Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:33889/24.8BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:07/15/2025
Relator:MARCELO MENDONÇA
Descritores:IPDLG
ARI
ART.º 109.º, N.º 1, DO CPTA
INDISPENSABILIDADE
SUBSIDIARIEDADE
Sumário:I - O recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ainda que intentado por cidadãos estrangeiros que tenham despoletado o procedimento administrativo com vista à emissão de autorização de residência em território nacional para actividade de investimento, atento a sua caracterização como meio processual de utilização excepcional, depende sempre da verificação, ante os factos concretos, do pressuposto da sua indispensabilidade, isto é, da sua necessidade imperiosa como “última ratio” para a emissão urgente de uma decisão de mérito imprescindível à protecção de direitos, liberdades e garantias, tendo em conta o estatuído pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
II - Impõe-se, todavia, que o requerente do presente meio processual cumpra com o ónus de alegação/densificação de factos devidamente concretizados e efectivamente demonstrativos de uma consistente situação urgente ou premente, de modo que só o processo de intimação se mostra capaz de proteger de modo imediato e cabal os direitos, liberdades e garantias alegadamente em causa.
III - Faltando a demonstração dos pressupostos da indispensabilidade e da subsidiariedade do meio processual, previstos no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, não é de admitir o articulado inicial, devendo o juiz, em consequência, rejeitar liminarmente a petição inicial, atento o disposto no artigo 110.º, n.º 1, do CPTA.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I - Relatório.

A…. e V…, cidadãos de nacionalidade russa, residentes no Dubai, Emirados Árabes Unidos, doravante Recorrentes, que no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TACL) deduziram intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (AIMA), doravante Recorrida, com vista à intimação da Recorrida para, em síntese, dar andamento ao procedimento administrativo de autorização de residência para actividade de investimento, que culmine em pré-admitir as candidaturas dos ora Recorrentes no âmbito do pedido de concessão autorização de residência por actividade de investimento em Portugal, e do pedido de reagrupamento familiar quanto à 2.ª Recorrente; em agendar a data para os ora Recorrentes se deslocarem à Recorrida para entregarem a documentação instrutória e proceder à recolha dos dados biométricos; e proferir a decisão final, inconformados que se mostram com a sentença do TACL, de 31/10/2024, que decidiu rejeitar liminarmente o requerimento inicial por falta de verificação dos pressupostos elencados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, contra a mesma vieram interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formulam as seguintes conclusões:
A. O presente recurso jurisdicional versa sobre uma questão decidida pelo STA no processo n.º 0741/23.4BELSB, no qual foi proferido o douto Acórdão de 6/06/2024 em julgamento ampliado de recurso para assegurar a uniformidade de jurisprudência nos termos do art. 148.º n.º 1 e 2 do CPTA, e que concluiu pela existência de erro de julgamento do Tribunal a quo quanto à apreciação do n.º 1 do art. 109.º do CPTA.
B. O Tribunal Central Administrativo Sul, reconheceu recentemente, no Processo n.º 4221/23.0BELSB, em que estava em causa a concessão de autorização de residência para atividade de investimento nos termos do disposto no art. 90.º-A da Lei n.º 23/2007 de 4 de julho e respetivo reagrupamento familiar, em tudo semelhante aos presentes autos, que o mesmo versa sobre a questão decidida pelo STA no processo n.º 0741/23.4BELSB, no qual foi proferido o douto Acórdão de 6/06/2024 em julgamento ampliado de recurso para assegurar a uniformidade de jurisprudência nos termos do art. 148.º n.º 1 e 2 do CPTA, e que concluiu pela existência de erro de julgamento do Tribunal a quo quanto à apreciação do n.º 1 do art. 109.º do CPTA.
