Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:595/24.3BEFUN
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:06/23/2025
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:RECLAMAÇÃO
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DO TERRITÓRIO
CONTRIBUINTE
SOCIEDADE EXTINTA
Sumário:I. O art.º 12.º, n.º 2, do CPPT, ao fazer menção ao contribuinte, está a referir-se ao contribuinte direto – ou seja, in casu, o sujeito passivo em nome de quem foram emitidas as liquidações.
II. É possível serem emitidas liquidações de imposto relativas a contribuintes, designadamente pessoas coletivas, entretanto extintas.

III. Para efeitos do art.º 12.º, n.º 2, do CPPT, a área da sede do contribuinte (direto) é, in casu, a da sua última sede.

IV. A tese da instância, de indagar e considerar a residência ou a localização da sede dos ex-sócios da sociedade em nome da qual foram emitidas as liquidações, abriria a porta a que pudesse haver uma pulverização de litígios relativos a uma mesma liquidação, o que implicaria “dificuldades e perversões tanto no sistema judicial como na aplicação da justiça”, opção não pretendida pelo legislador, face ao elemento de conexão escolhido.

Votação:DECISÃO SINGULAR
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Decisão

[art.º 105.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (CPC)]


I. Relatório

A Ilustre Magistrada do Ministério Público (doravante IMMP) veio reclamar, ao abrigo do art.º 105.º, n.º 4, do CPC, da decisão proferida no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) do Funchal, na qual aquele Tribunal se julgou territorialmente incompetente para o conhecimento da Impugnação Judicial apresentada por S........................... - Comércio …………………, Sociedade Unipessoal, Lda (Zona Franca da Madeira), representada por N ………………… ………………..

Para o efeito, concluiu o seguinte:

“1. Por Sentença proferida a 26-03-2025, o Mmo. Juiz a quo suscitou a incompetência territorial do Tribunal Administrativo e Fiscal para apreciação da presente Impugnação, determinando a sua remessa ao Tribunal Tributário de Lisboa.

2. No caso concreto, a sociedade a que se reportam os factos objeto da presente Reclamação - S........................... - COMÉRCIO ……………, SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA.,- foi extinta a 29-12-2016 e tinha sede na ………… n.º 77, Sala …………. , Funchal.

3. As dívidas objeto da presente impugnação dizem respeito a factos tributários ocorridos no período temporal anterior à sua extinção.

4. Uma vez que a aludida sociedade se encontrava extinta à data da liquidação, N ……………………, na qualidade de representante da sociedade ex-(única)sócia, “S…………….. S. à.r.l.”, foi, também, chamado a responder pelas dívidas daquela primeira e em representação desta segunda.

5. O ato de liquidação foi praticado pela Direção de Serviços de IRC, pelo que, em matéria de competência territorial, tem aplicação o critério do artigo 12.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário.

6. Considerou a sentença a quo que, uma vez que a sociedade extinta deixou, por força da liquidação, de ter sede, sucedeu-lhe a sócia única; e uma vez que a sua única sócia tinha, à data, sede no estrangeiro, não se aplica o critério previsto no artigo 12.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário, antes se aplicando o artigo 22.º, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, no qual se determina, subsidariamente, que [q]uando não seja possível determinar a competência territorial por aplicação dos artigos anteriores, é competente o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.

7. Ab initio, e num argumento literal, somos de entender que a norma suscitada não tem aplicação a este tipo de processo, porquanto especificamente diz respeito a ações administrativas (mencionando, explicitamente, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa).

8. Mas mesmo que assim não se entenda, não vemos necessidade na utilização de uma regra supletiva, mais concretamente o aludido artigo 22.º, uma vez que tem plena aplicação o artigo 12.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário.

9. Dispõe o artigo 12.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário, [n]o caso de atos tributários ou em matéria tributária praticados por outros serviços da administração tributária, julgará em 1.ª instância o tribunal da área do domicílio ou sede do contribuinte, da situação dos bens ou da transmissão.

10. Em matéria de responsabilidade por dívidas da sociedade extinta, determina o n.º 2 do artigo 147.º, do Código das Sociedades Comerciais, que [a]s dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução não obstam à partilha nos termos do número anterior, mas por essas dívidas ficam ilimitada e solidariamente responsáveis todos os sócios, embora reservem, por qualquer forma, as importâncias que estimarem para o seu pagamento.

