Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:88/25.1BEFUN
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:06/30/2025
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:RECLAMAÇÃO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DO TERRITÓRIO
DEVEDOR ORIGINÁRIO
Sumário:I. No âmbito da execução fiscal e em matéria de competência em razão do território, o critério seguido pelo legislador foi o da área do domicílio ou sede do devedor originário.

II. Tendo sido o PEF instaurado contra o devedor originário, é por referência ao critério referido em I. que tem de ser aferida a competência em razão do território.

III. “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito” (art.º 8.º, n.º 3, do Código Civil).

Votação:DECISÃO SINGULAR
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Decisão

[art.º 105.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC)]


I. Relatório

A Ilustre Magistrada do Ministério Público (doravante IMMP) veio reclamar, ao abrigo do art.º 105.º, n.º 4, do CPC, da decisão proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Funchal, na qual aquele Tribunal se julgou territorialmente incompetente para o conhecimento da oposição à execução fiscal apresentada por S................., Ltd, citada na qualidade de sócia da sociedade D............ P............ – Serviços ………………..Unipessoal, Lda (Zona Franca da Madeira) (doravante D............ P............).

Para o efeito, concluiu o seguinte:

“1. Por Sentença proferida a 13-05-2025, o Mmo. Juiz a quo suscitou a incompetência territorial do Tribunal Administrativo e Fiscal para apreciação da presente Oposição à Execução Fiscal, determinando a sua remessa ao Tribunal Tributário de Lisboa.

2. No caso concreto, a sociedade a que se reportam os factos objeto da presente Oposição - D............ P............ – SERVIÇOS ……. UNIPESSOAL, LDA - foi extinta a 30-03-2017 e tinha sede na Rua …………….., n.º ……………., 3.º andar, ……………… Funchal.

3. As dívidas objeto da presente oposição dizem respeito a factos tributários ocorridos no período temporal anterior à sua extinção.

43. Uma vez que a aludida sociedade se encontrava extinta à data de instauração do processo executivo (07-12-2024), a ex-sócia S................. L.T.D, com sede no Chipre, foi, também, chamada a responder pelas dívidas daquela primeira.

4. Entende o Tribunal, que quando é instaurada uma execução contra uma sociedade já extinta e são chamadas a responder, conjuntamente, as suas ex-sócias, como é o caso, o critério a mobilizar para determinação da competência territorial do Tribunal de primeira instância, é o da sede destas últimas, e não a sede dessa sociedade já extinta.

5. Com base neste raciocínio, a sentença a quo considerou que não podia determinar a competência com base no artigo 151.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário, uma vez que a expressão “devedora originária” apenas é aplicável em casos de responsabilidade subsidiária e não a uma sociedade já extinta.

6. Termos em que afastou a aplicação dos critérios previstos no artigo 12.º e 151.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário e, na falta de outro critério, mobilizou o artigo 22.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

7. Determinando, em consequência, a remessa dos presentes autos ao Tribunal Tributário de Lisboa.

8. Ab initio, e num argumento literal, somos de entender que a norma suscitada não tem aplicação a este tipo de processo, porquanto especificamente diz respeito a ações administrativas (mencionando, explicitamente, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa).

9. Mas mesmo que assim não se entenda, não vemos necessidade na utilização de uma regra supletiva, mais concretamente o aludido artigo 22.º, uma vez que tem plena aplicação o artigo 151.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário.

10. Nos termos do artigo 12.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário, em caso de execução fiscal, é competente o tribunal da sede do executado; por sua vez, e no mesmo sentido, ao abrigo do artigo 151.º, tem competência para decidir incidentes, embargos, oposições e reclamações dos atos praticados pelo órgão de execução fiscal, o tribunal da área do domicílio ou sede do devedor originário.

11. Nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência fixa-se no momento da propositura da causa, constituindo a presente oposição um incidente do processo executivo (artigo 103.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária).

12. Em matéria de responsabilidade por dívidas da sociedade extinta, determina o n.º 2 do artigo 147.º, do Código das Sociedades Comerciais, que [a]s dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução não obstam à partilha nos termos do número anterior, mas por essas dívidas ficam ilimitada e solidariamente responsáveis todos os sócios, embora reservem, por qualquer forma, as importâncias que estimarem para o seu pagamento. Esta responsabilidade não opera de forma automática.

13. A sociedade Oponente, como ex-sócia da D............ P............ – SERVIÇOS …………………. UNIPESSOAL, LDA., é chamada a responder pelas dívidas desta última (e, também, visada no processo executivo), por força de uma norma que as faz representar nesse sentido, não a título originário.

14. Isto porque a sociedade extinta continua a ser o sujeito da relação jurídica tributária relativamente aos factos tributários ocorridos no período temporal anterior à respetiva extinção, mesmo que a lei designe outros responsáveis pelo pagamento dos tributos que se venham a liquidar relativamente àquele período (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12-10-2022, processo 0218/13.6BEAVR, disponível em …………………..).