Acresce que,
C. Os Recorrentes não se conformam com a decisão do Tribunal a quo, a qual consideram contrária à Constituição da República Portuguesa, ao entender que, pelo facto de os Recorrentes residirem no Dubai, não beneficiam do princípio da equiparação consagrado no art. 15.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o qual apenas é aplicável aos estrangeiros que se encontram ou residam em Portugal, e, assim, não gozam dos direitos dos cidadãos portugueses, onde se incluem os direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição.
D. Também não se conformam com a decisão proferida pelo douto Tribunal, quando entende que os Recorrentes não alegaram quaisquer factos concretos que permitissem concluir que a emissão urgente de uma decisão de mérito é indispensável o para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade e garantia de que sejam titulares.
Efetivamente,
E. Decorridos 15 meses desde a submissão do pedido de concessão de autorização de residência, nos termos do disposto no art. 90.º-A da Lei n.º 23/2007 de 4 de julho, e 14 meses desde a submissão do pedido de reagrupamento familiar, a AIMA, ao não decidir em tempo útil, está a negar aos Recorrentes a tutela do direito a residir em Portugal e, consequentemente de obter a cidadania portuguesa após o decurso do prazo de 5 anos, quando se encontram reunidos todos os elementos de facto e de direito de que a lei e a Constituição da República Portuguesa fazem depender essa concessão.
Efetivamente,
F. A AIMA, confrontada com os documentos oferecidos pelos Recorrentes, não notificou os Recorrentes para virem apresentar mais documentos, nem pediu esclarecimentos, aceitando os documentos oferecidos.
G. A AIMA não demonstrou qualquer facto impeditivo do direito dos Recorrentes.
H. A conduta da AIMA, ao não decidir em tempo útil, ou seja, no prazo de 90 dias após a submissão do pedido de autorização de residência instruído com todos os documentos necessários, veda aos Recorrentes um conjunto de direitos constitucionalmente consagrados, designadamente: - Limita o direito de acesso à proteção da saúde, porquanto o registo no SNS requer o título de residência; - Nega o exercício do direito ao trabalho, porquanto os Recorrentes não têm um título válido que lhes permita exercer uma atividade por conta própria ou de outrem em Território Nacional;
I. Parece decorrer da sentença proferida pelo Tribunal a quo, que outra seria a decisão se os Recorrentes tivessem optado pela via da permanência ilegal no território nacional. Pois que a esses que optaram por permanecer ilegalmente no território nacional, decorridos 15 meses de permanência no território nacional, já seria conferida a tutela jurídica de que reclamam os ora Recorrentes.
J. O meio processual previsto no artigo 109.º do CPTA tem por escopo garantir uma tutela jurisdicional efetiva e célere quando estão em causa direitos, liberdades e garantias fundamentais, de natureza pessoal, ou de direitos de natureza análoga, na medida em que o regime dos direitos liberdades e garantias também se aplica aos direitos fundamentais de natureza análoga, como decorre do artigo 17.º da CRP, e justifica-se quando seja necessária a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa que se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, desse direito, liberdade ou garantia, ou direito de natureza análoga.
K. No caso em apreço, estamos perante um quadro que se reconduz a um problema de tutela de direitos, liberdades e garantias, que aponta, em primeira linha, para o direito à cidadania e identidade pessoal, cujo exercício depende de uma atuação positiva por parte da Administração.
L. Mas estende-se, sem grande dificuldade, a outros direitos, liberdades e garantias, ou a outros direitos subjetivos fundamentais análogos, por força da especial ligação do direito à identidade pessoal ao valor da dignidade da pessoa humana.
M. O direito à cidadania, ou à nacionalidade portuguesa, encontra-se consagrado no art. 26.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), salientando que todos têm direito à cidadania portuguesa, desde que sejam cumpridos os requisitos legais.
N. Os Recorrentes pretendem vir a obter a nacionalidade portuguesa através do mencionado art. 6.º da Lei n.º 37/81 de 3 de outubro.
O. A demora na emissão da decisão constitui um impedimento à obtenção da nacionalidade portuguesa, na medida em que um dos requisitos é a residência legal no território português há pelo menos cinco anos.
