Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:637/25.5BELRA
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:06/24/2025
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:RECLAMAÇÃO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DO TERRITÓRIO
PROTEÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
AIMA
AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA
Sumário:I. O art.º 20.º, n.º 5, do CPTA prevê uma regra especial em matéria de competência territorial, visando que seja Tribunal competente aquele da área da sede do órgão decisor .
II. As regras de competência são de natureza injuntiva.
III. Não pode um Tribunal, ao arrepio do que decorre de tais regras, interpretá-las com base em situações fáticas conjunturais e desconsiderar, numa decisão contra legem, aquilo que o legislador definiu como elemento de conexão territorial.
Votação:DECISÃO SINGULAR
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Decisão

[art.º 105.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC)]


I. Relatório

D ……………….. e E …………………… (doravante Reclamantes) vieram recorrer da decisão proferida no Tribunal Administrativo de Círculo de Leiria [a funcionar agregado com o Tribunal Tributário de Leiria, sob a designação unitária Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Leiria, designação que adotaremos de ora em diante], na qual aquele Tribunal se julgou territorialmente incompetente para o conhecimento da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias que apresentaram contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (doravante AIMA).

Foi proferido despacho no TAF de Leiria (……………………..), no sentido de, da decisão em causa, caber reclamação, ao abrigo do art.º 105.º, n.º 4, do CPC, e não recurso, convolando-se o recurso em reclamação e ordenando-se a apresentação dos autos à Presidente deste TCAS. A mencionada decisão foi notificada, nada tendo sido dito.

Os Reclamantes formularam, para sustentar o seu entendimento, as seguintes conclusões:

“1. Os Apelantes interpõem recurso do despacho liminar de 16/06/2025, proferido pelo TAF de Leiria no Processo n.º 637/25.5BELRA, que declarou a incompetência territorial desse Tribunal para a presente intimação e determinou a remessa dos autos ao TAC de Lisboa.

(…)

2. A ação intentada configura uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, prevista nos arts. 109.º e segs. do CPTA, através da qual os Apelantes pretendem ver a AIMA, I.P. intimada a agendar e decidir os seus pedidos de autorização de residência (pendentes sem resposta). Os Apelantes residem em Leiria, tendo proposto a ação no Tribunal da sua área de residência, nos termos da regra geral de competência do art. 16.º, n.º 1 CPTA.

4. O Tribunal a quo entendeu, contudo, aplicar a regra especial do art. 20.º, n.º 5 do CPTA, segundo a qual as intimações devem ser apresentadas no tribunal da área onde deva ter lugar o comportamento ou omissão a intimar. Considerando que a decisão sobre autorizações de residência compete ao Conselho Diretivo da AIMA (sedeado em Lisboa) e não às suas estruturas locais, o despacho recorrido concluiu que o “comportamento pretendido” teria lugar em Lisboa, sendo competente o TAC de Lisboa.

5. Os Apelantes sustentam que tal interpretação de “onde deva ter lugar o comportamento” é indevidamente restritiva e desconsidera a natureza desconcentrada da atuação da AIMA. Na prática, o agendamento e a entrega da autorização ocorrerão na Loja AIMA de Leiria, estrutura local da AIMA onde os Apelantes deverão ser atendidos. Logo, é razoável defender que o comportamento omitido (agendar/decidir) se materializa na área de Leiria – foro onde deve correr a intimação.

6. A interpretação propugnada pelos Apelantes é corroborada pelo propósito das regras de competência territorial: aproximar a justiça do cidadão e garantir eficiência na tutela dos seus direitos. A própria letra do art. 20.º, n.º 5 CPTA admite tal leitura, não excluindo que o “lugar” relevante seja aquele em que o cidadão aufere os efeitos do ato. Optar pelo fórum do lesado (quando ele possui suporte local da Administração) alinha-se com o princípio do acesso efetivo à justiça e não afronta nenhuma disposição expressa de valor superior.

7. Inversamente, a orientação que concentra todas as ações no TAC de Lisboa conduz a graves violações de direitos fundamentais. Está demonstrado que, após a criação da AIMA, o TAC de Lisboa ficou sobrecarregado por uma avalanche de processos (mais de 46 mil pendentes em 2024, aumento de 8000% face a 2023), o que causou atrasos sistemáticos no julgamento das intimações – atualmente da ordem de vários meses. Tal situação desrespeita o direito a uma decisão em prazo razoável consagrado no art. 20.º da CRP e art. 6.º da CEDH, esvaziando a tutela jurisdicional que deveria ser célere por natureza (CPTA arts. 110.º-111.º).

