Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:132/25.2BEFUN
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:06/06/2025
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:RECLAMAÇÃO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DO TERRITÓRIO
DEVEDOR ORIGINÁRIO
Sumário:I. No âmbito da execução fiscal e em matéria de competência em razão do território, o critério seguido pelo legislador foi o da área do domicílio ou sede do devedor originário.

II. Tendo sido o PEF instaurado contra o devedor originário, é por referência ao critério referido em I. que tem de ser aferida a competência em razão do território.
Votação:DECISÃO SINGULAR
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:

Decisão

[art.º 105.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC)]


I. Relatório

O Ilustre Magistrado do Ministério Público (doravante IMMP) veio reclamar, ao abrigo do art.º 105.º, n.º 4, do CPC, da decisão proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Funchal, na qual aquele Tribunal se julgou territorialmente incompetente para o conhecimento da reclamação, efetuada ao abrigo do art.º 276.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) e apresentada por J …………………., na qualidade de antigo sócio único da A ………………… - C…………….e Projetos, Sociedade Unipessoal Lda (Zona Franca Da Madeira).

Para o efeito, concluiu o seguinte:

“1. Por Sentença proferida a 19-03-2025, o Mmo. Juiz a quo suscitou a incompetência territorial do Tribunal Administrativo e Fiscal para apreciação da presente Reclamação de Atos do Órgão de Execução Fiscal, determinando a sua remessa ao Tribunal Tributário de Lisboa.

2. No caso concreto, a sociedade a que se reportam os factos objeto da presente Reclamação – A …………… – C…………………… E PROJETOS, UNIPESSOAL, LDA.,- foi extinta a 15-07-2016 e tinha sede na ……….., 12, E – 6 Andar, …………….., Funchal.

3. As dívidas objeto da presente reclamação dizem respeito a factos tributários ocorridos no período temporal anterior à sua extinção.

4. Uma vez que a aludida sociedade se encontrava extinta à data de instauração do processo executivo (17-06-2024), o ex-sócio J …………………………, com domicílio em Espanha, foi também, chamado a responder pelas dívidas daquela primeira.

5. Entende o Tribunal, que quando é instaurada uma execução contra uma sociedade já extinta e é chamado a responder, conjuntamente, o seu ex-sócio, como é o caso, o critério a mobilizar para determinação da competência territorial do Tribunal de primeira instância, é o da sede deste último, e não a sede dessa sociedade já extinta.

6. Com base neste raciocínio, a sentença a quo considerou que não podia determinar a competência com base no artigo 151.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário, uma vez que a expressão “devedora originária” apenas é aplicável em casos de responsabilidade subsidiária e não a uma sociedade já extinta.

7. Termos em que afastou a aplicação dos critérios previstos no artigo 12.º e 151.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário e, na falta de outro critério, mobilizou o artigo 22.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, no qual se determina, subsidariamente, que [q]uando não seja possível determinar a competência territorial por aplicação dos artigos anteriores, é competente o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa,

8. Determinando, em consequência, a remessa dos presentes autos ao Tribunal Tributário de Lisboa.

9. Ab initio, e num argumento literal, somos de entender que a norma suscitada não tem aplicação a este tipo de processo, porquanto especificamente diz respeito a ações administrativas (mencionando, explicitamente, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa).

10. Mas mesmo que assim não se entenda, não vemos necessidade na utilização de uma regra supletiva, mais concretamente o aludido artigo 22.º, uma vez que tem plena aplicação o artigo 151.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário.

11. Nos termos do artigo 12.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário, em caso de execução fiscal, é competente o tribunal da sede do executado; por sua vez, e no mesmo sentido, ao abrigo do artigo 151.º, tem competência para decidir incidentes, embargos, oposições e reclamações dos atos praticados pelo órgão de execução fiscal, o tribunal da área do domicílio ou sede do devedor originário.

12. Nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a competência fixa-se no momento da propositura da causa, constituindo a presente Reclamação um incidente do processo executivo (artigo 103.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária).