P. Se a AIMA cumprisse os prazos previstos na lei para a tomada de decisão, os Requerentes já seriam residentes legais no território português há cerca um ano.
Q. O que se pretende com a presente intimação é uma tutela definitiva que estabilize a indefinição lesiva e permitam en tempo útil, aos Recorrentes exercerem os direitos que lhes assistem de forma plena.
R. A intimação constitui o único meio legalmente admissível para que os Recorrentes obtenham, em tempo útil, uma decisão que lhes permita exercer o direito de residência que lhes assiste.
Nestes termos e nos demais de Direito, deve o recurso ser julgado procedente por provado, revogando-se a sentença proferida pelo Tribunal a quo, e substituindo-se por outra que intime a AIMA a:
a) Pré-admitir as candidaturas de ALEXEY GUSKOV (no âmbito do pedido de concessão autorização de residência por atividade de Investimento em Portugal), e de VENERA GALIMOVA (no âmbito do pedido de reagrupamento familiar);
b) Agendar a data para os Recorrentes se deslocarem à AGÊNCIA PARA A INTEGRAÇÃO, MIGRAÇÕES E ASILO, I.P. para entregarem a documentação instrutória e proceder à recolha dos dados biométricos;
c) Proferir a decisão final, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 90.º A e 98.º n.º 2 da Lei n.º 23/2007 de 4/07.
Fazendo-se assim a costumada justiça!
A Recorrida não contra-alegou.
O Ministério Público (MP) junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
O parecer do MP foi notificado às partes.
Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.
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II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, se a decisão recorrida, ao concluir pela falta de verificação dos pressupostos enunciados no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, incorreu em erro de julgamento, ou não, designadamente, por ter rejeitado liminarmente o requerimento inicial com base em tal entendimento.
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III - Matéria de facto.
A decisão recorrida não fixou qualquer factualidade.
Os Recorrentes, por seu turno, nada impugnaram sobre tal matéria, não se vendo qualquer necessidade de fixar factos na presente instância de recurso, pois que, os Recorrentes dissentem da decisão recorrida, no essencial, por uma questão de direito, que tem a ver, como atrás se constatou, com o alegado julgamento erróneo sobre a verificação dos pressupostos do processo de intimação, que se encontram enunciados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
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IV - Fundamentação de Direito.
Na parte que aqui importa perscrutar, veja-se a fundamentação de direito explanada na decisão recorrida, transcrevendo-se os seguintes trechos, por serem aqueles que, de modo mais relevante, interessam à decisão do presente recurso:
(…) Volvendo ao caso dos autos.
Alegam os Requerentes que a urgência assenta no incumprimento do prazo decisório, omissão / incumprimento que se traduz em constrangimentos de diversa ordem e que na violação de diversos direitos, com respaldo constitucional ou em diplomas internacionais, conjuntura que não se compadece com uma tutela provisória ou alcançável pela ação administrativa e que não se encontra, sequer, densificada (tratando-se, de restos, de factos essenciais / nucleares), mas cuja eventual densificação nem releva. Com efeito, as suas alegações não atingem o nível de detalhe ou a profundidade que, mesmo a um golpe de vista mais aturado, se distingam do que pode ser alegado por qualquer pessoa que aguarde a decisão da AIMA, IP (ou de qualquer entidade adstrita / vinculada a prazos de decisão), sendo, aliás, alegações características dos incómodos comuns associados à incerteza dessa decisão (seja quanto ao prazo da sua emissão, seja quanto ao seu teor).
Ou seja, os Requerentes não alegam qualquer factualidade circunstanciada que permitisse apreciar a necessidade urgente concreta que permita sustentar a verificação de uma situação justificadora do uso do presente meio processual. Com efeito, como temos vindo a dizer, não está suficientemente caraterizada a existência de um prejuízo iminente e/ou consumado – veja-se que lança mão de numerosos artigos legais, sem indicar, um único caso / cenário concreto em que tais direitos se encontrem, efetivamente, violados (facto, de resto, essencial / nuclear para se apreciar da admissão e viabilidade do presente meio processual).
