Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:18263/25.7BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:07/15/2025
Relator:MARCELO MENDONÇA
Descritores:IPDLG
RENOVAÇÃO DA AUTORIZAÇÃO DE RESIDÊNCIA
LEGITIMIDADE PASSIVA DO IRN, IP
Sumário:I - Ao IRN, I.P. assiste a competência legal para o recebimento do pedido de renovação da autorização de residência, conforme resulta do exposto no n.º 1 do artigo 81.º-A da Lei n.º 23/2007, de 04/07, aditado pelo DL n.º 41/2023, de 02/06.
II - Por seu turno, do artigo 3.º, n.º 2, alínea c), do DL n.º 41/2023, de 02/06, a competência legal para o deferimento ou indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência já pertence à AIMA, I.P.
III - Quando o concreto pedido formulado na p.i. seja o de agendamento de uma data para a recepção do pedido de renovação da autorização de residência ou/e para a entrega dos respectivos documentos, a legitimidade passiva cabe ao IRN, I.P., ainda que a decisão sobre o pedido de renovação da autorização de residência venha a competir, depois, à AIMA, I.P.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I - Relatório.
M…, natural da República da Índia, doravante Recorrente, que no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL) deduziu intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra o Instituto dos Registos e do Notariado, I.P., doravante Recorrido, com vista à intimação do Recorrido para agendar, com carácter de urgência, data para a entrega do pedido de renovação do título de residência, proceder à recolha de dados biométricos e recepção dos documentos necessários para a renovação do título de residência, inconformada que se mostra com a sentença do TACL, de 31/03/2025, que decidiu julgar verificada a excepção dilatória de ilegitimidade passiva quanto ao ora Recorrido, indeferindo liminarmente o requerimento inicial, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões:
1. A sentença recorrida incorreu em erro na aplicação do Direito ao desconsiderar a legitimidade passiva do Instituto dos Registos e do Notariado, I.P. (IRN), em violação das normas legais aplicáveis e da jurisprudência consolidada.
2. Nos termos do artigo 81.º-A da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, na sua redação atual, o pedido de renovação de autorização de residência deve ser apresentado junto dos serviços do IRN, I.P., sendo este o órgão responsável pela receção e confirmação dos elementos necessários para a instrução do processo. Esta competência é reforçada pelo artigo 3.º, n.º 2, alínea o), do Decreto-Lei n.º 148/2012, que atribui ao IRN, I.P. a responsabilidade de assegurar a receção e confirmação dos elementos necessários para a renovação das autorizações de residência.
3. Ao decidir que a legitimidade passiva caberia exclusivamente à Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (AIMA), a sentença recorrida desconsiderou a repartição de competências legalmente estabelecida, violando o princípio da legalidade administrativa consagrado no artigo 3.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
4. Neste mesmo sentido, chama-se à colação o Douto Acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, Proc. n.º 2195/24.9BEBRG, que decidiu que "Compete ao IRN receber os pedidos de renovação de autorização de residência, apesar dos mesmos serem decididos por outras entidades. Cabe ao IRN agendar o atendimento dos interessados nos seus serviços centrais ou desconcentrados."
5. Bem como, adicionalmente, o Douto Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15.02.2023, Proc. n.º 1234/22.0BELSB, que reforçou que: "A repartição de competências entre o IRN e a AIMA não exclui a legitimidade passiva do IRN em ações que visem a prática de atos preparatórios, como o agendamento e a receção de documentos necessários à renovação de autorizações de residência." E ainda o Douto Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2021: “A atuação administrativa que desrespeite os prazos e procedimentos legalmente estabelecidos viola o princípio da legalidade e compromete a tutela efetiva dos direitos dos cidadãos.”
6. A sentença recorrida, ao afastar a legitimidade passiva do IRN, I.P., ignorou esta orientação jurisprudencial, incorrendo em erro de julgamento.
7. A decisão recorrida viola ainda o princípio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º da CRP, ao criar um obstáculo injustificado ao exercício do direito da Recorrente de ver apreciado o seu pedido de renovação de autorização de residência. Este princípio exige que os tribunais assegurem uma proteção célere e eficaz dos direitos dos cidadãos, o que não foi observado no caso em apreço.
8. Além disso, a interpretação restritiva da legitimidade passiva do IRN, I.P. contraria o princípio da boa administração, previsto no artigo 5.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), que impõe à Administração Pública o dever de atuar de forma diligente e em conformidade com a lei.
9. Em face do exposto, é evidente que a sentença recorrida incorreu em erro na aplicação do Direito, ao desconsiderar a legitimidade passiva do IRN, I.P., em violação das normas legais aplicáveis, da jurisprudência consolidada e dos princípios constitucionais e administrativos que regem a atuação da Administração Pública.