13. Em matéria de responsabilidade por dívidas da sociedade extinta, determina o n.º 2 do artigo 147.º, do Código das Sociedades Comerciais, que [a]s dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução não obstam à partilha nos termos do número anterior, mas por essas dívidas ficam ilimitada e solidariamente responsáveis todos os sócios, embora reservem, por qualquer forma, as importâncias que estimarem para o seu pagamento.

14. Pelo que, perante a extinção da sociedade, são os sócios que assumem a responsabilidade pelos créditos tributários resultantes da atividade daquela, mas vencidos apenas em momento posterior (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 14-11-2019, proferido no processo 1769/10, disponível em www.dgsi.pt).

15. Tal regime, determinando que o Reclamante, na qualidade de sócio liquidatário, seja (tal como aconteceu), chamado a responder pelas dívidas da sociedade A ………………– C……………………E PROJETOS, UNIPESSOAL, LDA., em nada implica que esta última deixe de ser considerada, para todos os efeitos, como devedora originária das dívidas objeto do processo de execução.

16. O Reclamante, como ex-sócio da A………………. – C………………. E PROJETOS, UNIPESSOAL, LDA., é chamado a responder pelas dívidas desta última (e, também, visado no processo executivo), por força de uma norma que o faz representar nesse sentido, não a título originário e pessoal.

17. Isto porque a sociedade extinta continua a ser o sujeito da relação jurídica tributária relativamente aos factos tributários ocorridos no período temporal anterior à respetiva extinção, mesmo que a lei designe outros responsáveis pelo pagamento dos tributos que se venham a liquidar relativamente àquele período (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12-10-2022, processo 0218/13.6BEAVR, disponível em www.dgsi.pt).

18. Aliás, quem figura como executada no documento que instaura o processo executivo é a precisamente a sociedade A ………………. – C……………..E PROJETOS, UNIPESSOAL, LDA., conforme fls. 1, do processo administrativo instrutor.

19. Assim, o termo “devedora originária” não se aplica, tão somente, à responsabilidade subsidiária, mas também, à responsabilidade solidária decorrente da extinção de uma sociedade, como é o caso, valendo plenamente o artigo 151.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário.

20. Aliás, considerando a sociedade extinta como sendo uma devedora originária, vejase o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 09-06-2021, processo 01167/18.78BELRA, disponível em www.dgsi.pt, onde se conclui que [n]ada obsta a que as liquidações (ou demonstração de acertos de contas) de dívidas fiscais anteriores à extinção de sociedade sejam emitidas em nome da sociedade extinta, por ser a devedora originária, e notificadas ao ex-sócio seu representante, bem como nada obsta que a subsequente execução fiscal seja instaurada contra a mesma dita sociedade por ser ela que figura no título executivo.

21. Também considerando uma sociedade extinta, uma devedora originária, temos JORGE LOPES DE SOUSA, em Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, III volume, anotação 11 ao art. 155.º, pág. 86, na qual se pode ler que não há obstáculo a que uma execução seja instaurada contra pessoa coletiva extinta, desde que seja a devedora original que conste do título executivo, pois este tipo de situações enquadra-se na previsão do n.º 3 do art. 155.º do CPPT, por interpretação extensiva. A situação será idêntica à de instauração contra uma pessoa singular que já tenha falecido, pelo que se justificará a habilitação sumária prevista no art. 155.º, n.º 3, do CPPT» (.).

22. Não vemos por isso, razão que legitime a conclusão de que, em caso de responsabilidade subsidiária, existe uma devedora originária, mas depois em caso de responsabilidade solidária, por extinção da sociedade, por dívidas relativas ao período em que se encontrava em atividade (ainda que posteriormente liquidadas), não se siga idêntico raciocínio.

23. Se a sociedade extinta continua a ser o sujeito jurídico da relação tributária relativamente aos factos tributários ocorridos no período temporal anterior à respetiva extinção, o chamamento de responsáveis pelo pagamento dessas mesmas dívidas, em nada impede que aquela primeira seja, para todos os efeitos, a devedora originária dessas mesmas dívidas.

