14.º, n.º 2, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (Lei n.º 63/2007, de 6 de Novembro), na pena de 1 ano e 3 meses de prisão;
- pela prática de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo art. 366.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão; e
- em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, mediante regime de prova, assente num plano de reinserção social que deverá contemplar, nos termos dos arts. 50.º, n.º 2 e n.º 4, e 52.º, n.º 1, b), do Código Penal, a consciencialização do arguido para as consequências gravosas do seu comportamento, actuando no seu sentido autocrítico, com promoção e fiscalização da comparência em programas e formações, que priorizem a aquisição de competências sociais básicas pelo arguido direccionadas para o reforço das competências pessoais, da interacção e relacionamento/comportamento interpessoal para as consequências para os outros da sua conduta delituosa, visando tal plano provocar uma mudança de atitude e comportamentos associados à criminalidade e a adopção voluntária de comportamentos alternativos, que previnam a reincidência.
Inconformado, recorreu o arguido, apresentando as seguintes conclusões[1]:
«2. Quanto a nós, no entanto, de forma excessiva isto relativamente a um ponto elementar e que é o ponto em que condena o arguido por um crime de simulação de crime e o condena na pena parcelar de seis meses de prisão.
3. O presente recurso é interposto nos termos do artigo 412.º n.º e n.º 4 do CPP, tendo por objecto a matéria de facto e de direito da douta sentença proferida no que ao crime de simulação de crime diz respeito.
4. O arguido questiona a sentença proferida em três segmentos: o primeiro, por entender que foram dados como provados factos para os quais inexiste qualquer prova que os permita provar, e que sendo alterados imporão a sua absolvição do crime de simulação de que está acusado; o segundo, por não concordar, em caso de condenação pelo crime de simulação de crime de que está acusado, com a opção efectuada pelo Tribunal a quo pela pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução; o terceiro, se se entender que a opção ser feita pela pena de prisão é a correcta, não concordar com a medida da pena – 6 meses, por a entender excessiva.
5. É que nenhuma prova se produziu em sede de audiência de julgamento, nem nenhuma prova consta dos autos que permita ao Tribunal dar como provado que o arguido imobilizou e abandonou a sua viatura automóvel no caminho florestal denominado Rua ..., em frente ao n.º 9, em ..., em ... e que bem sabendo tal facto, denunciou o desaparecimento da referida viatura na tentativa de se furtar à responsabilidade criminal e contra ordenacional pelos actos cometidos no exercício da condução.
6. O arguido não prestou declarações, remetendo-se ao silêncio, no exercício de um direito que lhe assiste, sendo que o seu silêncio não o pode prejudicar.
7. As testemunhas inquiridas relativamente ao desaparecimento/aparecimento da viatura foram os 4 militares da GNR, BB, CC, DD e EE, e o FF, sendo que nenhuma delas pode concretizadamente descrever como é que a viatura foi levada para o local onde apareceu, por quem foi levada e em que circunstâncias.
8. Posto isto, inexiste qualquer prova, testemunhal ou documental, nos autos que permita ao Tribunal a quo dar como provado o facto descrito sob o n.º 11 e, em consequência as conclusões vertidas sobre tal facto nos factos provados sob o n.º 12 e 15.
9. Pelo que se impõe que o facto descrito sob o n.º 11 seja dado como não provado e, bem assim, que os factos provados sob o n.º 12 e n.º 15 passem a ter a seguinte redacção: 12.No dia ../../2022, pelas 16h50, o arguido AA dirigiu-se ao Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana de ... e denunciou que, entre as 00h00 e as 09h00 dessa data, desconhecidos haviam furtado o seu veículo automóvel de marca e modelo ...” e de matrícula ..-..-DF, com o valor comercial de 12.000 EUR (doze mil euros). 15. O arguido conduziu o veículo automóvel com a matrícula ..-..-DF, pelo menos entre as 00h00 e a 01h00 do dia ../../2022.
