Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:289/06.1BEFUN
Secção:CA
Data do Acordão:03/27/2025
Relator:MARA DE MAGALHÃES SILVEIRA
Descritores:PROJETO DE ALTERAÇÕES
NULIDADE
JURISDICIZAÇÃO DA SITUAÇÃO DE FACTO
Sumário:I - Não consubstancia nulidade da sentença ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1 al. c) do CPC, a alegada errónea identificação do ato administrativo de licenciamento que, a verificar-se, contenderia com o erro de julgamento;
II - Em concordância com o princípio tempus regit actum a validade dos atos de aprovação de operações urbanísticas é aferida à luz das normas legais e regulamentares aplicáveis em vigor à data da sua prática;
III - O pedido de licenciamento inicial e o pedido de licenciamento das alterações àquela licença são (distintos) requerimentos que, ainda que incidam sobre um mesmo prédio, dão origem a procedimentos administrativos que não se confundem e que culminam na prática de atos administrativos diversos;
IV - Em face do artigo 68.º, alínea a), do RJUE, é nulo o ato que aprova uma operação urbanística que excede, e assim viola, os parâmetros urbanísticos referentes ao índice de construção, percentagem de área coberta, percentagem de superfície impermeabilizada, índice de construção e cércea, previstos no artigo 37.º, n.ºs 5 e 6 do PDM de Santa Cruz;
V - Tendo sido deduzida pretensão meramente declarativa da nulidade de ato de aprovação de operação urbanística, não cabe ao Tribunal, em sede declarativa, determinar os moldes em que se realiza a reposição da legalidade urbanística;
VI - A possibilidade de jurisdicização da situação de facto, porque não conduz ao afastamento ou sanação da ilegalidade geradora do desvalor da nulidade que afeta a validade do ato administrativo, ao abrigo do qual se criou a situação de facto, não constitui causa impeditiva (exceção peremptória) da declaração de nulidade do ato;
VII - Antes do que se trata é, verdadeiramente, de “uma ressalva àquilo que seriam as decorrências da reposição da legalidade urbanística quanto a edificações realizadas em desconformidade às normas vigentes de planeamento nesse domínio e quando as mesmas não se mostrem suscetíveis de legalização” (cf. Ac. do STA de 18.6.2020, proferido no processo 01701/10.0BEBRG 0200/18).
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:


I. Relatório

C… (doravante Autor ou Recorrido) instaurou, no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, ação administrativa especial contra a Câmara Municipal de Santa Cruz e o Vereador do Pelouro do Urbanismo da Câmara Municipal de Santa Cruz (doravante Entidade Demandada ou Recorrente), indicando como contrainteressados, M… e G… visando a declaração de nulidade da deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz, de 28.7.2004, que aprovou o projeto de arquitetura e os projetos de especialidades e os despachos do vereador da Câmara Municipal de Santa Cruz datados de 7.1.2005 e de 10.2.2006, que, respetivamente, deferiram o pedido de licença de construção e prorrogaram o prazo da licença de construção por mais 180 dias, com a consequente nulidade dos demais atos do procedimento de licenciamento em causa.

Por sentença de 31 de dezembro de 2021, o Tribunal julgou a presente ação procedente e, em consequência, “declaro[u] a nulidade do acto de licenciamento praticado a 28/07/2004, pela Câmara Municipal de Santa Cruz a favor de J…”.

Inconformada, a Entidade Demandada, Município de Santa Cruz, interpôs recurso para este Tribunal Central Administrativo, formulando as seguintes conclusões:

“a) O presente recurso vem interposto da sentença proferida no processo nº 289/06.1BEFUN, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, que declara a nulidade do ato de licenciamento praticado a 28/07/2004, pela Câmara Municipal de Santra Cruz, resultando desta declaração de nulidade a obrigatoriedade de demolição proferida pelo tribunal a quo,
b) Alegando para tal que o processo licenciado em 2005 é um processo novo que nada tem a ver com o processo iniciado em 2001.
c) E que, sendo um processo novo, estaria sujeito ao Plano Diretor Municipal do Concelho de Santa Cruz.
d) Pelo que, não cumprindo as normas do PDM, o licenciamento nunca deveria ter sido emitido, e como tal o ato de licenciamento é nulo.
e) Sendo nulo o ato, a consequência legal estatuída pelo Tribunal a quo é a demolição do edificado.
f) Sem qualquer fundamentação/percurso/raciocínio pelo facto de a demolição ser a última ratio, a aplicar só depois de esgotadas todas as hipóteses de legalização do existente.
g) E sem qualquer preocupação para com os contrainteressados, desconsiderando liminarmente e sem grande fundamentação o reconhecimento de efeitos putativos decorrentes do decurso do tempo e do princípio da proporcionalidade e da tutela da confiança.
