Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:57/25.1BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:08/21/2025
Relator:MARA DE MAGALHÃES SILVEIRA
Descritores:FUMUS BONI IURIS
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO PRIVATIVA DE DOMÍNIO PÚBLICO HÍDRICO
LIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO
Sumário:I - “No processo cautelar de suspensão da eficácia de um ato administrativo, as causas de pedir definem-se por referência aos requisitos estabelecidos no artigo 120.º do CPTA para a concessão da providência requerida, pelo que, na apreciação do fumus boni iuris, o juiz da causa não incorre em nulidade – mas apenas em eventual erro de direito – se não conhecer especificadamente de todos os vícios imputados ao ato” (Ac. do Pleno da Seção de Contencioso Administrativo do STA, de 19.1.2023, proferido no processo 060/22.3BALSB);
II - Impõe-se a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto quando ocorra a falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados [art. 640º, n.º 1, al. a) do CPC];
III - Dos Estatutos da Federação Portuguesa de Vela resulta que esta é a federação desportiva, dotada de utilidade pública desportiva, com competência exclusiva para regulamentar e dirigir, a nível nacional, “a prática da vela nas suas múltiplas formas”, a significar, portanto, que a sua competência não se reduz a uma única modalidade desportiva de “vela”, antes abrange todas as modalidades de vela e aquelas a esta afins, no sentido de atividades desportivas náuticas movidas exclusivamente por propulsão à vela, onde se emprega somente a força do vento como meio de deslocamento, incluindo aqui o kitesurf;
IV - A mera natureza de associação privada da Recorrente e o seu objeto social, não lhe conferem a atribuição de poderes de promoção, regulamentação e direção da atividade de kitesurf, nem tão pouco direitos à realização de eventos desportivos de âmbito nacional relativos a tal modalidade, os quais, à luz dos artigos 2.º, 10.º, 61.º, n.º 1 do RJFD, 14.º, 16.º, 19.º da LBD e 6.º do DL 45/2015, se encontram reservados à federação desportiva de estatuto de utilidade pública desportiva com competência sobre a modalidade, in casu a FPV;
V - Na medida em que a licença de utilização privativa do domínio público hídrico requerida tem por objeto a realização de competição desportiva [artigos 60.º, n.º 1 al. i) da Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro, 40.º, n.º 1 al. e) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio] relativa à modalidade de kitesurf, a sua atribuição depende da titularidade pelo requerente do direito a realizar o evento em causa;
VI - A liberdade de associação não tem no seu escopo de proteção possibilitar às associações privadas o exercício das suas atividades sem sujeição às regras legais subjacentes às mesmas, designadamente no que in casu respeita à organização de um evento desportivo relativo a uma modalidade cuja competência e tutela regulamentar reside na esfera da federação desportiva e ao consequente respeito pelos pressupostos de obtenção de licença de utilização privativa do domínio público hídrico com vista à sua realização em área do domínio público marítimo;
VII - O princípio da igualdade não veda a realização de distinções, antes proíbe a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional;
VIII - A autovinculação, além de ocorrer quando a Administração Pública, detentora de poder discricionário (portanto, quando exista, margem de livre decisão administrativa na matéria), decide limitar a sua própria atuação, “só vale externamente se não for ilegal ou antijurídica, como é lógico e é imposto pelo princípio da legalidade administrativa e ainda pelos princípios da igualdade e da tutela da confiança legítima” (Ac. do TCA Sul de 5.4.2018, proferido no processo 97/10.5BELSB);
IX - Incumbindo à Administração o exercício da função administrativa, estando em causa pretensões dirigidas à prática (ou eliminação da ordem jurídica) de atos administrativos, é perante a atuação (ou omissão, por incumprimento do dever de decisão) administrativa que o Tribunal pode ser chamado a sindicar a legalidade da atuação administrativa, não podendo substituir-se à Administração no exercício da função administrativa.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:


1. Relatório

Federação Portuguesa de Kitesports - FPKITE (doravante A./Requerente ou Recorrente), intentou, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, providência cautelar contra o Município de Cascais (doravante Entidade Requerida/R. ou Recorrido), indicando como contrainteressada a Federação Portuguesa de Vela - UPD, peticionando a “suspensão dos efeitos do indeferimento emitido pela Câmara Municipal de Cascais, autorizando a participação da Federação Portuguesa de Kitesport (FPKITE) no campeonato de kitesurf de 2025, a realizar, previsivelmente, no início do mês de Março de 2025” e que, após convite ao aperfeiçoamento no sentido de esclarecer qual o ato suspendendo, indicou corresponder aoproferido em 22/11/2022 e notificado à Requerente, por email, em 28/11/2022” [ cfr. requerimento constante do doc. n.º 006980113, de 28.01.2025 SITAF ].

Por sentença proferida em 26 de maio de 2025, o referido Tribunal julgou improcedente a providência cautelar, por não verificado o requisito do fumus boni iuris.

Inconformada, a Requerente interpôs recurso jurisdicional dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo, concluindo nos seguintes termos:

“I. Em face do exposto, a douta sentença recorrida enferma de diversos erros de julgamento, quer de facto, quer de direito, que impõem a sua revogação.
II. O Tribunal a quo incorreu em manifesto erro na apreciação da prova, ao não considerar factos essenciais que constavam dos autos e que eram determinantes para a decisão da causa.
III. O Tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia, ao não se pronunciar sobre questões essenciais suscitadas pela Recorrente.
IV. O Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de direito na interpretação e aplicação do Regime Jurídico das Federações Desportivas, designadamente ao desconsiderar o Princípio da Especialidade e a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Administrativo (conforme Acórdão STA 074/02).
V. A douta sentença recorrida viola frontalmente o princípio constitucional da liberdade de associação, consagrado no artigo 46.° da CRP.
VI. A douta sentença recorrida viola frontalmente o regime jurídico das associações de direito privado, consagrado nos artigos 167.° e 168.° do Código Civil e nos artigos 32.° e 33.° do Decreto-Lei n.° 129/98, de 13 de maio.
VII. A douta sentença recorrida viola frontalmente o Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Cascais, aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros N.° 66/2019, de 11 de abril.
VIII. A douta sentença recorrida viola frontalmente o direito de propriedade industrial da Recorrente, titular de marcas registadas no INPI relacionadas com o Kitesurf.
IX. O Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de direito na apreciação dos requisitos da providência cautelar, previstos no artigo 120.° do CPTA.
X. O Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de direito na apreciação do cumprimento dos princípios de igualdade, especialidade, proporcionalidade, economia processual e da tutela jurisdicional efetiva, do precedente administrativo e da uniformidade da atuação administrativa.
XI. Verificam-se, assim, os requisitos do fumus boni iuris e do periculum in mora, bem como uma adequada ponderação de interesses imporia a concessão da providência cautelar requerida.

Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, requer-se a V. Exas. se dignem conceder provimento ao presente recurso, revogar a douta sentença recorrida e, em consequência:
a) Decretar a providência cautelar de suspensão da eficácia do despacho proferido pelo Município de Cascais, em 22.11.2022, através do qual se indeferiu o pedido de atribuição de licença para utilização de recursos hídricos do domínio público marítimo com vista à realização de eventos desportivos, denominados "Campeonato Nacional de Kitesurf" em 2022 e em 2024;
b) Decretar a providência cautelar de autorização provisória para a Recorrente realizar e organizar o seu evento "Campeonato Nacional de Kitesurf" afeto ao ano de 2025.”

A Entidade Requerida/Recorrido apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
1. Decidiu a douta Sentença no caso sub-judice pela improcedência da ação e pela absolvição da Entidade Requerida do pedido cautelar, não tendo considerado verificado o requisito de fumus boni iuris indispensável ao decretamento da providência;
2. Tanto quanto ao pedido de suspensão da eficácia do ato de indeferimento do pedido referente ao campeonato de kitesurf de 2022, como quanto ao pedido de participação no campeonato de kitesurf de 2025, considerou o Tribunal a quo improvável que tais pretensões venham a ser consideradas procedentes;
3. Vem a Requerente interpor recurso alegando, em suma, que houve erro na apreciação da prova, omissão de pronúncia, erro de direito na interpretação e aplicação do regime jurídico das federações desportivas e à delimitação de competências administrativas, erro de julgamento quanto ao fumus boni iuris, erro de direito na apreciação dos requisitos da providência cautelar, incorreta avaliação da inexistência de pedido para o campeonato de 2025 e violação ao princípio da igualdade e do precedente administrativo;
4. Tais considerações não podem proceder, pois de acordo com a matéria de facto existente nunca poderia o Tribunal a quo ter decidido de forma diferente;
5. Os presentes autos referem-se a um processo cautelar e, como tal, dependente da causa que tem por objeto a decisão sobre o mérito e de tramitação urgente, nos termos dos n.°s 1 e 2 do artigo 113° do CPTA;
6. Considerando o requerimento inicial apresentado no presente processo, vem a Requerente solicitar a suspensão dos efeitos do indeferimento emitido pela Câmara Municipal de Cascais, autorizando a participação da Requerente no Campeonato de Kitesport de 2025, a realizar, previsivelmente, no início do mês de março de 2025;
7. No entanto, considerando que inexistiu qualquer pedido de licença ao Município de Cascais para realização do evento em 2025, e na sequência da notificação do Tribunal a quo a requerer o aperfeiçoamento do requerimento inicial, vem a Requerente referir que o “o ato cuja suspensão de eficácia vem requerida, proferido em 22/11/2022 e notificado à Requerente, por email, em 28/11/2022 ”;
8. Porém, o presente processo cautelar nunca se poderia referir à suspensão do ato proferido em 22/11/2022, e que foi impugnado no âmbito do processo n.° 706/23.6BESNT, porque tal suspensão é de objeto factual e juridicamente impossível;
9. Nem tão pouco se poderá referir a uma autorização de participação no Campeonato de Kitesport de 2025, porque, e como bem refere a sentença recorrida, “a Requerente não dirigiu qualquer requerimento com vista à obtenção de licença para efeitos de realização de competições desportivas no ano de 2025”, inexistindo ato administrativo suscetível de ser suspenso ou determinado;
10. Assim, nunca poderia o Tribunal a quo ter decidido de forma diferente, pois não só não é possível dar-se provimento a um processo cautelar no qual se requer a suspensão de um ato administrativo insuscetível de ser suspenso, como não é possível deferir-se uma providência cautelar que não é preliminar de qualquer outro processo principal, que ademais não poderia existir já que o Município de Cascais não praticou qualquer ato de indeferimento quanto à realização pela Requerente de um Campeonato de Kitesport no ano de 2025;
11. Decorre do exposto que o Tribunal a quo fez a correta subsunção do direito aos factos, pois no caso sub-judice apenas se poderia concluir pela improcedência do processo cautelar e pela consequente absolvição da Entidade Requerida.
Termos em que, o recurso de apelação interposto pela Requerente deve improceder, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo.”