10. Caso o arguido não seja absolvido pelo crime de simulação de crime de que está acusado, o que se admite por mera hipótese académica e dever de patrocínio, sempre se dirá que a pena e a medida da pena que lhe foi aplicada é manifestamente excessiva.
11. É na fixação concreta da medida de uma pena estabelecida no âmbito de uma moldura abstracta que se evidencia a tarefa mais importante do juiz, obedecendo, no entanto, a um rigoroso cumprimento da Lei, seja das normas estabelecidas no Código Penal (artigos 40.º, 70.º e 71.º) seja dos princípios constitucionais que se evidenciam como orientadores primários da interpretação jurídico-penal.
12. É na culpa do agente e nas razões preventivas gerais e especiais que se encontram as guias fundamentais para fixar a pena devida em determinado caso, sendo que o Código Penal estabelece um limite inequívoco e inultrapassável onde tem que assentar a medida da pena: a culpa do agente, nomeadamente a sua medida.
13. É este o limite que nenhum razão de prevenção pode ultrapassar, de acordo com a imposição normativa estabelecida no artigo 40.º n.º 2 do Código Penal, não há pena sem culpa nem a pena pode, na sua dimensão concreta, ultrapassar a medida da culpa.
14. O que impõe que na fixação da pena concreta se leve em consideração a dimensão da prevenção, geral e especial, como aliás decorre do artigo 71.º n.º 1 do CP.
15. Prevenção que, no entanto, como vem sendo absolutamente assumido pela doutrina e jurisprudência de uma forma inequívoca, respeitando aliás a imposição legislativa, se assume como uma prevenção geral de integração.
16. Perante pena abstracta alternativa (prisão ou multa), impõe-se sempre ao julgador começar por justificar especialmente a eventual escolha da pena (principal) de prisão, já que, nestes casos, o artigo 70.º do Código Penal obriga o tribunal a dar preferência à sanção não privativa da liberdade sempre que esta realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
17. A factualidade que subjaz à aplicação da medida da pena concretamente aplicada, não se mostra adequada por ser excessiva e ultrapassar o necessário para a estrita reintegração das normas afetadas pelo comportamento do arguido.
18. A pena concretamente aplicada, não apenas os limites da prevenção, geral e especial, como também o grau de culpa do arguido.
19. O Tribunal a quo deveria ter optado por aplicar ao arguido, relativamente ao crime de simulação de crime, uma pena de multa que cumpriria com as exigências de prevenção geral e especial necessárias no caso.
20. E mesmo que assim não se entenda, o que se admite por dever de patrocínio, e que se considere que ao arguido e relativamente ao crime de simulação de crime terá que ser aplicada uma pena de prisão, suspensa na sua execução, mais próxima do seu limite mínimo e nunca superior a três meses.
21. Também aqui se verificou um ultrapassar da medida da pena que foi aplicada ao arguido, ultrapassando-se os limites da prevenção geral e especial, devidos à sociedade e ao arguido, e bem como ultrapassam o grau de culpa do mesmo, pelo que, tipo de pena e a medida da pena no que ao crime de simulação de crime diz respeito deverá ser reapreciada.
22. A douta sentença violou as seguintes normas jurídicas: artigos 40.º, 70.º, 71.º, 366.º do Código Penal e artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP.»
Pugna o recorrente pela sua absolvição do crime de simulação de crime e, caso assim não se entenda, pela reapreciação da pena e medida da pena que lhe foi aplicada pelo mesmo ilícito.
O recurso foi admitido.
O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta, na qual aduziu jurisprudência quanto ao invocado erro de julgamento, entende ter o Tribunal a quo procedido a uma correcta apreciação e valoração da prova produzida, de acordo com o art. 127.º do Código de Processo Penal, concluindo que deverá ser negado provimento ao recurso e ser integralmente confirmada a sentença recorrida.
Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta defende que o recurso não deve merecer provimento: a prova mostra-se bem avaliada e devidamente motivada na 1.ª instância, e a escolha e medida da pena se justificam não só pelos antecedentes criminais como também pelos outros aspectos ponderados na sentença recorrida (o elevado grau de ilicitude e o dolo directo). 