Por seu turno, também claudica a alegada indispensabilidade. Não se descura, ignorando, que possa existir um incumprimento do dever de pronúncia / decisão, por silêncio da Requerida dentro do prazo previsto legalmente para o efeito: porém, para que se possa lançar mão deste meio processual (e, procedendo, a Requerida seja intimada a decidir em determinado prazo), importa que os Requerentes demonstrem que seja indispensável o recurso a este meio processual em desprimor dos demais – o que não se sucede no caso vertente, porquanto, mais uma vez, os Requerentes se sustentam em alegações genéricas.
Compulsada a petição, resta concluir que, com referência ao momento presente, inexistem alegações (e, muito menos, algo que seja comprovado pelos Requerentes: e recordemos as regras de distribuição do ónus da prova) que sustentem qualquer urgência na proteção de direitos, liberdades e garantias e que permitam vislumbrar (e, muito menos, concluir pela existência de) de uma lesão iminente e irreversível dos vários direitos que os Requerentes referem, o mesmo se dizendo quanto à indispensabilidade de uma decisão de mérito para assegurar o seu exercício em tempo útil.
Cabe referir que não obstante poderem ser apresentados em conjunto, o pedido de reagrupamento familiar apenas é apreciado e decidido caso o pedido de concessão de autorização de residência requerido (neste caso, para atividade de investimento) venha a ser deferido (cfr n.º 5, do art. 81.º e n.º 1, do art. 98.º, ambos da Lei n.º 23/2007).
Em conclusão: os Requerentes formulam, somente, alegações genéricas, abstratas, considerandos que não passam de juízos conclusivos, mesmo considerada a resposta que antecede, sem a necessária densificação das circunstâncias da especial urgência que lhe cabia demonstrar no âmbito do presente meio processual Com efeito, a tutela judicial revela-se acautelada com recurso a outros meios processuais que se revelam adequados a, cumpridos os pressupostos, uma decisão de mérito que vá ao encontro do direito a uma pronúncia por parte da aqui Entidade Requerida.
Adicionalmente, não se encontrando ou residindo em território nacional (cfr. artigo 15.º da CRP), cfr a residência que os próprios indicam, os Requerentes não são titulares dos direitos, liberdades e garantias a que se arrogam – cfr., em sentido próximo, os acórdãos do TCA Sul, de 24-04-2024, proferido no processo n.º 3595/23.7BELSB, e de 23-05-2024, proferido no processo n.º 155/24.9BELSB, disponíveis em www.dgsi.pt.
(…)
Refira-se, ainda, não ter lugar o acórdão uniformizador de jurisprudência do STA n.º 11/2024, de 6 de junho, proferido no processo n.º 741-23.4BELSB (https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunaladministrativo/11-2024 871585082), porquanto o mesmo se centra nos pedidos apresentados, e não decididos, de concessão de autorização de residência para exercício de atividade profissional subordinada.
Pelo exposto, conclui-se que não estão reunidos os pressupostos ínsitos no n.º 1, do artigo 109.º do CPTA para a admissão da presente intimação para defesa de direitos, liberdades e garantias, razão pela qual rejeita-se liminarmente o requerimento inicial, nos termos do n.º 1, do artigo 110.º do CPTA.
Por identidade de razões, não é aplicável o disposto no artigo 110.º-A do CPTA.
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Desde já adiantamos que a decisão recorrida será confirmada.
Vejamos.
A decisão recorrida labora num domínio prévio, que se encontra inculcado a montante da fase de sindicância do mérito da causa. Isto é, tendo o Tribunal a quo que emitir um despacho liminar, a proferir no prazo máximo de 48 horas, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, do CPTA, é nesse preciso momento inicial que se impõe ao juiz aquilatar sobre a verificação dos pressupostos do processo de intimação, que se encontram plasmados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
Em resultado dessa primeira análise, o juiz da causa tanto pode admitir o articulado inicial, seguindo-se a citação da contra-parte, como pode rejeitá-lo, nesta última hipótese, se algum dos pressupostos enunciados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA não se mostrar, em concreto, preenchido.