A Contrainteressada apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:
“A. Não há qualquer erro ou omissão na fixação da matéria de facto constante da decisão recorrida.
B. Compulsados os factos dados como provados confirma-se que o Tribunal a quo procedeu à correta e livre apreciação de todos os elementos probatórios produzidos na ação, sendo que dessa análise conjugada e ponderada de todos os meios de prova, a conclusão a que se tem de chegar é justamente aquela a que chegou o Tribunal de Primeira Instância.
C. Os vícios substantivos invocados pela Recorrente não se verificam, razão pela qual não se pode dar como verificado o requisito do fumus bonus iuris, tal como consagrado no artigo 120° do CPTA.
D. Concretamente, não se verifica qualquer violação do disposto no artigo 46.° da CRP
E. Acresce que igualmente não se verifica qualquer violação do regime jurídico das associações de direito privado.
F. Em rigor estamos perante um diferendo entre a Requerente e a Contrainteressada no que concerne à titularidade de direitos sobre a modalidade desportiva de kitesurf.
G. Também não se verifica qualquer violação dos artigos 2.°, 4.°, 15.° e 20.° do Regime Jurídico das Federações Desportivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 594/74, de 07 de novembro e, ainda, do Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Cascais, da Resolução de Conselho de Ministros n.° 66/2009, de 11 de abril, do Código da Propriedade Industrial e “[d]as escrituras públicas, certificados de admissibilidade, registos FCPC, publicados pelo IRN-MJ; Despacho UP publicado em DR; várias marcas publicadas pelo INPI, da esfera jurídica consolidada da FPKITE.
H. No caso em apreço nestes autos a Requerente/Recorrente nem sequer formulou qualquer pedido administrativo conducente à decisão que diz impugnar e pretender suspender.
I. Nesse sentido bem andou a decisão recorrida ao afirmar que “o licenciamento de cada atividade desportiva depende de pedido formulado junto da Câmara Municipal, contendo, entre outros, identificação do período pretendido para a licença e localização [cf. artigo 11.°, n.° 3 e Anexo II-ponto 1.4. do Regulamento Municipal para a Gestão das Praias Balneares do Concelho de Cascais], sendo que apenas é admissível um número máximo de licenças atribuídas à prática de atividade desportiva aquática para o mesmo período [cf. artigo 15.°, n.° 1 do Regulamento Municipal para a Gestão das Praias Balneares do Concelho de Cascais]. Ora, as partes não dissentem que, no caso dos autos, a Requerente não dirigiu qualquer requerimento com vista à obtenção de licença para efeitos de realização de competições desportivas no ano de 2025.”
J. Em suma, os fundamentos invocados pela Recorrente para lograr o decretamento da presente providência cautelar são manifestamente improcedentes, o que, por si só, determina a improcedência da providência cautelar, como bem decidiu o Tribunal a quo.
K. Para que a presente providência fosse decretada, além do mais, seria necessário demonstrar que a sua adoção se destina a impedir a consumação de situações lesivas graves e/ou irreparáveis para os direitos ou interesses da Requerente, advenientes do retardamento do próprio processo principal.
L. No caso dos autos concluímos que não se verifica demonstrado o requisito do periculum in mora pelo que a presente providência não pode ser decretada também pela falta de verificação deste pressuposto.
M. Finalmente, da ponderação dos interesses público e privado em causa resulta que da concessão da providência resultam danos muito superiores aos que resultariam da sua recusa.
Nestes termos e nos demais de direito, que muito doutamente V. Exias. suprirão, deverá ser julgado improcedente o recurso interposto pela Recorrente e, em consequência, ser confirmada a sentença recorrida, como é de JUSTIÇA!”

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, proferindo o Tribunal a quo despacho pugnando pela não verificação das nulidades apontadas à sentença.

O Ministério Público junto deste TCA Sul, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Notificadas do aludido parecer, apenas a Recorrente se pronunciou.

Prescindindo-se dos vistos legais, atento o carácter urgente do processo, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos (em turno), foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Delimitação do objeto do recurso

Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º 2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA), as questões a apreciar por este Tribunal reconduzem-se a saber se a sentença recorrida padece de,
a. Nulidade;
b. Erro de julgamento de facto;
c. Erro de julgamento de direito.

3. Fundamentação de facto

3.1. Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos:


“Com interesse para a decisão da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis de direito, julgam-se como indiciariamente provados os seguintes factos:

A. A Requerente é uma associação sem fins lucrativos, tendo como objeto social, entre outros, promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, a prática de kitesports nas suas múltiplas formas de kitesurf, de landkite e de snowkite; promover eventos e ações de formação acerca de kitesports; organizar anualmente o seu calendário ao desenvolvimento de kitesports; e autorizar a realização de competições [cfr. cópia de estatutos a fls. 39 do doc. n.° 006988821, de 14.02.2025 SITAF].
B. A Federação Portuguesa de Vela - UPD, ora Contrainteressada, é uma associação sem fins lucrativos, tendo por objeto social, entre outros, promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, a prática da vela nas suas múltiplas formas [cfr. cópia de estatutos a fls. 6 do doc. n.° 006974292, de 17.01.2025 SITAF e cópia de certidão permanente-inscrição n.° 2, a fls. 10 do doc. n.° 006991040, de 19.02.2025 SITAF ].
C. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 28.09.2022, a Requerente remeteu ao cuidado da Divisão de Qualificação Ambiental da Câmara Municipal de Cascais, pedido de atribuição de licença para realização de evento desportivo denominado "Campeonato Nacional de KiteSurf2022", a desenvolver no ano de 2022, em praias do domínio público marítimo [cfr. cópia de email remetido pela Requerente ao cuidado da Câmara Municipal de Cascais, a fls. 212 e 213 do doc. n.° 006988821, de 14.02.2025 SITAF].
D. Com referência à atividade mencionada no ponto anterior, foi elaborado pela Capitania do Porto de Cascais da Autoridade Marítima Nacional do Ministério da Defesa Nacional, parecer favorável à realização pela Requerente de "Campeonato Nacional de Kitesurf2022 - Etapa Guincho", com indicação de que “[e]ste parecer não dispensa o devido licenciamento por outras entidades, que por motivos legais tenha que ser obtido" [cfr. cópia de parecer a fls. 128 e 129 do doc. n.° 006988821, de 14.02.2025 SITAF].
E. Com data de 28.09.2022, a Divisão de Assuntos Jurídicos do Departamento de Assuntos Jurídicos da Câmara Municipal de Cascais emitiu parecer no sentido de que a obtenção de licença para realização de um evento desportivo a realizar em área abrangida por domínio público marítimo, depende de prévia autorização da Federação Portuguesa de Vela, do qual consta, no que releva:
“(...)
1. Analisado o pedido da entidade requerente (Federação Portuguesa de Kitesports (doravante “FPKITE”), bem como a documentação constante do presente processo, entende-se que os documentos por ora entregues não invalidam ou prejudicam as conclusões referidas em parecer antecedente - para o efeito emitido em 08/09/2022 (...).
2. (...) Resulta da documentação analisada que a Federação Portuguesa de Vela (“FPV”) é a federação desportiva com competência para o exercício, em exclusivo, de poderes regulamentares relativos à modalidade em apreço, nos termos do estatuto de utilidade pública desportiva que lhe foi atribuído pelo De[spacho] n.º 57/93, de 29 de novembro (...), e nos termos do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro (...).
3. Nesse contexto, a realização do evento de cariz desportivo em causa carece de prévia autorização da entidade acima referida, no âmbito das atribuições de que dispõe.
4. Assim, conclui-se, salvo melhor opinião, que pretendendo a entidade requerente obter o licenciamento para realização de um evento desportivo a realizar em área abrangida por Domínio Público Marítimo, cuja modalidade é legalmente tutelada pela FPV, deverá nos termos acima referidos, apresentar junto com o respetivo requerimento a autorização da supra referida Federação".
(-)".
[cfr. cópia de parecer a fls. 12 e 13 do doc. n.° 006988821, de 14.02.2025 SITAF].
F. O parecer referido no ponto anterior foi sancionado por despacho proferido em 29.09.2022, pela Chefe de Divisão de Assuntos Jurídicos [cfr. cópia de despacho a fls. 12 do doc. n.° 006988821, de 14.02.2025 SITAF].
G. Por email remetido em 29.09.2022 pela Requerente ao cuidado da Câmara Municipal de Cascais, aquela requereu que fosse proferida decisão no sentido do deferimento do pedido de atribuição de licença referido no ponto C., argumentando para o efeito que inexiste qualquer fundamento para restringir a liberdade de associação consagrada no artigo 46.° da Constituição da República Portuguesa, considerando que:
"(…)
No âmbito do processo (...) e no seguimento do pedido de acesso a documentos (…) demos conta que, nessa lista de documentos consultada, não consta:
a) qualquer decisão judicial e, em adição
b) qualquer escritura pública da Federação Portuguesa de Vela (FPV) que contenha no seu fim social "Kite", "Kitesurf", ou "Kiteboard" a "obrigar terceiros" e, em adição,
c) qualquer despacho-sob-requerimento-UPD a atribuir poderes públicos aos poderes privados já pré- existentes (escritura pública) da FPV sobre a atividade do Kite.
como obriga o Artigo 46º da Constituição Portuguesa para que pudesse a CMC:
i) Interferir com a liberdade da FPKITE em prosseguir o seu fim social ou
ii) suspender a sua atividade e em domínio público marítimo de Cascais, isto é, fraturar direitos Constitucionais da FPKITE.
(...)".
[cfr. cópia de email a fls. 212 e 213 do doc. n.° 006988821, de 14.02.2025 SITAF].
H. Com data de 26.10.2022, foi remetido email pela Divisão de Qualificação Ambiental da Câmara Municipal de Cascais, ao cuidado da Requerente, informando de que a emissão de licença de ocupação do Domínio Público Marítimo para a realização de evento desportivo, denominado "Campeonato Nacional de KiteSurf 2022" carece de prévia autorização a conceder pela Federação Portuguesa de Vela, ora Contrainteressada, concedendo à Requerente o prazo de dez dias para efeitos da respetiva obtenção [cfr. cópia de email a fls. 212 do doc. n.° 006988821, de 14.02.2025 SITAF].
I. Com data de 28.11.2022, foi remetido email pela Divisão de Qualificação Ambiental da Câmara Municipal de Cascais, ao cuidado da Requerente, informando do teor do despacho de indeferimento do pedido referido no ponto C., por falta de apresentação no prazo determinado, de prévia autorização concedida pela Federação Portuguesa de Vela, referida no ponto anterior [cfr. cópia de email a fls. 211 do doc. n.° 006988821, de 14.02.2025 SITAF].
J. A primeira etapa do "Campeonato Nacional de Kitesurf2025" encontrava-se agendada para os dias 1 e 2 de março de 2025, conforme Plano de Atividades da Requerente, publicamente divulgado, contendo o calendário das atividades programadas para o ano de 2025 [cfr. cópia de plano de atividades FPKITE, a fls. 201 do doc. n.° 006988821, de 14.02.2025 SITAF].”