Cumprido o contraditório, o recorrente respondeu, reiterando o já alegado em sede de motivação e conclusões de recurso.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Delimitação do objecto do recurso

Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[2], e face às conclusões do recurso, são três as questões a resolver[3]:
- a existência de erro de julgamento;
- a escolha da pena; e
- a medida da pena.
Não se pode, porém, esquecer que este Tribunal se encontra obrigado, por lei, a decidir as questões de conhecimento oficioso, como as nulidades insanáveis do art. 379.º (ex vi art. 410.º, n.º 3), e os vícios descritos no n.º 2 do art. 410.º, porque qualquer uma delas pode obstar à apreciação do mérito do recurso, ainda que este se limitasse à matéria de direito[4] (o que não é o caso dos autos).

B. Decisão recorrida

1. Factos provados[5]
«1. No dia ../../2022, pelas 00h10, o arguido AA, conduzindo o veículo automóvel de marca e modelo ...” e de matrícula ..-..-DF, perseguiu o automóvel de marca e modelo ...” e de matrícula ..-..-FS conduzido por GG, do centro de ... até à localidade das Quintas, sempre com as luzes de máximos ligadas e apontadas a este segundo veículo, perturbando as condições de segurança da condução.
2. Assim que GG imobilizou a viatura que conduzia junto ao n.º ...4 da Rua ..., na localidade de Quintas, ..., concelho ..., o arguido AA parou o seu automóvel junto e paralelo e perguntou, num tom de voz alto e agressivo, a GG e a HH, que acompanhava a primeira, o que andavam ali a fazer ali àquela hora, uma vez que não eram horas para andarem ali.
3. Continuando repetidamente a questionar da forma descrita GG e HH, aparentemente sob a influência do álcool, o arguido apenas interrompeu este comportamento, abandonando o local pelas 00h20 em direção à ..., quando no local intervieram o marido e a filha da segunda, respetivamente, II e JJ.
4. Pelas 00h25, o arguido AA, ao volante do referido veículo automóvel, no entroncamento entre a Rua ... com a Estrada Regional n.º ...11, em ..., cruzou-se com o carro patrulha da Guarda Nacional Republicana, em que seguiam os Militares BB e CC, devidamente uniformizados e no exercício das suas funções.
5. Ao avistar o carro patrulha da Guarda Nacional Republicana, perfeitamente identificado com as cores, os símbolos e os dizeres da Guarda, bem como com os dispositivos luminosos colocados no tejadilho, de imediato, o arguido arrancou em alta velocidade no sentido da Rua ..., em direção ao centro de ....
6. Tendo em conta que os atos de importunação supra descritos a GG e HH haviam sido comunicados à patrulha, os Militares seguiram no encalce do arguido e deram-lhe ordem de paragem, através do acionamento intercalado das luzes médias e máximos da viatura e permanente dos dispositivos luminosos colocados no tejadilho
7. Todavia, o arguido não imobilizou a viatura que conduzia, tendo, em vez disso, até acelerado a velocidade, imprimindo um grau excessivo atendendo às condições, condições das vias.
8. No percurso que seguiu, e durante o qual a patrulha da Guarda Nacional Republicana repetidamente persistiu na comunicação da ordem de paragem à viatura conduzida pelo arguido, este prosseguiu a marcha pela Rua ..., Rua ..., novamente Rua ..., Rua ..., Rua ..., Rua ..., Rua ..., novamente Rua ... e Rua ..., sendo que na Rotunda ... aos Bombeiros, sita na Rua ..., para virar à esquerda para a Rua ..., contornou-a no sentido contrário à marcha, ou seja, pela esquerda, e na Rua ... não parou junto ao sinal vertical “STOP”, colocado na interseção com a Rua ....
9. Apesar de a patrulha da Guarda Nacional Republicana ter perseguido o arguido durante cerca de cinco minutos, considerando a velocidade de circulação e as manobras de condução contrárias às regras estradais, não foi possível, em segurança, intercetá-lo e imobilizá-lo, tendo este seguido para parte incerta no sentido norte da Rua ..., assim que a Guarda Nacional Republicana interrompeu o seguimento.