24. Assim, no caso concreto, a sociedade A…………… O……………..– C O……………….. E PROJETOS, UNIPESSOAL, LDA., extinta a 15-07-2016, com última sede na Rua …………….., 12, E – 6 ……………. Funchal, é a devedora originária.

25. Termos em que tem plena aplicação o critério do artigo 12.º e 151.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário, pelo que é competente para apreciar o presente litígio, o Tribunal administrativo e Fiscal do Funchal.

Nestes termos e nos demais de Direito, requer-se que seja revogada a decisão que declarou a incompetência em razão do território deste Tribunal e que determinou, consequentemente, a remessa dos autos ao Tribunal Tributário de Lisboa, devendo tal decisão ser substituída por outra que declare a competência do Tribunal Administrativo e Fiscal para julgar os presentes autos”.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Qual o tribunal territorialmente competente para a instrução e conhecimento da presente ação?

II. Fundamentação

II.A. Para a apreciação da presente reclamação, são de considerar as seguintes ocorrências processuais, documentadas nos autos:

1) Foi instaurado, na Direção de Finanças do Funchal, o processo de execução fiscal (PEF) n.º ………………..399, sendo executada a sociedade A ……………. – C………….. e Projetos, Sociedade Unipessoal Lda (Zona Franca Da Madeira), com sede na R ………………. - 12 E - 6 ANDAR - …………………. 9050-011 FUNCHAL, ao qual foi apensado o PEF n.º ………………..402 (cfr Processo ……………).

2) Foi apresentado documento, junto do Serviço de Finanças do Funchal, indicando-se como requerente a sociedade referida em 1), requerendo, designadamente, a indicação do valor da garantia a prestar para suspensão dos PEF mencionados em 1) (cfr. Processo (…………….).

3) Foi proferida, a 29.10.2024, pela Diretora da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira, decisão de indeferimento de pedido de dispensa de prestação de garantia no âmbito dos PEF referidos em 1) (cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial – …………………………..).

4) Foi apresentada reclamação, ao abrigo do art.º 276.º do CPPT, dirigida ao TAF do Funchal, por J………………………………., na qualidade de antigo sócio único da A…………………. – C…………… E Projetos, Sociedade Unipessoal Lda (Zona Franca Da Madeira), tendo por objeto o despacho referido em 3) (cfr. …………………).


*

II.B. Apreciando.

Considera o IMMP, em síntese, que o TAF do Funchal é o competente para apreciar a reclamação em causa, porquanto tal é a solução que decorre do disposto nos art.ºs 12.º e 151.º do CPPT.

Vejamos, então.

A situação sob apreciação tem grande conexão com outras reclamações provenientes do TAF do Funchal. Como tal, chama-se à colação a decisão deste TCAS de 09.05.2025 (Processo: 114/25.4BEFUN), cuja fundamentação se transcreve praticamente na íntegra, pela similitude das situações, que a tornam completamente transponível. Ali se escreveu:

“Antes de mais, e face à profusa tramitação dos autos sobre a questão, cumpre fazer uma breve menção aos poderes do IMMP em matéria, designadamente, de contencioso tributário.

Nos termos do art.º 219.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), “ao Ministério Público compete (…) defender os interesses que a lei determinar (…) e defender a legalidade democrática”.

Por seu turno, nos termos do art.º 2.º do Estatuto do Ministério Público (EMP – Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto), “o Ministério Público (…) defende os interesses que a lei determinar (…) e defende a legalidade democrática, nos termos da Constituição, do presente Estatuto e da lei”.

Especificamente no que respeita à intervenção do MP no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, é ainda de chamar à colação o art.º 51.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF – Lei n.º 13/2002, de 19 de fevereiro), nos termos do qual “compete ao Ministério Público (…) defender a legalidade democrática e promover a realização do interesse público, exercendo, para o efeito, os poderes que a lei processual lhe confere”.