3.2. Consignou-se na sentença a respeito dos factos não provados,

“Nada mais se provou com interesse para a decisão a proferir.”


3.3. E em sede de motivação de facto consta da sentença,

“A convicção do tribunal assenta na análise crítica de toda a prova produzida nos autos, designadamente nos documentos constantes dos autos, conforme referidos a respeito de cada alínea do probatório. Os documentos não foram impugnados pelas partes e não há indícios que ponham em causa a sua genuinidade.”

4. Fundamentação de direito

4.1. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

A Recorrente imputa nulidade à sentença sustentando que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre questões essenciais por si suscitadas, a saber,
“a) A questão da violação do Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Cascais, aprovado pela prevalecente Resolução de Conselho de Ministros N.° 66/2019, de 11 de abril, que devido às suas escrituras públicas, responsabiliza a FPKITE desde 2003 para representar o Kitesurf em Cascais;
b) A questão da violação do direito de propriedade industrial da Recorrente, titular de marcas registadas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) relacionadas com o Kitesurf, incluindo o exercício e utilização da marca INPI "CAMPEONATO NACIONAL DE KITESURF";
c) A questão da violação do princípio da igualdade, face ao tratamento diferenciado dado à Recorrente pela Câmara Municipal de Cascais, em comparação com o tratamento dado pela Câmara Municipal de Grândola;
d) A questão da violação de princípios constitucionais fundamentais, especialmente no tocante à liberdade de associação, à autonomia privada associativa e à tutela de direitos privativos específicos;
e) A questão do abuso de direito ultra vires do Regime Jurídico das Federações Desportivas (RJFD) pela FPVela atribuídos pelo Município de Cascais.”
As nulidades da sentença são vícios da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença e encontram-se previstas no artigo 615.º, n.º 1 do CPC, no qual se prescreve que é nula a sentença se, além do mais, o juiz conhecer questões que não devia ou deixe de conhecer questões que tinha de conhecer [al. d)].
A nulidade da sentença a que se refere a al. d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC verifica-se quando ocorre o incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito nos artigos 95.º, n.º 1 e 3 do CPTA e 608, n.º 2 do CPC, e que se traduz em decidir todas as questões submetidas à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras.
Como é jurisprudência pacífica, a causa de pedir, ou melhor, as questões a decidir, não se confundem com as razões ou argumentos de que a parte se serve para sustentar a mesma causa de pedir. Pelo que apenas integra a nulidade prevista no citado normativo, a omissão de conhecimento das “questões”, mas já não a mera falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.
Ora, no âmbito de uma providência cautelar, à luz do disposto no artigo 120.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA, são questões a decidir, porque integrantes da causa de pedir, o preenchimento dos pressupostos de adoção das medidas cautelares, correspondentes ao fumus boni iuris, ao periculum in mora e à ponderação de interesses.
Assim, “contrariamente ao que sucede na ação principal, as causas de pedir, no processo cautelar de suspensão da eficácia de um ato administrativo, definem-se por referência aos requisitos estabelecidos no artigo 120.º do CPTA para a concessão da providência requerida, pelo que o juiz da causa não tem uma obrigação de conhecimento especificado de todos os fundamentos que conduzem à verificação daqueles vícios, tanto mais que a sua apreciação em sede cautelar é apenas perfunctória (Ac. do Pleno da Seção de Contencioso Administrativo do STA, de 19.1.2023, proferido no processo 060/22.3BALSB, consultável em https://www.dgsi.pt/JSTA.NSF/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/28bc5a9419426fef80258948003d7539?OpenDocument&ExpandSection=1).
Para o efeito de demonstrar encontrar-se verificado o requisito do fumus boni iuris, isto é, a probabilidade de procedência da pretensão formulada no processo principal – que corresponde ao processo que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra sob o n.º 706/23.6BESNT e na qual é peticionada a anulação ou declaração de nulidade do ato de 22.11.2022 de indeferimento do pedido de licença de utilização de domínio público marítimo para realização do evento “Campeonato Nacional de Kitesurf 2022” – a Recorrente invocou, em suma, a violação do princípio da igualdade, o erro nos pressupostos por ser a única entidade legalmente reconhecida para tutelar o kitesurf/kiteboard/kitesports (não possuindo competência a Federação Portuguesa de Vela), e a violação/restrição ilegítima da liberdade de associação, para o que convocou o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, 19.º, n.º 1 e 46.º, n.º 1 da CRP, mais afirmando que a atuação da requerida viola os artigos 167.º e 168.º do CC, 32.º e 33.º do Regime Jurídico do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, 2.º, 4.º, 15.º e 20.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, POOC de Cascais, a Resolução de Conselho de Ministros n.º 66/2009 , de 11 de abril (na página 2006), o Código da Propriedade Industrial, as escrituras públicas, certificados de admissibilidade, registos FCPC, publicados pelo IRN - MJ; despacho UP publicado em DR; várias marcas publicadas pelo INPI, da esfera jurídica consolidada da FPKITE.
Analisada a sentença verifica-se que o Tribunal a quo analisou o pressuposto do fumus boni iuris e, considerando que o mesmo não se encontrava verificado, por se tratarem de requisitos cumulativos, considerou prejudicado o conhecimento do periculum in mora e da ponderação de interesses.
Para o efeito de verificar se se encontrava preenchido o pressuposto do fumus boni iuris aferiu, em termos perfunctórios, a alegada violação da liberdade de associação (pp. 13 a 15), sob a epígrafe “violação do regime jurídico das associações de direito privado” conheceu o erro nos pressupostos e abordou a violação do regime jurídico das associações de direito privado (fazendo referência aos artigos 167.º e 168.º do CC, 32.º e 33.º do Regime Jurídico do Registo Nacional de Pessoas Coletivas) (pp. 15 a 18) e, bem assim, apreciou o “direito a participar no campeonato de Kitesurf 2025” (pp.19 a 23).
E consignou, ainda, que
“Alega, ainda, a Requerente, que se verifica violação dos artigos 2.°, 4.°, 15.° e 20.° do Regime Jurídico das Federações Desportivas, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 594/74, de 07 de novembro e, ainda, do Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Cascais, da Resolução de Conselho de Ministros n.° 66/2009, de 11 de abril, do Código da Propriedade Industrial e “[d]as escrituras públicas, certificados de admissibilidade, registos FCPC, publicados pelo IRN-MJ; Despacho UP publicado em DR; várias marcas publicadas pelo INPI, da esfera jurídica consolidada da FPKITE"
Todavia, verifica-se que a Requerente não indica factos que densifiquem as referidas violações e que sustentem, consequentemente, causas de pedir que fundamentem o pedido formulado nesta ação.
Pelo que nada há a conhecer nesta sede”.
Ou seja, é patente que o Tribunal apreciou o preenchimento do requisito do fumus boni iuris e, com exceção do que respeita à violação do princípio da igualdade, fê-lo por referência aos vícios que a Requerente apontou ao ato suspendendo.
Considerou, é certo, quanto à miríade de dispositivos que a Recorrente afirmou terem sido violados, designadamente os artigos “2.º, 4.º, 15.º e 20.º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, POOC de Cascais, a Resolução de Conselho de Ministros n.º 66/2009 , de 11 de abril (na página 2006), o Código da Propriedade Industrial, as escrituras públicas, certificados de admissibilidade, registos FCPC, publicados pelo IRN - MJ; despacho UP publicado em DR; várias marcas publicadas pelo INPI, da esfera jurídica consolidada da FPKITE”, que, face ao princípio da substanciação em que o objeto do processo é conformado pelos factos concretos que consubstanciam os vícios imputados ao ato, a referência meramente enunciativa da violação de princípios e normas jurídicas não equivale à sua concreta alegação, razão pela qual nada vindo a tal respeito consubstanciado, nada havia a apreciar.
Ou seja, o Tribunal expressamente pronunciou-se, não incorrendo a tal respeito em omissão de pronúncia.
Sobre o que o Tribunal especificamente não se debruçou foi quanto à violação do princípio da igualdade. Contudo, como se disse no já referenciado Ac. do Pleno da Seção de Contencioso Administrativo do STA, de 19.1.2023, proferido no processo 060/22.3BALSB, consultável em https://www.dgsi.pt/JSTA.NSF/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/28bc5a9419426fef80258948003d7539?OpenDocument&ExpandSection=1, “[n]o processo cautelar de suspensão da eficácia de um ato administrativo, as causas de pedir definem-se por referência aos requisitos estabelecidos no artigo 120.º do CPTA para a concessão da providência requerida, pelo que, na apreciação do fumus boni iuris, o juiz da causa não incorre em nulidade – mas apenas em eventual erro de direito – se não conhecer especificadamente de todos os vícios imputados ao ato”.
Improcede, pois, a apontada nulidade da sentença.