15. Aliás, quem figura como executada no documento que instaura o processo executivo é a precisamente a sociedade D............ P............ – SERVIÇOS I…………..UNIPESSOAL, LDA., conforme fls. 1, do processo administrativo instrutor.

16. Assim, o termo “devedora originária” não se aplica, tão somente, à responsabilidade subsidiária, mas também, à responsabilidade solidária decorrente da extinção de uma sociedade, como é o caso, valendo plenamente o artigo 151.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário (considerando a sociedade extinta como sendo uma devedora originária, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 09-06-2021, processo 01167/18.78BELRA, disponível em www.dgsi.pt e JORGE LOPES DE SOUSA, em Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, III volume, anotação 11 ao art. 155.º, pág. 86).

17. A extinção da sociedade do ponto de vista civil é distinta da extinção do ponto de vista tributário, uma vez que a sociedade extinta continua a ter personalidade tributária e personalidade judiciária tributária (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 27-04-2023, processo 00910/16.3BEPRT).

18. Do que decorre que a Autoridade Tributária pode emitir liquidações e citações em nome da sociedade extinta e, por outro lado, a sociedade extinta pode impugnar judicialmente a liquidação (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 21- 01-2016, proferido no processo 043/16).

19. O que indica que, para efeitos tributários e judiciários, a extinção da sociedade e o desaparecimento da sede, em nosso entender, pouco relevam.

20. Não se pode, assim e em nosso entender, afirmar que a presente ação não tem conexão com este Tribunal, pois que incide sobre um conjunto de relações jurídicas tributárias, dos quais é centro a sociedade extinta (contribuinte da relação jurídica), a qual tem personalidade tributária e personalidade judiciária tributária, independentemente de quem a lei chame a responder., depois de verificados determinados pressupostos.

21. Termos em que, para efeitos de determinação de competência territorial, deve, em nosso entender, relevar a última sede conhecida da sociedade devedora. Repare-se que no caso concreto, apenas está em causa uma ex-sócia, o que até determina apenas um Tribunal competente.

22. Mas se estivessem em causa diversas ex-sócias, uma com sede no estrangeiro, mas outras com sede em diversos pontos do país, estaria aberta a porta para, considerando-se como devedor originário os ex-sócios, existissem diversas reclamações instauradas em diferentes zonas do país (porque, na falta de sede da sociedade originária, suceder-lhe-iam as sedes/domicílios das ex-sócias), o que não é o espírito do legislador.

23. Ou seja, [N]ão se pode olvidar que a tese sustentada na decisão recorrida abriria a possibilidade de o contencioso tributário associado a uma só processo de execução fiscal se espalhar geograficamente pelos mais diversos tribunais tributários do país, tantos quantos os processos instaurados pelos distintos responsáveis subsidiários com diferentes domicílios, o que não poderia deixar de implicar dificuldades e perversões tanto no sistema judicial como na aplicação da justiça (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 08-102014, Relatora Dulce Neto).

24. Não vemos por isso, razão que legitime a conclusão de que, em caso de responsabilidade subsidiária, existe uma devedora originária, mas depois em caso de responsabilidade solidária, por extinção da sociedade, por dívidas relativas ao período em que se encontrava em atividade (ainda que posteriormente liquidadas), não se siga idêntico raciocínio.

25. Se a sociedade extinta continua a ser o sujeito jurídico da relação tributária relativamente aos factos tributários ocorridos no período temporal anterior à respetiva extinção, o chamamento de responsáveis pelo pagamento dessas mesmas dívidas, em nada impede que aquela primeira seja, para todos os efeitos, a devedora originária dessas mesmas dívidas.

26. Assim, no caso concreto, a sociedade D............ P............ – SERVIÇOS I…………………. UNIPESSOAL, LDA., extinta a 30-03-2017 com última sede na Rua …………………, n.º 53, 3.º andar, ………………., Funchal é a devedora originária.

27. Termos em que tem plena aplicação o critério do artigo 12.º e 151.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário, pelo que é competente para apreciar o presente litígio, em nosso entender, o Tribunal administrativo e Fiscal do Funchal.

Nestes termos e nos demais de Direito, requer-se que seja revogada a decisão que declarou a incompetência em razão do território deste Tribunal e que determinou, consequentemente, a remessa dos autos ao Tribunal Tributário de Lisboa, devendo tal decisão ser substituída por outra que declare a competência do Tribunal Administrativo e Fiscal para julgar os presentes autos”.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Qual o tribunal territorialmente competente para a instrução e conhecimento da presente ação?

