Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 28999/24.4BELSB |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 04/10/2025 |
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Relator: | MARCELO MENDONÇA |
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Descritores: | PROCESSO CAUTELAR OCUPAÇÃO DE FOGO MUNICIPAL SEM TÍTULO NÃO SATISFAÇÃO DO CRITÉRIO SÓCIO-ECONÓMICO ACESSO A UMA HABITAÇÃO PÚBLICA – NECESSIDADE DE APRESENTAÇÃO A CONCURSO |
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Sumário: | Uma vez finalizado o procedimento administrativo tendente à regularização de uma ocupação de fogo municipal sem título, no qual, inclusive, foi concretamente analisada a situação sócio-económica dos requerentes, e se concluiu que, apesar de cumprido o critério temporal, não se verifica o preenchimento do segundo critério (o sócio-económico/rendimentos mensais auferidos), uma vez ordenado o consequente despejo, cabe à entidade pública que a tal ordene, atento o previsto no n.º 6 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, a obrigação de orientar ou encaminhar os despejados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais, mas já não a obrigação de assegurar uma alternativa concreta para a resolução do problema de carência habitacional de que padeçam esses mesmos despejados, pois que, neste caso, a regra do acesso a uma habitação pública é já a da apresentação a concurso. |
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Votação: | UNANIMIDADE |
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Indicações Eventuais: | Subsecção Administrativa Comum |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | I - Relatório. J… e V…, doravante Recorrentes, que deduziram no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (TAC de Lisboa) processo cautelar contra o MUNICÍPIO DE LISBOA e contra a G...-GESTÃO DO ARRENDAMENTO DA HABITAÇÃO MUNICIPAL DE LISBOA, E.M., S.A., doravante Recorridos, para a adopção das seguintes providências: “a) suspender a eficácia do despacho datado de 10 de Setembro de 2024, do Vogal do Conselho de Administração da G..., M…, e do despacho exarado a 28-08-2024 pela Exma Sra Vereadora da Habitação, Obras Municipais, F…, e conceder autorização para os AA. e seus filhos permanecerem no Fogo Municipal em causa, até que haja decisão final da Acção principal a intentar - Acção administrativa Comum para reconhecimento do direito ao arrendamento do Fogo municipal, reconhecendo-se a sua ocupação legal, por o A. homem viver ali com o falecido avó desde 2013, cfr doc.s 2, 10, titular do arrendamento, há mais de um ano, antes do óbito deste, (em out 2017), nos termos n.º 1 do art.º 53º(Coabitantes reconhecidos) e al. c) do n.º 2 do art.º 50º do RGPH. Ou caso assim não se entenda, b) Ser Reconhecido o direito a regularizar a situação habitacional no fogo municipal em apreço por via da Deliberação 855, por ter comprovado que já ali vivia em data anterior a 1 de Outubro de 2021, requisito essencial para a regularização habitacional ao abrigo dessa Deliberação, independemente dos rendimentos auferidos mensalmente, uma vez que não foi esse o espirito dessa Deliberação; c) Serem declarados nulos os despachos aqui em crise, datados de 10/09/2024 e de 28/08/2024, por falta de competência do Vogal do conselho de administração da G...; d) Ser Reconhecido que o interesse social sobrepõe-se ao interesse público; e) Ser Reconhecido e provado que as RR não encaminharam os AA previamente á ordem de desocupação para apoios e programas habitacionais em clara violação à Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, que entrou em vigor no dia 1 de efectiva de 2016, artigo 28.º, n.º 6”; Inconformados que se mostram com a sentença do TAC de Lisboa, de 15/11/2024, que decidiu julgar improcedente o presente processo e não adoptar as medidas cautelares requeridas, por julgar não verificado o pressuposto do “fumus boni iuris”, contra a mesma vieram interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formulam as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF): “1. Os requerentes residem na habitação juntamente com as suas duas filhas menores. 2. A família não possui alternativa habitacional e enfrenta uma situação económica precária, com um rendimento familiar mensal de aproximadamente 1.500 €. 3. A providência cautelar foi liminarmente admitida, tendo os requeridos sido advertidos nos termos do artigo 128.º do CPTA, com o objetivo de evitar o despejo dos requerentes. 4. Os requerentes não estão a candidatar-se a um concurso de acesso a habitação municipal, mas sim a pedir a regularização da sua situação habitacional, uma vez que já residem no local desde 2016 e que a G... tinha pleno conhecimento disso, através do RGPH, art.º 50.º e 53.º, uma vez o requerente homem já vivia com o seu avó, titular do arrendamento, á mais 1 ano antes do seu falecimento. 5. Os requerentes pediram em alternativa, que a sua situação habitacional fosse regularizada pela Portaria 855/CM, sendo que o tribunal apenas apreciou este pedido não o primeiro pedido: «Que lhes fosse reconhecido o direito ao arrendamento do fogo municipal, nos termos do artigo 53.º (Coabitantes reconhecidos) e alínea c) do n.º 2 do artigo 50.º do RGPH, pelo facto de o requerente residir com o avô, titular do arrendamento, antes do falecimento deste.» 6. O Tribunal não apreciou este pedido, existindo uma omissão de pronúncia, em violação do disposto no artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1.º do CPTA. 7. A regularização habitacional é plenamente viável pelos artigos 50.º e 53.º do RGPH, que não exigem qualquer pontuação mínima para situações de coabitação comprovada, como é o caso dos requerentes. 8. Ademais, a decisão recorrida considerou que não se verifica o fumus boni iuris, com base na aplicação de critérios da Portaria 855/CM e da pontuação pelo IAS, desconsiderando que: 9. a. O IAS está desatualizado há muitos anos, não refletindo a atual conjuntura económica e social em Portugal; 10. É irrealístico considerar que uma família com dois filhos menores e rendimento de 1.500 € não seja carenciada, é quase um incentivo ao desemprego!; 11. A G... não justificou devidamente a pontuação atribuída aos requerentes, violando o princípio da transparência administrativa. 12. Além disso, os requeridos violaram o artigo 28.º, n.º 6, do RGPH, que determina que agregados familiares com efetiva carência habitacional devem ser previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou apoios habitacionais. Limitar-se a informar programas habitacionais não cumpre o sentido imperativo do normativo, pois "encaminhar" implica dirigir ou acompanhar efetivamente as famílias para alternativas reais. 