11. Pelo que, perante a extinção da sociedade, são os sócios que assumem a responsabilidade pelos créditos tributários resultantes da atividade daquela, mas vencidos apenas em momento posterior (Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 14-11-2019, proferido no processo 1769/10, disponível em www.dgsi.pt).

12. Tal regime, determinando que o Reclamante, na qualidade de representante da sócia liquidatária, é responsável pelas dívidas da sociedade S........................... - COMÉRCIO ……………………, SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., em nada implica que esta última deixe de ser considerada, para todos os efeitos, o contribuinte das dívidas objeto da liquidação, na qualidade de sociedade devedora originária.

13. Este representante é chamado a responder pelas dívidas da S........................... - COMÉRCIO ……………………, SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., por força de uma norma que o faz representar nesse sentido, não a título originário e pessoal.

14. Isto porque a sociedade extinta continua a ser o sujeito da relação jurídica tributária relativamente aos factos tributários ocorridos no período temporal anterior à respetiva extinção, mesmo que a lei designe outros responsáveis pelo pagamento dos tributos que se venham a liquidar relativamente àquele período (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 12-10-2022, processo 0218/13.6BEAVR, disponível em www.dgsi.pt).

15. Nesta senda, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 09-06- 2021, processo 01167/18.78BELRA, disponível em www.dgsi.pt, onde se conclui que [n]ada obsta a que as liquidações (ou demonstração de acertos de contas) de dívidas fiscais anteriores à extinção de sociedade sejam emitidas em nome da sociedade extinta, por ser a devedora originária, e notificadas ao ex-sócio seu representante, bem como nada obsta que a subsequente execução fiscal seja instaurada contra a mesma dita sociedade por ser ela que figura no título executivo.

16. E no mesmo sentido, JORGE LOPES DE SOUSA, em Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, III volume, anotação 11 ao art. 155.º, pág. 86, na qual se pode ler que não há obstáculo a que uma execução seja instaurada contra pessoa coletiva extinta, desde que seja a devedora original que conste do título executivo, pois este tipo de situações enquadra-se na previsão do n.º 3 do art. 155.º do CPPT, por interpretação extensiva. A situação será idêntica à de instauração contra uma pessoa singular que já tenha falecido, pelo que se justificará a habilitação sumária prevista no art. 155.º, n.º 3, do CPPT» (.).

17. Aliás, na liquidação, figura como devedora a sociedade S........................... - ……………………. E SERVIÇOS, SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., ainda que representada pelo aqui Impugnante, conforme documento 1 junto pelo Impugnante.

18. Reconhece-se que a sociedade deixa de ter sede, como bem salientou a decisão a quo. Contudo, para efeitos de determinação de competência territorial, deve, em nosso entender, relevar a última sede conhecida da sociedade devedora.

19. É que no caso concreto, apenas está em causa um Representante de uma ex-sócia, o que até determina apenas um Tribunal competente. Mas se estivessem em causa diversas ex-sócias, uma com sede no estrangeiro, mas outras com sedes em diversos pontos do país, estaria aberta a porta para, considerando-se como contribuinte, os exsócios, dedução de diversas impugnações, instauradas em diferentes zonas do país (porque, na falta de sede da sociedade originária, suceder-lhe-iam as sedes/domicílios das ex-sócias).

20. [N]ão se pode olvidar que a tese sustentada na decisão recorrida abriria a possibilidade de o contencioso tributário associado a uma só processo de execução fiscal [neste caso, liquidação] se espalhar geograficamente pelos mais diversos tribunais tributários do país, tantos quantos os processos instaurados pelos distintos responsáveis subsidiários com diferentes domicílios, o que não poderia deixar de implicar dificuldades e perversões tanto no sistema judicial como na aplicação da justiça (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 08-10-2014, Relatora Dulce Neto).

21. Termos em que, afigurando-se-nos importante dar resposta à questão em apreço, entendemos que o artigo 12.º, do Código de Procedimento e Processo Tributário, deverá ser interpretado, quando em causa estejam sociedades extinta, no sentido de que contribuinte é a sociedade devedora originária.

22. Para este efeito e em face da extinção da sede, deverá se considerada a última sede conhecida………………, n.º 77, Sala ……………., Funchal.

23. Sob pena se, existindo vários ex-sócios, existirem tantas impugnações, instauradas em tantos tribunais, quantos domicílios de cada um deles.