8. A centralização imposta gera ainda desigualdade no acesso à justiça, penalizando especialmente os imigrantes residentes fora de Lisboa, em aparente violação do princípio da igualdade (CRP art. 13.º). Esses cidadãos enfrentam ónus adicionais e veem os seus processos demorar muito mais do que outros casos urgentes noutros tribunais, sem justificativa material bastante.

9. A decisão recorrida padece, assim, de inconstitucionalidade por violação dos arts. 13.º, 18.º, 20.º e 266.º da CRP, ao interpretar e aplicar o art. 20.º, n.º 5 CPTA de forma desconforme com os direitos e princípios aí consagrados. Em face disso, impõe-se uma interpretação conforme à Constituição da referida norma, atribuindo competência ao Tribunal de Leiria (por ser a solução que melhor protege os direitos em causa), ou, subsidiariamente, a declaração da sua inconstitucionalidade no caso concreto.

10. O direito internacional dos direitos humanos reforça a tese dos Apelantes: a Carta dos Direitos Fundamentais da UE (art. 47.º) e a CEDH (art. 6.º) exigem tutela judicial efetiva e célere. O Estado português arrisca incorrer em responsabilidade internacional se persistir numa situação em que milhares de pessoas são privadas de julgamento em prazo razoável por falhas estruturais. Cumpre aos tribunais nacionais evitar esse desfecho, adequando a aplicação das leis internas aos compromissos assumidos.

11. O Acórdão do STA n.º 11/2024 (Uniformizador), embora não tratando diretamente da competência territorial, enfatizou que em matéria de autorizações de residência é necessária uma “tutela definitiva” em vez de provisória, dado estarem em causa direitos fundamentais comprometidos pela inércia administrativa. Ora, essa tutela definitiva apenas será verdadeira se prestada em tempo útil – o que atualmente não sucede em Lisboa. A mensagem do STA subentende a necessidade de remover obstáculos práticos à efetividade da tutela, o que inclui mitigar a sobrecarga de um único tribunal.

12. Não há prejuízo para a Administração (AIMA, I.P. ou o Estado) em que o presente processo tramite em Leiria – a uniformidade decisória continuará assegurada pelos tribunais de recurso e a AIMA consegue litigar em qualquer foro, dado o seu âmbito nacional. Ao revés, há um ganho para o interesse público: decisões mais céleres e proximidade da justiça, aumentando a confiança dos cidadãos nas instituições.

13. Em face de todo o exposto, impõe-se revogar o despacho recorrido, declarando-se competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria para conhecer da presente intimação. Deve, consequentemente, determinar-se a devolução dos autos a esse Tribunal a fim de prosseguir a instrução e ser proferida decisão de mérito tão pronta quanto possível, evitando-se delongas adicionais.

14. Termos em que os Apelantes pedem que seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e fixando-se a competência territorial do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria para julgar a intimação, com o que se fará a acostumada JUSTIÇA”.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Qual o tribunal territorialmente competente para a instrução e conhecimento da presente intimação?

II. Fundamentação

II.A. Para a apreciação da presente reclamação, são de considerar as seguintes ocorrências processuais, documentadas nos autos:

1) Em 15.06.2025, os Reclamantes intentaram, no TAF de Leiria, intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias contra a AIMA, na qual, a final, formularam o seguinte pedido:

“Nestes termos, e nos mais de direito aplicáveis, requer-se a V. Exa. que se digne julgar procedente a presente intimação, ordenando em consequência que a entidade Requerida (AIMA):

• Realize, de imediato, o agendamento de dia e hora para a comparência dos Requerentes na Loja da AIMA competente (de preferência, na Loja da AIMA em Leiria, sita no Largo Dr. Manuel de Arriaga, 1, 2400-177 Leiria, por uma questão de proximidade geográfica), a fim de proceder à entrega de documentos originais e recolha de dados biométricos necessários à instrução final dos pedidos de autorização de residência;

• Decida urgentemente sobre os pedidos de autorização de residência apresentados pelos Requerentes, proferindo despacho final de deferimento (uma vez verificados os pressupostos legais, como se demonstrou), e emita, sem mais delongas, o respetivo título de autorização de residência para cada Requerente, ao abrigo do artigo 87.º-A da Lei n.º 23/2007 (no caso do 1.º Requerente) e do artigo 98.º/2 da mesma lei (no caso da 2.ª Requerente, por reagrupamento familiar);

• Notifique os Requerentes/seu Mandatário da decisão proferida e disponibilize os títulos de residência emitidos, removendo assim os obstáculos ao exercício pleno dos seus direitos.