“In casu”, foi precisamente o que ocorreu. O Meritíssimo Juiz a quo, tendo que proferir o despacho inicial no processo de intimação que lhe calhou em distribuição, emitiu, ante as circunstâncias alegadas do caso concreto, a decisão liminar de rejeição do requerimento inicial.
O n.º 1 do artigo 109.º do CPTA dita o seguinte: “A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar” (destaques nossos).
O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é de utilização excepcional, cujos requisitos encontram-se formulados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA em termos intencionalmente restritivos, segundo o entendimento sufragado no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, de Mário Aroso de Almeida e de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 5.ª Edição, 2022, Almedina, página 929, em anotação ao artigo acabado de citar.
Antecipamo-nos a dizer que, tendo presente os pressupostos vertidos no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, a começar pelo da indispensabilidade, não se mostra o mesmo preenchido no caso em apreço.
Em termos sintéticos, a indispensabilidade do processo de intimação significa, de acordo com a doutrina inscrita na obra e pelos autores já atrás assinalados, que a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não é a via normal de reação a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias. A via normal de reação é a da propositura de uma ação não urgente (…)”,associada à dedução do pedido de decretamento de uma providência cautelar, destinada a assegurar a utilidade da sentença que, a seu tempo, vier a ser proferida no âmbito dessa ação. Só quando, no caso concreto, se verifique que a utilização das vias não urgentes de tutela não é possível ou suficiente para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito, liberdade ou garantia é que deve entrar em cena o processo de intimação.
A intervenção da intimação está, assim, excluída nas situações em que a célere emissão de uma decisão sobre o mérito da causa, que ponha definitivamente termo ao litígio, não é indispensável para proteger o direito, liberdade ou garantia, bastando, para o efeito, a propositura de uma ação não urgente, complementada pelo decretamento de uma providência cautelar que dê uma regulação provisória ao caso.
Pelo contrário, o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias há de ser chamado a intervir em situações que não possam ser acauteladas deste modo, porque é urgente a obtenção de uma pronúncia definitiva sobre o mérito da causa.” (cf. páginas 933 a 935 da obra citada) – (sublinhados nossos).
Sobre a subsidiariedade, importa também salientar que o processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias foi instituído como um meio subsidiário de tutela, vocacionado para intervir como uma válvula de segurança do sistema de garantias contenciosas, nas situações – e apenas nessas – em que as outras formas de processo do contencioso administrativo não se revelem aptas a assegurar a proteção efetiva de direitos, liberdades e garantias” e que “Quando se afirma que o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias só deve intervir quando os processos não urgentes não se mostrem capazes de assegurar uma proteção adequada, esta afirmação tem, pois, em vista os processos não urgentes, devidamente complementados pelo sistema de tutela cautelar, com todas as possibilidades que ele comporta – com natural destaque, quando tal se mostre necessário, para a mais efetiva de todas, que é o decretamento provisório de providências cautelares” (cf. a obra e os autores que temos vindo a citar, de páginas 935 a 937) – (sublinhados nossos).
Doutrinam ainda Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha na obra citada, na página 932, que “A utilização da intimação não está sujeita a prazo de caducidade (…)”, “mas, a nosso ver, só se justifica se esse for o único meio que em tempo útil permita evitar a lesão do direito, pelo que está necessariamente associada a uma situação de urgência” (destaques nossos).
Retornemos, pois, ao caso concreto.
Em conclusões de recurso, repetindo, no essencial, o que já haviam aduzido no requerimento inicial, observamos, em primeiro lugar, o desagrado dos Recorrentes quanto à inércia decisória da Administração, pois, como referem, o prazo legal de decisão sobre os seus requerimentos foi já largamente ultrapassado.