10. O arguido viu e percebeu a contínua e ininterrupta ordem de paragem que lhe foi dirigida pelos Militares da Guarda Nacional Republicana e mesmo assim não lhe obedeceu.
11. O arguido imobilizou e abandonou a sua viatura automóvel no caminho florestal denominado Rua ... em frente ao n.º 9, em ..., em ....
12. No dia ../../2022, pelas 16h50, o arguido AA dirigiu-se ao Posto Territorial da Guarda Nacional Republicana de ... e denunciou que, entre as 00h00 e as 09h00 dessa data, desconhecidos haviam furtado o seu veículo automóvel de marca e modelo ...” e de matrícula ..-..-DF, com o valor comercial de 12.000 EUR (doze mil euros), que havia deixado estacionado pelas 00h00 junto à sua residência sita na Rua ..., em ..., não podendo desconhecer que tal não correspondia à verdade.
13. No dia ../../2022, pelas 08h00, o veículo em causa foi encontrado por FF imobilizado, abandonado, sem sinais de estroncamento, com as portas destrancadas, o vidro da porta do passageiro da frente completamente descido, a respetiva chave na ignição e o banco do condutor reclinado, no caminho florestal denominado Rua ... em frente ao n.º 9, em ..., em ..., e foi no dia 09/06/2022, pelas 22h00, recuperado pela Guarda Nacional Republicana.
14. Com o comportamento descrito, o arguido, não obstante ter percecionado e percebido na perfeição a ordem de paragem emanada pelos Militares da Guarda Nacional Republicana devidamente uniformizados, que seguiam no carro patrulha devidamente caracterizado, no exercício das suas funções, decidiu não lhes obedecer, não imobilizando a viatura e prosseguindo a marcha, colocando-se em fuga, em desrespeito de diversas normas estradais.
15. Para além do mais, na tentativa de se furtar à responsabilidade criminal e contraordenacional pelos atos cometidos no exercício da condução na madrugada do dia ../../2022, através do comportamento descrito, o arguido, apesar de ter conduzido o veículo automóvel com a matrícula ..-..-DF, pelo menos entre as 00h00 e a 01h00 do dia ../../2022, e de o ter, nessa madrugada, imobilizado e abandonado no caminho florestal denominado Rua ... em frente ao n.º 9, em ..., em ..., denunciou o furto da viatura à Guarda Nacional Republicana, bem sabendo que tal não correspondia à verdade, o que quis e concretizou.
16. O arguido, com as condutas descritas, atuou sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que agia contra lei penal.
17. Trabalha, em ..., num restaurante, auferindo mensalmente € 1.800,00, em contratos sazonais.
18. Não tem filhos.
19. Vive no hotel onde trabalha.
20. Tem um veiculo automóvel, de 1980.
21. É licenciado em engenharia zootécnica.
22. Tem averbadas as seguintes condenações:
• Por decisão transitada em julgado em 21-12-2021, foi o arguido condenado no processo 68/15...., pela prática em 01-11-2015, de 1 crimes(s) de desobediência p.p. pelo art.º 348º, nº 1, al.a) e 69º nº1, al.c) do c. penal, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 5,50, que perfaz o total de 495,00 euros, já declarada extinta pelo cumprimento;
•  Por decisão transitada em julgado em 13-06-2019, foi o arguido condenado no processo 81/18.... pela prática em 29-07-2018, de 1 crimes(s) de desobediência p.p. pelo art.º 348º, nº 1, al. a) e 69º nº1 al. c) do c. penal,  1 crimes(s) de ameaça agravada p.p. pelo art.º 153º, nº 1 e 155º, nº 1, al. c) do c. penal e 1 crimes(s) de injúria agravada p.p. pelos art.ºs 181º e 184º do c. penal, na pena de 400 dias de multa, à taxa diária de 5,50, que perfaz o total de 2.200,00 euros, pena já declarada extinta pelo cumprimento.»

