Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1881/21.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:07/15/2025
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:CESE DO ANO DE 2020
INCONSTITUCIONALIDADE ARTIGO 2.º RJCESE
VIOLAÇÃO DO ARTIGO 13.º DA CRP
Sumário:I-O artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE, cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2020, pelo artigo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2020, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural – viola o artigo 13.º da CRP.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO

I- RELATÓRIO

M………-SOCIEDADE ………………….., S.A. (doravante Recorrente) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial tendo por objeto a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que manteve o ato tributário de autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), referente ao ano de 2020, no valor de €130.257,11 e liquidação de juros compensatórios (JC), no valor de € 136,64.

A Recorrente apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

“A. Em face da óbvia coincidência entre a situação de facto da Recorrente e a subjacente ao Acórdão n.º 101/2023 do Tribunal Constitucional, os presentes autos devem ser decididos no mesmo sentido da jurisprudência ali firmada – no sentido em que a CESE é inconstitucional, a partir de 2018, pelo menos para todos os sujeitos passivos que não integra o subsector da produção de electricidade –, terminando com a declaração de inconstitucionalidade da CESE, tal como esteve em vigor em 2020, com a consequente anulação dos actos impugnados.

B. Mesmo que assim não se entenda – no que não se concede, mas se equaciona por mero dever de patrocínio –, o TC, numa outra secção (a 1ª Secção), veio proferir o Acórdão n.º 338/2023, consolidando por isso jurisprudência, subscrita por uma maioria de juízes (da 1ª e 3ª 181/203 Secções), no sentido de que, pelo menos a partir de 2019, a CESE aplicável ao sector do gás natural é inconstitucional.

C. Convém ainda referir os Acórdãos n.º 196/2024, n.º 197/2024 e n.º 337/2024, todos do TC, relativos à CESE de 2019, que esclarecem, por um lado, que a jurisprudência inaugurada pelo Acórdão n.º 101/2023, da 3.ª Secção e relativa a 2018, se aplica também daí em diante (ou pelo menos em todos os anos em que se mantenham as condições legislativas de 2018), e, por outro, atenta a atividade das empresas em causa nesses autos, que aquela jurisprudência do gás se aplica a todos os subsectores que não o subsector electroprodutor.

D. A CESE foi estabelecida com a intenção de constituir uma medida extraordinária (conforme decorre, aliás, da sua própria designação), no âmbito e a propósito da negociação e cumprimento do Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF) acordado entre o Estado português, a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional, que vigorou entre 2011 e 2014 (vulgo “programa da Troika”). Assim sendo, era suposto que a CESE vigorasse por um período transitório e limitado. Porém, desde que foi criada, a medida tem vindo a ser prorrogada anualmente, até ao presente.

E. Quer agora, em 2024, quer no ano aqui em questão, 2020, estamos a falar de momentos por reporte aos quais foram há muito ultrapassadas as circunstâncias que justificaram a permanência excepcional e transitória da CESE na nossa ordem jurídica. De acordo com a jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional, essas circunstâncias reconduzem-se à situação de emergência financeira que a República Portuguesa atravessou entre o início e meados da década passada. Com efeito, apesar de até ao momento o Tribunal se ter colocado do lado da validade da CESE, não só teve apenas em conta o tributo vigente entre 2014 e 2017 como, das decisões conhecidas, é possível retirar como consequência que, a partir de 2018, a medida deixou de ter justificação constitucional para vigorar (extraordinariamente) no nosso ordenamento.

F. A essa luz, os anos de duração da CESE configuram uma situação óbvia de uso excessivo e inconstitucional do poder do Estado, que requer com urgência uma intervenção que o limite – pelo menos, como ultima ratio, uma intervenção judicial. É essa intervenção que se requer a este Tribunal, enquanto garante máximo dos princípios constitucionais em que se baseia a ordem jurídico-política portuguesa.

G. Segundo o Tribunal, a conformidade da CESE com a Constituição mantém-se apenas enquanto ela puder ser considerada uma medida extraordinária, pelo que saber se ela ainda merece ou não essa qualificação é uma questão central, um critério fundamental que deve orientar a apreciação da sua validade ou invalidade. Ora, à luz da jurisprudência, não faz sentido que, no quinto ano de vigência da medida, ainda se possa considerar admissível a permanência da CESE na ordem jurídica. É que não é só a urgência da receita gerada que despareceu (em 2019, Portugal não estava já na situação financeira de há dez anos. Nessa altura, aliás, o Governo inclusivamente celebrava o facto de termos ultrapassado essa situação); desapareceu também a urgência de o tributo existir naquelas condições – condições essas que, lembre-se, este Tribunal aceitou porque eram «de fácil implementação e aplicação para um período de aplicação transitório e certo, onde não se justificaria a implementação de critérios, porventura mais adequados (…), mas muito complexos e com elevados custos de cumprimento, ou seja, totalmente desajustados à urgência do caso pretendido».

H. Pois bem: para o Tribunal (por exemplo, no Acórdão n.º 532/2021), saber se a CESE reveste ou não natureza extraordinária é uma pergunta cuja resposta tem de ser determinada por um “critério conjuntural”, em cada ano de vigência, à luz da “verificação periódica de um certo estado de coisas”.

I. No entanto, esta circunstância de a validade da CESE tem de ser apreciada ano a ano, de acordo com a manutenção ou não do contexto que justificou a sua criação, implica que não nos possamos desviar de alguns princípios essenciais. Em primeiro lugar, sob pena de se abrir a porta à maior arbitrariedade possível, ao configurarem-se as razões que justificam a continuidade do tributo na ordem jurídica, não podemos estar permanentemente a pesquisar razões novas que sustentem, por exemplo, a natureza extraordinária da CESE.

J. É verdade que, potencialmente e em abstracto, em todos anos, até à eternidade, existirão por certo no Estado português circunstâncias (por exemplo, de índole orçamental) que poderão justificar a necessidade de receitas tributárias acrescidas, de natureza extraordinária; todavia, quando nos debruçamos sobre uma determinada medida concreta, para averiguar se ela é (ou ainda permanece) constitucionalmente válida – desde logo à luz da sua eventual natureza extraordinária – , não nos podemos afastar dos motivos que levaram o legislador a criá-la: é que, se optarmos por esse afastamento, estamos a aceitar que pode deixar de haver – ou deixar de ser impossível averiguar – qualquer correspondência entre a razão de ser do tributo e a necessidade de o exigir especificamente aos operadores económicos que são os seus sujeitos passivos.

K. Em vez de estarmos sempre a justificar a CESE com razões novas, ou com razões que, mesmo existindo à data da criação do tributo, não consta dos documentos legislativos ou de qualquer elemento do contexto da sua criação que tenham sido levadas em conta, aquilo a que estamos adstritos é a perguntar se as razões que presidiram à implementação do tributo se mantêm ou não, ou se foram cumpridas com a receita gerada pela medida. Caso contrário, estaremos perante uma medida violadora do princípio da proporcionalidade, por não existir correspondência entre a sua suposta necessidade e os objectivos determinado pelo legislador.

L. Nesse caso, só há duas hipóteses: ou a CESE tem de ser expurgada da ordem jurídica ou as suas regras têm de ser alteradas, com – nas palavras do TC – “a implementação de critérios, porventura mais adequados” à vigência do tributo posterior ao momento extraordinário da sua criação.

M. De resto, diga-se também, em segundo lugar, que não se pode dar justificações para a CESE que alterem natureza do tributo, a não ser que daí se retirem as devidas consequências, por exemplo e desde logo, considerando que não se trata de uma contribuição financeira, mas sim de um imposto. Lembre-se que a qualificação da CESE como uma contribuição, estabelecida no Acórdão n.º 7/2019, tinha por pressuposto que a actividade dos sujeitos passivos dava causa aos problemas que o tributo visava ajudar a resolver e/ou beneficiavam da actuação do Estado na resolução desses problemas. Porém, se a CESE passar a ser justificada sem apelo a essa ideia de bilateralidade, então é porque é um imposto e tem de ser tratada como tal, de acordo com os princípios que conformam a constitucionalidade da criação de impostos.

N. Ora, o único argumento que o TC avança para justificar a validade da CESE até 2017 é o das condições de emergência financeira em que a República Portuguesa se encontrava. Em concreto, o TC justifica a CESE com a situação de rescaldo do PAEF, durante o qual Portugal permanecia num contexto de fragilidade das contas públicas, e a manutenção do procedimento por défice excessivo, previsto no artigo 126º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (relativamente à CESE dos anos de 2015 e 2016, podemos referir as Decisões Sumárias n.ºs 358/2021 e 422/2021 e os Acórdãos n.ºs 184/203 436/2021, 437/2021, 438/2021, 513/2021 e 532/2021. Quanto a 2017, podemos citar o Acórdão 736/2021).

O. Antes de mais, analisada a jurisprudência em apreço, o que importa sublinhar é que o TC dá apenas uma justificação para a CESE de 2015, 2016 e 2017 – e essa justificação é a necessidade de consolidação orçamental. Esta circunstância transporta dois significados importantes para o caso vertente.

P. Em primeiro lugar, implica necessariamente que a CESE deve ser considerada como um verdadeiro imposto, na medida em que, se serviu simplesmente para consolidação orçamental, constitui afinal um tributo cobrado para os fins gerais dos impostos, sem qualquer efeito no financiamento de medidas de sustentabilidade do sector energético, seja na redução da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional ou em qualquer outra. Assim, é indispensável a medida ser apreciada à luz dos princípios constitucionais que regem a criação de impostos.

Q. Aliás, insista-se, a partir de 2019 a CESE perdeu até a ligação à emergência da consolidação orçamental, que nessa altura deixou de se verificar, o que acarreta que deixou de existir qualquer correspectividade especial entre a CESE e uma necessidade do Estado que pudesse justificar, mesmo que temerariamente, a sua vigência extraordinária. Também por este facto se deve concluir, então, que falar hoje da CESE como um tributo bilateral – designadamente uma contribuição especial – é um erro.

R. Com efeito, em segundo lugar, levando em linha de conta a jurisprudência do Tribunal Constitucional, tem de se concluir que a CESE deixou de ser uma medida extraordinária em 2019, pois que nesse ano Portugal não só já tinha há muito deixado para trás o PAEF como havia fechado o procedimento por défice excessivo. Por reporte a 2017, o último ano analisado pelo Tribunal, este já só teve como pressuposto da natureza extraordinária da CESE a existência do procedimento por défice excessivo: se este terminou, terá de se concluir que com ele terminou igualmente a validade transitória e excepcional da CESE. Ao contrário do que sucedeu de 2014 a 2017, em 2018 e nos anos seguintes Portugal já não estava obrigado pela União Europeia à adopção de medidas orçamentais extraordinárias. Em 2019, o défice foi de 0,5% do PIB, que na altura o Governo celebrou como um «resultado histórico e virtuoso».

S. Portanto, se a jurisprudência do Tribunal Constitucional é a que é, e se os factos de 2019 são o que são, nada pode justificar a vigência da CESE nesse ano. O Tribunal sinaliza claramente uma aproximação da CESE ao limite do aceitável, já que a razão com a qual o tem identificado a justificação da validade temporária da medida – a emergência financeira de Portugal – não se verifica nos anos seguintes àqueles sobre os quais se debruçou a jurisprudência conhecida. O limite do aceitável, segundo o TC, foi ultrapassado em 2018.

T. É por isso que, precisamente a partir de 2018, o Governo foi dando sinais formais – nas sucessivas leis orçamentais – de que pretende uma revogação faseada da medida. Fê-lo mediante autorizações legislativas, para sinalizar uma alegada vontade do Estado português de, mais tarde ou mais cedo, remover a CESE do ordenamento jurídico. E fê-lo porque teve a noção do risco de constitucionalidade de o não fazer.

U. Porém, ao desaproveitar sistematicamente essas autorizações legislativas, o que o Governo demonstrou é que, em bom rigor, a sua intenção é fazer letra-morta da natureza extraordinária da CESE, que deste modo permanece ainda na ordem jurídica basicamente como foi aprovada em 2014.

V. Do exposto resulta que a CESE tem de ser apreciada como aquilo que verdadeiramente é – ou que verdadeiramente era já em 2019: um imposto especial sobre o sector da energia, sem natureza extraordinária. W. Trata-se, sem dúvida, de uma medida inconstitucional.

X. A inconstitucionalidade decorre, antes de mais, de a CESE ser um imposto cujas bases de tributação subjectiva e objectiva violam o princípio da capacidade contributiva, concretização do princípio da Igualdade (artigo 13º da Constituição), desenvolvido também, no que respeita à base objectiva, pelo princípio da tributação das empresas pelo lucro real (n.º 2 do artigo 104º).

Y. Sobre isso, deve começar-se por sublinhar que a Recorrente não exerce qualquer actividade no sector electroprodutor, nem sequer em qualquer outro subsector da electricidade, pelo que em nada contribui para o problema da dívida tarifária do Sistema Eléctrico Nacional (SEN) – que é o principal problema regulatório que o regime da CESE declara pretender resolver –, não beneficiando, pois, de nenhuma forma directa ou especial, da actividade do Estado exercida no âmbito do problema em causa (o mesmo acontecendo com grande parte dos sujeitos passivos do tributo).

Z. Não tendo qualquer relação com a dívida tarifária do SEN, a Recorrente não contribuiu ou beneficiou das circunstâncias que geraram esse problema, pelo que não tem também relação com o consequente desequilíbrio orçamental que o Estado português assumiu igualmente como objectivo anular ou atenuar (o mesmo acontecendo, também aqui, com grande parte dos sujeitos passivos da CESE). A Recorrente não é parte da causa de tal desequilíbrio, nem retirará da actuação estadual nesse aspecto qualquer benefício que não seja partilhado, em princípio na mesma medida, por todos os particulares.

AA. Quanto ao financiamento de outras políticas sociais e ambientais do sector energético, em geral, que o legislador também inscreveu formalmente no regime como justificação da CESE, não se conhecem, com um grau mínimo de probabilidade objectiva, qual a natureza, o conteúdo e a importância das mesmas, razão pela qual nunca poderemos dar por demonstrada a sua indispensabilidade e, portanto, que os sujeitos passivos do tributo poderão em princípio, alguma vez, ser efectivos beneficiários de uma ou mais das políticas em causa.

BB. Aliás, mesmo que pudéssemos estabelecer uma ligação entre um benefício decorrente das políticas em questão e a actividade das empresas energéticas que não actuam no sector da produção de electricidade – no qual se gerou o problema da dívida tarifária do SEN e o consequente desequilíbrio orçamental –, sempre essa ligação seria insuficiente para assegurar a legitimidade da CESE, na medida em que aquelas empresas continuariam a suportar um tributo cuja receita (a restante receita) é afecta a um objectivo com o qual nada têm a ver (a redução da dívida tarifária do sector electroprodutor) e a um outro cuja solução beneficia de igual modo, geral e indiscriminadamente, todos os particulares – para além de ser ele próprio, em parte, uma consequência daquela dívida tarifária (a consolidação orçamental).

CC. Em face do exposto, a CESE não cabe no campo dos tributos bilaterais ou sinalagmáticos (taxas ou contribuições financeiras), por não respeitar o princípio da equivalência: os montantes exigidos não o são para o exercício de uma actividade do Estado de que os sujeitos passivos concretamente em causa beneficiem (directa ou indirectamente, efectiva ou presumivelmente, de modo suficientemente distinto da generalidade dos particulares não abrangidos pela incidência do tributo), não sendo sequer possível dizer que a actividade a financiar é originada, específica ou genericamente, pela daqueles sujeitos passivos. 187/203

DD. A CESE é, pois, um verdadeiro imposto – um imposto especial sobre alguns operadores de um sector de actividade específico, em razão da sua alegada capacidade contributiva particular.

EE. Posto isto, a CESE é um imposto materialmente inconstitucional, por violação do princípio da capacidade contributiva, subprincípio em que se concretiza no campo dos impostos o princípio constitucional da Igualdade (artigo 13º da Constituição), porque a sua base de incidência subjectiva atinge contribuintes que pouco ou nada têm a ver com os fins declarados da “contribuição” (não são de todo beneficiados com as actividades estaduais que a receita pretende financiar nem deram origem aos problemas que aquela é suposto colmatar) – designadamente todos aqueles que não actuam no âmbito do sector da produção de electricidade, como é caso da ora Recorrente.

FF. Vista como um imposto sobre o rendimento, a CESE viola ainda o princípio da capacidade contributiva por, ao ter como base objectiva o valor dos activos das empresas abrangidas, constituir uma aproximação indirecta ou presumida aos lucros das mesmas – uma aproximação ou presunção fantasiosa, puramente conjecturada do rendimento real, que facilmente conduzirá a resultados arbitrários: com efeito, a CESE permite ao Estado apurar uma colecta sobre lucros ainda que nenhuma capacidade contributiva se revele efectivamente nessa forma, ou uma colecta igual ou superior aos lucros efectivamente obtidos, caso em que representará uma taxa de 100% ou mais de tributação do rendimento e, nessa medida, um imposto confiscatório.

GG. Além disso, a CESE tem um efeito de dupla tributação e sobreposição ao IRC que é inaceitável, acentuado pela decisão do legislador de impedir que aquela seja dedutível em sede do referido imposto, o que define com especial clareza a violência do tributo e a sua inconstitucionalidade, mesmo se considerado como um imposto sobre o património ou uma contribuição financeira, pelo menos por violação do princípio da proporcionalidade.

HH. E, na verdade, a CESE apresenta problemas inultrapassáveis também ao nível do respeito devido pelo princípio da proporcionalidade.