13. O Tribunal justificou a inexistência de violação desta norma com base na escassez de habitação social e na necessidade de gestão eficiente, mas desconsiderou que a intenção do legislador não é deixar famílias com filhos menores na rua, como demonstra a própria legislação reguladora destas situações (Portaria 855/CM e RGPH). II. DO PEDIDO DE ATRIBUIÇÃO DE EFEITO SUSPENSIVO 11. A situação dos requerentes é de manifesta urgência e extrema gravidade, colocando em risco a dignidade humana e o bem-estar das suas duas filhas menores, na medida em que: a. A família não possui condições financeiras para arrendar habitação no mercado privado; b. A execução do despejo acarretará prejuízos irreparáveis, não apenas patrimoniais, mas também emocionais e psicológicos. 12. Os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora encontram-se plenamente preenchidos: a. Fumus boni iuris: Os requerentes têm direito à regularização da sua situação habitacional, seja pela Portaria 855/CM, seja pelos artigos 50.º e 53.º do RGPH. O Tribunal desconsiderou este último fundamento, havendo omissão de pronúncia. b. Periculum in mora: Caso não seja atribuído efeito suspensivo ao recurso, os requerentes serão despejados e ficarão sem teto, o que é manifestamente mais grave do que qualquer eventual prejuízo à G... ou ao Município de Lisboa. 13. O interesse privado dos requerentes, que envolve o direito fundamental à habitação e à dignidade humana, sobrepõe-se ao interesse público alegado, uma vez que o decretamento da providência cautelar e do efeito suspensivo não causará prejuízo irreparável às entidades requeridas. 14. Refere ainda a sentença recorrida que de acordo com o art.º 28.º, n.º 6 da Lei 81/2014«os agregados alvos de despejo com efectiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso á habitação ou para prestação de apoios habitacionais» e reconhece ainda que «porém, tal circunstância não contende com a desocupação do imóvel, face á redacção do art.º 35.º do mesmo diploma». De facto, o art.º 28.º, n.º 6, é uma “ilusão”, sem qualquer aplicabilidade prática, pois a G... no caso concreto, não encaminhou os recorrentes que tem 2 filhas menores, para qualquer apoio habitacional. 15. Em virtude de estarmos perante um meio processual residual que entra em funcionamento quando mais nenhum outro existe que permita lograr este objectivo de assegurar a proteão de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, contra a eficácia de atos administrativos que estes se consideram lesivos dos seus direitos e interesses, o presente Recurso merece – com o devido respeito – inteiro provimento, pois que a decisão do Mmº. Juíz a quo, ao indeferir liminarmente a providência cautelar interposta, não foi a mais acertada, segundo a perspetiva dos Recorrentes, o que expressam de igual modo, com todo o respeito, e não o foi, desde logo, porque a decisão da Mmº. Juíza a quo, contida na douta decisão recorrida, teve (na ótica dos Recorrentes) por base uma errada interpretação e aplicação dos preceitos legais aplicáveis em face dos factos alegados na petição inicial, bem como, dos pedidos aí formulados, os quais, merecem a tutela suscitada pelos Recorrentes e sendo que o primeiro pedido (regularização da situação habitacional por via dos art.ºs 50.º e 53.º do RGPH), nem sequer foi apreciado pelo tribunal a quo, constituindo uma omissão de pronúncia, sendo a sentença Nula, o que se requer! 16. Tanto mais, que o Tribunal apenas considerou a viabilidade da regularização através da portaria 855/CM e com base no que a G... analisou e concluiu no Processo Administrativo, sem mais outra qualquer produção de prova ou direito ao contraditório dos requerentes, tendo considerado erradamente:« Em suma, não se mostra provável que a pretensão dos Requerentes proceda na acção principal, pelo que falta o requisito do fumus boni iuris, tal como ele resulta do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA. Como decorre do texto legal, o decretamento da providência depende da verificação cumulativa dos três requisitos enunciados no n.º 1 e 2 do artigo 120.º do CPTA. Isso implica que a não verificação do fumus boni iuris conduz, por si só, à improcedência da presente acção cautelar, ficando, logicamente, prejudicado, o conhecimento dos demais requisitos.» 17. Ora, ainda se dirá que ao Tribunal a quo competia uma analise sucinta dos requisitos da aceitação da providência cautelar e não entrar na prova que irá ser produzida e esgotada na acção principal, assim sendo deveria o Tribunal “a quo”, ter considerado o fumus bonis iuris, com o fundamento de que o a requerente A,. já a ali vivia com o seu avó 1 ano antes do falecimento deste, conforme requisito exigido pelo art.º 50.º e 53.º RGPH, para a regularização e sendo esta prova suficiência para uma prognose favorável de vencimento da acção principal! 18. E que o tribunal não fez uma correcta interpretação, nem sequer valorou essa possibilidade e pedido dos requerentes! 19. Pelo que deve ser decretada a Nuidade da sentença, por violação de omissão de pronuncia e em consequentemente revogada e substituída a decisão por aceitação da PC, por se encontrarem reunidos os requisitos para o decretamento da mesma. III. DO PEDIDO Nestes termos, requer-se a V. Exa. que: 1. Seja atribuído efeito suspensivo ao presente recurso; 2. Seja provisoriamente decretada a providência cautelar, impedindo o despejo dos requerentes até decisão final transitada em julgado; c) Seja revogada a decisão recorrida e, em sua substituição, decretada a providência cautelar requerida, considerando: O direito dos requerentes à regularização habitacional pelos artigos 50.º e 53.º do RGPH, uma vez que o requerente homem já vivia com o avó, titular autorizado do fogo municipal á mais de 1 ano antes do falecimento deste, ou em alternativa pela portaria 855/CM, tendo em conta a situação de manifesta carência habitacional e os direitos fundamentais dos requerentes. d) Ser Reconhecido e provado que as RR não encaminharam os AA previamente á ordem de desocupação para apoios e programas habitacionais em clara violação à Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, que entrou em vigor no dia 1 de 17efectiva de 2016, artigo 28.º, n.º 6, 3. Deve ainda ser declarada A omissão de pronúncia quanto ao pedido de regularização pelo art.ºs 50.º e 53.º do RGPH e apreciação critica das provas documentais juntas na providência cautelar pelo requerente e pelo facto do Tribunal “a quo” não ter esgotada toda a prova, nomeadamente, a testemunhal, para a boa decisão da causa, e consequentemente ser a sentença declarada Nula, nos termos e efeitos do art.º 615, n.º 1, al. d) do CPC ex vi art.