2. Motivação

«A convicção do tribunal assentou na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, atendendo-se designadamente à prova pessoal, pericial e documental produzida, tudo sob o crivo das mais elementares regras da experiência comum.
• Relatório fotográfico, fls. 4 e 5;
• Ofício da Guarda Nacional Republicana de 12/06/2022, fls. 19 e 20;
• Auto de denúncia de ../../2022, fls. 21 a 24;
• Prints relativos à viatura automóvel ..-..-DF, fls. 27;
• Relatório de serviço de ../../2022, fls. 42 e 43;
• Aditamento ao auto de notícia de ../../2022, fls. 29 a 32;
• Registo de recuperação da viatura de 09/06/2022, fls. 38 e 39;
• Auto de apreensão, fls. 33;
• Relatório tático de inspeção ocular e respetiva reportagem fotográfica, fls. 48 a 51;
• Cópias dos autos de contraordenação, fls. 97 a 100;
• Relatório do percurso efetuado a conduzir pelo arguido com reportagem fotográfica, fls. 151 a 157;
Todos estes documentos não foram colocados em crise, quer quanto à sua existência, quer quanto ao respetivo conteúdo, por qualquer dos sujeitos processuais pelo que não coloca o Tribunal dúvidas quanto àquilo que objetivamente resulta demonstrado pelos mesmos.
No mais, o arguido não prestou declarações, abdicando de apresentar a sua versão dos factos ou fornecer qualquer explicação, pelo que o tribunal ponderou os depoimentos das testemunhas GG e HH as quais narraram a sucessão de acontecimentos com um pormenor e uma cadência típicos de quem diz a verdade, esclarecendo o tribunal quanto ao contexto e circunstancialismo que precederam e sucederam o episódio que protagonizaram com o arguido.
Esta versão dos factos foi corroborada, no essencial, pelas testemunhas KK e II, as quais, tendo acorrido ao local, descreveram de forma assertiva e expressiva o que presenciaram, confirmando a primeira a identidade do arguido com quem chegou a falar sobre o sucedido, logrando, assim, convencer o Tribunal da bondade do relato das primeiras, nos termos que se deixaram exarados nos factos provados.
Estas testemunhas apresentaram um depoimento claro, preciso, circunstanciado e, no essencial, coincidente entre si, narrando cada uma a sua perceção dos acontecimentos, contribuindo para esclarecer o Tribunal quanto à autoria e contexto dos factos, sendo que os diferentes testemunhos não refletiram qualquer interesse em prejudicar os interesses do arguido, justificando, cada um, e pormenorizadamente a sua razão do conhecimento direto, quer porque assistiram ao concreto episódio a que se reportaram, quer porque ao mesmo acorreram tendo coincidido com o arguido, afirmando ao Tribunal as circunstancias de tempo, lugar e data a que se reportam os factos.- factos provados 1 a 3
De igual forma, valorou o Tribunal os depoimentos dos militares da GNR, BB e CC, os quais, de forma isenta, séria e objetiva, descreveram a sucessão dos eventos que culminaram na recusa, por parte do arguido, em obedecer à ordem de paragem, emanada, sendo certo que estas testemunhas foram precisas ao referir que deram ordem de paragem ao arguido através de sinais luminosos e pirilampos, quando circulavam imediatamente atrás do veículo conduzido pelo arguido, sendo que, em face das circunstancias em que tentaram intercetar o arguido que este assim o compreendera.
Note-se a respeito que este episódio ocorreu entre as 00h e a 1h da madrugada, numa vila pacata de ..., donde não é crível que o arguido não tivesse visto os sinais luminosos e, sabendo que o veículo era de uma autoridade, não compreendesse a ordem de paragem ou, ainda que não compreendesse que lhe era dirigida, não encostasse o veículo à berma por forma a indagar.
Era, pois, impossível, segundo as regras da experiência comum, que o arguido, à hora em que ocorreram os factos, não se tivesse apercebido da sua presença, tanto mais que, após, aumentou bruscamente a velocidade.