II. Este princípio é violado, em primeiro lugar, na sua dimensão de idoneidade ou adequação, porque a CESE não é um instrumento tendente a resolver o problema da dívida tarifária do SEN – um dos objectivos legislativamente declarados da medida, ao qual é consignado uma parte importante da respectiva receita: não se trata de uma medida que possa assegurar a eliminação ou sequer uma atenuação séria, estrutural, dessa dívida tarifária (mediante uma alteração das regras vigentes em que assenta a sua existência), mas antes, simplesmente, de uma fonte de receita obtida a fim de o Estado continuar a assegurar o objectivo político central quanto à matéria em causa, ou seja, proteger os consumidores finais de electricidade do esforço de redução da dívida tarifária, impedindo o aumento dos preços em medida pelo menos aproximada à exigida por aquela redução.

JJ. Neste sentido, a CESE é uma medida inócua e indiferente, tendo por referência a sua aproximação ao fim visado, e até contraproducente, porque produz o efeito negativo de adiar a resolução dos desequilíbrios do SEN e, assim, prolongar e acentuar o problema.

KK. Depois, a CESE viola o princípio da proporcionalidade também porque é consignada em parte ao financiamento de políticas sociais e ambientais no mesmo ano em que, por exemplo e desde logo, foi reduzida a taxa de IRC em dois pontos percentuais, perdendo-se uma receita pública, já existente, que poderia obviamente servir para aquele fim (não está, assim, cumprida a dimensão da necessidade ou exigibilidade em que assenta a regra da proporcionalidade), e ainda porque, apesar de os objectivos declarados do legislador serem importantes, nunca poderão ser considerados como pretextos suficientes para justificar o prejuízo económico e patrimonial que a CESE inflige nos seus sujeitos passivos, ainda para mais de modo tão violador do princípio da igualdade: na incidência, lembre-se, são incluídas entidades – como a Recorrente – que pouco ou nada têm a ver com as causas dos problemas que suscitaram a criação do tributo ou que pouco ou nada beneficiarão, directa e especialmente, com a solução de tais problemas (desrespeita-se, assim, a dimensão da proporcionalidade em sentido estrito ou do equilíbrio).

LL. Por fim, entende a Recorrente que caberá, nesta sede, invocar a ilegalidade do acto de (auto)liquidação por violação da regra da discriminação orçamental, uma vez que a receita proveniente da CESE não se encontra devida e suficientemente especificada, quer na Lei do Orçamento do Estado respeitante ao ano da CESE aqui em causa – 2020 –, quer, aliás, em qualquer uma das Leis do Orçamento do Estado desde a criação da CESE até à presente data – 2014 a 2024, como se demonstrará. 189/203

MM. Vício que, entende a Recorrente, é cominado com nulidade típica ou integral, por se reconduzir à previsão das alíneas k) e l) do artigo 161.º do CPA, como se demonstrará.

NN. Ora, a nulidade é, nos termos do disposto no número 2 do artigo 162.º do CPA e no número 1 do artigo 58.º do CPTA, invocável a todo o tempo, por qualquer interessado, e é suscetível de ser, oficiosamente, conhecida e declarada, termos em que é forçoso concluir pela inexistência de óbice à sua invocação no âmbito do presente Recurso.

OO. Sempre se dirá que as questões de constitucionalidade deverão ser susceptíveis de ser invocadas e conhecidas (ainda que oficiosamente) pelo Tribunal até ao trânsito em julgado dos presentes autos, dada a relevância das normas constitucionais violadas pela CESE, cf. o Conselheiro Jorge Lopes de Sousa: “(…) até transitar em julgado a decisão final do processo em que se discute a validade do ato, a situação jurídica gerada com a sua prática está instável, pelo que não se podem gerar expectativas dignas de tutela jurídica relativas à validade do ato impugnado e sua manutenção. Por isso, uma vez impugnado o ato, a preclusão do direito de arguir novos vícios não se impõe por razões de segurança jurídica, mas essencialmente por razões de disciplina e economia processuais, para que o processo tenha a tramitação normal prevista na lei, presumivelmente a mais adequada para apreciação dos direitos em litígio. Nestas condições, não havendo prejuízo para a segurança jurídica, é aceitável que se admita a discussão das questões de constitucionalidade durante o processo, mesmo oficiosamente, atenta a relevância jurídica das normas constitucionais.” (cf. Lopes de Sousa, Jorge – Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado – Vol. III, 6ª edição, Áreas Editora, 2011, pp. 445 e 446, nota 4 – sublinhado do Recorrente).

PP. A possibilidade de invocação, em sede de Recurso, de questões de inconstitucionalidade foi, com efeito, reconhecida pelo Supremo Tribunal Administrativo: “I - Em recurso interposto para o STA de decisão proferida pela 1ª instância pode ser alegada a inconstitucionalidade das normas que definem os 190/203 elementos essenciais do tributo, mesmo que a questão não tenha, antes, sido suscitada, já que se trata de matéria que vem sendo entendida como de conhecimento oficioso.” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 13 de dezembro de 2000, proferido no processo n.º 024319, disponível em www.dgsi.pt).

QQ. Assim, entende a Recorrente estar em tempo para invocar a nulidade de que padece a autoliquidação de CESE sub judice, por violação de lei e de normas constitucionais, nos termos em que, de seguida, se expõe.

RR. O princípio orçamental da discriminação encontra-se previsto no artigo 8.º da Lei de Enquadramento Orçamental (“LEO”), aprovada pela Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, e, a partir de 2015, nos artigos 15.º a 17.º da LEO, aprovada pela Lei n.º 151/2015, de 11 de Setembro, decorrendo também da própria CRP a imposição da “discriminação das receitas e despesas do Estado, incluindo as dos fundos e serviços autónomos”, conforme se dispõe no artigo 105.º, n.º 1, alínea a), da CRP.

SS. Dentro do princípio da discriminação orçamental encontramos o subprincípio, ou regra orçamental, da especificação (a par das regras orçamentais da não compensação e da não consignação).

TT. O fundamento da regra da especificação orçamental reside nos requisitos de clareza e maior verdade e, bem assim, numa perspetiva de racionalidade financeira e controlo político (cf. Sousa Franco, A. L.– Finanças Públicas e Direito Financeiro, Volume I e II, Almedina 2007, p. 353).

UU. Esta regra orçamental da especificação integra duas proibições: (i) a proibição, para o Governo, da apresentação de aglomerados de receita e despesa públicas e (ii) a proibição, para a Assembleia da República, de implementação de um sistema de votação global do Orçamento.

VV. Ora, poder-se-á concluir, como faz Maria d’ Oliveira Martins, que a regra orçamental da especificação serve o princípio da publicidade do Orçamento, que “implica a 191/203 obrigação de tornar públicos todos os documentos que se revelem necessários para assegurar a adequada divulgação e transparência do Orçamento do Estado e a sua execução.” (cf. p. 32 do Parecer Jurídico da Professora Doutora Maria D´Oliveira Martins, Anexo n.º 2).

WW. Acresce que, com vista à corporização do princípio da especificação orçamental, a Constituição e a LEO (esta última, tanto na versão de 2001, como na versão de 2015), preveem a existência de três classificações orçamentais: a económica, a orgânica e a funcional.

XX. Debruçando-nos sobre a classificação económica, que é a que mais releva para os presentes autos, recorde-se, estabelece o artigo 8.º da LEO de 2001 que “As receitas devem ser suficientemente especificadas de acordo com uma classificação económica” (cf. também artigo 17.º da LEO de 2015).

YY. Sucede, porém, que a CESE – tendo em conta a sua relevância orçamental e a sua natureza – não se encontra devidamente orçamentada de acordo com a regra da especificação orçamental.

ZZ. Embora a receita decorrente da CESE em causa se presuma prevista na Lei do Orçamento do Estado – neste caso, por referência ao ano de 2020 –, a especificação e o desdobramento orçamental desta receita não respeitam o disposto na CRP e na LEO, não se afigurando, à luz do que antecede, suficiente a inscrição global das receitas do FSSSE no Mapa V dos vários Orçamentos do Estado até 2020 e, em 2021, 2022, 2023 e 2024, da receita da presumivelmente apenas dentro da categoria de “impostos diretos diversos” do Mapa 5.

AAA. Com feito, no Mapa V da Lei do Orçamento do Estado para 2020, referente às Receitas dos Serviços e Fundos Autónomos, por classificação orgânica, com especificação das receitas globais de cada serviço e fundo, prevê-se, tão-só, a arrecadação pelo FSSSE do montante global de € 133.140.000 (cento e trinta e três milhões e cento e quarenta mil euros). 192/203.

BBB. Se é certo que, do artigo 3.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de Abril, resulta que constitui receita do FSSSE, designadamente, o produto da CESE, assim como outras receitas provenientes de aplicações financeiras, de doações, heranças, entre outras, no aludido Mapa V, as receitas do FSSSE não estão individualizadas, nem suficientemente discriminadas, pois que não se especifica quais os montantes, a título de CESE, que, afinal, se autoriza que sejam cobradas durante o ano e consignados ao FSSSE, em clara violação da CRP (artigo 105.º, n.º 1, alínea a)) e da LEO (artigo 8,º da LEO de 2001 e 17.º da LEO de 2015).

CCC. De onde se conclui que não está, por isso, discriminado de que é constituído o valor inscrito no Mapa V, de € 133.140.000 (cento e trinta e três milhões e cento e quarenta mil euros), e desse valor, assumindo que ali está incluída a CESE, qual o que lhe corresponde.

DDD. Ora, só com o cumprimento efetivo das necessidades de individualização decorrentes do princípio da especificação, poderá a Assembleia da República promover o controlo, político e orçamental, devido e exigido pela CRP e pela LEO, razão pela qual existe este princípio.

EEE. É apodítico afirmar que estamos perante uma contribuição que deve ser considerada um tributo distinto dos impostos e taxas, e que, pelas suas características não pode deixar de estar sujeita a uma autorização política parlamentar, para a sua cobrança anual, bem como, sem uma desagregação das receitas correspondentes aos diferentes tipos de tributos, que visam objetivos fiscais e extrafiscais distintos, não é possível alcançar o cumprimento da autonomização, desagregação e especificação orçamental que deveria, e, nessa medida, a criação e manutenção da CESE viola os princípios basilares constitucionais.

FFF. Conforme se referiu supra, no caso particular do ano de 2014, apenas se consegue apreender que a CESE se encontra englobada na categoria das “outras receitas correntes” do Mapa I através do Relatório do Tribunal de Contas que ordena 193/203 que a receita da CESE passe a integrar a categoria de “outros impostos diretos” (v.g. Relatório n.º 3/2015 do Tribunal de Contas, p. 26).

GGG. De todo o acabado de expor resulta o seguinte: i) no Orçamento do Estado para 2014 não é possível encontrar a receita da CESE no meio das demais receitas tributárias; ii) não é, de todo, possível apurar o montante da receita que se previa arrecadar com a CESE; iii) não foi cumprido o desiderato para o qual foi criada a CESE, isto é, a sua transferência, ainda que parcial, para o FSSSE.

HHH. Com efeito, no Orçamento do Estado para 2014, e até 2024, o legislador volta a violar a regra orçamental da especificação orçamental porquanto, ao englobar a CESE numa categoria residual como é o caso das “outras receitas correntes” (em 2014) e “impostos diretos diversos” (nos anos seguintes e até 2024), está a promover aglomerados de receita, precisamente o que a aludida regra orçamental visa proibir.

III. De todo o acabado de expor resulta que, embora a receita decorrente da CESE em causa se presuma prevista na Lei do Orçamento do Estado – neste caso, por referência ao ano de 2020 –, a especificação e o desdobramento orçamental desta receita não respeitam o disposto na CRP e na LEO, não se afigurando, à luz do que antecede, suficiente a inscrição global das receitas do FSSSE no Mapa V dos vários Orçamentos do Estado até 2020 e, em 2021, 2022, 2023 e 2024, da receita da presumivelmente apenas dentro da categoria de “impostos diretos diversos” do Mapa 5.

JJJ. Ainda quanto à forma de inscrição orçamental da CESE nos mapas das leis de orçamento de Estado de 2014 a 2024, integradas numa categoria genérica, a de “outras receitas correntes” (em 2014) ou de “impostos diretos diversos” (de 2015 a 2024), desrespeita as exigências de desagregação de receitas decorrentes do princípio da especificação que constitui uma violação do artigo 105.º, n.º 1, alínea a) da CRP, do artigo 8.º, n.º 1 da LEO 2001 e do artigo 17.º, n.º 2 da LEO 2015. 194/203 KKK. Nesta medida, é forçoso concluir que a receita escapou, inevitavelmente, ao crivo parlamentar, razão pela qual a sua não especificação, concreta e individualizada, nos termos da CRP e da LEO, equivale, em termos práticos, à sua não inscrição – e à sua não autorização – no correspondente Mapa da Lei do Orçamento do Estado.

LLL. A este respeito, Casalta Nabais vai ainda mais longe, entendendo que “(…) o cumprimento do princípio da especificação obriga não só ao cumprimento das exigências constitucionais, mas também das exigências legais e destas decorre não apenas a necessidade da sua previsão no Orçamento do Estado, mas também a sua correcta especificação. Assim, as receitas da CESE teriam que constar dos Mapas I, ou seja, conjuntamente com as receitas dos serviços integrados, por classificação económica. Mas a verdade é que, apesar de uma análise muito cuidada não encontramos a sua menção na classificação respectiva, isto é, como receita corrente” (cfr. pág. 9 do Parecer do Professor Doutor José Casalta Nabais, Anexo n.º 1 – sublinhado da Recorrente.

MMM. Por outro lado, esta deficiente inscrição orçamental das receitas da CESE atenta, não apenas contra o princípio da legalidade, por violação da regra orçamental da especificação das receitas, mas gera, também, o incumprimento de outros princípios orçamentais, nomeadamente os princípios da transparência, da unidade e da universalidade.

NNN. Quanto à forma de inscrição orçamental da CESE em conformidade com o princípio da especificação, Sérvulo Correia, Rui Medeiros, Filipa Urbano Calvão e António Cadilha, reiteram que “(…) nenhuma dessas leis contém uma autonomização da receita correspondente a esta contribuição. (…) De facto, já vimos que estamos perante um tributo distinto dos impostos e taxas e que, pela sua natureza, importância e especificidade do facto justificativo não pode deixar de estar sujeito a uma autorização política autónoma para a sua cobrança anual, que a submeta ao crivo de um debate político-institucional público e plural. (…) Por outro lado, a não autonomização das contribuições financeiras relativamente às demais 195/203 receitas correntes (desagregando-as dos impostos e taxas) impede igualmente que o orçamento cumpra eficazmente a sua função económica. Com efeito, tendo a CESE sido criada e mantida não com uma finalidade genérica de angariação de receitas, mas com objetivos específicos que incluem a prossecução de finalidades extrafiscais - tendo em conta as atribuições do Fundo ao qual tais receitas estão consignadas no que respeita ao reforço da sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional - a Assembleia da República deve estar em condições de, através do processo democrático de determinação das opções financeiras do Estado - que é aprovação do Orçamento do Estado -, analisar a influência da cobrança deste tributo sobre a prossecução desses objetivos de politica económica. Ora, o desempenho desta tarefa não é evidentemente possível se não houver uma desagregação dos diferentes tributos, surgindo as receitas das contribuições financeiras integradas numa categoria residual dos impostos. Tal desagregação é, pois, também necessária ao exercício da função económica que vimos ser assegurada pelo orçamento de Estado. Finalmente, a não autonomização das receitas das contribuições financeiras impede que o orçamento de Estado desempenhe adequadamente a sua função jurídica. Como se disse, é o orçamento de Estado que fixa a competência material específica dos órgãos e agentes do Estado no domínio da arrecadação de receitas, limitando a sua atuação no plano administrativo na medida em que estes só podem anualmente cobrar as receitas que tipicamente nele estejam previstas.” (cfr. Anexo n.º 4, p. 32 a 34 do Parecer dos Professores Doutores Sérvulo Correia, Rui Medeiros, Filipa Urbano Calvão e António Cadilha) – sublinhado e realce da Recorrente.

OOO. Acresce, ainda, referir que o facto de o recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/2019, de 8 de janeiro, ter (pese embora sem força obrigatória geral) qualificado a CESE como uma “contribuição financeira”, e não como uma taxa ou imposto, também não poderá justificar o aligeiramento da especificação orçamental quanto a estas receitas.

PPP. Em primeiro lugar, porque quer a CRP, quer a LEO referem-se a receitas, sem especificar a sua origem.

QQQ. Depois, porque as contribuições financeiras possuem características semelhantes aos impostos, tendo assim sido vistas, quer pelo Tribunal de Contas, que a qualificou, em 2015, na categoria dos “impostos diretos”, quer pelo Estado, que anulou a sua propriedade comutativa (determinante para o Tribunal Constitucional a ter qualificado como contribuição financeira) ao não transferir, em 2014 e em 2015, o produto da receita da CESE para o FSSSE, tendo, assim, servido finalidades públicas gerais.

RRR. Por tudo, verifica-se a violação do princípio da especificação orçamental, com a consequente ocultação desta receita do controlo parlamentar, uma vez que a votação da Assembleia da República, em todos os Orçamentos desde 2014 a 2024, foi efetuada sem o pleno e cabal conhecimento do montante de receita previsto cobrar a título de CESE.

SSS. Razão pela qual, a omissão da referência à CESE nos Orçamentos do Estado para 2014, 2015, 2016, 2017, 2018, 2019, 2020, 2021, 2022, 2023 e 2024 corresponde a uma manifesta violação da regra orçamental prevista no artigo 8.º da LEO de 2001 (aplicável aos Orçamentos de Estado de 2014 e 2015) e do artigo 17.º da LEO de 2015 (aplicável aos Orçamentos de 2016 a 2024) e, bem assim, à violação do Decreto-Lei n.º 26/2002, na medida em que promove uma deficiente inserção dessa receita no classificador económico e, também, a sua inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 105.º da CRP.