º 1 do CPTA; Fazendo assim a acostumada JUSTIÇA!” O Recorrido Município de Lisboa deduziu contra-alegações, concluindo o seguinte: “A. Quer o ato administrativo suspendendo (e respetiva notificação), quer a decisão proferida pelo TAC de Lisboa, ora posta em crise, revelam absoluta isenção, sentido crítico e rigor, e encontram-se devidamente fundamentados. B. Com efeito, a douta sentença sob recurso não resultou de falta de produção de prova, nem de omissão de pronúncia, comos os Recorrentes pretendem; na verdade, não merece qualquer reparo. C. Desde logo, os Recorrentes sustentam a verificação daqueles vícios, relativamente a matéria de facto (residência do 1.º Recorrente no fogo municipal desde 2016), e de direito (regularização da situação habitacional do 1.º Recorrente ao abrigo dos arts. 53.º e 50.º n.º 2 al. c) do Regulamento de Gestão do Parque Habitacional do Município de Lisboa - RGPH), absolutamente alheias, e irrelevantes, para a ponderação, pelo Tribunal a quo, da probabilidade de procedência de uma qualquer ação anulatória ou condenatória, relativamente aos atos cuja suspensão de eficácia aqueles requereram. D. Matérias que, aliás, o 1.º Recorrente apenas suscitou, junto dos Serviços do Recorrido, sem, no entanto, demonstrar, após ter sido notificado da decisão final que determinou a desocupação da habitação municipal. E. Com efeito, quer a decisão que determinou a desocupação da habitação municipal, quer a respetiva notificação, cuja suspensão de eficácia os então Requerentes peticionaram em 1.ª instância, decorrem exclusivamente da aplicação do regime consagrado na versão consolidada da Deliberação n.º 855/CM/2022, publicada no 5.º Suplemento ao Boletim Municipal n.º 1506, de 29 de dezembro, para efeito de aprovação das medidas para regularização das ocupações não autorizadas de Habitações Municipais ocorridas até 1 de outubro de 2021. F. Acresce que, o doc. 2, de que os Recorrentes pretendem extrapolar a residência do 1.º Recorrente, no fogo municipal, desde 2016, corresponde a uma declaração de situação profissional, cuja localização é igualmente irrelevante para efeito de apuramento da sua situação residencial. G. Pelo que também carece de fundamento o pretenso erro de julgamento em que a sentença recorrida teria incorrido, no entender dos Recorrentes, por não extrair do referido documento, a «realidade» que estes pretendiam. H. Carece igualmente de absoluto fundamento a invocação de uma alegada violação do dever de especificação sobre os factos provados e não provados, como resulta do sub-capítulo i) do capítulo IV da sentença recorrida que, no âmbito da «Fundamentação de facto», indica, de forma sustentada, desde logo por referência à documentação junta aos autos, a factualidade considerada indiciariamente provada, “(…) com relevância para a decisão da questão de mérito que agora importa apreciar (…)”. I. Face a todo o exposto, deve considerar-se que o presente recurso padece de absoluta falta de fundamento, pelo que não deverá proceder, o que se requer a V. Exas. se dignem determinar, mantendo a douta sentença sob recurso nos seus exactos termos.” A Recorrida G... -GESTÃO DO ARRENDAMENTO DA HABITAÇÃO MUNICIPAL DE LISBOA, E.M., S.A. também apresentou contra-alegações, concluindo, sinteticamente, pela justeza da sentença recorrida e, como tal, pelo não provimento do recurso. O Ministério Público (MP) junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso. O parecer do MP foi notificado às partes. Sem vistos das Exmas. Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento. *** II - Delimitação do objecto do recurso.Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, a título de questão prévia, o efeito a fixar ao recurso, se os Recorrentes impugnam, ou não, a decisão do Tribunal a quo que indeferiu a produção de qualquer outro meio de prova, nomeadamente, testemunhal, se foi cumprido no âmbito das conclusões recursivas o ónus de impugnação da decisão de facto, se a sentença recorrida padece da arguida nulidade por omissão de pronúncia sobre um dos pedidos cautelares (ou parte de um desses pedidos), e se a mesma sentença enferma de erro de julgamento no que concerne à apreciação do pressuposto do “fumus boni iuris” vertido no n.º 1 do artigo 120.º do CPTA. *** III - Matéria de facto.Da sentença recorrida consta a seguinte fundamentação de facto: “1) Os Requerentes ocupam, à revelia do Município de Lisboa/Entidade Gestora, a habitação municipal sita na Rua 2, Lote 33, Lisboa – facto não controvertido. 2) O fogo municipal descrito foi legalmente atribuído a A… – facto não controvertido. 3) No âmbito da promoção de transferência habitacional das famílias residentes na zona de A… – Regeneração Urbana da Zona de Alvenaria, a Entidade Requerida/G..., promoveu a análise da situação habitacional do agregado residente no fogo municipal sito na Rua 2, n.º 33 – cfr. fls. 122 do processo electrónico. 4) No âmbito daquela análise, a G... conclui que os Requerentes não eram elementos autorizados a habitar o fogo municipal objecto dos presentes autos cautelares, pelo que foram abrangidos no âmbito das deliberações n.º 855/CM/2022 e n.º 855-A/CM/2022, com vista a uma eventual regularização da ocupação não autorizada – facto não controvertido. 5) Através das Deliberações anteriormente identificadas, o Município de Lisboa aprovou medidas para a regularização das ocupações não autorizadas até 01 de Outubro de 2021 – cfr. fls. 1 a 3 do processo administrativo apenso. 6) Encontrando-se o fogo municipal objecto dos presentes autos cautelares abrangido pelo objecto fixado nas Deliberações mencionadas no facto 4), a Entidade Requerida/G..., no dia 16.01.2024 notifica os requerentes para “apresentação de documentação”, de modo a poder aferir dos critérios para a atribuição do respectivo fogo municipal – cfr. fls. 11 e seguintes do processo administrativo apenso. 7) Após a recepção de toda a documentação necessária, a G... procedeu à análise da situação habitacional dos Requerentes, ao abrigo da Deliberação n.º 855/CM/2022, no qual conclui como data de ocupação do fogo municipal o dia 02.12.2017 e pontuação total (matriz multicritério) 25,67279 – cfr. fls. 81 e seguintes do processo administrativo apenso. 8) No dia 09.05.2024 a Entidade Requerida/G..., através do ofício n.º 2024/383, notifica os Requerentes para, em sede de audiência prévia, se pronunciarem dos factos apurados na sequência da análise sócio-económica efectuada, designadamente, o facto de a pontuação obtida (25,67279) ser inferior ao valor de referência de acesso à habitação (43,07) – cfr. fls 81 do processo administrativo apenso. 9) Em 28.08.2024, a Vereadora da Habitação, Obras Municipais e Relação com as Juntas de Freguesia, por delegação de competências, concorda com os fundamentos constantes no relatório e respectiva proposta de decisão n.º 2024/3764, pelo que determina a desocupação do imóvel ocupado pelos Autores – cfr. fls. 119 do processo administrativo apenso. 