Estas testemunhas depuseram de forma escorreita e pormenorizada, esclarecendo todas as incongruências daí resultantes, as quais, face à normalidade da vida e do conhecer se têm por normais em fiscalizações desta natureza, e do expediente daí resultante, não ressumando, ademais, das suas declarações qualquer interesse no processo ou em prejudicar os interesses do arguido.  – factos provados 4 a 13
De outro passo, também não se compreende, nem tal resultou demonstrado nos autos, a razão pela qual os militares da GNR no exercício das suas funções pretenderiam imputar ao arguido a prática de factos que o mesmo não cometera, razão pela qual inexistem quaisquer motivos para desconfiar da genuinidade do discurso destes militares.
No que diz respeito à intenção com que o arguido agiu, a mesma decorre facilmente da forma como os factos ocorreram, sendo certo que, com base nos depoimentos dos militares, o tribunal não teve dúvidas de que o arguido viu a GNR e que, por esse motivo, não acatou a ordem de paragem e pôs-se em fuga. – factos provados 14 e 16
E assim, e em síntese, o que decorre dos autos é que o arguido, sem motivo legítimo, se recusou a obedecer a uma ordem da autoridade competente para a emitir, ciente que estava das consequências da omissão.
De outro lado, quanto às circunstâncias em que o veículo do arguido foi recuperado, e à queixa deduzida pelo arguida, ponderou ainda o Tribunal o depoimento das testemunhas DD, FF e EE, chamados à ocorrência, os quais depuseram de forma credível, porque segura, circunstanciada e baseada num conhecimento direto dos factos, descreveram de forma assertiva e expressiva o que presenciaram, deles se servindo, por isso, o Tribunal para motivar a sua convicção. – factos 12 e 13
Quanto aos factos atinentes ao conhecimento e vontade com que o arguido atuou, bem como relativos à sua consciência quanto à ilicitude da sua conduta resultaram provados através do cotejo da matéria objetiva dada por provada com as regras da experiência comum, já que é inegável que o comum dos cidadãos sabe que participar falsamente perante as autoridades policiais a ocorrência de um crime constitui um ilícito criminal, não se inibindo o arguido, contudo, de assim atuar.- factos 15 e 16
No mais, quanto às condições vida do arguido o Tribunal teve em conta as suas próprias declarações que se revelaram credíveis e quanto ao seu passado criminal consta do certificado de registo respetivo, junto aos autos.»

C. Apreciação do recurso

Da nulidade da sentença recorrida
O art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, dispõe: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”.
No que respeita às decisões penais, esta directriz constitucional concretiza-se em várias normas da legislação ordinária:
- no art. 97.º, n.º 5, onde se lê que os actos decisórios “são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”;
- no art. 124.º, n.º 1, definindo o objecto da prova – “todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis.”;
- no art. 368.º, n.º 2 – “se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, o presidente enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber:
a) Se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime;
b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou;
c) Se o arguido actuou com culpa;
d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;
e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente[6];
- no art. 374.º, n.º 2, relativo aos requisitos da sentença – “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”;
- o art. 379.º, relativo às nulidades da sentença (ou acórdão), cabendo aqui destacar o seu n.º 1, a) – “Que não contiver as menções referidas no n.º 2 (…) do artigo 374.º”.
Sendo a aplicação do direito aos factos uma técnica (de carácter jurídico, evidentemente), é na fundamentação de facto que reside a principal força (ou fraqueza) de uma decisão judicial; tal fundamentação é o cerne do trabalho de um juiz, porque “os factos é que decidem[7].
Por isso, é dever do julgador explicar de forma inteligível o modo como chegou à prova (ou falta dela) de cada facto; e, ao mesmo tempo que vai escrevendo a fundamentação de facto, o juiz deve posicionar-se como um dos seus destinatários: da respectiva leitura, também para o próprio tem de resultar que dela só pode sair este ou aquele facto, essa ou a outra intenção. “Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente.[8]
Tal exige que a linguagem empregue seja clara, acessível e simples: são factos da vida, que se devem explicar com termos que todos possam entender.