TTT. Acresce referir que esta violação da regra orçamental da especificação põe, também, em crise os outros referidos princípios e regras orçamentais, em especial, aqueles que mais se relacionam com esta, como são os da proibição de compensação e da compensação.

UUU. A CESE viola, também, o princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de necessidade, decorrente do facto de o legislador manter a contribuição financeira sem minimamente explicitar as razões que, nesse contexto de redução da dívida tarifária, continuam a tornar imprescindível a CESE, com os efeitos manifestamente ablativos para a esfera jurídica patrimonial das empresas daí decorrentes.

VVV. Com efeito, é certo que o objetivo do legislador, quando fixou a CESE, não era o de supressão integral do défice tarifário, mas o da sua “redução”; e também é inequívoco que tem existido uma progressiva e acentuada redução desse défice, que, segundo os dados da ERSE, atingiu em 2023 um valor (800 milhões) que representa apenas 1/5 do existente em 2015 (5080 milhões).

WWW. Ora, neste contexto, não parece ser aceitável que a medida em causa seja sucessivamente reiterada sem que se procure minimamente justificar em que medida continua a ser necessária para alcançar aquele objetivo específico de redução do défice tarifário (ou, dito de outra forma, em que medida a ampla redução da dívida tarifária alcançada não corresponde já aos objetivos de política pública inicialmente prosseguidos). XXX. Esta violação é agravada ainda, pelo facto de tal medida continua a ser qualificada como extraordinária, e, desse modo, mantém associada uma condição de “extraordinariedade”, cujo maior ou menor cumprimento deveria ser possível aos seus destinatários aferir ao longo da vigência do tributo.

YYY. Sérvulo Correia, Rui Medeiros, Filipa Urbano Calvão e António Cadilha rematam este argumento referente à ausência de justificação da manutenção da CESE, referindo que “[o]ra, neste contexto, em que é inquestionável e unanimemente reconhecido que a dívida tarifária tem vindo a decrescer de forma continuada, atingindo hoje um valor que constitui menos de 1/5 daquele que tinha quanto a CESE foi criada, não se poderá deixar de entender que o legislador está sujeito a uma especial dever de justificar em que medida essa substancial redução já alcançada não constitui uma alteração da "conjuntura" que fundamentou a criação da medida; ou, noutra perspetiva, de apresentar as razões que expliquem que, mesmo neste contexto, seja imprescindível uma medida que visava “contribuir" para a redução da dívida tarifária e foi qualificada como "extraordinária".” (cfr. Anexo n.º 4, p. 50 198/203 do Parecer dos Professores Doutores Sérvulo Correia, Rui Medeiros, Filipa Urbano Calvão e António Cadilha) – sublinhado e realce da Recorrente.

ZZZ. Nessa medida, a não demonstração do nexo existente entre a restrição/limitação de direitos fundamentais (neste caso, o direito à igualdade tributária e o direito de propriedade), e a prossecução de certo interesse juridicamente relevante, é ainda mais censurável, configura, indubitavelmente, a violação do princípio da proporcionalidade, na sua dimensão de necessidade.

AAAA. Noutra perspetiva, podemos enquadrar a incidência da CESE como violadora do princípio da igualdade tributária (cfr. artigo 13.º da CRP), visto que, esta reflete uma diferenciação de tratamento ao ser exigida de um grupo específico e diferenciável de empresas e não a todos os contribuintes.

BBBB. Conclui-se, assim, que, no que concerne à violação do princípio da igualdade tributária, “inexiste, pois, uma equivalência que possa materialmente justificar, à luz do princípio da igualdade tributária, a tributação dessas empresas através da CESE, pelo que a exigência deste tributo a tais entidades é inconstitucional por violação daquele princípio.” (cfr. Anexo n.º 4, p. 57 do Parecer dos Professores Doutores Sérvulo Correia, Rui Medeiros, Filipa Urbano Calvão e António Cadilha) – sublinhado e realce da Recorrente.

CCCC. Acresce que, como acima já se deixou referido, a violação do princípio da especificação conduz à nulidade dos “créditos orçamentais que possibilitem a existência de dotações para utilização confidencial ou para fundos secretos (…)”, conforme preveem o artigo 8.º n.º 6, da LEO de 2001 e o artigo 17.º, n.º 3, da LEO de 2015, o que deverá significar que esses créditos se devem ter por não escritos, reconstituindo-se a ordem jurídica como se a cobrança da CESE nunca tivesse sido prevista.

DDDD. Ora, como bem refere Maria d’ Oliveira Martins, “implicando as inconstitucionalidades e as ilegalidades detetadas na sua orçamentação a invalidade 199/203 e a total improdutividade (nulidade absoluta) dos créditos orçamentais relativos à Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético, isso não pode deixar de ter como consequência que os atos de liquidação e cobrança fiquem sem base legal de apoio, por não haver previsão orçamental das mesmas. Sem previsão orçamental, a Autoridade Tributária deixa de ter autorização para cobrança desta receita.” (cf. p. 77 do Parecer Jurídico da Professora Doutora Maria D’Oliveira Martins, Anexo n.º 2).

EEEE. Por este motivo, o ato de (auto)liquidação da CESE aqui em apreço enferma de um vício gerador de ilegalidade abstrata, porquanto a sua liquidação e cobrança não terão sido devidamente autorizados em conformidade com a CRP e a LEO.

FFFF. Importa, ainda, chamar à colação o teor do recentíssimo Acórdão n.º 411/2022, do Tribunal Constitucional (TC), no qual este Tribunal se dedica à análise da eventual violação do princípio da discriminação e da regra da especificação orçamental, pelo disposto no artigo 11.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Contribuição Extraordinária sobre o Setor Energético (CESE), no qual, salvo melhor opinião, ao mesmo tempo que se defende que a violação do princípio da discriminação da regra da especificação não poderá ter consequências – nem sequer reflexas – ao nível normativo, se defende que tal violação deverá, porém, inquinar o próprio ato de liquidação do crédito, na medida em que os créditos que lhes subjazem são inválidos.

GGGG. Do que antecede decorre que o TC relega a palavra final para os tribunais tributários, uma vez que, de acordo com o Acórdão em escrutínio, o vício decorrente da violação arguida adere ao ato de liquidação e não à norma que prevê a consignação do tributo, i.e., o 11.º, n.º 1, do RCESE (norma cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela ali Recorrente).

HHHH. No que respeita ao impacto da inconstitucionalidade as autoliquidações de CESE realizadas, considerando que estas correspondem “a meras declarações de facto, sem relevância jurídica”, e que, consequentemente, os atos de cobrança, enquanto atos de execução das autoliquidações, também correspondem a meras condutas de facto 200/203 não enquadradas juridicamente, porquanto um dos traços caracterizadores da inexistência de ato administrativo é o de “as condutas executivas da Administração serem necessariamente vias de facto”, e nesse caso, deverão ser considerados os atos de autoliquidação inexistentes, nos termos do artigo 155.º, n.º 2 do CPA.

IIII. Mas se não se considerar a intervenção da inexistência dos actos de (auto)liquidação e de cobrança, sempre se deverá considerar a invalidade por nulidade dos actos de (auto)liquidação e de cobrança, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alínea j) e/ou k) do CPA, e os atos de autoliquidação praticados antes da entrada em vigor deste diploma, portanto, praticados em 2014, devem considerar-se inexistentes ou, subsidiariamente, nulos, ao abrigo do n.º 1 e al. d) do n.º 2 do artigo 133.º do CPA de 1991.

JJJJ. Concluindo, suscita-se, expressamente e desde já, e nos termos que antecedem, a (in)constitucionalidade e a ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado, (i) da norma que instituiu o regime jurídico da CESE, i.e. da norma resultante do artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013;(ii) da norma que manteve em vigor, no ano 2020, o regime jurídico da CESE, i.e. da norma contida no artigo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março; (iii) da norma que se retira do artigo 1.º do regime jurídico da CESE e que define o objeto do tributo; (iv) da norma que se retira do artigo 2.º do regime jurídico da CESE e que determina a incidência subjetiva do tributo; (v) da norma que se retira do artigo 3.º do regime jurídico da CESE e que determina a incidência objetiva do tributo; (vi) a norma que se retira do artigo 6.º do regime jurídico da CESE e que determina a taxa aplicável; (vii) a norma que se retira do artigo 11.º do regime jurídico da CESE e que determina a consignação da receita ao FSSSE, bem como (viii) da norma que se retira do artigo 12.º do regime jurídico da CESE e que determina a não dedutibilidade da CESE, no sentido de que são devidos pelo contribuinte e não são nulos créditos tributários da CESE respeitantes ao ano de 2020, quando inexista especificação (ou exista insuficiente especificação) no Mapa V da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020) da receita que 201/203 o Estado previu arrecadar para o FSSSE, por a CESE não ser a única fonte de receita do aludido Fundo.

KKKK. Em consequência, deverão os atos de (auto)liquidação de CESE ser considerados inexistentes, nos termos do artigo 155.º, n.º 2 do CPA. Caso assim não se entenda, sempre se deverá considerar a invalidade por nulidade dos actos de (auto)liquidação e de cobrança, nos termos do artigo 161.º, n.º 2, alínea j) e/ou k) do CPA. Valor: o da ação. NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, REQUER-SE A V. EXAS. QUE JULGUEM TOTALMENTE PROCEDENTE O PRESENTE RECURSO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, NOMEADAMENTE A REVOGAÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA E A SUBSTITUIÇÃO POR OUTRA QUE DECLARE A INEXISTÊNCIA, OU, SUBSIDIARIAMENTE, A NULIDADE, OU, AINDA, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, A ANULAÇÃO DOS ACTOS IMPUGNADOS. MAIS SE REQUER A V. EXAS., NOS TERMOS E PARA OS EFEITOS DO DISPOSTO NO ARTIGO 651.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC), SE DIGNEM ADMITIR A JUNÇÃO AOS PRESENTES AUTOS DE RECURSO DOS PARECERES DA AUTORIA DO PROFESSOR JOSÉ CASALTA NABAIS, DA PROFESSORA MARIA D´OLIVEIRA MARTINS, DO PROFESSOR TIAGO DUARTE E DOS PROFESSORES SÉRVULO CORREIA, RUI MEDEIROS, FILIPA URBANO CALVÃO E ANTÓNIO CADILHA, IDENTIFICADOS COMO ANEXOS N.º 1, N.º 2, N.º 3 E N.º 4, RESPETIVAMENTE.”


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A Recorrida devidamente notificada apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:

“I - Quanto à alegação de que a CESE é uma contribuição especial que se reconduz ao regime jurídico dos impostos, nos termos do nº 3 do art. 4º da LGT, refira-se que enquanto as contribuições especiais assentarão, em regra, entre outros elementos, no especial desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade, a verdade que esta contribuição assentará num desgaste efectivo e, como tal, verificado na realidade, de bens públicos concretamente individualizáveis e por sujeitos passivos concretos e individualizáveis e que, por isso, assentam numa relação sinalagmática concreta e entre elementos concretamente identificáveis, que praticaram factos que se verificaram no mundo real, já as contribuições financeiras terão assento nos custos presumivelmente provocados ou benefícios presumivelmente auferidos por um grupo homogéneo e difuso de entidades com actividade num determinado sector económico, a quem esses custos e benefícios não são imputáveis individualmente e, por isso, assentarão numa relação sinalagmática entre elementos que apenas serão identificáveis como um grupo e baseadas apenas na mera a possibilidade ou na probabilidade da pratica de factos e, como tal, que podem, ou não, se ter verificado na vida real.

II - Assim, nos termos do art. 1º da CESE, aprovada pelo art. 228º da Lei nº 83º-C/2013 de 31/12, sucessivamente prorrogada até 2019, e também nos termos do DL 55/2014 de 09/04, a contribuição extraordinária tem por objectivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica ou autosuficiência financeira do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético nacional, ou seja, em face das prestações públicas, nomeadamente com o desenvolvimento e concretização de políticas sociais e ambientais do sector energético e também no sentido da redução da respectiva dívida tarifária dirigidos à sustentabilidade sistémica do mesmo sector, o Estado vem exigir uma contribuição financeira aos particulares que actuam na área das energias a fim de custear essas suas prestações públicas na mesma área, resultando, deste modo, a concepção e a estrutura da CESE como uma verdadeira contribuição financeira e não como uma contribuição especial, pelo que sendo a CESE considerada uma contribuição financeira, deixam de fazer qualquer sentido as alegações da impugnante quanto à sua inconstitucionalidade enquanto contribuição especial.

III - Por outro lado, sem conceder, mesmo que a CESE fosse juridicamente considerada uma contribuição especial, também não lhe poderiam ser assacadas as inconstitucionalidades alegadas pelas recorrentes, pois, apesar do invocado nº 3 do art. 4º da LGT dizer que as contribuições especiais são consideradas impostos, a verdade é que não diz que são mesmo impostos, uma vez que, na realidade, o que o legislador quis dizer é que a técnica jurídica a utilizar na sua implementação deverá seguir a mesma técnica estabelecida para o regime jurídico dos impostos, mormente quanto aos limites e objectivos da tributação e ao princípio da legalidade tributária, nomeadamente quanto à incidência, taxas, garantias dos contribuintes e infracções (Cfr. arts. 7º e 8º da LGT).

IV - Nesta sequência, quanto à alegação que a CESE, enquanto contribuição especial, é inconstitucional por violação do princípio da tributação pelo lucro real, refira-se, desde já, que o princípio da tributação pelo lucro real estabelecido no nº 2 do art. 104º da CRP não é um princípio absoluto, admitindo a tributação por presunções de lucro real e logo presunção da capacidade contributiva, sendo que, a posse de determinados activos sobre cujo valor incide a CESE é um indicador objectivo sobre o lucro que pode vir a ser obtido e logo sobre a sua capacidade contributiva, pois são esses elementos que pela sua actividade tem a susceptibilidade de provocar os ditos custos ou auferir dos ditos benefícios e as taxas da CESE, para a determinação concreta da contribuição financeira em causa, são as que foram consideradas necessárias e suficientes para fazer face aos custos provocados, ou aos benefícios auferidos, nomeadamente para o financiamento das políticas sociais e ambientais no sector energético nacional, destinando-se apenas dois terços a financiar o défice tarifário do sector eléctrico, pelo que, desde logo, existe uma causalidade entre a actividade das impugnantes no sector energético e a base de incidência da CESE, pelo que, não se vislumbra qualquer violação da tributação pelo lucro real.

V - Quanto à alegação de subsiste violação do princípio da segurança jurídica, na vertente da protecção da confiança, nos termos do art. 2º da CRP, na medida em que a CESE não tem uma natureza extraordinária, porque tem sido sucessivamente prorrogada desde a data da sua criação, refira-se que, conforme decorre do regime jurídico que estabeleceu a sua criação e entrada em vigor e como o seu nome indica, que a sua criação é extraordinária e desta característica resulta também que é transitória, tanto mais que se encontra estabelecida na Lei do Orçamento para 2014 (Lei nº 83º-C/2013 de 31/12, já referida) que terá de ser aprovado anualmente, cessando logo que sejam atingidos os objectivos a que se propôs, sendo que o facto de ter vindo a ser prorrogada em nada contende racionalmente com a sua natureza transitória, acrescendo que no regime jurídico da CESE existem várias referências temporais a datas limite de vigência em concreto, como, por exemplo, no seu art. 7º, o que confirma o seu carácter eminentemente transitório, pelo que não existe qualquer violação da protecção da confiança alegada.

VI - Quanto à alegação de foi violado o princípio da proporcionalidade, na vertente da necessidade e proibição do excesso, de conformidade com o nº 2 do art. 18º da CRP, refira-se que a criação da CESE, além de necessária, é adequada e idónea para a sustentabilidade sistémica do sector energético tanto na vertente da redução da dívida tarifária como na vertente do financiamento de políticas sociais e ambientais, pois, a verdade é que a CESE se destina a financiar o sector energético em todas as suas vertentes e tem vindo a cumprir estes objectivos de efectiva redução da dívida tarifária e do financiamento das políticas sociais e ambientais, tanto mais que as taxas da CESE são as que foram consideradas necessárias e suficientes para a determinação concreta da contribuição financeira em causa a fim de fazer face aos custos provocados, ou aos benefícios auferidos, destinando-se apenas um terço a financiar o défice tarifário do sector energético, sendo que, de resto, face ao quadro actual do sector energético, nomeadamente face à manutenção do défice tarifário e das políticas sociais e ambientais para o sector, continua a justificar-se a necessidade da existência e continuação de uma política tributária nesse sentido, pelo que não se compreende a racionalidade das alegações das recorrentes.

VII - Quanto á alegação que pelo facto de o art. 11º do regime da CESE prever que a receita deste é consignada ao Fundo de Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (DL 55/2014 de 09/04) viola o princípio da não consignação das receitas estabelecido no art. 16º, nº 3 da actual Lei do Enquadramento Orçamental, o que constitui uma inconstitucionalidade indirecta, dado o valor reforçado desta última lei, refira-se que este último preceito legal prevê a possibilidade de consignação de determinadas receitas a determinadas despesas quando exista uma razão especial e as normas que estabeleçam a consignação tenham caracter excepcional e temporário, sendo que, desde logo, existe uma razão especial para a consignação, dado que se encontra estabelecido nos normativos em causa que as receitas se destinam a um fundo para a sustentabilidade do sector energético em concreto e com a finalidade de financiar as políticas sociais e ambientais e, ainda, para financiar a dívida tarifária do sector eléctrico, razão pela qual seria de todo inconveniente e irracional diluir tais receitas no financiamento das políticas públicas em geral e, por outro lado, como já acima se demonstrou, ao contrário do alegado pela impugnante, as normas que prevêem a consignação das receitas da CESE, são efectivamente normas excepcionais e temporárias, pelo que, a consignação das receitas provenientes da CESE tem pleno acolhimento legal e constitucional, não estando em causa a violação de qualquer normativo legal, nomeadamente do art. 16, nº 3º da L.E.O..