10) Em 12.09.2024, através do ofício n.º 2024/7025, foi dirigido aos ocupantes do fogo municipal referido nos presentes autos, a notificação da decisão administrativa constante do facto anterior, nos termos do qual consta os seguintes elementos informativos: [cf. imagem no original] – cfr. fls. 129 do processo administrativo apenso.” *** IV - Fundamentação de Direito.Questão prévia - do efeito do recurso: O despacho do Tribunal a quo que admitiu o recurso fixou o efeito suspensivo baseado no n.º 5 do artigo 143.º do CPTA (despacho de 17/12/2024 – cf. página 531 da numeração SITAF). Mas assim não pode ser, tanto mais que a decisão da 1.ª instância que “admita o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito que lhe compete não vincula o tribunal superior nem pode ser impugnada pelas partes”, atento o disposto no artigo 641.º, n.º 5, do CPC, “ex vi” dos artigos 1.º e 140.º, n.º 3, do CPTA. O efeito-regra do recurso interposto contra decisões respeitantes a processos cautelares é o de meramente devolutivo, conforme resulta cristalinamente da alínea b) do n.º 2 do artigo 143.º do CPTA. A interpretação conjugada dos n.ºs 3 a 5 do artigo 143.º do CPTA não permite a alteração ou a recusa do efeito meramente devolutivo previsto no n.º 2 do mesmo comando legal para as sentenças que recusem, nomeadamente, a adopção da providência cautelar de suspensão da eficácia de actos administrativos. Nesta temática, são deveras esclarecedoras as anotações patentes no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, de Mário Aroso de Almeida e de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 5.ª Edição, 2022, Almedina, que doutrinam o seguinte: “Por outro lado, a solução também tem a importante consequência de permitir que as decisões que recusem a adoção da providência cautelar de suspensão da eficácia de atos administrativos produzam imediatamente os seus efeitos a partir do momento em que sejam proferidas, fazendo cessar a proibição de executar o ato administrativo que decorre do artigo 128.º (…). Na verdade, a atribuição do efeito suspensivo ao recurso jurisdicional, neste tipo de casos, teria o efeito pernicioso de favorecer a utilização abusiva do recurso contra decisões que recusassem a suspensão da eficácia de atos administrativos, no propósito de aproveitar o efeito automático que resultaria da simples interposição do recurso jurisdicional durante toda a pendência do mesmo, assim prolongando a situação de proibição de executar o ato administrativo” (páginas 1151 e 1152 da obra citada); “As previsões dos n.ºs 4 e 5 pressupõem que tenha sido requerida a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso, nos termos do n.º 3. Não são, por isso, aplicáveis às situações de efeito devolutivo por determinação da lei, que diretamente decorrem do disposto no n.º 2, sem dependência de requerimento, e não são, por isso, passíveis de decisão de atribuição ou recusa por parte do juiz. Por outro lado, a lei não prevê a possibilidade, nos casos em que o recurso tem efeito meramente devolutivo, nos termos do n.º 2, de ser requerida ao juiz a substituição desse efeito por um efeito suspensivo. A solução explica-se porque a atribuição do efeito meramente devolutivo ao recurso, nos casos previstos no n.º 2, é justificada, como foi explicado na nota precedente, pelas razões de especial urgência que estão na base da utilização dos meios processuais em causa (…tutela cautelar…), e, no que se refere às decisões respeitantes a processos cautelares, também pelo facto de o juiz já ter procedido, no âmbito desses processos, à ponderação de interesses de que os n.ºs 4 e 5 do presente artigo fazem depender a decisão do juiz de alterar os efeitos do recurso” (página 1156 da obra referida). Acolhendo o entendimento supra aludido ao caso vertente, por aqui também se tratar de um recurso interposto contra uma sentença proferida em processo cautelar, nenhum fundamento existe para ser recusado o efeito meramente devolutivo preconizado na alínea b) do n.º 2 do artigo 143.º do CPTA, que é o efeito legalmente aplicável à presente situação. Recusamos, por isso, a peticionada atribuição/manutenção do efeito suspensivo ao recurso “sub judice”, e, em conformidade, fixamos o efeito de meramente devolutivo. Improcede, com efeito, o que nesta matéria consta da respectiva conclusão recursiva. *** A) Da alegada questão de não produção de qualquer outro meio de prova:Em decisão imediatamente antecedente à sentença recorrida propriamente dita, o Tribunal a quo decidiu pela suficiência da prova documental patente nos autos, indeferindo a produção de outros meios de prova, designadamente, a de índole testemunhal. Compulsadas as conclusões recursivas, designadamente, a 16.ª, atento seu cariz vago e genérico, dali não se extrai com mediana suficiência e clareza que os Recorrentes efectivamente impugnem a decisão que recusou a produção de outros meios de prova, nomeadamente, a testemunhal, mantendo-se a mesma incólume. Improcede, pois, tal questão. *** B) Do alegado erro, imputado somente em sede da motivação recursiva, quanto à decisão de facto da sentença recorrida:Os Recorrentes genericamente aludem na motivação de recurso que na sentença “não se encontram especificados quais os factos dados como provados e quais os dados como não provados” (cf. artigo 5.º da motivação de recurso), mais dirigindo a partir do artigo 7.º dessa mesma motivação uma crítica à elaboração do ponto 7.º do probatório da sentença recorrida, no que se encara como uma impugnação da decisão de facto, segundo o previsto no artigo 640.º do CPC. Acontece que, quer num caso como noutro, os Recorrentes em sede das conclusões recursivas, que delimitam o objecto do recurso, omitiram por completo qualquer referência à pretensa impugnação da matéria de facto vertida na sentença recorrida, pois que, nessas conclusões, tinham que, no mínimo, identificar os concretos pontos de facto cuja alteração pretendiam, atento o estipulado no artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do CPC. Assim não o fazendo em conclusões recursivas, isso implica a rejeição do recurso na parte relativa à pretensa impugnação da matéria de facto. Neste sentido, entre outros, veja-se o sumário do acórdão do Tribunal da Relação da Guimarães, de 02/11/2017, proferido no processo sob o n.º 212/16.5T8MNG.G1, consultável em www.dgsi.pt, em cujos pontos I e II foi entendido o seguinte: “I. Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso e balizar o âmbito do conhecimento do Tribunal - e não apenas para sintetizar os fundamentos aduzidos antes para a procedência da impugnação feita -, terão que ser identificados nas mesmas os concretos pontos de facto cuja alteração se pretende (arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1 e nº 2, e 640º, nº 1, al. a), todos do C.P.C.). II. A falta de indicação, nas conclusões de recurso, dos concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados, implica a rejeição imediata do recurso na parte afectada, uma vez que a lei não prevê a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento dirigido à parte incumpridora do ónus de impugnação (arts. 639º, nº 3, a contrario, e 640º, ambos do C.P.C.).” – (sublinhados nossos). Conforme atrás entendido, nesta parte, rejeita-se o recurso. *** C) Da arguida nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia sobre um dos pedidos cautelares – ou parte de um desses pedidos: Neste conspecto, os Recorrentes, em conclusão recursiva, afirmam, sinteticamente, o seguinte: a sentença recorrida não apreciou “o primeiro pedido: «Que lhes fosse reconhecido o direito ao arrendamento do fogo municipal, nos termos do artigo 53.º (Coabitantes reconhecidos) e alínea c) do n.º 2 do artigo 50.º do RGPH, pelo facto de o requerente residir com o avô, titular do arrendamento, antes do falecimento deste.». Escalpelizemos, pois, a presente situação. A sentença recorrida concentrou a sua análise no pedido de decretamento da providência cautelar de suspensão da eficácia do acto administrativo suspendendo (indicado na alínea a) do petitório final do requerimento inicial), acto esse que, em suma, determinou aos ora Recorrentes “A desocupação do fogo municipal sito no BO DA BOAVISTA RUA 2, LT. 33, 1500-000 LISBOA”. Por decorrência do seu discurso fundamentador, vê-se que o Tribunal a quo acabou por discorrer, ainda, sobre o pedido cautelar alternativo formulado na alínea b) do petitório final inscrito no mesmo requerimento inicial, ou seja, sobre a possibilidade dos ora Recorrentes verem “a sua situação habitacional…regularizada pela Portaria 855/CM”, conforme aduzem em conclusão de recurso. Acontece que os Recorrentes, bem ou mal (não sendo já esta a sede própria para discutir a imperfeição do requerimento inicial no que às medidas cautelares requeridas diz respeito, eventualmente carecido de despacho-convite ao aperfeiçoamento), no petitório final levado à alínea a) do requerimento inicial efectivamente enxertaram algo mais, isto é, para além da medida cautelar de suspensão da eficácia do acto suspendendo, acrescentaram ainda o requerimento no sentido de ver reconhecida “a sua ocupação legal, por o A. homem viver ali com o falecido avó desde 2013, cfr doc.s 2, 10, titular do arrendamento, há mais de um ano, antes do óbito deste, (em out 2017), nos termos n.º 1 do art.º 53º(Coabitantes reconhecidos) e al. c) do n.º 2 do art.º 50º do RGPH”, ou, nas palavras dos Recorrentes trazidas agora à conclusão de recurso, como atrás expresso, “Que lhes fosse reconhecido o direito ao arrendamento do fogo municipal, nos termos do artigo 53.º (Coabitantes reconhecidos) e alínea c) do n.º 2 do artigo 50.º do RGPH, pelo facto de o requerente residir com o avô, titular do arrendamento, antes do falecimento deste” – (sublinhado nosso). Ora bem, compulsada a sentença recorrida, de forma direccionada e com intuito decisório, não se vê que o Tribunal a quo se tivesse debruçado especificamente sobre o excerto do petitório atrás transcrito, incorporado que foi na 2.ª parte do pedido que começou por ser de suspensão da eficácia do acto suspendendo, mas que se desdobrou, depois, para um pedido de reconhecimento de direito, cuja técnica de articulação, se discutível, ainda assim, não invalida de que sobre tal parcial pretensão/questão devesse ser emitida uma pronúncia. É por isso que, neste segmento, têm razão os Recorrentes na arguição de uma nulidade por omissão de pronúncia sobre um pedido cautelar (ou parte de um pedido desdobrado), independentemente da sua admissibilidade ou/e do seu mérito, questão que competia apreciar pela 1.ª instância e não o foi, verificando-se, com efeito, a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC. Todavia, ainda que nula a sentença pelo motivo acabado de explicitar, enquanto Tribunal de apelação não deixamos de, desde já, apreciar e decidir o que se mostra necessário sobre tal pedido desdobrado, em substituição, conforme o prescrito no artigo 149.º, n.º 1, do CPTA. Pois bem, tenha-se presente que os Recorrentes, em conclusão recursiva, dizem não ter sido apreciado o tal pedido cautelar em que pretendem alcançar o reconhecimento judicial do alegado “direito ao arrendamento do fogo municipal nos termos do artigo 53.º (Coabitantes reconhecidos) e alínea c) do n.º 2 do artigo 50.º do RGPH, pelo facto de o requerente residir com o avô, titular do arrendamento, antes do falecimento deste” - (cf. conclusões de recurso 5.ª a 7.ª) – (sublinhados nossos). Mas tal pretensão não pode ser reconhecida logo em sede cautelar. Vejamos as razões. Atente-se previamente que, no introito do requerimento inicial, os ora Recorrentes até sinalizam que a acção principal a intentar visa o “reconhecimento do direito á regularização da ocupação do fogo municipal supra indicado quer seja por via da Deliberação 855/M e consequente direito ao arrendamento do fogo municipal, uma vez que apresentou junto da G... documentos comprovativos em como já ali residia em data anterior a 1 de Outubro de 2021, conforme estipula a deliberação 855, quer seja por via do art.º 53º (Coabitantes reconhecidos) e al. c) do n.º 2 do art.º 50º do RGPH, por o A. viver com o avó (titular do arrendamento do Fogo Municipal em apreço), há mais de 1 ano antes deste falecer. Sendo que o avó faleceu em 22-10-2017 e pelo menos desde 1-06-2016, que o A. já viva com aquele” – (sublinhado nosso). Isto é, no que toca ao reconhecimento do direito por conta do segmento do “art.º 53º (Coabitantes reconhecidos) e al. c) do n.º 2 do art.º 50º do RGPH”, os Recorrentes, no fim de contas, pretendem ver reconhecido logo em processo cautelar uma pretensão que igualmente clamam na acção principal, ou que só pode ser alcançada por via dessa acção, almejando obter já pelo presente meio processual, que é instrumental e provisório, uma tutela definitiva da sua posição jurídica face ao fogo municipal, que, a ser concedida, retiraria uma parte do objecto ou da razão de ser do processo principal. Tal não pode ocorrer, pois o processo cautelar não pode consumir ou esgotar o objecto da acção principal. Tal pedido nada tem de instrumental, nem de provisório, pois não visa acautelar ou prevenir riscos, ameaças ou prejuízos enquanto perdurar o processo principal, mas sim a consolidação final da posição jurídica dos Recorrentes face à habitação que ora ocupam sem título, logo em processo cautelar. Acresce dizer, ainda, que a conclusão de recurso 17.