4.2. Do erro de julgamento de facto

A Recorrente aponta à sentença o erro de julgamento de facto sustentando que o Tribunal a quo não considerou factos essenciais que constavam dos autos e que eram determinantes para a decisão da causa.
Importa considerar que, atento o disposto no art.º 640.º do CPC ex vi art.º 1.º do CPTA, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão.
Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição total ou parcial do recurso:
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. c), do CPC], entendendo-se que o recorrente deve expressar “a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus da alegação, por forma a obviar à interposição de recurso de pendor genérico ou inconsequente.” (cf. Ac. do TCAN de 17.11.2023, proc. n.º 00464/10.4BECBR, disponível em https://www.dgsi.pt/jtcn.nsf/89d1c0288c2dd49c802575c8003279c7/cc39bb581d8ca5de80258a6f004dba88?OpenDocument).
Refira-se que, “[q]uanto aos requisitos primários ou fundamentais de delimitação do objeto do recurso, onde se inclui a obrigação do recorrente de formular conclusões e nestas especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados e que impugna e, bem assim, de acordo com uma corrente do STJ, indicar, nas conclusões, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (sendo que, a corrente maioritária, relembra-se, propende no sentido de que essa indicação tem de constar da motivação do recurso) e, bem assim, a falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados que, na sua perspetiva, sustentam esse julgamento diverso da matéria de facto que impugna, requisitos esses sobre que versa o n.º 1 do art. 640.º do CPC, a jurisprudência, sem prejuízo do que infra se dirá, tem considerado que o mencionado critério de rigor se aplica de forma estrita, não admitindo quaisquer entorses, pelo que sempre que se verifique o incumprimento de qualquer um desses ónus se impõe rejeitar o recurso da matéria de facto na parte em relação à qual se verifique a omissão, sem que seja admitido despacho de convite ao aperfeiçoamento” (cf. Ac. do TCAN de 17.11.2023, proc. n.º 00464/10.4BECBR, supra referenciado).
Ora, é patente que nas conclusões do recurso a Recorrente omite a menção aos «concretos pontos de facto» que considera incorretamente julgados [art.º 640.º, n.º 1, a) do CPC], limitando-se a afirmar nas conclusões que não foram considerados pelo Tribunal factos, que reputa essenciais à decisão da causa, sem, contudo, indicar que factos que são esses.
Ademais, na motivação do recurso, também não indica a decisão que entende dever ser tomada, e – com exceção da referência ao documento 14 feita a fls. 4 – os meios probatórios que a sustentam.
Impõe-se, pois, rejeitar o recurso quanto à matéria de facto.

4.3. Do erro de julgamento de direito

A Recorrente imputa à sentença erro de julgamento de direito expressando, em suma, que se mostram verificados os requisitos de adoção das medidas cautelares, incidindo a sua alegação recursiva, primordialmente, na demonstração do preenchimento da aparência do bom direito - fumus boni iuris – considerando que o Tribunal a quo errou no julgamento que fez quanto à não verificação dos vícios que apontou ao ato suspendendo e quanto à apreciação do seu direito a participar no campeonato nacional de kitesurf de 2025. Mais aduz mostrarem-se verificados os pressupostos do periculum in mora e o critério da ponderação de interesses.
Importa dar conta que do artigo 120.º do CPTA, que enuncia os critérios de que a lei faz depender a possibilidade de concessão de providências cautelares, decorre que são pressupostos, de preenchimento cumulativo, para a adoção de medida cautelar (i) a verificação de fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal (periculum in mora), (ii) a probabilidade de que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente (fumus boni iuris) e (iii) caso se verifiquem estes dois requisitos, o tribunal terá ainda de proceder ao juízo relativo à ponderação dos interesses públicos e privados em presença, que poderá determinar a recusa da providência quando, num juízo de proporcionalidade, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adoção de outras providências.
Da circunstância de as condições de procedência das providências cautelares definidas no art.º 120.º, n.º 1 e n.º 2 do CPTA serem de verificação cumulativa, resulta que basta a não verificação de qualquer delas para que a providência seja julgada improcedente, a significar que fica prejudicada a apreciação dos demais requisitos (cf. art. 608.º, n.º 2 do CPC).
No caso dos autos foi o que sucedeu. Isto é, o Tribunal a quo considerou não se mostrar preenchido o requisito do fumus boni iuris e, consequentemente, não conheceu do periculum in mora nos termos que resultam do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, nem procedeu à ponderação de interesses a que se reporta o n.º 2 do artigo 120.º do CPTA.
Impõe-se, portanto, aferir se o Tribunal a quo errou no julgamento que fez quanto à não verificação do pressuposto do fumus boni iuris, evidenciando-se que, quanto a este, a lei exige que “seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”, isto é, sobre o requerente impende o encargo de fazer prova sumária do bem fundado da pretensão deduzida no processo principal, cabendo ao juiz verificar em sede cautelar o grau de probabilidade de êxito do requerente na ação principal.
De notar que o juízo sobre a aparência do direito deve ser positivo, mas não deixa de ser apenas perfunctório. Isto é, ao julgar a providência o juiz não antecipa o julgamento da ação, não formulando um juízo de certeza da procedência, mas cumpre-lhe adiantar se é plausível e provável o seu êxito.
Vejamos, então.