VIII - Quanto à alegada ilegalidade e inconstitucionalidade indirecta por violação do princípio da discriminação e especificação orçamental, devendo ser considertado inexistente ou anulado o acto de liquidação da CESE, nos termos do art. 155º/2 e art. 162/2-j) e/ou k), ambos do CPA, refira-se que esta última alegação não foi argumentada na sua petição inicial nem na contestação e consequentemente não foi objecto de pronúncia pelo tribunal a quo, pelo que não pode ser objecto de recurso nos termos legais.

IX - E quanto ao invocado acórdão 101/2023 do TC que decidiu a desaplicação da al. d) do art. 2º da RCESE por violação do art. 13º da CRP, refira-se, como é do conhecimento público, que esta matéria já foi suficientemente analisada por variadíssimas decisões em todas as instâncias judiciais tributárias e pelo próprio Tribunal Constitucional em posteriores acórdãos, onde se concluiu pela não inconstitucionalidade das normas que instituíram a CESE, dado que, posteriormente ao mencionado acórdão 101/2023 do TC de 16/03/2023, foram prolatados por este alto Tribunal, entre outros, a saber, o acórdão do TC nº 296/2023 de 25/05/2023, o acórdão do TC nº 338/2023 de 06/06/2023, o acórdão do TC nº 372/2023 de 07/06/2023 e o acórdão do TC nº 369/2023 de 07/06/2023 e ainda do recente acórdão do TC nº 345/2024 de 24/04/2024 e principalmente do acórdão do Plenário do TC nº 325/2024 de 17/04/2024 , onde se decidiu em todos eles pela não inconstitucionalidade, mormente, dos arts. 2º, 3º, 4º, 11º e 12º, da RCESE.

X - E a jurisprudência que se retira dos citados acórdãos do TC referentes á CESE de 2018 aplica-se a CESE liquidada de 2020 objecto dos presentes autos, dado que as normas em causa nesses arestos são praticamente as mesmas que se discutem nos presentes autos e em todos esses recentes arestos do TC (onde, em alguns desses arestos se chama á colação e contraria o mencionado acórdão do TC nº 101/2023) se retira, entre outros fundamentos de não inconstitucionalidade, que as receitas da CESE se destinam ao FSSSE e que é este fundo, constituído não só pelas receitas da CESE como por outras transferências e que é com todas as receitas previstas para o fundo que se vai financiar a dívida tarifária e as políticas sociais e ambientais do sector energético (e não financiar só com as receitas da CESE, pelo que a alteração promovida pelo DL 109-A/2018 de 07/12 ao regime jurídico do FSSSE se mostra irrelevante em termos da aferição da constitucionalidade das normas que integram a RCESE).

XI - E retirando-se ainda desses mais recentes arestos do TC que a cobrança da CESE oferece estabilidade ao sector energético e que todos os operadores deste sector, onde os impugnantes do sector do gás se integram, extraem como vantagem o benefício de grupo de não se acharem confrontados com um sector instável, nomeadamente desorganizado ou em rutura e, ainda, da necessidade do equilíbrio ambiental e de racionalização da exploração dos recursos nacionais, assim como da medida transitória e excepcional da redução da dívida tarifária, daí que se compreenda a chamada ao financiamento da acção pública neste domínio, constituindo, pois, todos estes considerandos um nexo causal entre a actividade da impugnante e a prestação que lhe é exigida através da CESE.

XII - Pelo exposto, em face das decisões de não inconstitucionalidade proferidas nas várias instâncias judiciais, incluindo o Tribunal Constitucional, cuja jurisprudência se pode aplicar á CESE autoliquidada nos presentes autos, não devem ser desaplicadas as normas da RCESE invocadas pelas recorrentes, mantendo-se a autoliquidação da CESE do ano de 2020 na ordem jurídica. Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, requer-se a V.ªs Ex.ªs se dignem julgar recurso totalmente improcedente, por não provado, com as legais consequências. Mais se requer, desde já, atendendo a que o valor da acção é superior a 275.000€, a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do art. 6.º n.º 7 do Regulamento de Custas Processuais, tendo em consideração o valor e a natureza da causa.”


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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

A) A impugnante é uma sociedade comercial anónima com sede em território nacional, que se dedica à actividade de “Aprovisionamento e distribuição de gás natural e outros gases combustíveis canalizados” (CAE 035220) sendo considerada, para efeitos fiscais, “Contribuinte de elevada relevância económica e fiscal” (facto não controvertido);

B) Em 19.10.2020, a Impugnante procedeu, através do formulário Modelo 27, à autoliquidação da “Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético” (CESE) – Liquidação nº 2020.105, referente ao ano de 2020, na qual declarou e apurou: Total de activos: € 15.324.366,07 Taxa de Contribuição: 0,850% CESE = € 130.257,11 (Cfr. Doc. 1 junto com a RG – registo nº ……. no SITAF);

C) Em 10.11.2020, foi emitida liquidação de juros de mora nº ……………..068 no valor de € 136,64 (cfr. fls. 160 e 163 do PA – registo nº ………….. e Doc. 2 junto com a RG – registo nº …………… no SITAF);

D) Não tendo sido efectuado o pagamento dentro do prazo de pagamento voluntário, foi emitida certidão de dívida n° …………… e instaurado processo de execução fiscal (PEF) nº ……………..680, com vista à cobrança coerciva do valor em dívida (cfr. fls. 161 do PA – registo nº ………… no SITAF);

E) Em 31.12.2020, a Impugnante prestou garantia no âmbito do PEF a que se refere a alínea antecedente (cfr. fls. 162 do PA – registo nº ………. no SITAF);

F) Em 19.03.2021, a Impugnante apresentou reclamação graciosa do acto de autoliquidação da CESE referido em B) supra, nos termos e com fundamentos Tribunal Tributário de Lisboa que se dão aqui por reproduzidos, tendo o processo sido autuado sob o nº ………..788 (cfr. registo nº …………. no SITAF);

G) A reclamação graciosa foi indeferida por despacho do Chefe de Divisão de Justiça Tributária da Unidade de Grandes Contribuintes, por subdelegação de competências, proferido em 21.06.2021, com os fundamentos que se dão aqui por reproduzidos (cfr. Docs. 2 e 3 juntos com a p.i e registos nº ………. e …….. no SITAF);

H) O despacho e informação subjacente foram remetidas à Impugnante através do ofício nº 308-DJT/2021, de 21.06.2021 (cfr. Doc. 3 junto com a p.i e registo nº ……….. no SITAF).


***

O Tribunal a quo considerou como factualidade não provada:

“Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa.”


***

No concernente à motivação da matéria de facto ficou consignado o seguinte:

“Quanto aos factos provados, a convicção do Tribunal fundou-se na análise da prova documental constante dos autos e do PA, contendo o procedimento de reclamação graciosa, conforme especificado em cada uma das alíneas supra.”


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial deduzida contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa que manteve o ato tributário de autoliquidação da CESE, referente ao ano de 2020.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso a questão fundamental a que importa dar resposta é a de saber se as normas do regime da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (“CESE”), em particular os artigos 1.º, 2.º, 3.º, 6.º, 11.º e 12.º, na versão e período de vigência conferidos pelo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020), que prorrogou a CESE para 2020, padecem de inconstitucionalidade.

Advoga, desde logo, a Recorrente que atenta a coincidência entre a situação de facto da Recorrente e a subjacente ao Acórdão n.º 101/2023 do Tribunal Constitucional, os presentes autos devem ser decididos no mesmo sentido da jurisprudência ali firmada – no sentido em que a CESE é inconstitucional, a partir de 2018, pelo menos para todos os sujeitos passivos que não integra o subsector da produção de eletricidade–, terminando com a declaração de inconstitucionalidade da CESE, tal como esteve em vigor em 2020, com a consequente anulação dos atos impugnados e demais consequências legais.

Mais sufragando que, essa é a linha de entendimento que se retira dos Acórdãos n.º 196/2024, n.º 197/2024 e n.º 337/2024, todos do Tribunal Constitucional, relativos à CESE de 2019, os quais, por um lado, esclarecem que a jurisprudência inaugurada pelo Acórdão n.º 101/2023, da 3.ª Secção e relativa a 2018, se aplica também daí em diante (ou pelo menos em todos os anos em que se mantenham as condições legislativas de 2018), e, por outro lado, permitem inferir que atenta a atividade das empresas em causa nesses autos, que aquela jurisprudência do gás se aplica a todos os subsectores que não o subsector electroprodutor.

Entende que os referidos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 6.º, 11.º e 12.º, na versão e período de vigência conferidos pelo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, enfermam de inconstitucionalidade material no que concerne às normas de incidência subjetiva e objetiva, por violação dos princípios da proporcionalidade, da igualdade, da equivalência, da consignação de receitas a determinadas despesas, por restrição ao direito da proporcionalidade e, por fim, por a CESE assumir natureza não extraordinária, não constituindo, por conseguinte, como era o objetivo inicial, uma medida excecional.

Adensando, neste e para este efeito, que o único argumento que o Tribunal Constitucional avança para justificar a validade da CESE até 2017 é o das condições de emergência financeira em que a República Portuguesa se encontrava.

Termina, assim, peticionando a (in)constitucionalidade e a ilegalidade, por violação de lei de valor reforçado, (i) da norma que instituiu o regime jurídico da CESE, i.e. da norma resultante do artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013;(ii) da norma que manteve em vigor, no ano 2020, o regime jurídico da CESE, i.e. da norma contida no artigo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março; (iii) da norma que se retira do artigo 1.º do regime jurídico da CESE e que define o objeto do tributo; (iv) da norma que se retira do artigo 2.º do regime jurídico da CESE e que determina a incidência subjetiva do tributo; (v) da norma que se retira do artigo 3.º do regime jurídico da CESE e que determina a incidência objetiva do tributo; (vi) a norma que se retira do artigo 6.º do regime jurídico da CESE e que determina a taxa aplicável; (vii) a norma que se retira do artigo 11.º do regime jurídico da CESE e que determina a consignação da receita ao FSSSE, bem como (viii) da norma que se retira do artigo 12.º do regime jurídico da CESE e que determina a não dedutibilidade da CESE, no sentido de que são devidos pelo contribuinte e não são nulos créditos tributários da CESE respeitantes ao ano de 2020, quando inexista especificação (ou exista insuficiente especificação) no Mapa V da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020) da receita que 201/203 o Estado previu arrecadar para o FSSSE, por a CESE não ser a única fonte de receita do aludido Fundo.

Dissente a Entidade Impugnada propugnando pela manutenção da decisão recorrida, advogando, desde logo, que o Acórdão 101/2023 do Tribunal Constitucional que decidiu a desaplicação da alínea d), do artigo 2.º da RCESE, por violação do artigo 13.º da CRP, não pode ser vista de forma singular.

E isto porque, esta matéria já foi suficientemente analisada por variadíssimas decisões em todas as instâncias judiciais tributárias e pelo próprio Tribunal Constitucional em posteriores acórdãos, onde se concluiu pela não inconstitucionalidade das normas que instituíram a CESE, dado que, posteriormente ao mencionado acórdão 101/2023 do Tribunal Constitucional de 16 de março de 2023, foram prolatados, entre outros os acórdãos nº 296/2023 de 25/05/2023, nº 338/2023 de 06/06/2023, nº 372/2023 de 07/06/2023 e nº 369/2023 de 07/06/2023, nº 345/2024 de 24/04/2024 e principalmente o acórdão do Plenário do TC nº 325/2024 de 17/04/2024 , onde se decidiu em todos eles pela não inconstitucionalidade, mormente, dos artigos 2º, 3º, 4º, 11º e 12º, da RCESE.

O Tribunal a quo, por seu turno, esteou a improcedência da impugnação judicial começando, desde logo, por evidenciar que “[a]s questões e os vícios invocados pela Impugnante têm vindo a ser exaustiva e reiteradamente apreciados pelos tribunais superiores, designadamente pelo TCAS (como exemplo, os acórdãos de 04.05.2023, processo nº 478/21.9BEALM ou de 06.12.2022, processo nº 843/20.0BELRA), pelo STA (acórdão de 04.05.2023, processo nº 0353/19.7BESNT, sendo também de referir, exemplificativamente, os acórdãos de 08.01.2020, processo nº 0386/17.8BEMDL e de 10.11.2021, processo nº 01471/17.1BEPRT) e pelo Tribunal Constitucional.”

Enfatizando, adicionalmente, que “[s]em prejuízo do decidido no âmbito do Acórdão nº 101/2023 do Tribunal Constitucional (e da Decisão Sumária nº 201/2023), é pacífico o julgamento de conformidade constitucional da CESE, desde o primeiro acórdão sobre a matéria – Acórdão nº 7/2019 –, onde se decidiu “[n]ão julgar inconstitucionais as normas ínsitas nos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º que modelam o regime jurídico da “Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético”, aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83º-C/2013, de 31 de Dezembro», posicionando-se pela conformidade constitucional das normas ora sindicadas, bem como da CESE cujo regime legal delas deriva”.

Para na linha dessa jurisprudência que cita e a que adere concluir que “[e]m face das razões acima transcritas (e da integral fundamentação, para a qual se remete), não comungar da tese propugnada pelo Acórdão nº 101/2023, concluindo, ademais, que não houve qualquer inversão da jurisprudência reiterada e uniforme que vinha sendo prolatada pelos tribunais superiores, antes se tratando de um entendimento isolado do Tribunal Constitucional. Neste sentido, e como acima já se concluiu, a liquidação impugnada não padece dos vícios que lhe são assacados, improcedendo o pedido de anulação da mesma. Consequentemente, improcedem também os pedidos de reembolso do tributo, o pagamento de juros indemnizatórios e indemnização por prestação de garantia indevida, por não verificação dos pressupostos de que dependem.”

Mas, a verdade é que, atenta a inflexão da posição do Tribunal Constitucional, naturalmente acompanhada pelo STA e bem assim por este Tribunal, não podemos manter o juízo de entendimento que foi propugnado na decisão recorrida.

Explicitemos, então, as razões pelas quais assim o ajuizamos.

Comecemos por convocar o quadro normativo que para os autos releva.

A CESE foi implementada com a Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, estando o seu regime contemplado no artigo 228.º, extraindo-se da letra do seu artigo 1.º que a mesma tem por “objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético”.

De relevar, neste particular, que no final do ano de 2014, a Lei n.º 82-B/2014, de 31 de dezembro, particularmente os seus artigos 237.º e 238.º prorrogaram a vigência da CESE, com as inerentes adaptações, por forma a adequar o regime jurídico à extensão da vigência ao ano de 2015.

De sublinhar, igualmente, a alteração gizada pela Lei n.º 33/2015, de 27 de abril, mormente em termos de alargamento de incidência subjetiva e no ano de 2016, através Lei n.º 159-C/2015, de 30 de dezembro, particularmente, do seu artigo 6.º na qual se manteve em vigor a CESE, consignando-se, nessa conformidade, que todas as referências feitas ao ano de 2015 se entendem materializadas ao ano de 2016.

Ainda em termos de alterações legislativas, com especial relevo para o caso vertente, importa ter presente a Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, concretamente, o artigo 264.º, o qual procedeu a alterações quanto à redação das normas relativas à incidência objetiva, à não repercussão, às taxas, à liquidação, à consignação e aos ajustamentos tarifários, sem que estas, contudo, tenham alterado substancialmente a CESE, como também bem evidenciado pelo Tribunal a quo.

Sendo que em termos de diplomas mais recentes com alterações à CESE, e com relevo para a situação sub judice, é preciso ter presente a Lei nº 114/2017, de 29 de dezembro (artigo 280.º), Lei nº 71/2018, de 31 de dezembro (artigo 313.º), Lei nº 2/2020, de 31 de março (artigo 376.º) e Lei nº 75-B/2020, de 31 de dezembro artigo 415.º), os quais, entre o mais, regulamentam a manutenção da CESE para os anos subsequentes.

Feito este introito em termos de evolução legislativa, convoquemos o regime jurídico aplicável ao ano de 2020, nos aspetos de maior relevo para a questão decidenda.

Vejamos, então.

Como já evidenciado, a CESE foi instituída pelo artigo 228º da Lei nº 83-C/2013, de 31 de dezembro preceituando o seu artigo 1.º, nº 2 que:

“2 – A contribuição tem por objetivo financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do sector energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do sector energético”.

No que se refere à incidência subjetiva da CESE, prevê o artigo 2º:

“São sujeitos passivos da contribuição extraordinária sobre o sector energético as pessoas singulares ou coletivas que integram o sector energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2015, se encontrem numa das seguintes situações: (…)

d) Sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, alterado pelos Decretos-Leis n.os 65/2008, de 9 de abril, 66/2010, de 11 de junho, e 231/2012, de 26 de outubro;

e) Sejam titulares de licenças de distribuição local de gás natural, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, alterado pelos Decretos-Leis n.os 65/2008, de 9 de abril, 66/2010, de 11 de junho, e 231/2012, de 26 de outubro; (…)”.

No que respeita à incidência objetiva, de acordo com o artigo 3.º do regime:

“1 - A contribuição extraordinária sobre o sector energético incide sobre o valor dos elementos do ativo dos sujeitos passivos que respeitem, cumulativamente, a:

a) Ativos fixos tangíveis;

b) Ativos intangíveis, com exceção dos elementos da propriedade industrial; e

c) Ativos financeiros afetos a concessões ou a atividades licenciadas nos termos do artigo anterior. (…)”

A taxa aplicável sobre os ativos encontra-se determinada da forma progressiva, nos termos do artigo 6º:

“1 - A taxa da contribuição extraordinária sobre o sector energético aplicável à base de incidência definida no artigo 3º é de 0,85 %, exceto nos casos previstos nos números seguintes. (…)”.