Vejamos:
h) Desde logo a Sentença é nula, ao abrigo do artigoº 615, nº1, alínea c) do Código de Processo Civil, Uma vez que os fundamentos estão em oposição com a decisão, havendo uma ambiguidade que torna a decisão ininteligível.
i) A sentença proferida declara a nulidade do ato de licenciamento praticado a 28/07/2004, ora acontece que a 28/07/2004 o que sucedeu foi que a Câmara Municipal de Santa Cruz autorizou o destaque de uma parcela, não emitiu nenhum licenciamento. O licenciamento em causa foi praticado no dia 07/01/2005, com o nº 6/05.
j) Quando o tribunal a quo fundamenta a sua decisão, junta, a pg. 12 da Sentença, uma cópia do Alvará de Construção emitido em 07 de Janeiro de 2005, em clara contradição.
k) O tribunal a quo ao longo de toda a sua fundamentação encara com ligeireza os factos e confunde datas e atos.
l) Veja-se que o Autor, C…, ao intentar a ação pretende impugnar a deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz, de 28/07/2004, que aprovou o projeto de arquitetura e os projetos de especialidades apresentados pelos Contrainteressados, e os despachos do vereador da Câmara Municipal de Santa Cruz datados de 07/01/2005 e de 10/02/2006, que, respetivamente, deferiram o pedido de licença de construção e prorrogaram o prazo da licença de construção por mais 180 dias.
m) A 28/07/2004 o que ocorreu foi uma reunião de Câmara onde foi aprovado por unanimidade o projeto apresentado pelo contrainteressado.
n) Logo na página 16 da sentença, no início da fundamentação de direito, o meritíssimo juiz confunde o deferimento em reunião de Câmara com o ato de licenciamento em si. É que o licenciamento em si próprio só ocorre com a emissão do respetivo alvará de construção.
o) Veja-se a este respeito o artigo 74º, nº 1 do RJUE “1 - As operações urbanísticas objeto de licenciamento são tituladas por alvará, cuja emissão é condição de eficácia da licença”,
p) O projeto de alteração e ampliação apresentado por J… ficou registado nos serviços camarários a 28 de Setembro de 2001, contemplando uma alteração e ampliação de uma moradia unifamiliar já construída, transformando a mesma num espaço múltiplo constituído por uma pensão, um edifício de habitação coletiva, uma moradia geminada, caves de estacionamento e jardins. A pensão resultaria da alteração da moradia existente, bem como da sua ampliação. No edifício ampliado para habitação coletiva estavam previstos 4 apartamentos e caves de estacionamento, enquanto na moradia geminada existiriam 2 apartamentos localizados frente à moradia Inicial.
q) O projeto em causa previa uma área bruta de construção para efeitos do índice de 839,15m2, a que há que subtrair 59,95m2 de varandas 45,72 de áreas comuns. A área resultante seria assim de 733,84, para um terreno com 783m2, o que resulta num índice de construção de 0,93.
r) Este projeto foi aprovado pelo Presidente da Câmara em 19/10/2001, com algumas considerações a ter em conta no desenvolvimento do mesmo.
s) Por vicissitudes várias, detalhadas com pormenor nas alegações, a construção nunca avançou, porque a licença de construção nunca chegou a ser levantada.
t) Em Novembro de 2003, o promotor solicitou à Câmara Municipal de Santa Cruz autorização para proceder à alteração do projeto aprovado, no sentido de deixar de ter uma finalidade de pensão e passar a ter unicamente fim habitacional.
u) Pedido este que foi deferido e o promotor notificado através do ofício 38897 de 09/12/2003 para apresentar a alteração ao projeto.
v) A Câmara Municipal não disse que tinha ser instruído um novo processo, apenas pediu que fosse entregue o projeto com as alterações.
w) A 08/06/2004, J… submete à Câmara Municipal de Santa Cruz o projeto de alteração, depois de em 13/04/2004 ter visto deferido pela Câmara um prazo de 365 dias para apresentar o projeto, acompanhado com projetos de especialidades, prevendo só a construção de Habitação Coletiva e subtraindo a moradia existente da construção proposta.
x) Este projeto mantinha na generalidade tudo o que constava do projeto inicial, sendo que a grande alteração foi abandonar a ideia de restaurante e pensão, passando o espaço anteriormente previsto no rés do chão do edifício para receção e restaurante, a ser preenchido por dois fogos de tipologia T2. Nas duas caves estava previsto o estacionamento para os fogos da habitação multifamiliar e para os dois apartamentos da moradia geminada. Quanto ao índice de construção manteve-se o índice de 0,93 previsto no projeto original.
y) Por fim, em 7/01/2005, foi emitido Alvará de Obras de Construção.
z) A verdade é que, o licenciamento emitido em Janeiro de 2005 é o culminar de um processo que teve o seu início em 2001, o que aliás consta do próprio alvará, que faz referência ao número de processo 1286/01.