4.3.1. Quanto ao erro nos pressupostos (e violação do regime jurídico das associações de direito privado)

Alega a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro ao concluir que a Federação Portuguesa de Vela (doravante também FPV) detém competência privativa, pública e exclusiva para autorizar a realização de eventos da atividade denominada Kitesurf, e que detém dentro da sua esfera jurídica a tutela privativa e pública para regular e ser titular dos direitos e deveres especialmente previstos na Lei relativamente à modalidade desportiva Kitesurf, enquanto federação desportiva com estatuto de utilidade pública desportiva (UPD) datado de 1993 para a atividade associativa registada denominada “Vela”.
Sustenta que a FPV não inclui nos seus estatutos qualquer referência à modalidade de Kitesurf, não cumprindo o requisito fundamental previsto no artigo 2.° do RJFD para exercer qualquer forma de tutela sobre a modalidade de Kitesurf e não podendo o estatuto de utilidade pública desportiva que lhe foi atribuído para a modalidade de Vela em 1993 ser estendido a uma modalidade que não consta dos seus estatutos.
Sustenta, ainda, que, ao abrigo do artigo 20.° do RJFD, não existe qualquer despacho publicado na 2.ª série do Diário da República que atribua à FPV o estatuto de utilidade pública desportiva para a modalidade de Kitesurf, mas apenas o Despacho n.° 57/93, de 29 de novembro, publicado na 2.ª Série do Diário da República, n.° 288, de 11 de dezembro, para a modalidade de Vela.
E que não se confunde o estatuto de Utilidade Pública Desportiva (UPD) - que confere poderes públicos delegados a uma federação para o exercício de funções públicas específicas que no caso da FPV foi atribuído em 1993 para a atividade registada de "Vela" -, com os direitos privativos decorrentes do objeto social estatutário, que pertencem à esfera jurídica da associação que os criou e registou, no caso "Kitesurf" ou "Kiteboard" em 2003 da FPKITE, criando assim um direito privativo que é oponível erga omnes, inclusive perante a Administração Pública, nos termos do artigo 168.° do Código Civil.
Mais aduz que, considerando o princípio da especialidade, o estatuto de utilidade pública desportiva não cria novos direitos materiais sobre modalidades ou atividades não previstas expressamente nos estatutos da federação beneficiária, de tal modo que a FPV não detém, nem nunca deteve, o estatuto de utilidade pública desportiva para a modalidade de Kitesurf, pelo que não pode exercer poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública sobre esta modalidade, nem poderes privativos sobre atividades fora da esfera estatutária. E que nos termos do artigo 4.° do RJFD, a atribuição de UPD pressupõe a prévia existência estatutária da modalidade nos estatutos da federação beneficiária, não podendo o ato administrativo criar direitos que não decorrem da própria natureza associativa privada prévia.
Foi o seguinte o discurso fundamentador da sentença,
“Ora, a factualidade e o enquadramento jurídico invocado pela Requerente para sustentar a anulabilidade do ato impugnado - quanto à violação do regime jurídico das associações privadas - apontam para um diferendo entre a Requerente e a Contrainteressada no que concerne à titularidade de direitos sobre a modalidade desportiva de kitesurf.
Dissenso esse que a Administração não pode [nem deve] resolver - como não o fez [nem foi alegado junto da Administração] -, sob pena de usurpação de poderes, já que a resolução de litígios jurídico-privados cabe aos tribunais [judiciais - que não os administrativos e fiscais] e não à Administração.
Ao que acresce que, em sede do procedimento de licenciamento, a Requerente emitiu pronúncia sobre a exigência daquele elemento adicional - obtenção prévia de autorização junto da Federação Portuguesa de Vela -, sustentando que goza da liberdade de associação consagrada no artigo 46.° da CRP, para prosseguir o seu fim social, aspeto este abordado no segmento antecedente desta decisão.”
O exposto revela que o Tribunal a quo verdadeiramente não apreciou a questão que lhe foi submetida, ancorando-se nos erróneos entendimentos de que se trataria de uma questão de direito privado – que não o é, face ao estatuto de utilidade pública desportiva da contrainteressada -, sobre o qual não caberia à Administração, mas sim aos tribunais (judiciais!), pronunciar-se, para não conhecer do vício que a Recorrente imputou ao ato suspendendo.
É que ao contrário do que emerge da sentença, o Município de Cascais, no exercício dos seus poderes de licenciar a utilização privativa do domínio público marítimo tendo como objetivo a realização de competições desportivas em área do (artigo 19.º, n.º 2 al. b) da Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto), efetivamente apreciou a legitimidade do Recorrente para o efeito de requerer a emissão da licença pretendida, negando-lhe a mesma por considerar que “a Federação Portuguesa de Vela (“FPV”) é a federação desportiva com competência para o exercício, em exclusivo, de poderes regulamentares relativos à modalidade em apreço, nos termos do estatuto de utilidade pública desportiva que lhe foi atribuído pelo De[spacho] n.º 57/93, de 29 de novembro (...), e nos termos do Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro (...).
3. Nesse contexto, a realização do evento de cariz desportivo em causa carece de prévia autorização da entidade acima referida, no âmbito das atribuições de que dispõe.”.
E o que o Tribunal a quo deveria ter conhecido, mas verdadeiramente não fez, demitindo-se da sua função, era se nesse juízo a Administração incorreu em erro nos pressupostos por, como alega o Recorrente, a Federação Portuguesa de Vela não deter a referida competência para regular e gerir a atividade de kitesurf.
Como emerge dos artigos 60.º, n.º 1 al. i) da Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro, 40.º, n.º 1 al. e) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, 19.º, n.º 2 al. b) da Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto, 3.º, n.º 3 al. b) do Decreto-Lei n.º 97/2018, de 27 de novembro, a realização de competições desportivas em área do domínio público marítimo está sujeita a licença de utilização privativa do domínio público hídrico, cuja competência para a sua atribuição é in casu da Câmara Municipal de Cascais.
Resulta do probatório a Federação Portuguesa de Vela – UPD (FPV) é uma associação sem fins lucrativos, de utilidade pública desportiva, que tem como objetivos, entre outros, promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, “a prática da vela nas suas múltiplas formas” (artigo 3.1 dos Estatutos), sendo que foi pelo Despacho n.º 57/93 da Presidência do Concelho de Ministros, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 288, de 11 de dezembro de 1993, que lhe foi concedido o estatuto de utilidade pública desportiva.
A Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto (Lei n.º 5/2007, de 16 de janeiro, doravante LBD) e, em moldes idênticos o Regime Jurídico das Federações Desportivas (doravante, RJFD, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 248-B/2008, de 31 de dezembro, na redação à data em vigor), definem, respetivamente nos seus artigos 14.º e 2.º, as federações desportivas como “pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade, preencham, cumulativamente, os seguintes requisitos:
a) Se proponham, nos termos dos respectivos estatutos, prosseguir, entre outros, os seguintes objectivos gerais:
i) Promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, a prática de uma modalidade desportiva ou de um conjunto de modalidades afins ou associadas;
ii) Representar perante a Administração Pública os interesses dos seus filiados;
iii) Representar a sua modalidade desportiva, ou conjunto de modalidades afins ou associadas, junto das organizações desportivas internacionais, bem como assegurar a participação competitiva das selecções nacionais;
b) Obtenham o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública desportiva”
Podendo as federações desportivas ser unidesportivas - as que englobam pessoas ou entidades dedicadas à prática da mesma modalidade desportiva, incluindo as suas várias disciplinas, ou a um conjunto de modalidades afins ou associadas – ou multidesportivas - as que se dedicam, cumulativamente, ao desenvolvimento da prática de diferentes modalidades desportivas, em áreas específicas de organização social, designadamente no âmbito do desporto para cidadãos portadores de deficiência e do desporto no quadro do sistema educativo (artigo 15.º da LBD)
Nos termos do artigo 4.º do RJFD as federações desportivas regem-se pelo disposto no RJFD e, subsidiariamente, pelo regime jurídico das associações de direito privado.
Prevendo-se no artigo 10.º do RJFD e 19.º da LBD, epigrafados “Estatuto de utilidade pública desportiva”, que “o estatuto de utilidade pública desportiva confere a uma federação desportiva a competência para o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, bem como a titularidade dos direitos e deveres especialmente previstos na lei.”
Refira-se, ainda, que ao abrigo do princípio da unicidade federativa, “o estatuto de utilidade pública desportiva é atribuído por um período de quatro anos, coincidente com o ciclo olímpico, a uma só pessoa coletiva, por modalidade desportiva ou conjunto de modalidades afins, que, sendo titular do estatuto de simples utilidade pública, se proponha prosseguir os objetivos previstos no artigo 2.º, demonstre que possui relevante interesse desportivo nacional e preencha os demais requisitos previstos no presente decreto-lei.” (artigo 15.º, n.º 1 do RJFD).
Consigna-se, ainda, no artigo 20.º do RJFD que “os despachos de atribuição ou recusa do estatuto de utilidade pública desportiva e todos os que afetem a subsistência de tal estatuto são publicados no Diário da República e na página da Internet do Instituto Português do Desporto e Juventude, I. P.”
Refira-se que as federações desportivas têm direitos desportivos exclusivos, designadamente, nos termos do n.º 1 do artigo 61.º do RJFD e 16.º da LBD, o de conferir títulos desportivos, de nível nacional ou regional, e organizar seleções nacionais. Cabendo-lhes, ainda, o direito exclusivo de:
a) Promover, regulamentar e dirigir a nível nacional a prática de uma modalidade desportiva ou um conjunto de modalidades afins ou associadas;
b) Organizar e publicitar os quadros competitivos da respetiva modalidade, independentemente do escalão etário ou categoria;
c) Atribuir títulos de campeão nacional ou regional no âmbito dos respetivos campeonatos;
d) Reconhecer e organizar seleções e representações nacionais (artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 45/2015).
Por sua vez, a Recorrente é “uma associação sem fins lucrativos, que tem como objetivos, entre outros, promover, regulamentar e dirigir, a nível nacional, a prática de kitesports nas suas múltiplas formas de kitesurf, de landkite e de snowkite; promover eventos e ações de formação acerca de kitesports; organizar anualmente o seu calendário ao desenvolvimento de kitesports; e autorizar a realização de competições”.
Estamos, pois, perante uma pessoa coletiva privada criada sob a forma de associação, in casu dirigida à promoção de atividades desportivas de kitesports, incluindo kitesurf, e que se rege, portanto, pelo Código Civil, designadamente pelos artigos 167.º e ss..
Feito este enquadramento é de evidenciar que, opostamente ao que alega a Recorrente, dos Estatutos da Federação Portuguesa de Vela resulta que esta é a federação desportiva, dotada de utilidade pública desportiva, com competência exclusiva para regulamentar e dirigir, a nível nacional, “a prática da vela nas suas múltiplas formas”. A significar, portanto, que a sua competência não se reduz a uma única modalidade desportiva de “vela”, antes abrange todas as modalidades de vela e aquelas a esta afins, no sentido de atividades desportivas náuticas movidas exclusivamente por propulsão à vela, onde se emprega somente a força do vento como meio de deslocamento.
A questão residirá, pois, em saber se o kitesurf pode, ou não, ser entendido como uma forma (ou modalidade) de vela. E, numa análise perfunctória, a resposta é positiva.
Com efeito, o “kitesurf, kiteboarding, ou originalmente flysurfing, é um desporto aquático que utiliza uma pipa ou papagaio (comumente chamada pelos praticantes de kite) e uma prancha com ou sem alças (uma estrutura de suporte para os pés). A pessoa, com a pipa presa à cintura através de um dispositivo chamado trapézio, coloca-se em cima da prancha, comanda o kite com a barra, e sobre a água, é impulsionada pelo vento que atinge pipa. Ao controlá-lo, através de uma barra, consegue se deslocar (orçar ou arribar) escolhendo um trajeto, sobre as ondas ou realizando saltos” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Kitesurf).
Estamos, pois, perante um desporto aquático que, através de uma prancha e de um kite, utiliza a força do vento para gerar movimento e atravessar a água. Embora tradicionalmente a vela seja fixa a um mastro e a uma embarcação ou, no caso do windsurf, a uma prancha, o kite não deixa de ser uma vela mais versátil e dinâmica que, no caso, se prende ao praticante e é controlada através de uma barra, que permite a sua movimentação na água ou no ar.
Refira-se, aliás, que nos Jogos Olímpicos de Paris, realizados em 2024, entre as modalidades de vela encontrava-se o kite, masculino e feminino, nas classes de formula kite (https://www.olympics.com/pt/noticias/diferencas-provas-olimpicas-vela-paris-2024).
Daí que, enquanto atividade desportiva aquática movida exclusivamente por propulsão à vela, no caso um kite, o kitesurf representa uma forma da modalidade desportiva de vela.
Assim, em consonância com o disposto no artigo 2.º, al. a) i) do RJFD, na medida em que os respetivos estatutos preveem a prossecução da promoção, regulamentação e direção da atividade desportiva de vela em todas as suas formas, abarcando, portanto, todas as atividades desportivas aquáticas movidas exclusivamente por propulsão à vela, aí se inclui – ainda que não expressamente referenciado - o kitesurf.
E, consequentemente, também não assiste razão à Recorrente quando alega que inexistiria – porque não publicitada nos termos do artigo 20.º do RJFD - decisão de atribuição de utilidade pública desportiva relativamente à modalidade de kitesurf. É que, in casu, considerando os Estatutos da FPV, o estatuto de utilidade pública desportiva, foi atribuído para a vela e modalidades a esta afins, o que foi feito inicialmente pelo Despacho n.° 57/93, de 29 de novembro, publicado na 2.ª Série do Diário da República, n.° 288, de 11 de dezembro e posteriormente renovado pelo Despacho n.º 5316/2013, publicado no Diário da República n.º 78/2013, Série II de 2013.04.22.
Aquilo em que a Recorrente se equivoca é ao considerar que a modalidade de kitesurf não se encontra abrangida pelos Estatutos da FPV, quando, na realidade, como vimos, se encontram sob a alçada desta todas as modalidades de vela e suas afins, ou como resulta daqueles “a vela em todas as suas formas”. E daí que não se trata de criar direitos sobre atividades não previstas expressamente nos estatutos da federação beneficiária – dando-se nota que o artigo 4.º do RJFD nada prevê a tal respeito, mas apenas determina os regimes normativos porque se regem as federações desportivas - ou de violar o alegado princípio da especialidade das federações desportivas, pois que a natureza de federação desportiva e o estatuto de utilidade pública desportiva da FPV lhe foram atribuídos à luz daqueles estatutos e, nessa medida, contemplam o exercício, em exclusivo, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública relativamente à modalidade de kitesurf.
Mas o mesmo já não sucede quanto à Recorrente, que não dispõe nem da natureza de federação desportiva, nem tão pouco de estatuto de utilidade pública desportiva – que, ademais, lhe foi recusado pelo Despacho n.º 13564/2022, de 22 de novembro, do Secretario de Estado da Juventude e do Desporto, publicado no Diário da República n.º 225/2022, Série II de 2022-11-22, exatamente por “o objeto da Federação Portuguesa de Kitesports, previsto no artigo 3.º dos seus Estatutos, não respeita o princípio da unicidade federativa, plasmado no artigo 15.º do RJFD, na medida em que cabe à Federação Portuguesa de Vela, que é detentora do estatuto de utilidade pública desportiva e representa a sua modalidade desportiva junto da organização desportiva internacional reconhecida como reguladora da mesma, a competência exclusiva para promover, regulamentar e dirigir a nível nacional a prática da vela nas suas múltiplas formas, entre as quais se encontra o kitesurf.”.
Refira-se que os artigos 167.º e 168.º do CC e 32.° e 33.° do Decreto-Lei n.° 129/98, de 13 de maio não conferem à Recorrente qualquer direito privativo sobre a modalidade do kitesurf, em termos que se aceite a alegada violação do aí disposto e, verdadeiramente, nem se compreende a convocação de tais normativos pela Recorrente.
Com efeito, é que os artigos 167.º e 168.º regem o ato de constituição das associações quanto às especificações que os mesmos devem conter, a exigência de forma de escritura pública quanto àquele, aos estatutos e às suas alterações e, bem assim, a sua publicitação enquanto exigência para a produção de efeitos em relação a terceiros.
E os artigos 32.° e 33.° do Decreto-Lei n.° 129/98, de 13 de maio, que estabelece o Regime Jurídico do Registo Nacional de Pessoas Coletivas, regem os princípios da verdade e da novidade quanto às firmas e denominações das pessoas coletivas.
Portanto, não servindo de suporte normativo para a pretensão da Recorrente.
A mera natureza de associação privada da Recorrente e o seu objeto social, não lhe conferem a atribuição de poderes de promoção, regulamentação e direção da atividade de kitesurf, nem tão pouco direitos à realização de eventos desportivos de âmbito nacional relativos a tal modalidade, os quais, à luz dos artigos 2.º, 10.º, 61.º, n.º 1 do RJFD, 14.º, 16.º, 19.º da LBD e 6.º do DL 45/2015, se encontram reservados à federação desportiva de estatuto de utilidade pública desportiva com competência sobre a modalidade, in casu a FPV.
Na realidade, a pretensão da Recorrente, de fazer valer a sua natureza de associação privada visando a promoção da atividade de kitesurf sobre a da federação desportiva de utilidade pública desportiva com competência sobre a modalidade, equivaleria não só à violação do princípio da unicidade federativa (artigo 15.º do RJFD), mas da exclusividade no exercício dos poderes de natureza pública que emergem do estatuto de utilidade pública desportiva conferido a uma federação desportiva (artigos 2.º e 10.º do RJFD e 14.º e 19.º da LBD) e, bem assim, dos direitos desportivos exclusivos que lhe assistem, designadamente, no que se reporta à organização de competições desportivas de âmbito nacional.
Ora, considerando os direitos desportivos exclusivos que se encontram atribuídos à FPV quanto à promoção e direção a nível nacional da prática de “vela em todas as suas formas”, organização de competições e atribuição de títulos nacionais [als. a), b) e c) do n.º 1 do artigo 6.º do DL 45/2015], ao abrigo do seu poder regulamentar, a FPV previu no ponto 5.2.4 dos Regulamentos Desportivos da FPV para as épocas de 2021/2022, 2022/2023, 2024/2025 e 2024/2025 (disponíveis em https://fpvela.pt/federacao-portuguesa-de-vela/regulamentacao-e-documentacao-institucional-regulamentos/), a necessidade de solicitação prévia para a realização de provas de âmbito nacional (para além, das por si diretamente organizadas nos termos do ponto 5.2.1).
Do exposto resulta que a Recorrente, à míngua da obtenção de autorização prévia da FPV, não detém legitimidade para organizar a competição desportiva de âmbito nacional relativamente à qual solicita a licença em causa nos autos.
Donde, na medida em que a licença de utilização privativa do domínio público hídrico requerida tem por objeto a realização de competição desportiva [artigos 60.º, n.º 1 al. i) da Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro, 40.º, n.º 1 al. e) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio] relativa à modalidade de kitesurf, naturalmente que a sua atribuição depende da titularidade pelo requerente do direito a realizar o evento em causa, sob pena de se atribuir a licença a quem não dispõe de capacidade legal para, efetivamente, organizar e gerir a competição desportiva.
E daí que, embora com distinta fundamentação da vertida na sentença recorrida, não se afigura a probabilidade de procedência da ação principal assente no erro nos pressupostos (ou na violação do regime jurídico das associações de direito privado).