A fundamentação de facto permite “a sindicância da legalidade do acto (…) e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça (…), mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto (…) da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina.[9]
E, como é evidente, só perante a fundamentação de facto pode o arguido exercer cabalmente a sua defesa, atacando um ou vários pontos que se afigurem insuficientes ou até contraditórios entre si, assim vendo garantido o direito constitucional de defesa em processo criminal (art. 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa). E, “num Estado de Direito Democrático, é porque o tribunal aprecia livremente a prova [de acordo com o art. 127.º] que existe a obrigação de motivar.[10]
Para analisar se a fundamentação de facto sofre de nulidade, nada mais é necessário senão o texto da própria decisão; não chega este Tribunal a formular nenhum juízo sobre as provas, porquanto se está em passo anterior – a análise do que escreveu o julgador sobre a respectiva apreciação que o levou a concluir pela prova de um ou vários factos (como é aqui o caso).
Aqui, importa perceber se, do raciocínio expendido na motivação da sentença, resulta claro e convincente que tenha sido o recorrente a imobilizar e abandonar a sua viatura automóvel (de matrícula ..-..-DF) no caminho florestal onde foi encontrado (conforme facto provado 11), e que o arguido sabia não lhe ter sido furtado o veículo (parte final do facto provado 12, com a correspondente intenção descrita em 15).
Lida atentamente a motivação (transcrita em B.2. supra), destaque-se:
- na fase introdutória, são enumerados todos os meios de prova que o Tribunal a quo afirma ter tido em consideração, por referência ao tipo (documental e pericial), com a respectiva localização no processo físico, bem como a circunstância de o seu conteúdo não ter sido posto em causa;
- refere-se que o ora recorrente não prestou declarações, o que, do ponto de vista probatório para a ocorrência (ou não) dos factos em causa, é neutro;
- seguem-se dez parágrafos em que a Mm.ª Juiz a quo explica, de forma concatenada, lógica e convincente, os elementos de que se socorreu para dar como provados os factos relativos ao sucedido no início da noite de 7 de Junho de 2022 – uma vez que as testemunhas em causa protagonizaram episódios com o arguido e sobre eles depuseram, incluindo os militares da GNR que lhe deram ordem de paragem –, bem como os factos provados 14 e 16 (já relativos à intenção do recorrente em não obedecer a essa ordem);
- embora da parte final do sétimo parágrafo conste «factos provados 4 a 13», é inequívoco, perante o teor do décimo («assim, e em síntese, o que decorre dos autos é que o arguido, sem motivo legítimo, se recusou a obedecer a uma ordem da autoridade competente para a emitir, ciente que estava das consequências da omissão.»), que a Mm.ª Juiz a quo omite, até esse momento, qualquer referência probatória relativa ao aludido facto provado 11, estando apenas a reportar-se ao sucedido antes da imobilização do veículo do recorrente;
- o parágrafo seguinte já se refere à fundamentação do sucedido em momento posterior, quer a essa imobilização (e eventual abandono) do veículo quer à própria participação de furto feita pelo recorrente («De outro lado, quanto às circunstâncias em que o veículo do arguido foi recuperado, e à queixa deduzida pelo arguida, ponderou ainda o Tribunal o depoimento das testemunhas DD, FF e EE, chamados à ocorrência, os quais depuseram de forma credível, porque segura, circunstanciada e baseada num conhecimento direto dos factos, descreveram de forma assertiva e expressiva o que presenciaram, deles se servindo, por isso, o Tribunal para motivar a sua convicção. – factos 12 e 13»);
- o penúltimo parágrafo é relativo à intenção do recorrente («é inegável que o comum dos cidadãos sabe que participar falsamente perante as autoridades policiais a ocorrência de um crime constitui um ilícito criminal, não se inibindo o arguido, contudo, de assim atuar.- factos 15 e 16») e o último tem já a ver com as suas condições pessoais e antecedentes criminais.