O inconformismo dos Recorrentes pela demora da Administração na instrução procedimental ou na tomada de uma decisão no competente procedimento administrativo de autorização de residência, ainda que compreensível e legítimo, não é, por princípio, debelado pelo acesso imediato ao processo urgente de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, dado que, ante a inércia instrutória ou decisória da Administração, o contencioso administrativo prevê outros meios normais aos quais os interessados podem recorrer previamente, com especial prevalência para a acção administrativa de condenação à prática de acto devido, consagrada no artigo 37.º, n.º 1, alínea b), do CPTA (meio processual não urgente), eventualmente complementada com o requerimento incidental de processo cautelar para adopção de providência cautelar antecipatória (processo urgente), que ainda pode ser reforçado com o seu decretamento provisório, nos termos do artigo 131.º do CPTA.
Não é por demais chamar à colação a jurisprudência da Secção de Contencioso Administrativo deste mesmo TCAS, que admite, inclusive, que “os limites da tutela cautelar, impostos pela provisoriedade que a estruturam, consentem a concessão da autorização de residência a título provisório, por esta não conduzir a uma situação definitiva e irreversível, isto é, por não levar ao esgotamento da respectiva acção principal.”, mais propugnando este TCAS que a emissão da autorização de residência é compatível com uma definição cautelar.” (destaques nossos), conforme o exposto, entre outros, no acórdão de 07/06/2023, proferido no processo sob o n.º 166/23.1BEALM, entendimento que voltou a ser reiterado pelo acórdão deste mesmo TCAS, de 13/07/2023, prolatado no processo sob o n.º 489/23.0BELSB, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Os Recorrentes aludem ainda à violação do “Princípio do Estado de Direito”, bem como, dodireito à liberdade e à segurança (cf. art.º 27.º e 44.º da CRP), à identidade pessoal (cf. art.º 26.º, n.º 1.º, da CRP), à saúde (cf. art.º 64.º da CRP), e, em última instância, do princípio da dignidade da pessoa humana (cf. art.º 1.º da CRP)”. Neste especial conspecto, desde já dizemos que, como bem ajuizou a sentença recorrida, a alegação dos Recorrentes perpassa apenas pela mera invocação genérica de tais princípios e direitos, sem que se infira do alegado qualquer facto concreto que evidencie estarem tais prerrogativas legais em crise ou de estarmos diante uma situação realmente urgente que careça de ser acautelada pelo presente meio processual.
O mesmo se diz quanto aos citados direitos à “saúde” e ao “trabalho”, este último, por referência a um alegado desejo dos Recorrentes em exercerem “actividade por conta própria”, meras alusões indefinidas ou indeterminadas, pois, do exposto em conclusões de recurso e ante os factos concretamente articulados, não se infere, novamente, uma efectiva situação urgente que coloque em causa tais direitos e que necessite da protecção que é concedida pelo processo de intimação.
Os Recorrentes, no sentido de justificarem o acesso ao presente meio processual, também convocaram nas conclusões de recurso sob as letras M) a O) o argumento de que a demora decisória da Recorrida prejudica o cômputo do prazo legal necessário à obtenção da nacionalidade portuguesa, no que redunda, segundo os Recorrentes, na violação do “direito à cidadania portuguesa”, conforme o previsto no artigo 26.º da CRP.
Acontece que esta é uma questão nova, porque assim não colocada expressamente em sede do requerimento inicial, e, como tal, sem que a 1.ª instância sobre a mesma tivesse qualquer oportunidade de emitir pronúncia.
Sendo assim, este TCAS também não pode, somente em sede de recurso, ocupar-se do seu exame, porquanto, por princípio, o recurso não é “ocasião para julgar questões novas, pois visa “a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento” TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos cit., p. 395” (conforme anotação ao artigo 651.º do CPC, “in” Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, 3.ª Edição, Almedina, de José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre).