4.3.2. Quanto à violação da liberdade associativa

A Recorrente insurge-se, ainda, quanto a não se julgar verificado o fumus boni iuris no que respeita à consideração de que a exigência de autorização prévia da FPV para a prática de atividade desportiva de Kitesurf não configura a violação à liberdade de associação prevista no artigo 46.º da Constituição da República Portuguesa (CRP). Sustenta que exigir-se que subordine a sua própria existência associativa à autorização de outra associação privada diferente que, em cúmulo, não demonstra deter poderes privativos e públicos sobre a atividade de objeto Kitesurf representa uma verdadeira restrição material ao livre exercício da sua atividade estatutária.
Também aqui sem razão.
O artigo 46.º da CRP (Liberdade de associação) prevê, no que aos autos releva, que,
1. Os cidadãos têm o direito de, livremente e sem dependência de qualquer autorização, constituir associações, desde que estas não se destinem a promover a violência e os respectivos fins não sejam contrários à lei penal.
2. As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas actividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial.
Como se escreve no acórdão n.º 711/97 do Tribunal Constitucional, proferido no processo n.º 619/97, a liberdade de associação, consagrada no artigo 46.º, da Constituição da República Portuguesa, consiste no direito que
“os cidadãos têm de, sem impedimentos, nem imposições por parte do Estado, constituir associações, filiar-se em associações já existentes, não entrar em qualquer associação senão por sua livre e espontânea vontade e sair de associação em que se tenham inscrito (cfr. n.ºs 1 e 3 do artigo 46º).
As associações, uma vez constituídas, gozam do direito de se organizarem livremente e de, livremente também, prosseguirem a sua actividade (princípio da auto-organização e da autogestão das associações – cfr. o n.º 2 do artigo 46º). O direito de associação apresenta-se, assim, fundamentalmente, como um direito de defesa perante o Estado.”
Assim, a disposição constitucional citada abrange «dimensões essenciais da liberdade de associação, designadamente a liberdade de auto-organização, o autogoverno e a autogestão, consubstanciadas na autonomia estatutária (não podendo os estatutos das associações estar dependentes de qualquer aprovação ou sanção administrativa e, muito menos, ser impostos pelas autoridades); a liberdade de escolha dos seus órgãos (não podendo a designação dos órgãos directivos da associação estar dependente de qualquer aprovação ou controlo administrativo, e, muito menos, de imposição administrativa) e a liberdade de gestão (não podendo os seus actos ficar dependentes de aprovação ou referenda administrativa)» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 646).
Como se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional n.º 28/2006, proferido no processo n.º 61/05,
“Tratando-se de um direito complexo – hoc sensu, integrado por um conteúdo pluridimensional […].
[…]
Integram, por isso, o âmbito constitucionalmente tutelado pelo artigo 46.º da Constituição (principaliter no seu n.º 2) as manifestações dessa autonomia de organização e normação associativa – consubstanciada, segundo Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, op. cit., p. 258, “na autonomia estatutária (não podendo os estatutos das associações estar dependentes de qualquer aprovação ou sanção administrativa e muito menos ser impostos pelas autoridades), [n]a liberdade de organização (não podendo a designação dos órgãos directivos da associação estar dependente de qualquer aprovação ou controlo administrativo, e muito menos de imposição administrativa) e [n]a liberdade de gestão (não podendo os seus actos ficar dependentes de aprovação ou referenda administrativa)” –, na medida em que importem da “autodeterminação sobre a sua própria organização”, do “processo de formação da sua vontade” ou da “direcção dos seus assuntos” (cf. BverfGE, 50, 290, 354, mencionado em Ángel J. Gómes Montoro, Asociación, Constitución, Ley ..., op. cit., p. 192, nota 347), implicando, nesses termos, uma “liberdade de organização e de funcionamento sem ingerências públicas” (cf. a já referida Sentencia 173/1998 do Tribunal Constitucional espanhol), assumindo-se a liberdade de “organização [como] um elemento fundamental de toda a associação já que sem ela não é possível o desenvolvimento coerente e continuado da actividade associativa” (cf. Murillo De La Cueva, El derecho de asociación, op. cit., p. 200).
[…]
Como resulta do exposto, o que a liberdade de associação tutela é, no que aos autos revela, o direito das associações de livremente se organizarem e prosseguirem a sua atividade, não abrangendo no seu escopo de proteção um qualquer direito das associações a, no exercício desse direito de autogestão, desenvolverem as atividades a que se propuseram de forma irrestrita. E é aqui que reside o erro da Recorrente, ao confundir o seu direito de auto-organização e de autogestão (n.º 2 do artigo 46.º) no sentido de definir o seu modelo organizacional e de definir de forma autónoma a sua administração ao nível de recursos, processos ou atividades para atingir objetivos específicos, com um alegado direito a exercer uma determinada atividade sem sujeição às regras legais subjacentes às mesmas.
Ora, na definição das políticas de desenvolvimento da atividade física e do desporto, em consonância com as obrigações que emergem do direito à cultura física e ao desporto (artigo 79.º da CRP), o legislador infraconstitucional desenvolveu um modelo de associativismo desportivo que passa pela existência das federações desportivas (artigo 14.º da LBD), enquanto, como vimos, “pessoas colectivas constituídas sob a forma de associação sem fins lucrativos que, englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver, praticantes, técnicos, juízes e árbitros, e demais entidades que promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade”. Entidades essas (federações desportivas) às quais, verificados os pressupostos, atribui poderes de natureza pública e reconhece “a competência para o exercício, em exclusivo, por modalidade ou conjunto de modalidades, de poderes regulamentares, disciplinares e outros de natureza pública, bem como a titularidade dos direitos e poderes especialmente previstos na lei” (artigo 19.º, n.º 1 e 2 da LBD). Em contraponto sujeita-as a um regime específico de direito público – consagrado, além do mais, no Regime Jurídico das Federações Desportivas – que, diferentemente do modelo de autogestão e auto-organização do associativismo privado porque se regula a Recorrente, impõe às federações desportivas um determinado modelo organizacional e de funcionamento, o cumprimento de obrigações e deveres (vg. os previstos no artigo 13.º do RJFD) e a “fiscalização do exercício dos poderes públicos, bem como do cumprimento das regras legais de organização e funcionamento internos das federações desportiva” (artigo 21.º da LBD).
Tal justifica-se porque a promoção do desenvolvimento da atividade física e do desporto corresponde a uma atividade de fim público, da qual o Estado não se pode demitir, impondo-se regular os moldes em que, entidades privadas, prosseguem as finalidades públicas e utilizam os poderes públicos que lhes são atribuídos.
Ora, enquanto atividade estadual que é - a promoção do desenvolvimento da atividade física e do desporto – e atenta a sua natureza e finalidade públicas, em que se assume essencial a salvaguarda do interesse da coletividade – que não corresponde a objetivo das entidades privadas de índole associativa -, o legislador reservou os poderes de promoção, regulamentação e direção da atividade de kitesurf e os direitos à realização de eventos desportivos de âmbito nacional relativos a tal modalidade (artigos 2.º, 10.º, 61.º, n.º 1 do RJFD, 14.º, 16.º, 19.º da LBD e 6.º do DL 45/2015) à federação desportiva de estatuto de utilidade pública desportiva com competência sobre a modalidade. Em termos tais que a organização de eventos desportivos relativos à modalidade (kitesurf) fica sujeita à regulamentação definida pela correspondente federação desportiva, o que, in casu, demanda a prévia autorização desta.
Daí não resulta, opostamente ao alegado, qualquer violação da liberdade de associação da Recorrente, por não contender com qualquer das dimensões da mesma constitucionalmente protegidas, designadamente com a autogestão ou a auto-organização das associações.
Nem tão pouco contende com a liberdade de associação da Recorrente a exigência, reclamada para a obtenção de licença de utilização privativa do domínio público hídrico que tem por objeto a realização de competição desportiva relativa à modalidade de kitesurf [artigos 60.º, n.º 1 al. i) da Lei n.º 58/2005, de 29 de dezembro, 40.º, n.º 1 al. e) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio], respeitante à titularidade pelo requerente do direito a realizar o evento em causa.
Com efeito, reconhecendo-se que os bens do domínio público marítimo, carecem e beneficiam de um regime específico de salvaguarda em que a gestão da água, enquanto interesse da coletividade, se encontra sujeita a um conjunto de princípios, que perfilham, entre o mais, o valor social da água, a sua dimensão ambiental de modo a garantir a sua utilização sustentável, o seu valor económico, (artigo 3.º n.º 1 da Lei n.º 58/2005), ao abrigo dos princípios da precaução e da prevenção o legislador estabeleceu que “as actividades que tenham um impacte significativo no estado das águas só podem ser desenvolvidas desde que ao abrigo de título de utilização emitido nos termos e condições previstos nesta lei e em decreto-lei a aprovar” (artigo 56.º da Lei n.º 58/2005). Em termos tais que a atribuição do direito de utilização privativa dos recursos hídricos do domínio público, definida como “aquela em que alguém obtiver para si a reserva de um maior aproveitamento desses recursos do que a generalidade dos utentes ou aquela que implicar alteração no estado dos mesmos recursos ou colocar esse estado em perigo”, incluindo para a realização de competições desportivas, se encontra sujeita a licença (artigo 59.º, n.ºs 1 e 2 e 60.º, n.º 1 al. i) da Lei 58/2005 e 40.º, n.º 1 al. e) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007).
Entre as exigências subjacentes à atribuição desse direito de utilização privativa dos recursos hídricos do domínio público encontra-se a capacidade/legitimidade do requerente, na medida em que o maior aproveitamento dos recursos hídricos de domínio público se encontra dependente da efetiva possibilidade de realizar a atividade para a qual a licença é emitida. Tal pressuposto não contende com a liberdade de associação, pois que não traduz qualquer restrição à autonomia de organização e normação associativa.
Reitera-se, a liberdade de associação não tem no seu escopo de proteção possibilitar às associações privadas o exercício das suas atividades sem sujeição às regras legais subjacentes às mesmas, designadamente no que in casu respeita à organização de um evento desportivo relativo a uma modalidade cuja competência e tutela regulamentar reside na esfera da federação desportiva e ao consequente respeito pelos pressupostos de obtenção de licença de utilização privativa do domínio público hídrico com vista à sua realização em área do domínio público marítimo.
Como tal, não há que considerar aqui a aplicação dos limites às restrições a direitos fundamentais a que se reporta o artigo 18.º, n.º 2 da CRP, designadamente no que à proporcionalidade das medidas se reporta, exatamente por não estar em causa qualquer restrição à liberdade de associação.
Donde, também a este respeito, embora com diversa fundamentação, a sentença não tenha incorrido em erro de julgamento.