Prescrevendo, por seu turno, o artigo 7.º:

“1 - A contribuição extraordinária sobre o sector energético é liquidada pelo sujeito passivo, através de declaração de modelo oficial a aprovar por portaria do membro do Governo responsável pela área das finanças, que deve ser enviada por transmissão eletrónica de dados até 31 de outubro de 2015 (…)”.

Preceituando ainda o artigo 11.º o seguinte:

“1 – A receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o sector energético é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Sector Energético (FSSSE) (…) com o objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do sector energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida tarifária e ou pressão tarifárias e do financiamento de politicas do sector energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional (…).”

Estabelecendo, in fine, o artigo 12.º do regime que:

“1 - A contribuição extraordinária sobre o sector energético não é considerada um gasto dedutível para efeitos de aplicação do imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas.”.

Visto o regime jurídico que releva para os presentes autos, vejamos, então, se assiste razão à Recorrente quando propugna que a CESE padece, desde logo, de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade.

Importa, desde já, sublinhar que no concreto particular da Jurisprudência do Tribunal Constitucional, com especial enfoque quanto à CESE do ano de 2018, a posição do Tribunal Constitucional não foi unívoca, resultando, designadamente, dos Acórdãos n.ºs 101/2023, de 16.03.2023, 296/2023, de 25.05.2023, 338/2023, de 06.06.2023, 369/2023, de 07.06.2023, 372/2023, de 07.06.2023, 720/2023, de 25.10.2023, e 278/2024, de 10.04.2024.

E se é certo que no âmbito do citado processo nº 101/2023, de 16 de março de 2023 se consagrou o juízo de inconstitucionalidade, é, igualmente, certo que ulteriormente à sua prolação foram proferidos outros Acórdãos que concluem no sentido do juízo de não inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 2.º, 3.º, 4.º, 11.º e 12.º, do Regime da CESE, criada pelo artigo 228.º, da Lei 83-C/2013, de 31/12, em vigor durante o exercício fiscal de 2018 ex vi artigo 280.º da Lei nº 114/2017, de 29 de dezembro, mormente, o proferido no âmbito do processo nº 296/2023, de 25 de maio de 2023, e objeto de convocação pela Recorrente e legitimador do presente recurso.

Mas a verdade é que, tal como evidencia a Recorrente essa linha de entendimento não foi seguida para a CESE do ano em contenda, ou seja, do ano de 2020, tendo inclusive e conforme já demos nota anteriormente sido objeto de inflexão por parte da Jurisprudência do STA, e bem assim deste TCAS, que inclusive já teve, nessa sequência, de reformar diversos acórdãos em função do juízo de inconstitucionalidade.

Denota-se, assim, que no âmbito da jurisprudência existente, uma demarcação nítida entre o que foi entendido até 2018 e o posicionamento que tem vindo a prevalecer a partir de 2019, e para a CESE que, ora, releva como visto respeitante ao ano de 2020.

Com efeito, a Jurisprudência mais recente e que este Tribunal acolhe e adere sem reservas, sentencia que o artigo 2.º, alínea d) do regime jurídico da CESE, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, que sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, viola o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, devendo ser desaplicado.

Tal como sufragado pela Recorrente, a partir de 2019, houve uma inflexão do posicionamento, até então maioritário, ou seja, a partir desse exercício e em diante, houve uma inversão da jurisprudência, passando a decidir-se no sentido da inconstitucionalidade da CESE, a qual tem na sua génese, justamente, o Acórdão n.º 101/2023 do Tribunal Constitucional.

Neste âmbito, e no sentido da inconstitucionalidade da CESE, vide, designadamente, os Acórdãos do Tribunal Constitucional prolatados no âmbito dos processos n.ºs 196/2024, 197/2024, 336/2024, 337/2024, 338/2024 e 427/2024. Existindo, atualmente, o que se pode apelidar de uma reiteração desse juízo de inconstitucionalidade da CESE em situações em que está, justamente, em causa a tributação de empresas dos setores de distribuição de gás natural, -como in casu, conforme resulta plasmado no probatório não impugnado-, e conforme se pode inferir, designadamente, nos Acórdãos prolatados no âmbito dos processos nºs 443/2024, 475/2024, 476/2024, 712/2024, 445/2024, 517/2024, 553/2024 e o 930/2024.