aa) Não se entendendo a conclusão do Tribunal a quo quando este diz “O projeto submetido à Câmara Municipal de Santa Cruz em 2001 [aprovado condicionalmente, mas nunca executado] e o projeto submetido em 2004 são projetos distintos e foram objeto de atos de licenciamento igualmente distintos”
bb) Só por manifesta distração ou incorreta leitura dos factos pode o tribunal a quo concluir o que concluiu.
cc) Da mesma forma que não se entende quando o tribunal a quo afirma “A este propósito cumpre referir que, para além da alteração de finalidade do projecto inicial, com o abandono da finalidade de pensão e restaurante para a finalidade habitacional, o projecto de arquitectura aprovado em 2004 altera em muito as áreas de volumetria e implantação inicialmente aprovadas em 28/09/2001, obrigando, ainda, à entrega de novos projectos de especialidades por parte do Contra-interessado”.
dd) Quando a verdade é que o projeto de alterações apresentado em 2004 é o mesmo projeto apresentado em 2001, com a alteração do uso de pensão e restaurante para habitação. Quanto à construção propriamente dita a alteração que se verificou foi que o Rés do Chão do edifício Multifamiliar deixou de ser restaurante e receção da pensão e passou a ter dois apartamentos.
ee) Não havendo mais área construída, não aumentando a cércea, não se alterando nenhum parâmetro relevante.
ff) Na realidade os factos são o que são, e nada, nos factos apresentados permite concluir pelo que o tribunal a quo concluiu, de que são projetos distintos.
gg) De tudo o exposto não pode haver outra interpretação senão a de que o licenciamento das alterações que foi deferido em 2005, teve por base um processo iniciado em 2001, e que como tal não está sujeito às Normas do Plano Diretor Municipal do Município de Santa Cruz que apenas entrou em vigor a 5 de Junho de 2004.
hh) O procedimento em causa foi sempre o mesmo – o inicial, de 2001 – devendo, para tanto, aplicar-se a legislação urbanística em vigor à data.
ii) Sendo que no caso concreto a legislação urbanística em vigor era o POTRAM (Plano para o Ordenamento do Território na Região Autónoma da Madeira), aprovado pelo Decreto Legislativo Regional 9/97/M, de 18 de Julho
jj) Argumento que é reforçado pelo artigo 117.º do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Fevereiro, que refere que não há suspensão dos procedimentos de licenciamento urbanístico até à entrada em vigor do novo Plano – que entrou em vigor no dia 5 de Junho de 2004 -, quando o pedido tenha por objecto obras de reconstrução ou alteração em edificações existentes (n.º 4) – o caso dos presentes autos.
kk) o Processo que se iniciou em 2001, e que se concluiu em 2005, estava sujeito às condicionantes do POTRAM, que no seu artigo 45ºB diz especificamente que as obras de habitação podem, fundamentada e excecionalmente ser admitidos, assegurada` a prossecução dos respetivos objectivos, através dos mecanismos de concertação de conflitos de interesse públicos representados pelos vários sujeitos da Administração Pública previstos na legislação aplicável.
ll) Vem o tribunal a quo, referente ao destaque solicitado pelo ContraInteressado J… e deferido pela câmara Municipal de Santa Cruz, dizer “A autorização do destaque concedida pela Câmara Municipal de Santa Cruz permitiu o fracionamento do prédio mãe, alcançando, na prática, um aumento da capacidade edificativa” .
mm) Não se entende muito bem o que o tribunal a quo pretende alcançar com esta afirmação, uma vez que a área a edificar se manteve a mesma. Tal como o projeto se manteve exatamente o mesmo, não se percebendo qual o ganho que o promotor retirou do destaque para além de poder vender o edifício construído no destaque e manter a sua moradia pré-existente como estava.
nn) O que foi apresentado a Licenciamento, e que foi licenciado, é um conjunto habitacional único, formado por dois edifícios, constituídos por frações autónomas, independentes, isoladas entre si e com saída para a via pública e partes comuns do prédio.
oo) Não se aplicando o disposto no RJUE quanto às operações de loteamento:
Tendo o Tribunal a quo declarado nulo o ato de licenciamento, conclui o mesmo “ “Pese embora a consolidação de facto da edificação, atenta a gravidade das causas de nulidade do ato de licenciamento, que consubstanciam a violação de normas de planificação urbanística constantes do Plano Diretor Municipal de Santa Cruz, a consequência natural da declaração de nulidade do ato é a demolição da operação urbanística concretizada com base nesse mesmo ato, de forma a ser reposta a legalidade”
pp) Estranha-se uma posição tão radical por parte do Tribunal a quo. Sendo certo que a consequência da declaração da nulidade de um ato administrativo de título de construção ou utilização previsto no RJUE é a demolição total ou parcial da obra e reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes da data do início das obras ou trabalhos, também não deixa de ser verdade que podem ser encontradas outras soluções alternativas.