O Recorrido, por seu turno, não apresentou contra-alegações,
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
O parecer do MP foi notificado à Recorrente.
Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.
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II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, se a decisão recorrida errou de direito ao ter julgado verificada a excepção dilatória de ilegitimidade passiva quanto ao ora Recorrido.
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III - Matéria de facto.
A decisão recorrida não fixou qualquer factualidade.
A Recorrente, por sua vez, nada impugna sobre tal matéria, não se vendo qualquer necessidade de fixar factos na presente instância de recurso, pois que, a Recorrente dissente da decisão recorrida, no essencial, por uma questão de direito, que tem a ver, como atrás se constatou, com a excepção, oficiosamente suscitada, de ilegitimidade passiva do ora Recorrido.
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IV - Fundamentação de Direito.
Na parte que aqui importa perscrutar, veja-se a fundamentação de direito explanada na decisão recorrida, transcrevendo-se os seguintes trechos, por serem aqueles que, de modo mais relevante, interessam à decisão do presente recurso:
(…) Na presente ação, o Requerente pede a condenação do IRN a realizar o seu agendamento com vista à renovação do seu título de residência.
Perante isso, a questão que se coloca é a de saber se a legitimidade passiva para a presente ação pertence ao Instituto dos Registos e Notariado, atento o disposto no artigo 10º, n.º 2, do CPTA.
Vejamos.
O Decreto-lei n.º 41/2023, de 2 de junho, procedeu à criação da Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. [AIMA, I.P], que sucedeu ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a partir de 29.10.2023, nas suas competências administrativas em matéria de migração e asilo, sendo que, nos termos do artigo 5º do mesmo diploma legal, os processos e procedimentos administrativos pendentes no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras transitam para os serviços que sucedem nas suas atribuições, de acordo com o disposto naquele diploma e na Lei n.º 73/2021, de 12 de novembro.
Constitui uma das atribuições da AIMA, I.P. a concessão de autorizações de residência e as respetivas renovações, nos termos disposto no artigo 3º, n.º 2, alínea c), do Anexo ao Decreto-Lei n.º 41/2023, de 2 de junho.
De acordo com o n.º 1 do artigo 81º-A da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, o pedido de renovação de autorização de residência pode ser formulado pelo interessado ou pelo representante legal e é apresentado junto dos serviços do IRN, I. P, sendo concedido pela AIMA, I. P..
Assim sendo, a partir de 29.10.2023, data de entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 41/2023, de 2 de junho, compete à AIMA, I.P. renovar as autorizações de residência, tal como foi requerido pelo Requerente.
A AIMA, I.P. é um instituto público, integrado na administração indireta do Estado, dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e de património próprio, à luz do artigo 1º, n.º 1, do Anexo ao Decreto-lei n.º 41/2023, de 2 de junho.
Assim, considerando que a competência para renovar a autorização de residência pertence à AIMA, I.P., que é um instituto público integrado na administração indireta do Estado, impõe-se concluir que a legitimidade passiva para a presente ação pertence àquele instituto público, e não ao Instituto dos Registos e Notariado.
O Instituto dos Registos e Notariado carece, assim, de legitimidade para figurar, do lado passivo, na presente ação.
A ilegitimidade processual passiva singular é uma exceção dilatória, nos termos do artigo 89º, n.º 4, al. e) do CPTA, insuscetível de sanação, sendo de conhecimento oficioso – cfr. neste sentido, Acórdão do TCAN, de 10.03.2023 (Processo nº 00251/22.7BEPRT-S1). Consequentemente, por se verificar uma exceção dilatória insuprível, à luz do artigo 590º, n.º 1, do CPC, aplicável ex vi artigo 1º do CPTA, o requerimento inicial deve ser indeferido liminarmente, como se decidirá.
(…)
*
III – DECISÃO
Nestes termos e nos melhores de direito, indefere-se liminarmente o requerimento inicial.
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Desde já adiantamos que a decisão recorrida não pode manter-se.
A sentença recorrida, em síntese, parte do pressuposto de que, a partir da entrada em vigor do DL n.º 41/2023, de 02/06, diploma legal que criou a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I. P., e, sobretudo, tendo presente o disposto no seu artigo 3.º, n.º 2, alínea c), que atribui a tal instituto público integrado na administração indireta do Estado a atribuição de, no plano interno, conceder as renovações de autorizações de residência, o Recorrido não terá legitimidade para ser demandado quando o pedido seja o de satisfazer uma pretensão material como aquela que foi concretamente deduzida pela ora Recorrente.
Acontece que, na abordagem à matéria de renovação da autorização de residência, a decisão recorrida confunde dois planos que são distintos. É que, num lado, temos o ente público que pode recepcionar o requerimento de renovação e a documentação necessária para tal pretensão, e, noutro lado, deparamo-nos com o ente público que emite o acto concedente dessa renovação ou que a indefere.