4.3.3. Quanto à violação do princípio da igualdade (do precedente e uniformidade da atuação administrativa), e do Plano de Ordenamento da Ordem Costeira e dos direitos de propriedade intelectual da Recorrente

A Recorrente defende o erro de julgamento quanto à violação do princípio da igualdade, aqui suscitando o precedente administrativo e a uniformidade da atuação administrativa, e, bem assim, à violação do POOC e dos seus direitos de propriedade intelectual. Tal como se disse no ponto 4.1 deste Acórdão a violação do princípio da igualdade não foi apreciada pelo Tribunal a quo, sendo que quanto à violação do POOC e dos seus direitos de propriedade intelectual entendeu-se na sentença recorrida nada haver a apreciar por tais vícios não terem sido consubstanciados pela requerente.
Importa considerar que na causa principal, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra sob o número 706/23.6BELSB, a Recorrente, ali Autora, peticiona a anulação ou declaração de nulidade do ato de 22.11.2022 que indeferiu o pedido de licença de utilização privativa do domínio público hídrico para a realização do campeonato nacional de kitesurf no ano de 2022.
Ora, se a ação fosse meramente impugnatória, o dever de apreciação de todos os vícios apontados ao ato emerge expressamente do disposto no n.º 3 do artigo 95.º do CPTA, em termos tais que em sede cautelar a aferição da probabilidade de procedência daquela ação principal não pode deixar de considerar todos os vícios invocados de forma consubstanciada.
Reconhece-se, todavia, que, não obstante a necessidade de prolação de despacho nos termos do artigo 51.º, n.º 4 do CPTA, estando em causa um ato de indeferimento, a ação é de condenação à prática de ato devido [artigo 66.º, n.ºs 1 e 2 e 67.º, n.º 1 al. b) do CPTA], em que o objeto do processo não é o indeferimento, mas a pretensão do interessado e em que a eliminação do ato de indeferimento da ordem jurídica resulta diretamente da pronúncia condenatória.
Embora o objeto do processo da ação de condenação à prática de ato devido corresponda ao direito do particular a uma determinada conduta da Administração, e não ao ato administrativo, em que o Tribunal aprecia a concreta relação administrativa existente entre o particular e a Administração de modo a apurar qual o direito do primeiro e o dever da segunda, determinando, por essa via, o conteúdo do ato devido, a análise do pedido condenatório implica o conhecimento da legalidade da recusa. De tal forma que, em sede cautelar, a verificação do preenchimento do fumus boni iuris há de considerar os fundamentos que o requerente, em moldes concretizados, invocar com vista a demonstrar o direito à prática do ato devido e, consequentemente, a probabilidade de procedência da ação principal.
Analisado o requerimento inicial que subjaz à presente providência cautelar e, como aqui já dissemos, o que a Recorrente, de forma consubstanciada, invocou foi, apenas, a violação do princípio da igualdade, o erro nos pressupostos por ser a única entidade legalmente reconhecida para tutelar o kitesurf/kiteboard/kitesports (não possuindo competência a Federação Portuguesa de Vela), e a violação/restrição ilegítima da liberdade de associação.
Já quanto ao “POOC de Cascais, a Resolução de Conselho de Ministros n.º 66/2009, de 11 de abril (na página 2006), o Código da Propriedade Industrial, as escrituras públicas, certificados de admissibilidade, registos FCPC, publicados pelo IRN - MJ; despacho UP publicado em DR; várias marcas publicadas pelo INPI, da esfera jurídica consolidada da FPKITE”, limitou-se a invocar a sua violação sem, em momento algum, consubstanciar a causa de pedir que subjaz à conclusão pela ilegalidade do indeferimento com tais fundamentos.
Ora, a referência meramente enunciativa da violação de princípios ou normas jurídicas não equivale à sua concreta alegação. De facto, adotando-se um conceito de causa de pedir conforme à teoria da substanciação, o objeto do processo é conformado pelos factos concretos que consubstanciam os vícios imputados ao ato. O que significa que, tal como entendeu o Tribunal a quo, nada havia a apreciar, porque a requerente nada concretizou para sustentar a violação do Plano de Ordenamento da Orla Costeira de Cascais, aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 66/2019, de 11 de abril, nem tão pouco dos seus direitos de propriedade industrial.
Não incorreu a esse respeito em erro de julgamento, não cabendo, portanto, também, a este Tribunal sobre questões (conclusões VII e VIII).
Mas o mesmo já não sucede quanto à violação do princípio da igualdade, em que se constata que, de forma consubstanciada, a requerente fundou o seu direito à licença no princípio da igualdade. E, portanto, cabia ao Tribunal a quo, e agora a este Tribunal ad quem, apreciar se com tal fundamento assiste à requerente o direito à prática do ato devido (com a inerente eliminação da ordem jurídica do ato impugnado) com vista à verificação do preenchimento do fumus boni iuris.
A tal respeito alega a Recorrente que diversos Municípios reconheceram a sua legitimidade para organizar competições de kitesurf e que também já em outras ocasiões o fez o Município de Cascais, o que entende configurar uma violação do princípio da igualdade, numa dimensão de precedente e uniformidade da atuação administrativa
Ora, nos termos dos artigos 13.º e 266.º, n.º 2 da CRP e 6.º do CPA, pela Administração deve ser observado o princípio da igualdade em toda a sua atividade.
Em conformidade com o art. 13.º da CRP,
“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.
E impondo à Administração uma atuação vinculada ao respeito pelo princípio da igualdade, o n.º 2 do artigo 266.º da CRP prevê que “[o]s órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé”.
Estabelecendo-se no artigo 6.º do CPA que “[n]as suas relações com os particulares, a Administração Pública deve reger-se pelo princípio da igualdade, não podendo privilegiar, beneficiar, prejudicar, privar de qualquer direito ou isentar de qualquer dever ninguém em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.
Ocupando-se sobre as exigências inerentes à consagração constitucional do princípio da igualdade, previsto de forma expressa no artigo 13.º da nossa Constituição, constitui jurisprudência estabilizada do Tribunal Constitucional que a nossa Lei Fundamental só proíbe o tratamento diferenciado de situações quando o mesmo se apresente arbitrário, sem fundamento material.
Ou seja, o princípio da igualdade não veda a realização de distinções, antes proíbe a adoção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objetiva e racional. Em suma, traduz-se na ideia geral da proibição do arbítrio.
Acrescente-se que,
“I- O princípio da igualdade, acolhido no art. 13° da CRP funciona como um dos limites da discricionaridade, só neste domínio encontrando a sua justificação.
II - Ou seja, tal princípio, só se configura como fonte autónoma de invalidade quando a Administração goze de liberdade para escolher o comportamento a adoptar, não relevando no domínio da actividade vinculada.” (Ac. do STA de 5.4.2001, proferido no processo 046609, consultável em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/908816c1d9e31dea80256b05004017ac?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1).
Refira-se que quando a Recorrente sustenta o precedente e uniformidade administrativa reporta-se essencialmente a um padrão decisório a que a Administração, no caso o Município de Cascais, se teria autovinculado e que, desse modo, lhe garantiria (também) agora o direito à concessão da licença requerida. Está em causa a autovinculação da Administração Pública, que, além de ocorrer quando a Administração Pública, detentora de poder discricionário (portanto, quando exista, margem de livre decisão administrativa na matéria), decide limitar a sua própria atuação, “só vale externamente se não for ilegal ou antijurídica, como é lógico e é imposto pelo princípio da legalidade administrativa e ainda pelos princípios da igualdade e da tutela da confiança legítima” (Ac. deste TCA Sul de 5.4.2018, proferido no processo 97/10.5BELSB, https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/-/09992B3FA838B32980258271004D0295).
Acrescente-se que, como se escreveu no Ac. do TCA Sul de 20.4.2017, proferido no processo 2164/16.2BELSB, https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/2164-2017-116183883,
“I - A eventual autovinculação da Administração Pública a decidir de certo modo, dependerá sempre do caso concreto, da não violação da lei e da identidade de circunstâncias, incluindo identidade da pessoa jurídica administrativa que toma as várias decisões a comparar para efeitos de heterovinculação das decisões entre si e de autovinculação do órgão decisor.
II - Assim sendo, a ponderação feita antes e a concreta prossecução do interesse público considerada antes por determinado Município, não poderá vincular, sem mais condições, outra entidade decisória, mesmo no caso hipotético de situações idênticas”.
Feito este enquadramento, há que notar que o probatório não atesta nenhuma das situações que a Recorrente reputa terem obtido tratamento diverso, praticadas pelo Recorrido ou por outros municípios.
O que, naturalmente, obsta a que se possa determinar se, efetivamente, estavam em causa situações idênticas que obtiveram tratamento diverso ou que tais situações representem a autovinculação da Administração a um determinado sentido decisório.
Acrescente-se que o pressuposto da legitimidade do requerente para a realização do evento desportivo com vista à atribuição da licença de utilização de domínio hídrico que visa a realização de tal competição não corresponde a um domínio em que à Administração sejam atribuídos poderes discricionários – por forma a que aqui pudesse intervir o princípio da igualdade ou permitir à Administração, no exercício da sua margem de livre decisão, a autovincular-se a decidir num determinado sentido - , mas sim em que a sua atuação se rege pelo princípio da legalidade. A significar, pois, que, ainda que se demonstrasse o tratamento diferenciado ou a existência de anteriores decisões em sentido distinto (reconhecendo a legitimidade da Recorrente na realização de idêntico evento desportivo), nem daí resultaria o direito da Recorrente à obtenção da licença que lhe foi negada, exatamente porque, como vimos no ponto 4.3.1 deste Acórdão, à luz do quadro jurídico aplicável (que não atribui à Administração qualquer discricionariedade) tal direito não lhe assiste. E não há igualdade na ilegalidade, dependendo a autovinculação da Administração à não violação da lei.
Daí que, também com tal fundamento, não se afigura a probabilidade de procedência da ação principal.