ª acaba por apontar na mesma na direcção do que ora julgámos. Veja-se o que diz tal conclusão recursiva: “ao Tribunal a quo competia uma análise sucinta dos requisitos da aceitação da providência cautelar e não entrar na prova que irá ser produzida e esgotada na acção principal, assim sendo deveria o Tribunal “a quo”, ter considerado o fumus bonis iuris, com o fundamento de que o a requerente A,. já ali vivia com o seu avó 1 ano antes do falecimento deste, conforme requisito exigido pelo art.º 50.º e 53.º RGPH, para a regularização e sendo esta prova suficiência para uma prognose favorável de vencimento da acção principal” (sublinhados nossos). Ou seja, o que se extrai da conclusão de recurso acabada de transcrever é que os próprios Recorrentes percepcionam que o pedido em causa fará parte, na mesma, da acção principal, remetendo, inclusive, para uma produção de prova mais aturada sobre o mesmo em sede de tal acção, o que consubstancia mais um claro indício de que há aqui um pedido cautelar que igualmente fará parte do petitório do processo principal. Ademais, são os próprios Recorrentes a assumir que o pedido de reconhecimento do direito ao arrendamento é distinto (autonomizado) da pretensão de suspensão de eficácia do acto suspendendo (e consequente autorização a permanecer no locado) formulada na parte inicial da alínea a). E que este pedido é (tão só) de reconhecimento do direito ao arrendamento, sendo-lhe especificamente alocada a causa de pedir correspondente a esse direito encontrar fundamento "nos termos do artigo 53.º (Coabitantes reconhecidos) e alínea c) do n.º 2 do artigo 50.º do RGPH, pelo facto de o requerente residir com o avô, titular do arrendamento, antes do falecimento deste". E é nesse sentido que, efectivamente, também se reconhece que o pedido formulado no requerimento cautelar de modo desdobrado na alínea a) consome a pretensão que os Recorrentes dizem que irão formular na acção principal, carecendo de provisoriedade, e, consequentemente, também impedindo que se conheça da causa de pedir/fundamento de direito que subjaz (apenas) a esse pedido. Deste modo, por falta, sobretudo, de provisoriedade quanto ao pedido cautelar em causa, é o mesmo julgado inadmissível e infundado. *** D) De eventual erro de julgamento no que concerne à apreciação do pressuposto do “fumus boni iuris”:Em primeiro lugar, do que conseguimos descortinar logo na conclusão 4.ª, importa precisar que nunca o Tribunal a quo afirmou que os ora Recorrentes se candidatavam a um concurso ordinário de acesso à habitação, pois da sentença recorrida fica claro que a 1.ª instância bem compreendeu que o procedimento administrativo em causa foi sim o de regularizar uma ocupação sem título/não autorizada que se mantinha até 01/10/2021. O Tribunal a quo não se confundiu nos procedimentos administrativos, pois o que disse foi coisa diversa. Veja-se. A sentença recorrida afirmou que: “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados. Ora, atento o teor do n.º 2 da versão consolidada das Deliberações n.º 855-A/CM/2022 e n.º 855/CM/2022, publicada no 5.º Suplemento ao Boletim Municipal n.º 1506, de 29 de Dezembro de 2022, não restam dúvidas que um dos critérios a observar na regularização da ocupação de habitações municipais sem título se consubstancia, inexoravelmente, na verificação da situação sócio-económica dos ocupantes. A norma é claríssima a este propósito, ao remeter para a matriz constante do Anexo II ao Regulamento Municipal do Direito à Habitação. E nem poderia ser de outra forma. É que a atribuição das habitações municipais faz-se, normalmente, por procedimento administrativo concursal – cfr. artigo 7.º e seguintes da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro (Regime do Arrendamento Apoiado para Habitação) e artigo 10.º e seguintes do Regulamento do Regime de Acesso à Habitação Municipal (RRAHM), publicado no Boletim Municipal da Câmara Municipal de Lisboa, em 21.2.2013. Nestes procedimentos, procede-se à classificação do pedido, de acordo com os critérios de hierarquização e ponderação estabelecidos pela Entidade Locadora, de modo que jamais as Entidades Requeridas, para efeitos de regularização de ocupações ao abrigo das referidas Deliberações, poderiam afastar os critérios estabelecidas para a atribuição de habitações pela via normal do concurso. Estaríamos a subverter o regime de acesso à habitação municipal e, bem assim, a violar o princípio constitucional da igualdade, conferindo maiores vantagens de acesso aos Requerentes sem que tal se justifique – cfr. artigo 16.º do RRAHM.” Isto é, bem se constata que a sentença recorrida identificou claramente que o procedimento administrativo em questão no caso dos Recorrentes assentava no de regularização de ocupações sem título anterior a determinada data, pugnando no seu discurso fundamentador, porém, o entendimento de que a verificação do critério sócio-económico dos interessados tanto se deveria aplicar (e até por maioria de razão) ao procedimento extraordinário de regularização de ocupações como se aplicava já ao procedimento concursal regular, por forma a que, como explicou a sentença recorrida, se evitasse que os ocupantes sem título acabassem por ter uma vantagem injustificada de acesso à habitação aquando da análise aos seus processos individuais, com menor exigência, quando comparados aos candidatos em concurso regular, o que, segundo a decisão recorrida, até colocaria em causa o princípio da igualdade, ilação que os Recorrentes, todavia, não colocaram em crise nas suas conclusões de recurso. Por aqui, nenhum erro de análise se pode imputar à sentença recorrida. Em segundo lugar, diferentemente do que concluem os Recorrentes, que aludem a uns “artigos 50.º e 53.º do RGPH” e à situação de alegada coabitação com o primitivo arrendatário, coisa que, como vimos, tem a ver com o pedido desdobrado de reconhecimento de direito ao qual lhe imputámos a falta de provisoriedade, e, como tal, não admissível nesta instância cautelar, o que da sentença recorrida se vislumbra é que foi pela mesma sindicado o único critério efectivamente tido em consideração pelo acto suspendendo, resultante do “n.º 2 da versão consolidada das Deliberações n.º 855-A/CM/2022 e n.º 855/CM/2022, publicada no 5.º Suplemento ao Boletim Municipal n.º 1506, de 29 de Dezembro de 2022”, que aludiu à verificação, para além do critério temporal (critério que os Recorrentes preenchem e que não foi posto sequer em causa pelo acto suspendendo), ao critério da situação sócio-económica dos ocupantes, remetendo para a matriz de cálculo constante do Anexo II ao Regulamento Municipal do Direito à Habitação. Ora bem, tratando-se de critérios cumulativos, ainda que os Recorrentes preenchessem o critério temporal (ocupação do fogo municipal sem título anterior a 01/10/2021), conforme dimana da fundamentação do acto suspendendo, não puderam os Recorrentes alcançar, ao abrigo das normas aplicáveis ao programa de regularização, o direito de arrendamento apoiado para o fogo ocupado pela fundamental razão de que o resultado dos cálculos atinentes à análise da sua condição sócio-económica, sustentados, entre outros, nos rendimentos mensais auferidos, ditaram uma pontuação inferior ao valor de referência de acesso à habitação municipal: o valor de referência matricial de acesso à habitação municipal era de 43,07 e os ora Recorrentes só obtiveram o valor de 25,67279 (cf. pontos 7.