II. Fundamentação

II.A. Para a apreciação da presente reclamação, são de considerar as seguintes ocorrências processuais, documentadas nos autos:

1) Foi instaurado, na Direção de Finanças do Funchal, o processo de execução fiscal (PEF) n.º ……………………..400, sendo executada a sociedade D............ P............, com sede na ilha da Madeira (cfr. ……………………………..:48:19).

2) No âmbito do PEF mencionado em 1) foi emitidas citações em nome da sociedade D............ P............ e em nome da sociedade S................. Ltd, esta na qualidade de responsável solidária (cfr. ………………………… e …………………….9:48:19).

3) Foi apresentada oposição ao PEF mencionado em 1) pela sociedade S................., Ltd, dirigida ao TAF do Funchal (cfr. ……………………….48:18).


*

II.B. Apreciando.

Considera a IMMP, em síntese, que o TAF do Funchal é o competente para apreciar a oposição à execução fiscal em causa, porquanto tal é a solução que decorre do disposto nos art.ºs 12.º e 151.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Vejamos, então.

Situações semelhantes, designadamente no contexto de incidentes à execução fiscal, já têm sido decididas recentemente por este Tribunal, decisões a que a instância se refere no despacho de 09.06.2025, mas que “não (…) acompanha”.

Falamos das decisões proferidas nos processos:

a) 114/25.4BEFUN, de 09.05.2025;

b) 139/25.0BEFUN, de 13.05.2025;

c) 132/25.2BEFUN, de 06.06.2025;

d) 87/25.3BEFUN, de 26.06.2025.

Não existem razões para alterarmos esse entendimento – sendo ainda pertinente sublinhar a previsão constante do n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil, que o julgador deverá ter sempre presente.

Logo, sem necessidade de maiores considerações, passa-se a citar o que se escreveu na primeira das decisões mencionadas:

“A competência do tribunal, em qualquer das suas espécies, deve ser aferida pelo tipo de pretensão deduzida pelo autor (pedido) e pelas normas que a disciplinam (fundamentos jurídicos).

Nos termos do art.º 12.º do CPPT:

“1 - Os processos da competência dos tribunais tributários são julgados em 1.ª instância pelo tribunal da área do serviço periférico local onde se praticou o ato objeto da impugnação ou no caso da execução fiscal, no tribunal da área do domicílio ou sede do executado.

2 - No caso de atos tributários ou em matéria tributária praticados por outros serviços da administração tributária, julgará em 1.ª instância o tribunal da área do domicílio ou sede do contribuinte, da situação dos bens ou da transmissão”.

Por seu turno, o art.º 151.º do mesmo diploma prescreve, no seu n.º 1, que:

“1 - Compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área do domicílio ou sede do devedor originário, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos atos praticados pelos órgãos da execução fiscal”.

Resulta para nós claro que, no âmbito da execução fiscal e em matéria de competência em razão do território, o critério seguido pelo legislador foi o da área do domicílio ou sede do devedor originário.

A este propósito, cumpre ter em conta a noção de sujeito passivo, constante do art.º 18.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária (LGT):

“3 - O sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável” (sublinhado nosso).

Chama-se ainda à colação o disposto no art.º 22.º, n.º 2, da LGT, nos termos do qual “[p]ara além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas”.

Apliquemos estes conceitos, in casu.

Na situação dos autos, é primitiva executada, contra quem foi instaurada a execução fiscal, a sociedade (…) [aqui D............ P............, com sede na Madeira]. É irrelevante, para o presente efeito, saber se ela já tinha sido ou não antes extinta, dado que a instauração contra tal sociedade nos termos efetuados não foi posta em causa [ainda assim, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 09.06.2021 (Processo: 01167/18.7BELRA)].

É, pois, a sociedade (…) [aqui D............ P............] a devedora originária, a contribuinte direta, e a intervenção nos autos (…) [da seu ex-sócia] não altera essa circunstância.

Como tal, como bem refere o IMMP, atento o disposto no n.º 1 do art.º 12.º do CPPT, o Tribunal Tributário do Funchal (a funcionar agregado com o Tribunal Administrativo de Círculo de Funchal, sob a designação unitária de TAF do Funchal, designação que temos vindo a seguir) é competente territorialmente para o conhecimento da reclamação, o mesmo resultando do art.º 151.º, n.º 1, do mesmo código, de modo algum circunscrito aos casos em que esteja em discussão apenas a responsabilidade subsidiária (cfr. art.º 3.º, n.ºs 1 a 3, e mapa anexo ao DL n.º 325/2003, de 29 de dezembro)”.

Assim, considerando a fundamentação transcrita e adaptada ao caso em concreto, assiste razão à Reclamante.

III. Decisão

Face ao exposto:

a) Defere-se a reclamação apresentada, decidindo-se ser territorialmente competente, para a tramitação dos presentes autos, o TAF do Funchal;

b) Sem custas;

c) Registe e notifique;

d) Baixem os autos.


Lisboa, d.s.

A Juíza Desembargadora Presidente,