Também o art.º 14.º do CPPT prevê, no seu n.º 1, que “[c]abe ao Ministério Público a defesa da legalidade, a promoção do interesse público e a representação dos ausentes, incertos e incapazes”.

Cabendo, pois, ao MP, em sede de contencioso tributário, a defesa da legalidade e a promoção do interesse público, não se vislumbra óbice a que o mesmo apresente reclamação de decisões como a proferida (da mesma forma que tem legitimidade para recorrer).

Prosseguindo.

A competência do tribunal, em qualquer das suas espécies, deve ser aferida pelo tipo de pretensão deduzida pelo autor (pedido) e pelas normas que a disciplinam (fundamentos jurídicos).

Nos termos do art.º 12.º do CPPT:

“1 - Os processos da competência dos tribunais tributários são julgados em 1.ª instância pelo tribunal da área do serviço periférico local onde se praticou o ato objeto da impugnação ou no caso da execução fiscal, no tribunal da área do domicílio ou sede do executado.

2 - No caso de atos tributários ou em matéria tributária praticados por outros serviços da administração tributária, julgará em 1.ª instância o tribunal da área do domicílio ou sede do contribuinte, da situação dos bens ou da transmissão”.

Por seu turno, o art.º 151.º do mesmo diploma prescreve, no seu n.º 1, que:

“1 - Compete ao tribunal tributário de 1.ª instância da área do domicílio ou sede do devedor originário, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos atos praticados pelos órgãos da execução fiscal”.

Resulta para nós claro que, no âmbito da execução fiscal e em matéria de competência em razão do território, o critério seguido pelo legislador foi o da área do domicílio ou sede do devedor originário.

A este propósito, cumpre ter em conta a noção de sujeito passivo, constante do art.º 18.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária (LGT):

“3 - O sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável” (sublinhado nosso).

Chama-se ainda à colação o disposto no art.º 22.º, n.º 2, da LGT, nos termos do qual “[p]ara além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas”.

Apliquemos estes conceitos, in casu.

Na situação dos autos, é primitiva executada, contra quem foi instaurada a execução fiscal, a sociedade (…) [aqui A ……………… - C……………….E Projetos, Sociedade Unipessoal Lda (Zona Franca Da Madeira)], com sede na Zona Franca da Madeira. É irrelevante, para o presente efeito, saber se ela já tinha sido ou não antes extinta, dado que a instauração contra tal sociedade nos termos efetuados não foi posta em causa [ainda assim, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 09.06.2021 (Processo: 01167/18.7BELRA)].

É, pois, a sociedade (…) [aqui A …………………. – C…………… E Projetos, Sociedade Unipessoal Lda (Zona Franca Da Madeira)] a devedora originária, a contribuinte direta, e a intervenção nos autos (…) [do seu ex-sócio] não altera essa circunstância.

Como tal, como bem refere o IMMP, atento o disposto no n.º 1 do art.º 12.º do CPPT, o Tribunal Tributário do Funchal (a funcionar agregado com o Tribunal Administrativo de Círculo de Funchal, sob a designação unitária de TAF do Funchal, designação que temos vindo a seguir) é competente territorialmente para o conhecimento da reclamação, o mesmo resultando do art.º 151.º, n.º 1, do mesmo código, de modo algum circunscrito aos casos em que esteja em discussão apenas a responsabilidade subsidiária (cfr. art.º 3.º, n.ºs 1 a 3, e mapa anexo ao DL n.º 325/2003, de 29 de dezembro)”.

Assim, considerando a fundamentação transcrita e adaptada ao caso em concreto, assiste razão ao Reclamante.

III. Decisão

Face ao exposto:

a) Defere-se a reclamação apresentada, decidindo-se ser territorialmente competente, para a tramitação dos presentes autos, o TAF do Funchal;

b) Sem custas;

c) Registe e notifique;

d) Baixem os autos.


Lisboa, d.s.

A Juíza Desembargadora Presidente,