º e 8.º do probatório). Foi este o primordial fundamento pelo qual o processo de regularização encetado pelos Recorrentes acabou por soçobrar, sem que estes, quer em sede do requerimento inicial, quer no âmbito das conclusões de recurso, lograssem de algum modo colocar em crise, mormente, a regularidade da aplicação dos instrumentos normativos expressamente invocados pela Recorrida “G...” aquando do mencionado processo de regularização e o acerto dos cálculos daí resultantes e que subjazem à tal avaliação sócio-económica e à pontuação obtida. Isto é, no fundo, nem no requerimento inicial, nem nas conclusões de recurso, os Recorrentes conseguiram evidenciar o erro do acto suspendendo nos seus pressupostos de facto ou/e de direito, sobretudo, no tocante aos rendimentos relevantes, aos cálculos e à pontuação alcançada, que tudo espelhou a avaliação da situação sócio-económica dos Recorrentes, nem, muito menos, mostraram, neste particular conspecto, onde residiria, afinal, o eventual erro de análise da sentença recorrida (o que, reitera-se, não lograram fazer em conclusões recursivas). E ainda que os Recorrentes tivessem convocado em conclusões de recurso os argumentos da alegada desactualização do Indexante de Apoios Sociais (IAS) e de que a pontuação atribuída violou o “princípio da transparência administrativa”, sempre se adianta que os Recorrentes somente alegaram tais fundamentos nas referidas conclusões, nunca assim tendo argumentado expressamente em sede do requerimento inicial e, desse modo, assim também não foram tratados pela sentença recorrida. Traduzem-se, em rigor, em duas questões novas, que não são de conhecimento oficioso. Na verdade, não cabe a este Tribunal de apelação conhecer de matéria não submetida pelas partes à apreciação da 1.ª instância, nem sindicada pelo Tribunal a quo. Sendo assim, a este TCAS também não pode, somente em sede de recurso, exigir-se o seu exame, porquanto, por princípio, o recurso não é “ocasião para julgar questões novas”, pois visa “a reapreciação da decisão proferida dentro dos mesmos condicionalismos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento do seu proferimento” TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos cit., p. 395” (conforme anotação ao artigo 651.º do CPC, “in” Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, 3.ª Edição, Almedina, de José Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre). São inócuas, portanto, tais questões novas, pois não têm serventia para contaminar a sentença recorrida. Por fim, os Recorrentes convocam ainda a temática da aplicação e cumprimento pelo acto suspendendo do artigo 28.º, n.º 6, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, que estipula o seguinte: “Os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional são previamente encaminhados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais”. Neste segmento, os Recorrentes, em resumo, aduzem em conclusões recursivas o seguinte: i) que “informar programas habitacionais não cumpre o sentido imperativo do normativo, pois "encaminhar" implica dirigir ou acompanhar efetivamente as famílias para alternativas reais”; ii) que “O Tribunal justificou a inexistência de violação desta norma com base na escassez de habitação social e na necessidade de gestão eficiente, mas desconsiderou que a intenção do legislador não é deixar famílias com filhos menores na rua”; iii) que “o art.º 28.º, n.º 6, é uma “ilusão”, sem qualquer aplicabilidade prática, pois a G... no caso concreto, não encaminhou os recorrentes que tem 2 filhas menores, para qualquer apoio habitacional”. Nesta problemática, da sentença recorrida advém o seguinte: “No que concerne à violação do n.º 6 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, o Tribunal não desconhece as decisões dos tribunais superiores que se têm debruçado sobre a aplicação da mesma. Todavia, as decisões em causa têm sobretudo apreciado a questão numa fase liminar, onde importa aferir se é manifesta a falta de fundamento da pretensão cautelar – cfr. al. d) do n.º 2 do artigo 116.º do CPTA. Nesta fase, porém, importa aferir se há probabilidade de esta alegação ser julgada procedente. Ou seja, importa aferir se há uma “possibilidade forte” de a acção principal proceder com fundamento nesta alegação. No entendimento do Tribunal, a indicação dos contactos das entidades que podem prestar o apoio, bem como dos contactos telefónicos dos serviços que gerem os apoios em matéria de habitação, é suficiente para dar por cumprido o n.º 6 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, sobretudo nas situações, como a vertente, em que não é minimamente alegado que os serviços e as entidades, depois de contactadas, não deram uma resposta satisfatória. A isso acresce que não se pode olvidar, na busca do sentido da norma em causa, que, apesar das centenas de habitações sociais espalhadas pelo Concelho de Lisboa e por outros, a habitação social é um bem escasso – sendo publicamente conhecido que são grandes as listas de pessoas que aguardam por uma habitação, cuja gestão haverá de ser feita com eficácia e celeridade, sob pena de se comprometer o acesso das famílias necessitadas, que, pela via concursal, conseguiram ficar em lugar elegível. Um encaminhamento, no sentido de condução física das pessoas, poderia comprometer seriamente a gestão expedita da habitação social e o acesso à mesma, não tendo, por se assumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas – cfr. n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil –, sido essa a sua intenção. A tudo isso acresce, ainda, que resulta do probatório que, na presente situação, os Requerentes não são elegíveis para acesso à habitação municipal – cfr. facto 4) dos factos provados –, pelo que um encaminhamento para uma solução habitacional, necessariamente devido apenas a famílias carecidas de habitação, seria redundante. Assim, julga-se que não há uma forte probabilidade de a acção principal vir a ser julgada procedente com base nesta alegação.” Apreciando, há que ter em conta o que consta do ofício de notificação do acto suspendendo dirigido aos ora Recorrentes (cf. ponto 10.