Na remota hipótese de V. Exa. entender não estarem reunidos os pressupostos da intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, requer-se subsidiariamente que convole a presente petição em providência cautelar, nos termos do art. 110.º-A do CPTA, e nessa sede ordene, a título provisório, a satisfação dos mesmos pedidos acima enunciados, ou seja, intime a Requerida a proceder ao agendamento, decisão administrativa e emissão dos títulos de residência, ou demais medidas adequadas que o Tribunal entenda necessárias para salvaguarda imediata dos direitos dos Requerentes, tudo com as legais consequências.” (cfr. petição inicial).

2) Foi proferida sentença, a 16.06.2025, no TAF de Leiria, na qual este Tribunal se declarou territorialmente incompetente para conhecer da presente intimação, indicando como competente o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (cfr. ----------------------------------27).

II.B. Apreciando.

Consideram os Reclamantes, em síntese, que o TAF de Leiria é o competente para apreciar a intimação em causa, porquanto é requerido, nos presentes autos, agendamento na Loja AIMA de Leiria e a decisão sobre os pedidos de autorização de residência apresentados. Entendem, ademais, que “a orientação que concentra todas as ações no TAC de Lisboa conduz a graves violações de direitos fundamentais”, dado o número de processos pendentes nesse tribunal, implicando a centralização imposta uma desigualdade no acesso à justiça.

Vejamos, então.

A competência do tribunal, em qualquer das suas espécies, deve ser aferida pelo tipo de pretensão deduzida pelo autor (pedido) e pelas normas que a disciplinam (fundamentos jurídicos).

Nos termos do art.º 13.º do CPTA, “[o] âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais administrativos, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.

Este diploma contém um conjunto de regras, em termos de competência em razão do território, que cumpre ter presentes, previstas nos seus art.ºs 16.º a 22.º.

Para além da regra geral, prevista no art.º 16.º, há várias regras especiais. Uma delas está prevista no art.º 20.º, n.º 5, do CPTA, nos termos do qual:

“Os demais processos de intimação são intentados no tribunal da área onde deva ter lugar o comportamento ou a omissão pretendidos”.

Ora, desde já se adiante que carecem de razão os Reclamantes.

O art.º 20.º, n.º 5, do CPTA prevê, como referido, uma regra especial em matéria de competência territorial para casos como o dos autos.

Em situações similares à presente já se pronunciou este TCAS, como, aliás, é mencionado pela instância.

Chamamos à colação a decisão de reclamação proferida pelo Presidente deste TCAS a 05.03.2024 (Processo: 152/24.4BELLE), onde se refere:

“[A] AIMA IP, o organismo criado pelo Decreto-Lei n.º41/2023, de 2 de Junho (em vigor desde 29.10.2023) que sucedeu ao“ SEF nas suas funções em matéria administrativa relacionadas com os cidadãos estrangeiros e ao Alto Comissariado para as Migrações, I. P. (ACM, I. P.) e para qual transitam as “ diligências já realizadas, os processos e procedimentos administrativos pendentes no SEF e no ACM, I. P., (cf. artigos 1.º , nº1, 2.º e 5º, do citado diploma), tem de se articular com o regime do Decreto-Regulamentar nº 84/2007, que na sua recente alteração (Decreto Regulamentar n.º 1/2024, de 17 de Janeiro), passou a dispor no artigo 51.º, n.º 18 que a competência para a concessão e renovação de autorização de residência, está cometida ao “conselho diretivo da AIMA, I. P., com possibilidade de delegação.”

Ora, vendo a orgânica da AIMA, I.P, publicada em Anexo ao Decreto-Lei n.º 41/2023, de 2 de Junho, que dele faz parte integrante, bem como da Portaria n.º 324-A/2023, de 27 de Outubro, que aprovou os estatutos não decorre que as unidades orgânicas territorialmente desconcentradas que aquele organismo dispõe - mais concretamente a Loja AIMA de Albufeira – tenham competência para apreciar os pedidos concessão de autorização e residência temporária que lhe são dirigidos.