24. Veja-se também o Acórdão mobilizado pelo Impugnante, o qual ainda que visando uma sociedade cuja atividade foi cessada (e, portanto, não extinta) datado de 24-09- 2024, processo 068/08, no qual se concluiu que: ocorrida a cessação da atividade da pessoa coletiva em Portugal, releva a sede ultimamente constante dos registos da Administração Tributária.

25. Se a sociedade extinta continua a ser o sujeito jurídico da relação tributária relativamente aos factos tributários ocorridos no período temporal anterior à respetiva extinção, o chamamento de responsáveis pelo pagamento dessas mesmas dívidas, em nada impede que aquela primeira seja, para todos os efeitos, o contribuinte a que alude o artigo 12.º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário.

26. Assim, no caso sub judice, a sociedade S........................... - COMÉRCIO …………………………., SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., extinta a 29-12-2016, com última sede na Avenida ……………., n.º 77, Sala …………. Funchal deve, em nosso entender, ser considerada contribuinte para efeitos do aludido n.º 2, do artigo 12.º.

27. Termos em que, tendo aplicação este critério e sendo considerada a última sede conhecida, é competente para apreciar o presente litígio, o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal.

Nestes termos e nos demais de Direito, requer-se que seja revogada a decisão que declarou a incompetência em razão do território deste Tribunal e que determinou, consequentemente, a remessa dos autos ao Tribunal Tributário de Lisboa, devendo tal decisão ser substituída por outra que declare a competência do Tribunal Administrativo e Fiscal para julgar os presentes autos”.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Qual o tribunal territorialmente competente para a instrução e conhecimento da presente ação?

II. Fundamentação

II.A. Para a apreciação da presente reclamação, são de considerar as seguintes ocorrências processuais, documentadas nos autos:

1) Foi apresentada impugnação judicial, por N …………………., na qualidade de representante, ao abrigo do art.º 23.º-A do Código do Registo Comercial, de S........................... - ……………………. e Serviços, Sociedade Unipessoal, Lda (Zona Franca da Madeira), dirigida ao TAF do Funchal, tendo por objeto liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), emitida em nome da referida sociedade e atinente ao exercício de 2013 (cfr. petição inicial e respetivos documentos instrutores, designadamente o documento n.º 1).


*

II.B. Apreciando.

Considera a IMMP, em síntese, que o TAF do Funchal é o competente para apreciar a impugnação judicial em causa, porquanto tal é a solução que decorre do disposto no art.º 12.º, n.º 2, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

Vejamos, então.

A competência do tribunal, em qualquer das suas espécies, deve ser aferida pelo tipo de pretensão deduzida pelo autor (pedido) e pelas normas que a disciplinam (fundamentos jurídicos).

Nos termos do art.º 12.º do CPPT:

“1 - Os processos da competência dos tribunais tributários são julgados em 1.ª instância pelo tribunal da área do serviço periférico local onde se praticou o ato objeto da impugnação ou no caso da execução fiscal, no tribunal da área do domicílio ou sede do executado.

2 - No caso de atos tributários ou em matéria tributária praticados por outros serviços da administração tributária, julgará em 1.ª instância o tribunal da área do domicílio ou sede do contribuinte, da situação dos bens ou da transmissão”.

Portanto, em matéria de impugnação judicial, a regra, quando falamos em impostos sobre o rendimento, como in casu, é a da competência do Tribunal da área do domicílio ou sede do contribuinte [neste caso, a sociedade S........................... - ……………………….., Sociedade Unipessoal, Lda (Zona Franca da Madeira), que, até à sua extinção, teve sede no Funchal].

A este propósito, cumpre ter em conta a noção de sujeito passivo, constante do art.º 18.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária (LGT):

“3 - O sujeito passivo é a pessoa singular ou coletiva, o património ou a organização de facto ou de direito que, nos termos da lei, está vinculado ao cumprimento da prestação tributária, seja como contribuinte direto, substituto ou responsável” (sublinhado nosso).

Como decorre deste art.º 18.º, n.º 3, da LGT, temos de ter presente a distinção entre contribuinte (direto) e outros sujeitos passivos, onde, por exemplo, se enquadram os responsáveis solidários ou subsidiários (cfr. art.º 22.º, n.º 2, da LGT).