Por outro lado, os Recorrentes asseveram o “princípio de equiparação” vertido no artigo 15.º, n.º 1, da CRP. Acontece que, neste capítulo, também não assiste razão a tal argumento pela simples circunstância de que, não residindo os Recorrentes em Portugal com título de autorização de residência validamente emitido, não podem sequer equiparar-se aos demais cidadãos que em território nacional já se encontram munidos da referida autorização ou aos próprios cidadãos portugueses, razão pela qual os Recorrentes também não podem colocar-se numa situação de equiparação quanto aos direitos que os demais residentes/cidadãos nacionais já beneficiam. Assim tendo entendido a decisão recorrida, nenhum erro de julgamento lhe podemos imputar nesta vertente.
Neste sentido, entre outros, veja-se o já decidido no acórdão deste TCAS, de 09/05/2024, proferido no processo sob o n.º 4798/23.0BELSB, consultável em www.dgsi.pt.
Aqui chegados, importava que os Recorrentes tivessem cumprido com o ónus de alegação de factos concretos realmente demonstrativos de uma situação impressivamente caracterizadora da indispensabilidade do presente meio processual, ou seja, um contexto factual elucidativo de urgência ou premência. Mas tal não dimana do requerimento inicial, como bem constatou a sentença recorrida, como não resulta, de igual modo, do exposto em conclusões de recurso.
Ou seja, visto o fio condutor das conclusões recursivas, que delimitam o objecto do recurso, não se vislumbra a alegação de qualquer factualidade devidamente circunstanciada e densificada que sirva para justificar a indispensabilidade do uso excepcional do processo de intimação, pois que, nada de urgente ou premente dali se infere no sentido de ser necessária uma tutela imediata e definitiva dos direitos esgrimidos pelos Recorrentes.
Ora, sem quaisquer outros factos devidamente explicados ou densificados, que justifiquem o provir de uma situação de especial urgência ou premência que importe, desde já, obstar, nada de ofensivo se vislumbra para os direitos, liberdades e garantias invocadas.
Quer isto dizer, em resumo, que os Recorrentes não acoplaram quaisquer factos concretos e realmente demonstrativos de estarmos perante uma situação de especial urgência que seja indispensável acautelar ou impedir de modo imediato e de forma definitiva pela utilização do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.
Não é por demais relembrar que é sempre a partir do caso concreto que se perscruta a existência de fundamentos factuais que justificam a indispensabilidade do recurso ao processo de intimação. É o próprio requerente do meio processual de intimação que tem o ónus de alegar e provar os factos integradores/demonstrativos da requerida indispensabilidade.
Ao fim e ao cabo, como já aflorámos, inexiste no caso vertente, por falta de alegação, qualquer situação realmente urgente ou premente que importe prevenir por intermédio do processo de intimação, isto é, os Recorrentes não associaram ao requerimento inicial, nem agora, às conclusões recursivas, quaisquer factos suficientemente densificados que demonstrem a tal urgência ou premência ou dos quais seja possível extrair um atropelo grave e irreversível aos direitos invocados.