Explicando.
No primeiro plano, assiste ao ora Recorrido (o IRN, I.P.) a competência legal para o recebimento do pedido de renovação da autorização de residência, conforme resulta claramente do exposto no n.º 1 do artigo 81.º-A da Lei n.º 23/2007, de 04/07, aditado, precisamente, pelo DL n.º 41/2023, de 02/06, que prescreve o seguinte:O pedido de renovação de autorização de residência pode ser formulado pelo interessado ou pelo representante legal e é apresentado junto dos serviços do IRN, I. P, sendo concedido pela AIMA, I. P., nos termos previstos no presente capítulo” (destaques nossos).
No segundo plano, como já se depreende da norma legal acabada de citar e do supra referido artigo 3.º, n.º 2, alínea c), do DL n.º 41/2023, de 02/06, a competência legal para o deferimento ou indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência já pertence à AIMA, I.P.
O acima dito quanto à específica competência do ora Recorrido em matéria do pedido de renovação de autorização de residência reforça-se, ainda, com o que resulta do preâmbulo ao DL n.º 41/2023, de 02/06, destacando-se o seguinte excerto:
Em concreto, operou-se a concentração: i) das funções policiais nas forças e serviços de segurança; ii) das funções administrativas em matéria de migrações e asilo numa nova entidade, a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I. P. (AIMA, I. P.); e iii) das funções administrativas relativas à concessão e emissão do passaporte eletrónico português e ao atendimento das renovações de autorizações de residência no Instituto dos Registos e do Notariado, I. P. (IRN, I. P.)” – (destaque nosso).
Posto isto, tratando-se aqui de aquilatar sobre o pressuposto processual da legitimidade passiva da entidade pública a demandar, há que destacar, sobretudo, qual o ente público titular da relação controvertida, tal como apresentada pela demandante (ora Recorrente) no concreto processo, que, nessa veste, estará em condições de lidar com o pedido formulado, contradizendoo.
Pois bem, visto o caso vertente, tal como a Recorrente formulou o seu concreto pedido na p.i. e tendo em atenção as próprias conclusões de recurso, importa não perder de vista que a sua pretensão material perpassa, no fundamental, pelo agendamento, junto dos serviços do IRN, I.P., da entrega do seu requerimento administrativo e dos documentos necessários à instrução do pedido de renovação da autorização de residência.
Por conseguinte, quer pela relação material controvertida tal como foi erigida pela ora Recorrente em sede da p.i., quer pelo objecto da causa, quer do que decorre do próprio enquadramento legal que atrás demos nota, a entidade pública sobre cujos órgãos recai o dever legal de praticar o comportamento pretendido (na acepção trazida, inclusive, pelo n.º 2, “in fine”, do artigo 10.º do CPTA) - o agendamento de uma data para a recepção do pedido de renovação da autorização de residência - é o ora Recorrido.
Assim sendo, no caso do concreto pedido dos autos, a legitimidade passiva cabe ao IRN, I.P., ainda que a decisão sobre o pedido/requerimento de renovação da autorização de residência venha a competir, depois, a um instituto público distinto do ora Recorrido (cabendo tal decisão, depois, à AIMA, I.P.).
Deste modo, a sentença recorrida errou ao julgar verificada a excepção dilatória de ilegitimidade passiva do ora Recorrido, que, no caso vertente, tem de ser considerado parte passiva legítima.
É, portanto, de conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, mais se ordenando a baixa dos autos à 1.ª instância para prosseguirem os seus termos, se a tal nada mais obstar.
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Sem custas, atenta a isenção prevista no artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do RCP.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - Ao IRN, I.P. assiste a competência legal para o recebimento do pedido de renovação da autorização de residência, conforme resulta do exposto no n.º 1 do artigo 81.º-A da Lei n.º 23/2007, de 04/07, aditado pelo DL n.º 41/2023, de 02/06.
II - Por seu turno, do artigo 3.º, n.º 2, alínea c), do DL n.º 41/2023, de 02/06, a competência legal para o deferimento ou indeferimento do pedido de renovação da autorização de residência já pertence à AIMA, I.P.
III - Quando o concreto pedido formulado na p.i. seja o de agendamento de uma data para a recepção do pedido de renovação da autorização de residência ou/e para a entrega dos respectivos documentos, a legitimidade passiva cabe ao IRN, I.P., ainda que a decisão sobre o pedido de renovação da autorização de residência venha a competir, depois, à AIMA, I.P.
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V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, revogar a sentença recorrida, mais ordenando a baixa dos autos à 1.ª instância para prosseguirem os seus termos, se a tal nada mais obstar.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 15 de Julho de 2025.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Mara de Magalhães Silveira – (1.ª Adjunta)
Joana Costa e Nora – (2.ª Adjunta)