No caso, o art.º 12.º, n.º 2, do CPPT, ao fazer menção ao contribuinte, está, em nosso entender, a referir-se ao contribuinte direto – ou seja, in casu, o sujeito passivo em nome de quem foram emitidas as liquidações (e que, aliás, é a Impugnante dos autos, dado que N ………………………….. surge na qualidade de representante, ao abrigo do art.º 23.º-A do Código do Registo Comercial, disposição legal que foi aditada em 2009 e que visa, precisamente, dar resposta a situações como a dos autos, em termos de representação tributária).

Por outro lado, como é pacífico, é possível serem emitidas liquidações de imposto relativas a contribuintes, designadamente pessoas coletivas, entretanto extintas [cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 09.06.2021 (Processo: 01167/18.7BELRA)].

Portanto, considerando o disposto no art.º 12.º, n.º 2, do CPPT, decorre que, no caso concreto em análise, a sociedade contribuinte (ainda que, entretanto, extinta) tinha sede no Funchal, sendo este o elemento de conexão pertinente. Não é, pois, de atentar na localização da sede da sua ou suas sócias, dado que, concorde-se ou não, esse não foi o elemento de conexão escolhido pelo legislador.

Chama-se, ademais, à colação o Acórdão que a Reclamante também aborda, do Supremo Tribunal Administrativo de 08.10.2014 (Processo: 0701/14), cuja análise, ainda que atinente à regra constante do n.º 1 do art.º 12.º do CPPT, é perfeitamente aqui transponível. Ali se refere:

“Finalmente, e dado que importa encontrar o sentido da norma que melhor se coadune com o sistema jurídico, sem causar assimetrias ou desarmonias, não se pode olvidar que a tese sustentada na decisão recorrida abriria a possibilidade de o contencioso tributário associado a uma só processo de execução fiscal se espalhar geograficamente pelos mais diversos tribunais tributários do país, tantos quantos os processos instaurados pelos distintos responsáveis subsidiários com diferentes domicílios, o que não poderia deixar de implicar dificuldades e perversões tanto no sistema judicial como na aplicação da justiça” (destacados nossos).

A tese da instância, com a qual discordamos, abriria, pois, a porta a que pudesse haver uma pulverização de litígios relativos a uma mesma liquidação, o que, como referido no aresto citado, implicaria “dificuldades e perversões tanto no sistema judicial como na aplicação da justiça”, opção não pretendida pelo legislador, face ao elemento de conexão escolhido.

O caso em análise tem ainda a particularidade de a instância ter desconsiderado o facto de ser impugnante a sociedade contribuinte, que intervém através do seu representante, nos termos já mencionados.

Para efeitos do art.º 12.º, n.º 2, do CPPT, a área da sede do contribuinte (direto) é, in casu, a da sua última sede.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 24.09.2008 (Processo: 068/08):

“[S]egundo a lei de competência territorial aplicável à situação, para julgar em 1.ª instância a impugnação judicial deduzida pela impugnante do acto de liquidação oficiosa de IRC (…), operado pelos Serviços Centrais (Direcção de Serviços de IRC), é territorialmente competente o tribunal da área da sede e domicílio fiscal da impugnante (…)

Estamos, deste modo, a concluir que a competência em razão do território para o julgamento em 1.ª instância da impugnação judicial de liquidação adicional de IRC radica-se no tribunal tributário da área da sede ou domicílio fiscal da sociedade impugnante – por força do n.º 2 do artigo 12.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

O domicílio fiscal das pessoas colectivas é «o local da sede ou direcção efectiva ou, na falta destas, do seu estabelecimento estável em Portugal», nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 19.º da Lei Geral Tributária.

(…) Ocorrida a cessação da actividade da pessoa colectiva em Portugal, releva a sede ultimamente constante dos registos da Administração Tributária”.

Logo, não se acompanha o entendimento da instância, no sentido de ser territorialmente competente para a apreciação dos autos o Tribunal Tributário de Lisboa.

Assim, assiste razão à Reclamante.

III. Decisão

Face ao exposto:

a) Defere-se a reclamação apresentada, decidindo-se ser territorialmente competente, para a tramitação dos presentes autos, o TAF do Funchal;

b) Sem custas;

c) Registe e notifique;

d) Baixem os autos.


Lisboa, d.s.

A Juíza Desembargadora Presidente,