Ora, daqui decorre ter ficado por explicar, pela Mm.ª Juiz a quo, qual a prova directa (a existir) ou o conjunto de provas indirectas (o sucedido nessa noite, o teor da participação por furto, o local e o estado do veículo quando foi encontrado, o que dele constava?) que lhe permitiu dar como provado (facto 11) ter sido o arguido que abandonou o veículo no local onde o mesmo veio a ser encontrado, bem como o (correspectivo) conhecimento deste de que não tinha sido vítima de qualquer furto (parte final do facto provado 12), sendo que só a explicação cabal da prova destes dois factos é susceptível de permitir a demonstração do intento referido em 15).
Acresce que, se estiver em causa prova indirecta, “a motivação é [ainda] mais necessária do que na prova directa, uma vez que naquela não há uma ligação imediata ao facto[11].
Como facilmente se conclui da apreciação acabada de fazer sobre a motivação, é evidente que não só se verifica a nulidade da sentença prevista no art. 379.º, n.º 1, a), mas também que está fora do alcance deste Tribunal suprir as deficiências apontadas[12], porquanto, ao longo daquela motivação, não resulta perceptível a referência a meios de prova para os factos em causa.
Há, por isso, falta de fundamentação dos factos provados 11, 12 (parte final) e 15, porque não é possível discernir, do teor da motivação, como chegou o Tribunal a quo à respectiva prova.
Ora, as sentenças devem ser peças completas, “esgotantes e autossuficientes, no sentido de conter todos os elementos indispensáveis à compreensão do juízo decisório[13], sob pena de, não revestindo essas características, ficar comprometida a sua compreensão e aceitação.
Nos termos do art. 379.º, n.º 2, as nulidades da sentença “devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º”.
Não se estando perante caso em que tal suprimento se mostre possível, face às omissões apontadas, caberá ao tribunal recorrido proferir nova sentença, em que repare a nulidade de falta de fundamentação supra referida, ficando por ora prejudicado o conhecimento das questões levantadas no recurso.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam as Juízas na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em declarar nula a sentença recorrida nos termos supra descritos, determinando a elaboração de nova sentença, pela Mm.ª Juiz a quo, que supra a descrita nulidade relativa à fundamentação de facto.
Sem custas.
Guimarães, 2 de Julho de 2024
(Processado em computador e revisto pela relatora)

As Juízas Desembargadoras

Cristina Xavier da Fonseca
Isabel Gaio Ferreira de Castro
Madalena Augusta Parreiral Caldeira



[1] Suprime-se a primeira, por reproduzir os termos da condenação; mantêm-se os negritos e sublinhados de origem, corrigindo-se os escassos lapsos de escrita.
[2] Diploma legal donde provêm as normas a seguir citadas sem indicação de origem.
[3] Todas relativas ao crime de simulação de crime.
[4] Ac. STJ n.º 7/95, de 19.10, in https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/7-1995-645282.
[5] Inexistem factos não provados.
[6] A alínea f) é nesta sede irrelevante, por se reportar ao pedido de indemnização civil.
[7] Sérgio Poças, Da Sentença Penal – Fundamentação de Facto, in Revista Julgar n.º 3, Setembro/Dezembro de 2007, ASJP/Coimbra Editora, pág. 24.
[8] Ibidem nota anterior, citando Teixeira de Sousa (por sua vez referido numa obra de Abrantes Geraldes), pág. 37, nota 18.
[9] Germano Marques da Silva, in Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, Setembro de 2014 (reimpressão de Janeiro de 2023), pág. 274.
[10] Ibidem nota 7, pág. 36.
[11] Ibidem nota 7, pág. 42 e com os destaques de origem.
[12] Cf. ac. do STJ de 15.2.23, https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2023:38.17.9YGLSB.S1.30/, onde se descreve caso em que se pôde fazer esse suprimento.
[13] Ac. do mesmo Tribunal de 5.5.21, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2021:64.19.3T9EVR.S1.E1.S1.E9/.