º do probatório), do mesmo resultando o seguinte teor: “(…) De sublinhar que, considerando a impossibilidade de atribuição de uma habitação municipal face ao parque habitacional público existente, uma vez que têm de ser cumpridos os critérios e o procedimento de elegibilidade definidos na lei…informamos V. Exa. que, nesta data, o seu agregado familiar foi sinalizado junto da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. (…) Informamos ainda que, caso assim o pretendam, poderão efetuar Registo de Adesão na Plataforma Habitar Lisboa…dispondo dos seguintes programas de acesso à habitação: 1. Programa de Arrendamento Apoiado (…); 2. Programa de Renda Acessível (…); 3. Subsídio Municipal ao Arrendamento Acessível (…). Caso não tenham conhecimento e/ou meios informáticos para efetuar o registo, devem solicitar o agendamento de atendimento presencial online https://informacoeseservicos.lisboa.ptlcontactos/agendamento-de-atendimento ou ligando 800910211, selecionando 0 (zero). Há ainda disponíveis os programas de acesso à habitação, desenvolvidos pela Administração Central, aos quais poderão aceder, através do site do IHRU https://www.portaldahabitacao.pt/.” Neste caso particular, secundamos aqui o entendimento plasmado no acórdão do STA, de 02/05/2024, prolatado no processo sob o n.º 02681/17.7BEPRRT, consultável em www.dgsi.pt, destacando-se o seguinte excerto: “A obrigação de «encaminhamento» é, pois, uma consequência, e não um pressuposto legal do despejo. Acresce, aliás, que o cumprimento da obrigação legal em questão não é, sequer, uma consequência necessária e automática do despejo, dado que apenas beneficiam do «encaminhamento» previsto na lei «os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional», o que supõe uma avaliação casuística da sua necessidade, o que, no caso dos autos, não se encontra sequer demonstrada. 13. Sempre se dirá, a benefício da certeza do direito, que ainda que os Recorrido beneficiassem do «encaminhamento» previsto no número 6 do artigo 28.º, a efetivação do respetivo despejo não estaria legalmente dependente da existência de uma alternativa concreta para a resolução do seu problema habitacional. Aquela disposição legal não lhes confere o direito a exigir a disponibilidade de uma habitação determinada, dado que a mesma apenas estabelece uma obrigação de meios, mas não de resultado. É nesse sentido que se tem de interpretar a expressão «encaminhamento», que literalmente significa uma simples orientação, e não permite a leitura garantística que dela fez o tribunal a quo. Tem, por isso, razão o Recorrente, que nessa matéria é acompanhado pelo Ministério Público, quando alega que o cumprimento daquela obrigação se consubstancia, essencialmente, através da prestação de informações sobre as «soluções legais de acesso à habitação» e os «apoios habitacionais» existentes, mas não da realização de diligências concretas para obtenção de uma nova habitação.” Retornando ao caso concreto, verifica-se que, por um lado, na situação dos Recorrentes, por conta do procedimento de regularização, o despejo não foi ordenado sem antes terem sido realizadas diligências concretas de averiguação da situação sócio-económica dos mesmos, e que, por outro lado, na senda do posicionamento propugnado pelo citado acórdão do STA, tendo presente o comunicado inserto no ponto 10.º do probatório, só podemos concluir que os Recorrentes foram realmente encaminhados para várias soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais, nos termos do previsto no n.º 6 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12. Ou seja, os Recorrentes, perante o despejo determinado pelo acto suspendendo, foram orientados nos termos legais, segundo a obrigação de meios e não de resultados que impende aos ora Recorridos, não cabendo às entidades que ordenam o despejo, ainda que este Tribunal de apelação compreenda a dificuldade da situação pessoal e familiar dos Recorrentes, qualquer dever, que dimane da citada norma legal, em assegurar uma alternativa concreta para a resolução do problema de carência habitacional de que padeçam os ora Recorrentes. Até pela razão de que, por norma, segundo decorre do artigo 7.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, “A atribuição de uma habitação em regime de arrendamento apoiado efetua-se mediante um dos seguintes procedimentos: a) Concurso por classificação; b) Concurso por sorteio; c) Concurso por inscrição.” (sublinhados nossos). Portanto, com a presente fundamentação, entendemos que, tal como a sentença recorrida, perfunctoriamente, não é provável que a pretensão material formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente, faltando, assim, o pressuposto do “fumus boni iuris”, exigido pelo artigo 120.º, n.º 1, do CPTA, que, por ser de verificação cumulativa com o pressuposto do “periculum in mora”, tanto basta a ausência do primeiro para ditar o indeferimento do requerimento cautelar. Tudo visto, é de negar provimento ao presente recurso jurisdicional, mantendo a sentença recorrida. *** Custas a cargo dos Recorrentes – cf. artigos 527.º, n.º 1, do CPC, 1.º e 189.º do CPTA, 7.º, n.º 2, e 12.º, n.º 2, do RCP, sem prejuízo, todavia, do apoio judiciário de que beneficiem. *** Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:Uma vez finalizado o procedimento administrativo tendente à regularização de uma ocupação de fogo municipal sem título, no qual, inclusive, foi concretamente analisada a situação sócio-económica dos requerentes, e se concluiu que, apesar de cumprido o critério temporal, não se verifica o preenchimento do segundo critério (o sócio-económico/rendimentos mensais auferidos), uma vez ordenado o consequente despejo, cabe à entidade pública que a tal ordene, atento o previsto no n.º 6 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, a obrigação de orientar ou encaminhar os despejados para soluções legais de acesso à habitação ou para prestação de apoios habitacionais, mas já não a obrigação de assegurar uma alternativa concreta para a resolução do problema de carência habitacional de que padeçam esses mesmos despejados, pois que, neste caso, a regra do acesso a uma habitação pública é já a da apresentação a concurso. *** V - Decisão.Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, com a presente fundamentação, decidir o seguinte: 1 – Fixar ao recurso o efeito meramente devolutivo; 2 – Julgar verificada a nulidade da sentença, concedendo provimento ao recurso nessa parte, e, em substituição, indeferir o 2.º pedido incorporado na alínea a) do petitório final do requerimento inicial, por falta de provisoriedade; 3 – Negar provimento ao recurso no demais, confirmando a sentença recorrida. Custas a cargo dos Recorrentes, sem prejuízo, todavia, do apoio judiciário. Registe e notifique. Lisboa, 10 de Abril de 2025. Marcelo Mendonça – (Relator) Ana Lameira – (1.ª Adjunta) Mara de Magalhães Silveira – (2.ª Adjunta) |