Ora, é precisamente tendo como parâmetro fundamentador os citados Acórdãos do Tribunal Constitucional, e aqui adotando a doutrina vertida no processo 197/2024 supra evidenciado, porquanto estabelece uma resenha do dirimido neste contexto e tendo ainda em vista uma interpretação e aplicação uniformes do direito, em conformidade com o preceituado no artigo 8.º, nº 3 do Código Civil, eximimo-nos de expender novas considerações, reproduzindo aqui o raciocínio jurídico vertido nesse citado Aresto e que convoca demais jurisprudência constitucional proferida no âmbito da visada questão:
“Constitui, pois, objeto do recurso a norma contida no artigo 2.º, alíneas d) e e), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2019 pelo artigo 313.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2019, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (alínea d)) e, bem assim, (alínea e)) as que sejam titulares de licenças de distribuição local de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual).
Sobre o mérito do recurso, pronunciou-se o Acórdão n.º 101/2023 nos termos seguintes:
“[…]
5. Recorde-se que a CESE foi criada no contexto da execução do Programa de Assistência Económica e Financeira («PAEF»), acordado pelo Estado português com a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional. O Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, celebrado em maio de 2011, estabelecia como objetivo para o mercado de energia, a par da conclusão dos processos de liberalização dos mercados de eletricidade e de gás natural e da avaliação dos instrumentos de política energética e de tributação, a adoção de medidas tendentes a conter o défice tarifário do setor elétrico (v. o n.º 5 do Memorando, disponível, em versão portuguesa, em https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexosmou_pt.pdf).
Era então patente a tendência de crescimento da dívida tarifária do setor elétrico, em grande medida resultante das opções políticas adotadas num contexto de liberalização do mercado da eletricidade, que se concretizaram na imposição de limites legais à fixação de preços ajustados aos custos reais de funcionamento do sistema e na consequente previsão de «diferimentos tarifários» (tais como os estabelecidos pelo Decreto-Lei n.º 187/95, de 27 de julho, e já numa fase mais adiantada da liberalização dos mercados, pelo Decretos-Lei n.º 237-B/2006, de 18 de dezembro, o Decreto-Lei n.º 165/2008, de 21 de agosto, e o Decreto-Lei n.º 78/2011, de 20 de junho, que aditou o artigo 73.º-A ao Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro).
Para fazer face a esse problema, previa-se no Memorando que os sobrecustos associados à produção de eletricidade em regime ordinário fossem reduzidos − através da renegociação ou de revisão em baixa dos custos de manutenção do equilíbrio contratual (CMEC) dos restantes contratos de aquisição de energia a longo prazo (CAE) −, bem como que fossem revistas em baixa as tarifas bonificadas de venda da energia produzida em regime especial, ou seja, através da utilização de recursos endógenos renováveis ou de tecnologias de produção combinada de calor e eletricidade (v. o artigo 18.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 29/2006, de 15 de fevereiro). Em dezembro de 2011, o Governo viria a reconhecer os riscos associados ao previsível aumento da dívida tarifária associada às «elevadas margens de retorno» de que eram beneficiários os produtores de eletricidade em regime ordinário e especial, comprometendo-se a adotar as medidas necessárias para eliminar este défice até 2020, assim assegurando a sustentabilidade do Sistema Elétrico Nacional (v. o Anexo à Carta de Intenções apresentada ao Fundo Monetário Internacional, n.º 36, pp. 13-14, disponível em língua inglesa em https://www.imf.org/-/media/files/publications/loi/imported-cpid-pdfs/external/np/loi/2011/prt/120911.ashx).
Com esse intuito, promoveram-se várias iniciativas legislativas e negociais – tais como as que levaram à aprovação de novas regras de remuneração aplicáveis às instalações de cogeração (Portaria n.º 140/2012, de 14 de maio); à alteração do regime de atribuição de incentivos à garantia de potência (Portaria n.º 251/2012, de 20 de agosto); à reconfiguração do regime de remuneração da produção em regime especial a partir de fontes renováveis (com as alterações introduzidas pelos Decretos-Leis n.os 215-A/2012 e 215-B/2012, ambos de 8 de outubro); à alteração do regime de remuneração dos centros electroprodutores eólicos (Decreto-Lei n.º 35/2013, de 28 de fevereiro); ou ao uso das receitas geradas pelos leilões de licenças de emissão de gases com efeito de estufa na redução dos sobrecustos associados à produção de energia em regime especial a partir de fontes de energia renovável (v. o artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 38/2013, de 15 de março). Não obstante estas medidas, os esforços de contenção do défice tarifário e promoção da sustentabilidade do sistema elétrico, apreciados no âmbito da oitava e nona revisões do Memorando de Entendimento, foram considerados «insuficientes», anunciando-se a criação de um tributo especial sobre o setor energético cujas receitas se destinariam, na parte que excedesse os cem milhões de euros, à redução da dívida tarifária deste subsetor (v. “The Economic Adjustment Programme for Portugal – Eighth and Ninth Review”, Occasional Papers, n.º 163, Direção-Geral dos Assuntos Económicos e Financeiros da Comissão Europeia, novembro de 2013, p. 33, disponível em https://ec.europa.eu/economy_finance/publications/occasional_paper/2013/pdf/ocp164_en.pdf).
Embora estreita e geneticamente ligada ao problema do défice tarifário do setor elétrico, a CESE foi criada pela Lei do Orçamento do Estado para 2014 (Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro) com o mais amplo desígnio de «financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético, através da constituição de um fundo que visa contribuir para a redução da dívida tarifária e para o financiamento de políticas sociais e ambientais do setor energético» (v. o artigo 1.º, n.º 2, do regime jurídico da CESE, na redação original), abrangendo operadores de todo o setor energético. Em síntese, o tributo então criado caracterizava-se por: i) ser concebido como um tributo de natureza «extraordinária» ou «transitória» (não só por assim ser designado, mas também por o seu regime participar da anualidade do Orçamento do Estado); ii) incidir sobre os operadores económicos do setor energético que desenvolvam determinadas atividades nos subsetores da eletricidade (produção, transporte, distribuição e comercialização grossista), do gás natural (transporte, distribuição, armazenamento ou comercialização grossista) e do petróleo e produtos de petróleo (refinação, tratamento, armazenamento, transporte, distribuição ou comercialização grossista – v. o o artigo 2.º); iii) incidir sobre o valor dos ativos fixos tangíveis, intangíveis (excetuados os elementos da propriedade industrial) e financeiros afetos a concessões ou às atividades licenciadas exercidas, tal como reconhecido na contabilidade dos sujeitos passivos (ou pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, na hipótese prevista no n.º 2 do artigo 3.º); iv) estabelecer um elenco complexo de «isenções», que abrangia boa parte dos operadores visados por outras medidas de redução dos sobrecustos, mas também os sujeitos passivos cujo valor total de balanço, no termo do ano civil anterior, fosse inferior a mil e quinhentos euros (v. o artigo 4.º); v) definir uma taxa-regra de 0,85% e taxas especiais para as atividades de produção de eletricidade por intermédio de centrais termoelétricas de ciclo combinado a gás natural e de refinação de petróleo bruto, variáveis em função, respetivamente, da potência instalada ou do índice de operacionalidade das refinarias (v. o artigo 6.º); vi) vedar a repercussão tarifária, direta ou indireta, das importâncias suportadas pelos sujeitos passivos, bem como a sua dedução ao lucro tributável para efeitos de liquidação do IRC (artigos 5.º e 12.º, respetivamente); e vii) constituir receita consignada ao financiamento do Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (adiante designado «FSSSE»), a criar «com o objetivo de estabelecer mecanismos que contribuam para a sustentabilidade sistémica do setor energético, designadamente através da contribuição para a redução da dívida tarifária e do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, de medidas relacionadas com a eficiência energética, de medidas de apoio às empresas e da minimização dos encargos financeiros para o Sistema Elétrico Nacional decorrentes de custos de interesse económico geral (CIEGs), designadamente resultantes dos sobrecustos com a convergência tarifária com as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira» (v. o n.º 1 do artigo 11.º).
Este Fundo foi posteriormente criado pelo Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril, em que a receita angariada através da CESE figurava como a sua principal fonte de financiamento (v. o artigo 3.º, n.º 1). Em linha com as previsões dos valores da CESE a arrecadar no ano de 2014, previa-se neste diploma que dois terços da receita do Fundo (com o limite máximo de cem milhões de euros) seriam prioritariamente destinados ao financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, e o remanescente seria aplicado na redução do défice tarifário do Setor Elétrico Nacional (v. o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 55/2014).
6. A criação deste tributo desencadeou, como é sabido, a mais intensa litigância.
O Tribunal Constitucional tomou posição sobre a inconstitucionalidade do regime jurídico da CESE, pela primeira vez, no Acórdão n.º 7/2019, que versou sobre as normas aplicadas no seu primeiro ano de vigência. Nesse aresto, concluiu-se que a CESE tinha a natureza de uma contribuição financeira, sujeita ao princípio da equivalência, refração no universo dos tributos bilaterais dos princípios constitucionais da igualdade tributária e da proporcionalidade, não sem antes se pronunciar sobre os aspetos mais controversos do respetivo regime jurídico – e em especial, sobre o nexo entre a ampla base de incidência subjetiva do tributo e a finalidade de redução da dívida tarifária do setor elétrico.
Quanto à incidência subjetiva, estando em causa um recurso interposto por um sujeito passivo da CESE que não integrava o subsetor da eletricidade, afirmou o Tribunal:
«10. A recorrente veio invocar que, em virtude da sua atividade, não exercia «qualquer atividade no setor electroprodutor, nem sequer em qualquer outro subsetor da eletricidade (a atividade da Recorrente é a de armazenamento subterrâneo de gás natural), pelo que em nada contribuiria para o problema da dívida tarifária do SEN». Assim sendo, não usufruiria da contrapartida traduzida na redução do défice ou dívida tarifária, pelo que não estaria assegurada a bilateralidade ou sinalagmaticidade do tributo, devendo este ser considerado um imposto.
Sucede que aquela redução é apenas um dos objetivos da CESE, prescrevendo a lei que esta contribuição visa, genericamente, o desenvolvimento de medidas que contribuam para o equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético.
Ainda que não referida a uma contraprestação direta, específica e efetiva, resultante de uma relação concreta com um bem ou serviço, o que afasta a sua qualificação como taxa, a sujeição à CESE de determinados operadores económicos tem como um dos seus objetivos «financiar mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor energético» (artigo 1º, n.º 2, do regime da CESE). É, a par do objetivo da redução da dívida tarifária – que é uma das suas causas –, o objetivo da promoção de mecanismos para financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, e de medidas relacionadas com a eficiência energética, bem como de medidas de apoio às empresas, que gerará, igualmente, contrapartidas, ainda que difusas, dirigidas aos sujeitos passivos da CESE. A existência destas presumidas contraprestações que vão além do mero objetivo da redução tarifária, e que a criação do FSSSE garante, assegura, também, o caráter estrutural de bilateralidade ou sinalagmaticidade da relação subjacente ao tributo em causa, permitindo excluir a sua caracterização como imposto, já que nelas é possível identificar a satisfação das utilidades do sujeito passivo do tributo como contrapartida do respetivo pagamento. É a participação de um especial setor da atividade económica nos benefícios/custos presumidos da adoção destas políticas de financiamento que permite isolá-los dos demais contribuintes, sujeitando-os à contribuição criada pelas normas em apreciação, sem que essa diferenciação possa considerar-se violadora da Constituição, como veremos. […]»
Retira-se desta jurisprudência que o Tribunal considerou determinante, para efeitos de caracterização do tributo, a circunstância de o produto da CESE se destinar ao financiamento de «ações de regulação», de «políticas do setor energético de cariz social e ambiental» e de «medidas relacionadas com a eficiência energética [e de] apoio às empresas» de que seriam beneficiários todos os operadores do setor da energia, e não apenas os sujeitos passivos integrados no subsetor da energia elétrica. A existência destas contrapartidas era per se suficiente para comprovar a bilateralidade genérica do tributo, não prejudicada pela circunstância de um terço da sua receita ser destinada, nos termos da lei, à redução do défice tarifário do setor elétrico. Acompanhando a decisão então recorrida, afirmou o Tribunal:
«11. Evidentemente, ao contrário do que pretende a requerente, o facto de a CESE ter, igualmente, como objetivo a redução da dívida tarifária do SEN, encarado, também ele, como um mecanismo que promove a sustentabilidade sistémica do setor energético, tal não faz obnubilar aquela outra contrapartida. Deixando de lado o problema de saber se a CESE assume natureza extraordinária, ponto relativamente ao qual o Tribunal Constitucional, atendendo ao objeto do pedido, não tem de se pronunciar – in casu está em causa apenas a apreciação da aplicabilidade da CESE pela primeira vez e no ano para o qual a mesma foi originariamente criada (ano de 2014) – é de acompanhar, sem reservas, a apreciação deste aspeto realizada na decisão recorrida:
“Em relação à afetação de um terço da receita da contribuição à redução da dívida tarifária do Setor Elétrico Nacional, cumpre sublinhar que, efetivamente, nesta parte, existe uma redução intensa (senão mesmo uma exclusão) do nexo causal que é pressuposto desta afetação do tributo, uma vez que é especialmente difícil sustentar que a exigência da CESE aos operadores económicos do setor do gás natural tem sentido no contexto da amortização de um stock de dívida que foi gerado pela adoção de medidas de regulação social no subsetor da energia elétrica (o stock da dívida tarifária do setor elétrico é consequência da cláusula-travão na admissibilidade da repercussão integral dos custos do Sistema Elétrico Nacional nas tarifas a suportar pelos consumidores finais), mesmo sabendo que as empresas que hoje são credoras dessa dívida tarifária (pelo menos uma parte significativa das que recebem custos de manutenção do equilíbrio contratual ou garantia de potência e que operam centrais termelétricas) são consumidoras de gás natural que é fornecido pelas operadoras deste segundo setor e através das respetivas infraestruturas.
Todavia, essa atenuação (ou mesmo interrupção) do nexo causal respeitante a um terço do valor da contribuição não se afigura suficiente para determinar a se uma situação de desproporção significativa entre a exigência do tributo e a finalidade a que o mesmo se destina, pois não só dois terços do valor do mesmo mantêm, como veremos, aquele nexo causal, como ainda a CESE assume um caráter extraordinário. […]”
14. […] Garantido que esteja que a contribuição lançada encontra justificação no benefício recebido/custo provocado relativo a uma prestação diferenciada de que efetiva ou presumivelmente beneficiará/ou terá provocado um grupo seu sujeito passivo, estará assegurado o sinalagma que justifica a diferenciação tributária, bem como o respeito pelo princípio da equivalência.
No caso, como atrás se demonstrou, a sujeição à CESE do grupo constituído pelos operadores económicos em que a recorrente se inclui não é desprovida de contrapartidas. Nem quando globalmente considerado o grupo de operadores no setor da energia, nem quando especificamente considerados aqueles que operam no setor do gás natural. Aliás, na definição da consignação de receitas, é para o setor da energia globalmente considerado que são destinadas a maior parte das verbas, visando o financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, e de apoio às empresas, já que apenas um terço é reservado à redução da dívida tarifária do SEN.
É, em suma, o caráter sinalagmático, atrás enunciado, que traduz a verificação da equivalência necessária, pelo que não pode deixar de se concluir não existir desrespeito pelo princípio da equivalência. Ao mesmo tempo, a assinalada bilateralidade, encontrada na contraprestação correspondente à sujeição à CESE, retira-lhe o caráter de imposto que incidiria sobre o património das empresas do setor energético que a ela estão obrigadas. Como descrevemos, a estrutura bilateral do tributo justifica que se distinga estes sujeitos passivos dos demais contribuintes, respeitando-se, por isso mesmo, o princípio da equivalência, afastando-se uma injustificada desigualdade.»
Já no que respeita à base de incidência objetiva, o Tribunal considerou que, ao eleger a titularidade de certos ativos, o legislador não pretendia atingir o património dos sujeitos passivos ou o rendimento normal extraído pelos operadores económicos abrangidos (enquanto manifestação de uma especial capacidade contributiva), antes aferir da sua presumível aptidão para participar, em maior ou menor medida, dos custos e benefícios que o tributo visava compensar (segundo um critério de equivalência).
«15. […] Também no que respeita à incidência objetiva da CESE se considera estar garantido um nexo causal suficiente entre os ativos (no caso, ativos regulados) sobre os quais recai a CESE (artigo 3.º, n.º 1, do Regime jurídico da CESE) e as políticas públicas de cariz social e ambiental do setor energético.
A titularidade dos ativos tributáveis por parte das empresas que as normas legais sujeitam à CESE, cuja justificação radica na sustentabilidade sistémica do setor energético, torna-as presumíveis beneficiárias das políticas públicas de energia e da sua regulação. Os ativos não surgem como manifestação meramente hipotética da capacidade contributiva, que fosse exigida como receita para despesas gerais do Estado, mas como indicador que permite presumir a potencial utilidade das prestações públicas que aos operadores aproveitam, e os custos presumidos que provocam, já que os ativos são elementos essenciais ao desenvolvimento da atividade, sendo suficientemente adequados para diferenciarem aquele impacto. Também por esta razão, não pode ligar-se a sujeição do ativo ao tributo a qualquer demonstração de que estaríamos perante um imposto sobre o património das empresas. Na lógica do legislador, a titularidade de ativos em certa área da economia é um dado que permite aferir da suscetibilidade da empresa para ser causa de ou beneficiar de políticas de sustentabilidade, o que a distingue dos demais operadores de outras áreas e dos cidadãos. Não é, assim, uma forma de arrecadar receita, indistintamente».
7. Esta posição viria a ser reiterada em numerosos recursos interpostos de decisões que aplicaram as normas do regime jurídico da CESE mantidas em vigor nos anos subsequentes (pelas Leis n.ºs 82-B/2014, de 31 de dezembro, 159-C/2015, de 30 de dezembro, 7-A/2016, de 30 de março e 42/2016, de 28 de dezembro). Na vasta maioria desses casos, o Tribunal foi confrontado com a alegação de que a posição assumida no Acórdão n.º 7/2019, atenta a «natureza extraordinária» do tributo, só poderia ter-se por válida para o primeiro ano do seu regime jurídico, que foi objeto de sucessivas renovações.
O Tribunal manteve, no entanto, a posição inicialmente adotada.
Com efeito, o Tribunal, sem deixar de conferir relevância à «natureza extraordinária» do tributo, considerou que essa «não é determinada por um critério temporal – o ano de 2014 −, mas conjuntural − a verificação periódica de um certo estado de coisas» (v. o Acórdão n.º 513/2021), pelo que a mera prorrogação da vigência do regime jurídico da CESE não infirmava, por si só, o seu caráter transitório. Entendeu-se ainda que os fatores conjunturais que justificaram a aprovação do regime subsistiram após o ano da sua entrada em vigor e, seguramente, até ao ano de 2017, em que cessou o procedimento relativo a défice excessivo iniciado pela Comissão Europeia em 2010 (v., a Decisão (UE) 2017/1225 do Conselho, de 16 de junho de 2017; neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 513/2021, 532/2021, 736/2021, 204/2022, 214/2022, 580/2022, 581/2022, 658/2022 e 782/2022).
Em algumas decisões acrescentou-se que a vocação conjuntural da CESE não poderia ser tomada como uma condição necessária do juízo de não inconstitucionalidade firmado no Acórdão n.º 7/2019. De acordo com esta linha de raciocínio, mesmo que a prorrogação sucessiva deste regime jurídico viesse afinal revelar o seu caráter permanente, a natureza sinalagmática do tributo não ficaria ipso facto excluída. Como se lê no Acórdão n.º 436/2021:
«9. […] No entanto, mesmo que a recorrente tivesse razão – e que a evolução do regime jurídico e da prática de aplicação da CESE venha a comprovar, sem margem para dúvidas, e ao contrário do que pode afirmar-se com firmeza neste momento, a sua consolidação no ordenamento jurídico, não podendo, a partir de então, negar-se, o seu caráter permanente –, tal não implicaria, sem mais, a sua desconformidade constitucional. Na realidade, isso reforçaria o paralelismo com as demais contribuições financeiras exigidas a privados para financiamento da regulação de determinados setores de interesse geral – nomeadamente, e como se viu, o setor energético, entendido em termos latos, cuja sustentabilidade sistémica (e não meramente financeira, ou tarifária) se configura como uma forma de cumprimento do dever estadual de proteção do direito fundamental ao ambiente e à qualidade de vida, consagrado no artigo 66.º da Constituição. Nestes termos, a adoção de políticas de cariz social e ambiental direcionadas para o setor energético, bem como de medidas relacionadas com a eficiência energética, constitui, nesta sede, uma forma – de entre todas as que podem ser desenhadas pelo legislador no âmbito da sua larga margem de atuação nesta matéria – de dar cumprimento à obrigação de “promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações” e ainda de “assegurar que a política fiscal compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida”, previstas, respetivamente, nas alíneas d) e f) do n.º 2 do artigo 66.º da CRP. Para a avaliação da constitucionalidade da medida nesse cenário, sempre seria, pois, indispensável uma análise detalhada dos concretos elementos atinentes ao regime de tributação, o que, naturalmente, não tem lugar na resolução do caso dos autos, que respeita apenas aos anos iniciais de vigência da CESE, em particular o de 2016.
Ou seja, ao contrário da argumentação da recorrente, não se afigura decisivo o elemento da excecionalidade para um julgamento de não inconstitucionalidade do regime jurídico da CESE. Tal caraterística reforça a argumentação plasmada no Acórdão n.º 7/2019, mas está longe de constituir o seu único pilar de sustentação. Para o juízo de não inconstitucionalidade então proferido – e que agora se renova – contribui, sobretudo, a caraterização dogmática do tributo como contribuição financeira, e o objetivo de financiamento de mecanismos que promovam a sustentabilidade sistémica do setor da energia, já que este permite afirmar a sinalagmaticidade do tributo, ainda que não referida a uma contraprestação específica.»
Esta orientação − reiterada nos Acórdãos n.ºs 437/2021, 438/2021, 756/2021, 231/2022, 232/2022, 305/2022, 411/2022 e 597/2022, entre outros − foi mais recentemente desenvolvida nos Acórdãos n.ºs 305 e 411, ambos de 2022. Aditou-se, no primeiro aresto, o seguinte:
«6. […] O ponto de essência reside na circunstância de a CESE estar dotada dos carateres específicos que permitem qualificá-la como contribuição financeira, distanciando-a de outras figuras jurídico-tributárias próximas (…)[;] é a unidade de interesses de grupo, a responsabilidade de grupo e o benefício de grupo, com relação à CESE e aos operadores no setor energético abrangidos pelo âmbito de incidência subjetiva (artigo 2.º do RJCESE), que suportam a conceptualização do tributo em causa como contribuição financeira inserida na lógica comutativa de aquisição de vantagem difusa pela ação pública, assente em responsabilidade de grupo pela situação carecida da ação pública que a contribuição financia. […]
De facto, as receitas geradas pela CESE estão legalmente alocadas ao financiamento do FSSSE (cfr. artigo 1.º, n.º 2 do RJCESE) e porque a atividade deste fundo está dirigida à “promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional” (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 55/2014 de 09.04 e artigo 1.º, n.ºs 1 e 2 do RJCESE), temos por devidamente caracterizado o espetro de vantagens para os operadores económicos do setor enquanto benefício de grupo decorrente da ação pública financiada (artigo 81.º, alínea m) da Constituição da República Portuguesa). Por sua parte, também a necessidade de intervenção estadual tendo em vista garantir equilíbrio ambiental e racionalização na exploração de recursos (artigo 66.º, n.º 2, alíneas d) e f) da Constituição da República Portuguesa), ambos integrados no programa de atividade do FSSSE (cfr. artigo 2.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 55/2014 de 09.04), constitui essencialmente uma forma de responder à pressão que a atividade económica dos operadores sujeitos à CESE coloca no respetivo domínio setorial e que lhes aproveita, reforçando a subsunção do tributo à figura da contribuição financeira.
Desta forma, de acordo com a jurisprudência constitucional, a CESE terá sempre de ser entendida como contribuição em função do seu regime jurídico próprio, aferindo-se a sua legitimidade constitucional nesse pressuposto e resultando, por esse motivo, o seu caráter transitório como meramente conjuntural, ao contrário do que pretende a reclamante […].»
Também por remissão para esta jurisprudência, foi proferida a Decisão Sumária n.º 263/2022, em que não foram julgadas inconstitucionais as normas do regime jurídico da CESE vigentes em 2018. Porém, decorridos vários anos desde a sua criação, importa averiguar se os pressupostos em que repousaram os reiterados juízos de não inconstitucionalidade proferidos pelo Tribunal Constitucional se mantêm largamente intocados, para o que importa atender à evolução do regime jurídico deste tributo no período que mediou até 2018, o ano a que se reporta o ato de liquidação impugnado nos autos.
8. Neste período, o regime jurídico da CESE foi objeto de algumas alterações (v. o artigo 238.º da Lei n.os 82-B/2014, de 31 de dezembro, a Lei n.º 33/2015, de 27 de abril e o artigo 264.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro), entre as quais se destaca o alargamento da base de incidência subjetiva aos comercializadores titulares dos contratos de aprovisionamento de longo prazo com obrigação alternativa de aquisição ou compensação (em regime comummente designado de «take or pay»), celebrados em data anterior à entrada em vigor da Diretiva n.º 2003/55/CE, do Parlamento e do Conselho, de 26 de junho (a que se refere o artigo 39.º-A do Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na redação vigente à data, para o qual remete a alínea m) aditada ao artigo 2.º do regime jurídico da CESE pela Lei n.º 33/2015).
Nestes casos, o tributo passou a incidir, primeiro, sobre o valor dos ativos a que se refere o artigo 3.º, n.º 1, do regime jurídico da CESE e sobre o valor económico equivalente dos contratos de aprovisionamento de longo prazo, a determinar nos termos previstos no n.º 5 do mesmo artigo, a que é aplicável uma taxa de 1,45% (v. o n.º 6 do artigo 6.º do regime, na redação da Lei n.º 33/2015). Com as alterações introduzidas em 2016, passou a incidir, adicionalmente, sobre «o excedente apurado para o valor económico equivalente dos contratos» de aprovisionamento, «tendo em conta a informação sobre o real valor desses contratos», a determinar nos termos dos n.ºs 6 a 8 do artigo 3.º, sendo aplicável a este valor a taxa de 1,77% (v. o n.º 3 do artigo 3.º e o n.º 7 do artigo 6.º, com a redação dada pela Lei n.º 42/2016, bem como a Portaria n.º 92-A/2017, de 2 de março).
Esta alteração encontra justificação, segundo o Preâmbulo da Portaria n.º 157-B/2015, de 28 de maio, na verificação de «desequilíbrios sistémicos do Sistema Nacional de Gás Natural» (adiante designado «SNGN»), pelo que a parcela da receita da CESE obtida por esta via ficou «totalmente afeta à minimização dos encargos do SNGN, devendo o FSSSE prever, para o efeito, mecanismos para abater o montante das respetivas cobranças que daí resultem na tarifa de uso global do sistema de gás natural, excluindo as tarifas aplicáveis aos centros eletroprodutores, e definir a respetiva periodicidade» (v. o n.º 4 do artigo 11.º do regime jurídico da CESE, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 42/2016, bem como o artigo 2.º-A da Portaria n.º 1059/2014, de 18 de dezembro, aditado pela Portaria n.º 133-A/2017, de 10 de abril, e o Despacho n.º 5238-A/2017, de 12 de junho).
Por sua vez, e durante este período, o Decreto-Lei n.º 55/2014, que criou o FSSSE, manteve-se inalterado. As tarefas integradas no amplo espectro das «políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética», que o Fundo em parte se destinava a financiar, não foram objeto de concretização ou desenvolvimento neste diploma. Porém, previa-se que continuassem a absorver a maior parcela da receita obtida com a CESE. Até à aprovação do Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, os artigos 2.º e 4.º deste diploma estabeleciam o seguinte:
«Artigo 2.º
Objetivos
O FSSSE visa contribuir para a promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional, designadamente através:
a) Do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética;
b) Da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN), mediante a receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético prevista no artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro.
[…]
Artigo 4.º
Despesas
1 – Constituem despesas do FSSSE as que resultem de encargos decorrentes da aplicação do presente decreto-lei, designadamente:
a) Encargos necessários ou decorrentes da realização dos seus objetivos, conforme definidos no artigo 2.º;
b) Encargos de liquidação e cobrança da contribuição extraordinária sobre o setor energético incorridos pela AT, correspondentes a uma percentagem de 3 % da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior.
2 – As verbas do FSSSE devem ser alocadas de acordo com a seguinte ordem de prioridade:
a) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea a) do artigo 2.º no montante correspondente a dois terços da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, até ao limite máximo de EUR 100 000 000,00;
b) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea b) do artigo 2.º no montante remanescente.
3 – O montante referido na alínea a) do número anterior inclui o montante referido na alínea b) do n.º 1.»