Cumpre ainda afirmar que seguimos aqui a orientação de vasta e recente jurisprudência deste TCAS, proclamada a propósito da concreta pretensão material de emissão da autorização de residência, com plena aplicação no caso vertente (no que especificamente diz respeito ao aludido requisito da indispensabilidade), destacando-se, entre outros, os acórdãos deste TCAS tirados nos seguintes processos: no Processo n.º 166/23.1BEALM, de 13 de Julho de 2023, no Processo n.º 489/23.0BELSB, de 13 de Julho de 2023, no Processo n.º 1151/23.9BELSB, de 26 de Julho de 2023, no Processo n.º 458/23.0BELSB, e ainda nos Processos n.ºs 4798/23.0BELSB, de 09/05/2024, e 602/24.0BELSB, de 23/05/2024, estes dois últimos alusivos, precisamente, à autorização de residência para actividade de investimento (de que o ora Relator também nos mesmos interveio nessa qualidade), todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
De modo acrescido, a título de exemplo, veja-se ainda o acórdão deste TCAS, de 13/07/2023, emitido no processo sob o n.º 489/23.0BELSB, “in” www.dgsi.pt, convocando-se o entendimento formulado no seu sumário, do qual consta o seguinte:
I Do art. 109º n.º 1, do CPTA, resulta que a utilização da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias depende dos seguintes pressupostos:
1) - a necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito seja indispensável para protecção de um direito, liberdade ou garantia [indispensabilidade de uma decisão de mérito];
2) - não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa normal [impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa, isto é, o requisito da subsidiariedade (…)
Atente-se, ainda, ao acórdão do STA, de 04/04/2024, tirado no processo sob o n.º 015/24.3BALSB, consultável em www.dgsi.pt, destacando-se os pontos I e II do seu sumário, como segue:
I-A adequação do meio processual da intimação judicial para proteção de direitos, liberdades e garantias, não se afere apenas em função de estar em causa um direito, liberdade ou garantia ou direito fundamental análogo, pois é necessário que esse direito se encontre ameaçado ou carente de tutela urgente de mérito.
II-Nos termos previstos no n.º 1, do artigo 109.º do CPTA, o uso deste meio processual pressupõe a necessidade de uma tutela de mérito urgente, que não possa ser satisfeita através do recurso aos meios normais, urgentes e não urgentes, isto é, processo cautelar e ação administrativa.
Importa dizer, também, que se mostra correcta a decisão recorrida no aspecto em que não aderiu ao entendimento sufragado pelo acórdão do STA, de 06/06/2024, proferido no processo n.º 0741/23.4BELSB, em julgamento ampliado de recurso (consultável em www.dgsi.pt), nos termos do artigo 148.º do CPTA, porquanto, a situação fáctica tratada naquele acórdão é diversa da que ora nos prende neste recurso, pois que, ao STA foi apresentado o caso concreto de uma autorização de residência para o efeito da prestação de trabalho subordinado de um cidadão estrangeiro já residente em Portugal, ao passo que, no caso vertente, os ora Recorrentes almejam o título de residência alicerçado numa actividade de investimento. Deste modo, atenta a diversidade factual, as preocupações subjacentes são distintas, não se aplicando ao caso em análise, de modo compulsório, a força convincente do aludido acórdão.
Tudo visto, é de negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
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Sem custas, atenta a isenção prevista no artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do RCP.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - O recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ainda que intentado por cidadãos estrangeiros que tenham despoletado o procedimento administrativo com vista à emissão de autorização de residência em território nacional para actividade de investimento, atento a sua caracterização como meio processual de utilização excepcional, depende sempre da verificação, ante os factos concretos, do pressuposto da sua indispensabilidade, isto é, da sua necessidade imperiosa como “última ratio” para a emissão urgente de uma decisão de mérito imprescindível à protecção de direitos, liberdades e garantias, tendo em conta o estatuído pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
II - Impõe-se, todavia, que o requerente do presente meio processual cumpra com o ónus de alegação/densificação de factos devidamente concretizados e efectivamente demonstrativos de uma consistente situação urgente ou premente, de modo que só o processo de intimação se mostra capaz de proteger de modo imediato e cabal os direitos, liberdades e garantias alegadamente em causa.
III - Faltando a demonstração dos pressupostos da indispensabilidade e da subsidiariedade do meio processual, previstos no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, não é de admitir o articulado inicial, devendo o juiz, em consequência, rejeitar liminarmente a petição inicial, atento o disposto no artigo 110.º, n.º 1, do CPTA.
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V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso jurisdicional, confirmando a sentença recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 15 de Julho de 2025.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Marta Cavaleira – (1.ª Adjunta)
Ana Lameira – (2.ª Adjunta)