Essa competência radica - como supra se disse- no conselho directivo da AIMA, I.P., que tem a sua “sede no município de Lisboa”, como decorre da conjugação do disposto nos artigos 2.º, n.º 1 e 5.º, n.º 1 e 2, al. a), do Decreto-Lei n.º 41/2023, 2 de Junho e artigo 1.º, n.º 1, da Portaria n.º 324-A/2023, de 27 de Outubro.

De igual modo, percorrido o texto da recente Deliberação n.º 242/2024, de 22 de fevereiro, in Diário da República n.º 38/2024, Série II de 22-02-2024, nele não se encontra consagrada a referida delegação de competência para a concessão e renovação de autorizações de residência.

Refira-se, ainda, em jeito de nota de rodapé que as unidades orgânicas territorialmente desconcentradas da AIMA, IP, a saber: as Lojas AIMA e a IMA Spot - são espaços “ de prestação de serviços públicos em balcão único de atendimento que serve de interface dos cidadãos migrantes e das respetivas entidades empregadoras com diversos serviços de várias entidades públicas e privadas, designadamente no âmbito do processo de acolhimento e integração de migrantes” localizadas de preferência em Lojas de Cidadão, visam tão-só criar condições de maior proximidade, facilitar e promover o acesso aos serviços (cfr, artigos 14.º e 15.º da Portaria n.º 324-A/2023, de 27 de Outubro).

Dúvidas não restam, portão que pretensão do ora reclamante deve ser apreciada e deci[di]da pelo conselho directivo da AIMA, I.P., que tem a sua sede no município de Lisboa. Razão pela qual a presente intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias deve ser intentada no tribunal da área da sede da entidade demandada, in casu, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por esse o tribunal territorialmente competente para o efeito” [cfr. igualmente a decisão de 14.06.2024 (Processo: 137/24.0BEALM)].

Ademais, e concretamente quanto ao agendamento, a sua gestão cabe, nos termos do art.º 9.º, alínea b), dos Estatutos da AIMA (cfr. Anexo à Portaria n.º 324-A/2023, de 27 de outubro), ao Departamento de Acesso Omnicanal. Este é uma das unidades orgânicas nucleares da AIMA (cfr. art.º 2.º dos Estatutos), sendo que, como decorre do art.º 5.º, n.º 2, alínea b), da Orgânica da AIMA (publicada em anexo ao DL n.º 41/2023, de 2 de junho), é dirigida pelo Conselho Diretivo da AIMA [a este respeito, cfr. a decisão deste TCAS de 07.02.2025 (Processo: 1785/24.4BELRA)].

Por outro lado, e não sendo este Tribunal alheio àquilo que é um facto notório, atinente às inúmeras intimações idênticas à presente que têm dado entrada no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, trata-se de uma situação conjuntural, que, aliás, já foi objeto de tomada de decisões, no sentido de criação de equipas especializadas para a tramitação de tais autos.

As regras de competência são de natureza injuntiva. Não pode um Tribunal, ao arrepio do que decorre de tais regras, interpretá-las com base em situações fáticas conjunturais e desconsiderar, numa decisão contra legem, aquilo que o legislador definiu como elemento de conexão territorial em casos como o dos autos.

Com efeito, na verdade, não é apontada qualquer inconstitucionalidade à norma em causa, mas sim um conjunto de constrangimentos decorrentes de um problema conjuntural, que é do conhecimento público.

Como tal, não se alcança de que modo resulte da norma aplicada in casu a alegada violação do princípio da igualdade e do acesso à tutela jurisdicional efetiva, da mesma forma que não se vislumbra que a opção do legislador restrinja direitos fundamentais.

Isto porque, repetimos, as observações que os Reclamantes fazem não têm a ver com a norma em si, mas com uma situação conjuntural e transitória, que se reflete no número de processos entrados no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

A norma aplicável in casu visa que seja Tribunal competente, em situações como a dos autos, aquele da área da sede do órgão decisor (não cabendo ao Tribunal aferir os termos em que foi politicamente decidida a estrutura da AIMA), o que, per se, não se apresenta como violador da lei fundamental nos termos alegados pelos Reclamantes.

Assim sendo, bem andou o TAF de Leiria ao decidir como decidiu, não assistindo razão aos Reclamantes.

III. Decisão

Face ao exposto:

a) Indefere-se a reclamação apresentada;

b) Sem custas;

c) Registe e notifique;

d) Baixem os autos.


Lisboa, d.s.

A Juíza Desembargadora Presidente,