Esta ordem de prioridades foi, todavia, invertida pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018. Entendendo-se que os critérios de distribuição da receita obtida com a cobrança da CESE «se têm vindo a revelar demasiadamente rígidos, impedindo que, em cada ano, se possam ajustar os valores aos objetivos do FSSSE que se mostrem mais prementes» (v. o Preâmbulo do diploma), foram alterados os n.os 2 e 4 do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 55/2014, que passou a dispor o seguinte:
«Artigo 4.º
Despesas
1 – Constituem despesas do FSSSE as que resultem de encargos decorrentes da aplicação do presente decreto-lei, designadamente:
a) Encargos necessários ou decorrentes da realização dos seus objetivos, conforme definidos no artigo 2.º;
b) Encargos de liquidação e cobrança da contribuição extraordinária sobre o setor energético incorridos pela AT, correspondentes a uma percentagem de 3 % da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior.
2 – As verbas do FSSSE são afetas aos seguintes fins:
a) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea a) do artigo 2.º no montante até um terço da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior;
b) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea b) do artigo 2.º no montante remanescente.
3 – O montante referido na alínea a) do número anterior inclui o montante referido na alínea b) do n.º 1.
4 – A percentagem da alocação de verbas prevista na alínea a) do n.º 2 é definida por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da energia.»
Deste modo, ficou o Governo habilitado a decidir, com a mais larga discricionariedade, a percentagem de receita da CESE afeta ao financiamento das políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, no intervalo de 0% a 33%, visto que a lei não define nenhum limite mínimo nem fixa critérios de decisão. Esta alteração terá permitido que, já no ano de 2018, segundo o Parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado, se tenha observado um «grande aumento (131 M€) registado nas transferências do FSSSE destinadas, na sua totalidade, à REN - Rede Elétrica Nacional, S.A., no âmbito da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional, proveniente da receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético.» (v. o extrato do Parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado de 2018, publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 17, Parte D, de 24 de janeiro de 2020, p. 353).
Cabe ainda sublinhar que esta alteração do destino típico das receitas da CESE ocorreu num contexto significativamente diverso daquele em que o tributo foi criado. Com efeito, superados os condicionamentos impostos pela execução do PAEF e pelo procedimento de défice excessivo, findo em 2017, observava-se já em 2018 uma «tendência de diminuição da dívida tarifária do SEN, iniciada em 2015» (v. o Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 109-A/2018). Depois de ter atingido o valor mais alto em 2015 (cinco mil e oitenta milhões de euros), estimava-se que em 2018 este diminuísse para cerca de três mil e setecentos milhões de euros (v. o Comunicado da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos sobre a Proposta de Tarifas e Preços para a Energia Elétrica em 2018, disponível em
https://www.erse.pt/media/1r0c1sce/comunicado_propostas-tarifas-ee_2018_vfinal.pdf, p. 4). Era ainda expectável que essa tendência viesse a acentuar-se em resultado das medidas de redução de custos adotadas no âmbito da execução do PAEF a que se fez menção supra, bem como da consignação de outras receitas à redução do défice tarifário do setor energético (v.g., da parcela de receita dos leilões de licenças, a que se refere o artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 38/2013, transferida pelo Fundo Ambiental, criado pelo Decreto-Lei n.º 42-A/2016, de 12 de agosto, assim como das receitas provenientes da cobrança de impostos especiais sobre o consumo, a que se refere o artigo 251.º da Lei do Orçamento do Estado para 2018).
Tudo isto implica, como é bom de ver, uma alteração profunda dos pressupostos de facto e de direito em que repousaram as decisões proferidas sobre a CESE no período entre 2014 e 2017: quanto aos primeiros, consubstanciados nos fatores conjunturais atendidos no Acórdão n.º 7/2019, subsistindo embora em 2018 um considerável volume de dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional, verificava-se uma tendência firme de redução; quanto aos segundos, a ênfase dada nesse aresto, bem como na jurisprudência posterior deste Tribunal, ao financiamento de medidas de regulação, de apoio às empresas e de cariz social e ambiental, relacionadas com a eficiência energética, deixou de corresponder ao destino legal das receitas da CESE, em virtude das alterações introduzidas no regime jurídico do FSSSE.
9. Resta apreciar se a norma que integra o objeto do presente recurso, na medida em que determina a incidência sobre as empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, descaracteriza o tributo ao ponto de o excluir, no que a estes sujeitos diz respeito, do universo das contribuições financeiras.
Segundo jurisprudência constante deste Tribunal, um tributo tem a natureza de contribuição financeira quando, cumulativamente, tiver como pressuposto uma relação bilateral entre uma entidade pública e um grupo homogéneo de sujeitos − que se presumem causadores ou beneficiários de determinadas prestações administrativas −, e quando tiver por finalidade angariar receitas destinadas a compensar os inerentes custos ou benefícios presumivelmente gerados ou aproveitados pelos elementos desse grupo (v. os Acórdãos n.ºs 539/2015, 7/2019, 344/2019 e 268/2021, bem como a jurisprudência aí citada). Tal como se sintetizou no Acórdão n.º 268/2021:
«14. […] O critério de distinção das contribuições financeiras em relação às demais categorias tributárias assenta, portanto, no tipo de relação jurídica que se estabelece entre o sujeito passivo e os benefícios ou utilidades que para este decorrem do tributo (critério estrutural, pressuposto), com especial destaque para a incidência e a natureza do aproveitamento esperado (geral, difuso, concreto, efetivo ou presumido). A contribuição financeira emerge, deste modo, como um tributo coletivo, fixado em função do grupo, pela utilização ou utilidade singular meramente presumida, numa relação de bilateralidade genérica. O mesmo é dizer que a qualidade de sujeito passivo de uma contribuição financeira não pressupõe a compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito, sendo a pertença ao grupo identificado pelo legislador condição necessária e suficiente para tal.»
Uma adequada conformação normativa, em especial, das regras que definem a incidência subjetiva, objetiva e as finalidades de um tributo deste tipo deve, pois, tornar apreensível o necessário nexo entre a ação pública e os seus destinatários, que permita afirmar a existência, não apenas de uma homogeneidade de interesses, mas sobretudo de uma responsabilidade de grupo, que justifica que sobre os sujeitos que o integram – e não sobre toda a comunidade – recaia a respetiva ablação patrimonial.
Ora, na sua configuração inicial, a CESE destinava-se, não apenas a acudir à premente resolução do problema do défice tarifário do SEN, mas principalmente a financiar políticas do setor energético de cariz social e ambiental, ações de regulação e medidas relacionadas com a eficiência energética. Trata-se, reconhecidamente, de objetivos muito amplos, assimiláveis às incumbências fundamentais e prioritárias do Estado e de inegável interesse geral (v., em especial, as alíneas d) e e) do artigo 9.º, as alíneas d) e f) do artigo 66.º, e as alíneas a), f) e m) do artigo 81.º da Constituição). De resto, são públicos e exigentes os compromissos assumidos pelo Estado português no plano internacional com vista à consolidação de um mercado energético liberalizado, autossuficiente, seguro, justo e sustentável (no período temporal aqui referido, v., em especial, as Resoluções do Conselho de Ministros n.º 29/2010, que aprovou a Estratégia Nacional para a Energia 2020, e n.º 20/2013, que aprovou o Plano Nacional de Ação para a Eficiência Energética para o período 2013-2016 e o Plano Nacional de Ação para as Energias Renováveis para o período 2013-2020).
Não obstante, a experiência mostra que as políticas e medidas de incentivo e de regulação adotadas pelo Estado com o intuito de realizar tarefas de evidente interesse público podem provocar relevantes custos de que os operadores económicos, integrados em determinados setores económicos, extraem especiais e relevantes benefícios (a respeito de setores, v. os Acórdãos n.ºs 539/2015 e 268/2021). Assim, não se pode excluir, em abstrato, que neste domínio pudesse ser criado um tributo cuja finalidade fosse, não a de suportar os gastos gerais da comunidade com a adoção de medidas indispensáveis à consolidação de um sistema energético sustentável, mas sim a de obter receitas destinadas a financiar, através de um fundo autónomo, determinadas prestações públicas que, concorrendo para esse fim, presumivelmente geram especiais benefícios para uma classe de operadores económicos integrados no setor energético.
10. No entanto, forçoso é reconhecer que os termos em que, a partir de 2018, se encontravam previstas as prestações públicas que a CESE se destinava a financiar, obstam a que se possa firmar o necessário nexo entre tais prestações e o grupo dos sujeitos passivos que exercem as atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, a que diz respeito a norma sindicada no presente recurso.
Em primeiro lugar, tornou-se evidente que, por imposição legal, a maior parcela da receita se destinaria, a partir desse momento, a reduzir a dívida tarifária do setor elétrico, sem que sejam claras as razões pelas quais o legislador teve por adequado exigir a operadores não integrados nesse subsetor que participassem nos encargos daí advenientes, quando lhes não deram causa alguma, nem se vê que daí extraiam um especial benefício. Cabe notar que a mera circunstância de todos os operadores integrarem o «setor energético» não é manifestamente suficiente para afirmar que exista uma responsabilidade de grupo do subsetor do gás natural pelos encargos respeitantes a um problema específico do subsetor da energia elétrica. Embora seguramente exista alguma homogeneidade de interesses e interdependência entre os vários operadores do mercado energético, são diferentes as condições em que estes operam e bem assim os problemas de sustentabilidade que a propósito de cada um se colocam. Tanto assim que o próprio regime jurídico da CESE, desde as alterações introduzidas em 2015, passou a afetar ao SNGN uma parte da receita do tributo − a que é exigida aos comercializadores do SNGN, titulares de contratos de aprovisionamento de longo prazo −, com o intuito de prevenir os «desequilíbrios sistémicos» próprios deste subsetor.
O que daqui se depreende é que não há motivo algum para fazer correr por conta das empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural encargos associados à redução da dívida tarifária do setor elétrico. Nem há razão nenhuma para supor que a prevenção dos riscos associados à instabilidade tarifária no setor elétrico aproveita em especial medida aos operadores dos demais subsetores − não se podendo admitir como contraprova a suposição de que um tal benefício advém, como que obliquamente, da circunstância de boa parte das empresas credoras da dívida tarifária serem grandes consumidoras de gás natural. Acresce que o regime não define critérios que imponham que uma parte relevante da receita da CESE se mantenha afeta ao financiamento de medidas tendentes a favorecer os interesses de todos os operadores económicos incluídos no seu âmbito de incidência subjetiva (e não isentos). Pelo contrário, na prática, é confiada ao Governo a possibilidade de, em função dos «objetivos que se revelem mais prementes», afetar toda a receita da CESE à redução da dívida tarifária do setor elétrico – ou seja, ao financiamento de prestações públicas de que os operadores do setor do gás natural não podem, como se viu, presumir-se causadores ou beneficiários.
Por fim, ainda que um terço da receita da CESE tivesse sido consignado ao «financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética», a circunstância de as tarefas que o tributo se destina a financiar não terem sido objeto de densificação mínima, não permite sequer apreender se e em que medida cada um dos subsetores em causa é visado pelas medidas a adotar pelo FSSSE. De facto, mesmo em tais condições – estritamente hipotéticas −, não se poderia presumir que um terço da receita da CESE tivesse sido destinado a medidas de que seriam especiais beneficiários os operadores do subsetor do gás natural, de modo a garantir um certo equilíbrio na participação pelos subgrupos de operadores dos benefícios presumivelmente proporcionados pelo FSSSE.
A jurisprudência constitucional tem enfatizado que, em matéria de contribuições financeiras, o legislador tem o ónus de delimitar, com precisão, a base de incidência subjetiva do tributo. A este respeito, afirmou-se no Acórdão n.º 344/2019 o seguinte:
«Nesta última espécie de tributos – contribuições – o princípio da equivalência vincula o legislador a definir o universo de sujeitos passivos que se presume provocar ou aproveitar a prestação administrativa. Não podendo dar-se por seguro que cada um dos concretos sujeitos passivos provoca ou aproveita a prestação pública – como ocorre nas taxas – exige-se que o legislador isole os grupos de pessoas às quais estejam presumivelmente associados custos e benefícios comuns. Assim, o princípio da equivalência projeta-se na estruturação subjetiva do tributo através do recorte de um grupo de pessoas que tem interesses e qualidades em comum, que tem responsabilidades na concretização dos objetivos a que o tributo se dirige, e que a prestação tributária seja empregue no interesse dos membros grupo. A propósito destes “requisitos de legitimação” dos tributos de estrutura bilateral grupal refere Sérgio Vasques que “só a provocação de custos comuns e o aproveitamento de benefícios comuns garantem a homogeneidade capaz de legitimar a sobretributação de um qualquer grupo social ou económico no confronto com o todo da coletividade, mostrando-se discriminatória uma contribuição cobrada na sua falta” (O Princípio da Equivalência como Critério da Igualdade Tributária, Almedina, pág. 528).»
Ora, a partir de 2018, o legislador reduziu os objetivos a que a CESE se dirige em termos tais, que deixou de ser possível afirmar que as concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural podem ser consideradas responsáveis pela sua concretização, e muito menos presumíveis causadoras ou beneficiárias das prestações públicas que ao FSSSE incumbe providenciar. Resta, pois, concluir que a norma que integra o objeto do presente recurso viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição.
[…]” (sublinhados acrescentados).
A constelação argumentativa subjacente ao Acórdão n.º 101/2023 foi, ainda, desenvolvida em declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 296/2023 pelo Senhor Juiz Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro:
“[…]
1. O principal argumento aduzido no presente aresto para refutar a fundamentação do Acórdão n.º 101/2023 – que relatei −, o qual julgou inconstitucional, por violação do princípio da igualdade, as normas do regime jurídico da CESE para o ano de 2018 que determinam a incidência do tributo sobre as entidades concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, é o de que «nunca o artigo 4.º, n.º 2, do Decreto Lei n.º 55/2014, de 9 de abril [que criou o FSSSE] (…) estabeleceu uma regra de afetação da receita da CESE a determinadas despesas do Fundo de Sustentabilidade do Setor Energético (…)».
A proceder, o argumento atinge a razão essencial para o juízo de inconstitucionalidade firmado no Acórdão n.º 101/2023 – a de que, de acordo com o regime de consignação que consta do diploma que criou o FSSE, ao passo que, «na sua configuração inicial, a CESE destinava-se, não apenas a acudir à premente resolução do problema do défice tarifário do SEN, mas principalmente a financiar políticas do setor energético de cariz social e ambiental, ações de regulação e medidas relacionadas com a eficiência energética», «os termos em que, a partir de 2018, se encontravam previstas as prestações públicas que a CESE se destinava a financiar, obstam a que se possa firmar o necessário nexo entre tais prestações e o grupo dos sujeitos passivos que exercem as atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural», uma vez que, em apertada síntese, «a maior parcela da receita se destinaria, a partir desse momento, a reduzir a dívida tarifária do setor elétrico» e, «na prática, é confiada ao Governo a possibilidade de, em função dos “objetivos que se revelem mais prementes”, afetar toda a receita da CESE à redução da dívida tarifária do setor elétrico».
Porém, o argumento do presente aresto é improcedente. A consignação da receita da CESE a determinadas despesas do FSSSE foi estabelecida logo na versão originária do diploma que criou este último, resultando inequivocamente da conjugação do artigo 11.º do regime jurídico da CESE, constante do artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, com os artigos 2.º e 4.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 55/2014, de 9 de abril. Com efeito, o citado artigo 11.º dispõe, sob a epígrafe «consignação», que «a receita obtida com a contribuição extraordinária do setor energético é consignada ao Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético (FSSSE) (…)», determinando simultaneamente o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 55/2014 que os «objetivos» do FSSSE são o «financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental (…)» e a «redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN) (…)», e o n.º 2 do artigo 4.º do mesmo diploma que «as verbas do FSSSE devem ser alocadas de acordo com a seguinte ordem de prioridade: a) [c]obertura de encargos decorrentes [do financiamento de políticas do setor energético] no montante correspondente a dois terços da receita; [e] b) [c]obertura dos encargos decorrentes da realização do objetivo de [redução da dívida tarifária do SEN] no montante remanescente».
É bem certo que, como se salienta no presente aresto, o FSSSE tem outras receitas para além da CESE e que a alínea a) do n.º 2 do artigo 4.º do Decreto Lei n.º 55/2014 limitava a um valor máximo de 100 milhões de euros a regra de afetação de dois terços das verbas do Fundo ao financiamento de políticas do setor energético. Mas nenhum destes argumentos complementares infirma o juízo de que a CESE se encontrava consignada, em proporções fixas e diversas, aos dois objetivos do FSSSE. Por um lado, as demais receitas do FSSSE, que constam das alíneas b) a e) do artigo 3.º do diploma que o criou – a saber: dotações legais, rendimentos de aplicações, o produto de doações, heranças e legados ou outras receitas atribuídas por lei ou negócio jurídico −, são relativamente insignificantes, não constando sequer que se tenham materializado em medida alguma desde que o FSSSE foi criado. Com efeito, como notam José Casalta Nabais e Marta Costa Santos, “Contribuição Extraordinária do Setor Energético: Um Imposto Sob Outro Nome”, Revista Portuguesa de Direito Constitucional, n.º 2, 2022, p. 54, «[a] CESE é a única receita do Fundo que se encontra verdadeiramente prevista (…)». Por outro lado, compulsando a conta geral, verifica-se que a receita total da CESE atingiu, nos vários anos de vigência do tributo, valores pouco superiores ao limite máximo de afetação de dois terços das verbas do FSSSE ao objetivo de financiamento das políticas do setor energético – o que era mais do que previsível, tendo em conta a simplicidade das regras de incidência objetiva do tributo −, pelo que não se pode duvidar que a alteração das proporções de afetação das verbas e a atribuição ao executivo da prerrogativa de determinar até ao montante de um terço qual a percentagem a usar no financiamento das políticas setoriais, ambas operadas em 2018, implicou uma modificação de grande monta no regime financeiro do tributo, descaracterizando a sua natureza como contribuição financeira para as entidades que operam no setor do gás. Assim se argumentou, com desenvolvimento, no Acórdão n.º 101/2023.
2. Resta-me fazer duas observações adicionais sobre o presente aresto.
A primeira diz respeito a uma putativa «relação entre a dívida tarifária e o conjunto do setor energético no âmbito do controlo da homogenia de grupo», fundada na verificação de que «o mercado de gás natural» está «em situação de completa dependência da produção de energia elétrica e das condições de atividade dos respetivos operadores», ao ponto de se afirmar que «metade do gás natural transportado, distribuído ou armazenado por empresas em Portugal nestes anos [de vigência da CESE] não era mais do que “eletricidade em potência”». Ainda que se concedam – arguendo – os factos invocados e, o que é coisa bem diversa, os corolários deles inferidos, cabe notar que as contribuições financeiras se destinam a compensar prestações administrativas que, pese apenas se poderem presumir provocadas ou aproveitadas pelos sujeitos passivos, são efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo grupo homogéneo a que aqueles pertencem. Sendo certo que, ao contrário das taxas, as contribuições não implicam uma relação de comutatividade entre o sujeito passivo e a prestação administrativa, não deixam de implicar, como é bom de ver, um nexo «paracomutativo» entre o conjunto dos sujeitos e a atividade da administração – razão pela qual se diz amiúde destes tributos que consubstanciam verdadeiras «taxas grupais». Em suma, a presunção refere-se ao sujeito passivo – a quem o tributo é cobrado−, não ao grupo homogéneo – o totum que aquele integra.
Em virtude dessa sua natureza, «[a]s modernas contribuições não visam compensar prestações que se dirijam ao sujeito passivo de modo “indireto” ou “reflexo”, da maneira que se pode dizer que as grandes obras públicas beneficiam os terrenos circundantes. O que [as caracteriza] é o estarem voltad[a]s à compensação de prestações de que só presumivelmente se pode dizer causador ou beneficiário o sujeito passivo» (Sérgio Vasques, Manual de Direito Fiscal, 2.ª ed., Almedina, 2018, p. 257). Ora, suponho que seja uma evidência que a dívida tarifária do setor elétrico não foi provocada pelo setor do gás, nem a sua redução beneficia o conjunto dos operadores integrados neste setor de modo efetivo ou direto – antes constituindo, quando muito, um benefício presumido a partir de determinadas contingências. Daí a afirmação, no Acórdão n.º 101/2023, de que «não há motivo algum para fazer correr por conta das empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural encargos associados à redução da dívida tarifária do setor elétrico. Nem há razão nenhuma para supor que a prevenção dos riscos associados à instabilidade tarifária no setor elétrico aproveita em especial medida aos operadores dos demais subsetores − não se podendo admitir como contraprova a suposição de que um tal benefício advém, como que obliquamente, da circunstância de boa parte das empresas credoras da dívida tarifária serem grandes consumidoras de gás natural».
A segunda observação prende-se com a argumentação aduzida a propósito da não dedutibilidade da CESE como encargo tributário no âmbito do IRC. Diz-se no presente aresto que, se a lei fiscal admitisse tal dedução, gerar-se-iam os seguintes efeitos perniciosos: por um lado, «o tributo ficaria desprovido de boa parte do seu alcance contributivo efetivo, cingindo-se, da perspetiva do sujeito passivo e em parte, a um mero efeito de transferência entre fontes de despesa»; por outro, «penalizaria operadores com lucros mais baixos ou que apresentassem resultados negativos», o que aproximaria a contribuição de «um imposto sobre o rendimento das empresas de caráter regressivo».
Tenho dificuldade em acompanhar estes raciocínios.
Quanto ao primeiro, sendo inegável que – como se afirma numa passagem do Acórdão n.º 301/2021, citada no presente aresto − «se o encargo da CESE pudesse ser deduzido ao lucro tributável de modo a reduzir a coleta de IRC, o impacto financeiro deste tributo para os sujeitos passivos poderia ser efetivamente menor», não é menos verdade que daí resulta – prossegue imediatamente o texto original, já não citado no presente aresto − «um agravamento do montante de IRC a pagar», o que «poderá convocar o princípio da igualdade, na medida em que que se entenda que este exige a consideração de todos os encargos tributários suportados pelas empresas na determinação da sua real capacidade contributiva (ou do lucro [rendimento] real a que se refere o artigo 104.º, n.º 2, da Constituição)». Ora, quanto a esta questão − não apreciada no Acórdão n.º 301/2021, por se ter entendido que extravasava o objeto do recurso – não creio que no presente aresto se adiante coisa nenhuma. O problema da compatibilidade da regra da não dedutibilidade com o princípio da tributação pelo rendimento real fica, pois, ainda por resolver, sem prejuízo de se reconhecer que a jurisprudência constitucional vem admitindo, em diversos domínios de incidência daquele princípio, a sua derrogação em razão de interesses públicos atendíveis de sentido contrário.
Quanto ao segundo raciocínio, o de que a dedutibilidade do encargo com a CESE no âmbito do IRC poderia ter um «efeito regressivo», penalizando «operadores com lucros mais baixos ou que apresentassem resultados negativos», creio bem que incorre numa petição de princípio. Com efeito, constituindo a CESE um tributo bilateral, e não um imposto, o tertium comparationis relevante para aferir da igualdade na distribuição dos encargos não é a capacidade contributiva, mas a equivalência jurídica – no caso das contribuições financeiras, a presunção de que o sujeito passivo provoca ou aproveita determinadas prestações administrativas. Os montantes a pagar de taxas e contribuições variam, pois, em razão da tendencial desigualdade das prestações, não da capacidade contributiva dos sujeitos. Dizer-se que a dedutibilidade fiscal da CESE pode ter um «efeito regressivo» é partir-se desde logo do princípio de que não é um custo dedutível, uma vez que o apuramento do rendimento real das entidades sujeitas a IRC – o índice da sua capacidade contributiva – implica que aos seus rendimentos brutos tenham sido subtraídos os custos em que incorreram no exercício considerado. O que a recorrente alega é que a CESE é um verdadeiro custo para os sujeitos passivos de IRC e, nessa medida, um elemento a ter necessariamente em conta na determinação do seu «rendimento real». Ora, a questão que se coloca é precisamente a de saber se a CESE pode deixar de ser concebida como um custo – e, sendo-o, como justificar a sua não dedutibilidade em matéria de liquidação do imposto sobre o rendimento.
[…]” (sublinhado acrescentado).
Em síntese, a linha jurisprudencial traçada pelo Acórdão n.º 101/2023 assenta na ideia de que “[…] as alterações operadas pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, ao regime de afetação das verbas do FSSSE, ao qual se encontra consignada a receita da CESE, descaracterizaram o nexo paracomutativo entre certa categoria de sujeitos e as finalidades do tributo a tal ponto que deixou de ser possível, uma vez entrado em vigor o novo quadro legal, fundamentar a oneração do seu património no princípio da equivalência. Para tais sujeitos, pois, a CESE passou a constituir, em virtude de tal alteração de regime, um verdadeiro imposto, sem que o mesmo encontre respaldo algum no princípio da capacidade contributiva” (cfr. declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 338/2023 pelo Senhor Juiz Conselheiro Gonçalo de Almeida Ribeiro).
2.3. A transposição do juízo de censura jurídico-constitucional afirmado no Acórdão n.º 101/2023 para a norma em causa nos presentes autos não prescinde de duas breves notas de autónoma fundamentação.
2.3.1. Em primeiro lugar, sublinha-se que os fundamentos do Acórdão n.º 101/2023 merecem integral acolhimento na presente situação. A conclusão ali alcançada – de que, para as entidades concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, dissolveram o nexo com as finalidades do tributo, transformando o tributo num imposto, no que a tais entidades respeita – vale, por identidade de razão, para as entidades titulares de licenças de distribuição local de gás natural (sendo que a recorrente tem ativos correspondentes a ambas as categorias) e vale para o os tributos liquidados por referência ao exercício económico de 2019, com idênticos fundamentos, porquanto o regime instituído por aquele decreto-lei se manteve inalterado durante tal período.
2.3.2. Em segundo lugar – e corresponde à outra nota a sublinhar –, não obstaria ao juízo de inconstitucionalidade o entendimento que, por maioria, se afirmou no recente Acórdão n.º 338/2023, desta 1.ª Secção. Efetivamente, nesta decisão (e ao contrário da posição que se encontra no Acórdão n.º 296/2023, da 2.ª Secção) não se toma posição quanto à descaracterização do tributo na sequência das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro – apenas se conclui que “[…] em relação à CESE 2018, o problema não se coloca […]”, em suma, por “[…] a situação que gera a obrigação de pagar o tributo em questão [ser] a detenção pelos sujeitos passivos de determinados ativos, incidindo a CESE sobre o valor dos elementos do ativo dos sujeitos passivos reconhecidos na respetiva contabilidade (nos termos do artigo 3.º), com referência a 1 de janeiro de cada ano […]” e por “a autoliquidação da CESE ocorre[r], por regra, até ao final do mês de outubro”, pelo que não haveria, sequer, lugar à invocação de “[…] expetativas jurídicas que sejam dignas de tutela nos termos do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa […]” à data da publicação daquele diploma (dezembro de 2018). Sucede que tais reservas levadas ao Acórdão n.º 338/2023 se aplicam apenas ao ano de 2018, perdendo pertinência a partir de 2019, uma vez que, no início deste ano, já vigorava o Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, pelo que, mesmo que se aceitasse que a questão se poderia colocar no plano de “[…] expetativas jurídicas que sejam dignas de tutela nos termos do artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa”, a inevitável conclusão seria da sua verificação e frustração.
Tanto basta para concluir que, seja por via da posição maioritária que conduziu ao Acórdão n.º 338/2023, desta 1.ª Secção, seja por via da posição minoritária expressa nas respetivas declarações de voto, o recurso sempre seria procedente.
Vale o exposto por dizer que se impõe um juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 2.º, alíneas d) e e), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2019 pelo artigo 313.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2019, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural e, bem assim, as que sejam titulares de licenças de distribuição local de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual), com a consequente procedência do recurso, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal Central Administrativo Sul, para reforma da decisão recorrida em conformidade com tal juízo (artigo 80.º, n.º 2, da LTC).(…)
3. Em face do exposto, decide-se: a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, a norma contida no artigo 2.º, alíneas d) e e), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2019 pelo artigo 313.º da Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2019, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural e, bem assim, as que sejam titulares de licenças de distribuição local de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual); “