4.3.4. Do direito a participar no campeonato de kitesurf de 2025

Não se conforma, ainda, a Recorrente quanto à decisão tomada pelo Tribunal a quo quando, a respeito da pretensão de autorização a participar no campeonato de kitesurf de 2025, considerou não se mostrar preenchido o requisito do fumus boni iuris por tratar-se de “condição sine qua non da utilização privativa dos recursos hídricos do domínio público com vista à realização de competições desportivas” a prévia apresentação de requerimento com vista a constituir a Administração no dever de decidir.
A tal respeito considera a Recorrente que os indeferimentos referentes aos Campeonatos de 2022 e 2024, fundados na alegada “exclusividade de competência da Fpvela” sobre a modalidade estatutária da Recorrente, denominada nacionalmente para terceiros “Kitesurf ”, consubstanciam uma posição administrativa cristalizada”, de tal forma que exigir-lhe a formulação de um novo pedido para o evento de 2025, sabendo-se que este seria indeferido com base na mesma fundamentação jurídica, não só a onera desproporcionalmente, como viola os princípios da economia processual e da tutela jurisdicional efetiva, consagrados no artigo 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Novamente, sem razão.
Há que considerar que, nos termos dos artigos 60.º, n.º 1 al. i) e 67.º da Lei n.º 58/2005 e 12.º, 19.º, n.º 2 al. b) da Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto, 3.º, n.º 3 al. b) do Decreto-Lei n.º 97/2018, de 27 de novembro, encontra-se atribuído à Administração, no exercício da função administrativa, o licenciamento da utilização privativa dos bens dos recursos hídricos do domínio público. Mostrando-se, nos termos dos artigos 14.º e 20.º, n.º 1, al. a) do Decreto-Lei n.º 226/2007, de 31 de maio, a atribuição de títulos de utilização de recursos hídricos sujeita à apresentação pelo interessado de requerimento dirigido à sua emissão, cabendo à autoridade administrativa competente, no caso o Município de Cascais, a apreciação do requerimento com vista à aferição do cumprimento dos pressupostos legalmente previstos e, proferida a decisão final, emitir o correspondente título (artigo 22.º).
Também no Regulamento Municipal para a Gestão das Praias Balneares do Concelho de Cascais, publicitado pelo Aviso n.º 6988/2024/2 no Diário da República 2.ª Série n.º 64, de 1.4.2024, se prescreve que estão sujeitas a licença, a atribuir pela Câmara Municipal, a utilização privativa do domínio público hídrico para a realização de eventos desportivos nas praias do concelho [artigos 3.º, n.º 1, 7.º, n.º 1 al.s e) e f), 10.º, n.º 2 al. a)]. Exigindo a prévia apresentação de requerimento pelo interessado, instruído com os documentos exigidos (artigo 11.º), e sujeito a análise e decisão pelo município (artigo 13.º).
Assim é porque, à luz do princípio da separação de poderes (artigo 2.º da CRP), incumbe à Administração o exercício da função administrativa – na qual se insere a atribuição de títulos de utilização privativa de recursos hídricos -, enquanto atividade do Estado que visa a satisfação das necessidades coletivas e a realização do interesse público, cabendo aos Tribunais a função jurisdicional de composição de conflito de interesses, efetuada de harmonia com a lei ou com critérios por ela permitidos.
Estando em causa pretensões dirigidas à prática (ou eliminação da ordem jurídica) de atos administrativos, é perante a atuação (ou omissão, por incumprimento do dever de decisão) administrativa que o Tribunal pode ser chamado a sindicar a legalidade da atuação administrativa, não podendo substituir-se à Administração no exercício da função administrativa.
A tese da Recorrente de que a sua pretensão, que corretivamente se dirige - não à obtenção de autorização para participar no Campeonato Nacional de Kitesurf de 2025 -, à obtenção de autorização para a utilização do domínio público hídrico visando a realização de competição desportiva no ano de 2025, poderia ser apreciada pelo Tribunal, à míngua da apresentação por esta à Administração de requerimento dirigido à sua obtenção – e do consequente ato de indeferimento ou omissão do dever de decidir – traduziria a violação do princípio da separação de poderes, atribuindo aos Tribunais, em primeira linha, o exercício da função administrativa constitucionalmente reservada à Administração.
Note-se que nem se vislumbra como a exigência da apresentação (prévia) de requerimento à Administração dirigido à obtenção do direito de utilização privativa do domínio público hídrico visando a realização de competição desportiva onere desproporcionalmente a Recorrente, já que o que lhe demanda é, apenas, a apresentação de um requerimento para tal efeito, perante a autoridade competente, e instruído com os elementos legalmente exigidos (artigo 11.º do Regulamento Municipal para a Gestão das Praias Balneares do Concelho de Cascais).
Este entendimento, quanto à necessidade de uma prévia atuação (ou omissão) administrativa para que lhe pudesse ser reconhecido o direito que reclama – à obtenção do direito de utilização privativa do domínio público hídrico visando a realização de competição desportiva no ano de 2025 - não contende com a tutela jurisdicional da Recorrente, exatamente porque inexistindo a prévia intervenção (seja por ação ou omissão) da Administração - decorrente da apresentação pelo interessado de um requerimento que faça recair sobre aquela o dever de decisão (artigo 13.º do CPA) - no exercício da sua função administrativa, não se verifica um conflito de interesses que careça de tutela jurisdicional.
E note-se que o princípio da economia processual não dispensa ao autor o cumprimento dos pressupostos processuais subjacente à pretensão jurisdicional que formula e que, in casu, à luz da ação principal por si instaurada, não dispensam a prática pela Administração de um ato de indeferimento ou de não satisfação integral de pretensão que lhe tenha sido dirigida constituindo-a no dever de decisão, de recusa de apreciação de requerimento apresentado ou a omissão do dever de decidir requerimento apresentado pelo interessado [artigo 67.º, n.º 1 als. a) a c) do CPTA].
Evidencia-se que a Recorrente não formulou, na ação principal, qualquer pretensão de simples apreciação, designadamente dirigida ao reconhecimento pelo Município de Cascais e pela Federação Portuguesa de Vela da sua competência para o exercício, em exclusivo, de poderes relativos à modalidade de kitesurf e do seu direito e legitimidade para apresentar pedidos relativos à organização de eventos desportivos na modalidade de kitesurf sem necessidade de autorização da FPV, por forma a que se pudesse aceitar a relevância dos anteriores atos de indeferimento com tal fundamento para fundar a existência de uma situação de “ilegítima afirmação por parte da Administração da existência de determinada situação jurídica” “ou o fundado receio de que a Administração possa vir a adotar uma conduta lesiva, fundada numa avaliação incorreta da situação jurídica existente” (artigo 39.º, n.º 1 do CPTA). Antes se limitou a instaurar uma ação em que, embora (apenas) tenha formulado um pedido impugnatório, é de condenação à prática de ato devido (artigo 66.º, n.º 1 e 2 e 67.º, n.º 1 do CPTA), a exigir, portanto, enquanto pressupostos um “requerimento que constitua o órgão competente no dever de decidir” e que
“a) Não tenha sido proferida decisão dentro do prazo legalmente estabelecido;
b) Tenha sido praticado ato administrativo de indeferimento ou de recusa de apreciação do requerimento;
c) Tenha sido praticado ato administrativo de conteúdo positivo que não satisfaça integralmente a pretensão do interessado” (artigo 67.º, n.º 1 do CPTA).
Daí que, naturalmente, também se haja que considerar não verificado o requisito do fumus boni iuris por, no que respeita a uma pretensão de obtenção do direito de utilização privativa do domínio público hídrico visando a realização de competição desportiva que abrangesse o ano de 2025, não se verificarem os pressupostos processuais para a condenação à prática do ato devido artigo 67.º, n.º 1 do CPTA, o que corresponde a exceção dilatória inominada determinante da absolvição da Entidade Requerida/Recorrido da instância na ação principal.
Daí que, embora também com fundamentos (parcialmente) distintos dos consignados pelo Tribunal recorrido, não incorra a sentença no erro de julgamento que lhe é apontado.

*
Considerando que as condições de procedência das providências cautelares definidas no artigo 120.º, n.ºs 1 e 2 do CPTA, são de verificação cumulativa, basta a não verificação de qualquer delas para que a providência seja julgada improcedente, não havendo, pois, que conhecer das questões suscitadas pela Recorrente quanto ao periculum in mora e à ponderação de interesses (art. 608.º, n.º 2 do CPC).

4.4. Da condenação em custas

Vencida, é a Recorrente condenada nas custas do presente recurso (art.ºs 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

5. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul, em,
a. Rejeitar o recurso quanto à matéria de facto;
b. Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida;
c. Condenar a Recorrente em custas.


Mara de Magalhães Silveira
Sara Diegas Loureiro (em turno)
Teresa Costa Alemão (em turno)