Face ao supra expendido, e uma vez que o aludido Aresto analisa com total propriedade não só a resenha jurisprudencial sobre a questão em contenda, como aborda e afasta todos os argumentos convocados pela Recorrente, e redarguidos pela Recorrida, aderimos na íntegra à jurisprudência firmada pelo Tribunal Constitucional quanto à matéria em apreço, secundando-se, assim, o entendimento de que o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE – (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2020, na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1, do artigo 3.º, do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2020, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural – padece de inconstitucionalidade por violação do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. [Neste sentido, convoque-se, igualmente, os Arestos do STA, prolatados nos processos 367/23, de 5 de fevereiro de 2025, 0345/21, de 12 de fevereiro de 2025].

Relativamente a uma situação respeitante a uma CESE do ano de 2020, e em tudo similar à dos autos, convoque-se o Aresto do STA proferido no processo nº 0345/21, de 12 de fevereiro de 2025, cujo sumário se extrata na parte que para os autos releva:

“I - A questão fundamental a que importa dar resposta é a de saber se as normas do regime da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (“CESE”), em particular os artigos 2.º, 3.º, 6.º, 11.º e 12.º, na versão e período de vigência conferidos pelo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020), que prorrogou a CESE para 2020, padecem de inconstitucionalidade.

II - Até ao ano de 2018 foi entendido, de forma reiterada, que não eram inconstitucionais as normas objeto dos sucessivos pedidos de controlo.

III - A partir de 2019, porém, houve uma inflexão do posicionamento, até então maioritário. Isto é, do exercício de 2019 em diante, houve uma inversão da jurisprudência, passando-se a decidir no sentido da inconstitucionalidade da CESE.

IV - Esta nova linha jurisprudencial, tem na sua base o acórdão n.º 101/2023 do TC, cuja linha argumentativa e dos acórdãos que o seguiram é plenamente transponível para o caso sub judice, relativo à CESE de 2020, que se refere, justamente, a um sujeito passivo que exerce a sua atividade no âmbito do provisionamento e distribuição de gás natural e outros gases combustíveis canalizados, atividade expressamente referida nos vários arestos aludidos

V - Pelo que se apresenta como inelutável o alinhamento deste Supremo Tribunal com a jurisprudência do TC referente à matéria em apreço, no sentido de que, também aqui, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE – (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro), cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2020, pelo artigo 376.º da Lei n.º 2/2020, de 31 de março (Lei do Orçamento do Estado para 2020), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2020, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural – viola o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, devendo ser desaplicado.”

Uma última nota para evidenciar que todos os Acórdãos convocados pela Recorrida nas suas contra-alegações, particularmente, os prolatados nos processos nºs 338/2023, processo n.º 1117/2021, 372/2023, processo n.º 623/22, 369/2023, processo n.º 1024/21, 345/2024, processo n.º 81/2023 e 325/2024, processo n.º 623/22, carecem de qualquer relevância e materialidade, na medida em que se reportam, todos eles, à CESE do ano de 2018.

Destarte, face a todo o expendido anteriormente e sem necessidade de quaisquer considerandos adicionais, dimana, assim, que a CESE sub judice, padece de inconstitucionalidade a qual justifica, per se, a procedência do presente recurso e a consequente a anulação dos aludidos atos tributários.

E por assim ser, há que conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e em consequência julgar procedente a impugnação, com a consequente anulação do ato tributário impugnado.

Aqui chegados, subsiste apenas por analisar o pedido de reembolso do imposto e condenação no pagamento de juros indemnizatórios, e bem assim a indemnização para prestação indevida de garantia.

Com efeito é peticionado no seu articulado inicial o seguinte: “o reembolso do montante do imposto autoliquidado que tenha sido ou venha entretanto a ser pago; em caso de efectivo pagamento do imposto, a declaração do direito da Impugnante ao pagamento de juros indemnizatórios por parte da AT, de acordo com o princípio estatuído nos artigos 43º e 100º da LGT; e, a declaração do direito da Impugnante ao pagamento da indemnização prevista nos artigos 53º da LGT e 171º do CPPT em virtude da prestação indevida de garantia para suspensão do processo executivo instaurado para cobrança coerciva voluntariamente.”

A verdade é que tais pedidos não podem proceder, por um lado, por não resultar provado o pagamento do imposto, e por outro lado, porque inexistem elementos nos autos que permitam discernir e qualificar a garantia prestada o que se afigura vital para efeitos de concreta subsunção normativa no artigo 53.º da LGT.

Com efeito, no atinente ao pedido de reembolso e pagamento de juros indemnizatórios, inexiste qualquer prova nos autos de que tenha sido efetuado o pagamento da liquidação anulada, inviabilizando, per se e na presente data, o reconhecimento do direito a juros indemnizatórios.

Ora, destinando-se os juros indemnizatórios a compensar o contribuinte pelo prejuízo causado pelo pagamento indevido de uma prestação tributária, sendo, portanto, pressuposto do seu reconhecimento o pagamento do tributo, não resultando, in casu, demonstrado o pagamento da liquidação impugnada, não há que reconhecer o direito ao pagamento de juros indemnizatórios, carecendo de qualquer justificação legal a condenação no pagamento de juros indemnizatórios de forma condicional [vide, designadamente, Acórdãos do TCAS, proferidos nos processos nºs 194/20, e 2017/08, de 18.05.2023 e 14.01.2020, respetivamente].

No concernente ao pedido de indemnização por prestação indevida de garantia, importa relevar que, não obstante resulte do probatório, mormente, do plasmado na alínea E), da factualidade provada que, a 31 de dezembro de 2020, a Impugnante prestou garantia no âmbito do PEF respeitante à cobrança coerciva da CESE, ora, em contenda, a verdade é que se desconhece qual o tipo de garantia que foi, efetivamente, prestada, realidade que assume curial relevância para efeitos de aferição dos pressupostos para a atribuição da indemnização por prestação indevida de garantia, constantes no artigo 53.º da LGT, concretamente a prestação “de garantia bancária ou equivalente”.

E isto porque, apenas se subsumem no teor do citado normativo as formas de garantia que impliquem para o interessado suportar uma despesa cujo montante vai aumentando em função do período durante o qual aquela é mantida, delas sendo exemplo a garantia bancária, o seguro caução, mas já não, por exemplo, a fiança.

A este propósito, chama-se à colação o Acórdão do STA, proferido em Plenário, no processo nº 018/20, de 04 de novembro de 2020, o qual se reporta, justamente, a uma questão de fiança totalmente transponível para o caso dos autos, no qual refere, de forma, expressa no seu sumário que: “Para os efeitos indemnizatórios previstos no artigo 53.º da L.G.T., não é de considerar a fiança entre as garantias (“bancária ou equivalente”) de que depende a sua aplicação.”

Vide, no mesmo sentido, Acórdãos do STA, proferidos nos processos nºs 03025/17, de 09 de janeiro de 2019, 0469/14, de 10 de outubro de 2018 e 0528/12, de 24 de outubro de 2012, e também a doutrina, particularmente, Jorge Lopes de Sousa (1), e António Lima Guerreiro (2).

De evidenciar, adicionalmente, que este Tribunal prolatou despacho com o seguinte teor: “antes de mais, em virtude de não constarem dos autos elementos suficientes em torno da prestação de garantia atinente aos PEF cuja dívida exequenda respeite a esse mesmo tributo e respetivos juros, particularmente o tipo específico de garantia prestada, notifique a Recorrente/Impugnante para vir aos autos juntar tais elementos, no prazo de 5 (cinco) dias.”

E a verdade é que, a Recorrente manteve-se silente, nada dizendo, esclarecendo, ou juntando qualquer elemento aos autos, o que determina que na presente lide e por ora se tenha de julgar improcedente o aludido pedido.

De relevar, neste âmbito, que tal não obsta, naturalmente, que em sede de execução de julgado anulatório, e sendo caso disso e demonstrada a realidade de facto atinente ao efeito, sejam concedidas as pretensões que, ora, peticiona, mas não prova.

Destarte, impõe-se, neste âmbito e para já, decidir pela improcedência do pedido de reembolso do tributo acrescido dos juros indemnizatórios e da indemnização por prestação indevida de garantia. [Neste sentido vide, designadamente, Acórdãos deste TCAS, proferidos nos processos nºs 1784/19, e 478/21, datados de 22.06.2023 e 04.05.2023, respetivamente].

Uma nota final para relevar que, não obstante a Recorrida tenha decaído no atinente à condenação no pagamento dos juros indemnizatórios, e na indemnização para prestação indevida de garantia, nos moldes supra evidenciados, a verdade é que não tendo a aludida revogação expressão quantitativa para efeitos de decaimento, decretar-se-á, a final, que as custas serão a cargo da Recorrida.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO, SUBSECÇÃO COMUM deste Tribunal Central Administrativo Sul em: conceder parcial provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e em consequência julgar procedente a impugnação, com a consequente anulação do ato tributário impugnado, e improcedente o pedido de restituição da quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios e inerente pedido de indemnização de prestação de garantia.
Custas a cargo da Recorrida.
Registe. Notifique.

Lisboa, 15 de julho de 2025

(Patrícia Manuel Pires)

(Maria da Luz Cardoso)

(Cristina Coelho da Silva)

(1) Vide CPPT Anotado e Comentado, Áreas Editora, VoI. III, 6ª edição, pág. 346
(2) em anotação ao artigo 53.º na sua LGT anotada, Edição Rei dos Livros, página 245.