qq) A nossa jurisprudência entende que a demolição não é o único meio destinado a repor a legalidade, é, antes, o último meio, a utilizar somente quando seja de todo inviável a legalização…
rr) Veja-se a este propósito o nº 2 do artigo 106º do RJUE “A demolição pode ser evitada se a obra for suscetível de ser licenciada ou objeto de comunicação prévia ou se for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis mediante a realização de trabalhos de correção ou de alteração”.
ss) Atente-se no artº 59º da Lei nº 31/2014, de 30 de Maio - LEI DE BASES GERAIS DA POLÍTICA PÚBLICA DE SOLOS, DE ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO E DE URBANISMO
“Artigo 59.º
Regularização de operações urbanísticas
1 - A lei estabelece um procedimento excecional para a regularização de operações urbanísticas realizadas sem o controlo prévio a que estavam sujeitas bem como para a finalização de operações urbanísticas inacabadas ou abandonadas pelos seus promotores.
2 - A regularização das operações urbanísticas não prejudica a aplicação de sanções e de medidas de tutela da legalidade urbanística, bem como o cumprimento dos planos intermunicipais e municipais e demais normas legais e regulamentares em vigor à data em que tenham lugar.
3 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a lei pode dispensar o cumprimento de requisitos de legalidade relativos à construção cuja aplicação se tenha tornado impossível ou que não seja razoável exigir, assegurando o cumprimento dos requisitos atinentes à saúde pública e à segurança de pessoas e bens.”
tt) A argumentação invocada na jurisprudência para evitar a demolição tende a debruçar-se sobre duas vertentes: o grave prejuízo para o interesse púbico e a causa legítima de inexecução da licença.
uu) Pode, por exemplo, constituir grave prejuízo para o interesse público a demolição de um empreendimento com todos os requisitos de habitabilidade, de segurança, de salubridade e de estética se o custo da sua demolição se revelar desproporcional face aos benefícios obtidos. Em cada caso, terá de se debater a violação dos princípios da adequação, da necessidade, da proporcionalidade, da paz social, e da boa gestão financeira dos recursos públicos.
vv) No caso em apreço não restam dúvidas de que o edificado preenche todos os requisitos de habitabilidade, segurança, salubridade e de estética, e que o custo da demolição é claramente muito superior aos benefícios obtidos.
ww) A jurisprudência do STA vem sendo uniforme na afirmação de que “constitui pressuposto da decisão camarária de ordenar a demolição de obra clandestina a ponderação de que a obra não é suscetível de legalização.
xx) O entendimento, reiteradamente afirmado, fundamenta-se, essencialmente, nos “princípios da necessidade, da adequação, da indispensabilidade ou menor ingerência possível, corolários do princípio da proporcionalidade
yy) A vertente da necessidade do princípio da proporcionalidade “proclama que só deve lesar-se a posição do particular se não houver outro meio para realizar o interesse público”, e que a vertente da proporcionalidade stricto sensu deste mesmo princípio “dita que a medida corretiva a suportar pelo administrado deve ser justa, na relação custo/benefício, isto é, que deve reduzir-se ao mínimo indispensável para reparar a legalidade ofendida.”
zz) Neste sentido encontramos várias decisões, de que destacamos:
• Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 06/12/2017, processo nº 22/13.1BEBJA
• Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 02/06/2021, processo nº 00673/12.1BEAVR
• Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 04/04/2019, processo 0846/09.4BELLE-A 0293/18
• Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7 de Abril de 2011, processo 0601/10,
aaa) Na sua defesa vem o Município de Santa Cruz alegar que está em causa o reconhecimento de efeitos putativos decorrentes do decurso do tempo e do princípio da proporcionalidade e da tutela da confiança.
bbb) Sendo a resposta do tribunal a quo “Não se alcança de que forma a Entidade demandada pretende conferir tutela jurídica a situações de facto criadas com base num hiato temporal de 1,4 anos”
ccc) Fundamenta esta decisão no facto de a 26/04/2006 o Autor ter intentado uma Providência Cautelar, da qual resultou a suspensão da eficácia jurídica da licença de edificação titulada pelo Alvará 6/05 e a cessação das obras em Curso, e de em 07/12/2006 o autor ter intentado a presente ação administrativa especial pedindo a declaração judicial de nulidade do acto de licenciamento.
ddd) Esquece-se, no entanto, que o processo teve início em 2001, e que ao longo do tempo que decorreu até ao licenciamento de 2005 o promotor ter sempre sentido da parte do Município a vontade de legalizar a sua obra, desde logo com o despacho do Presidente emitido em 2001, e depois em todos os contactos posteriores até à emissão da licença em 2055.
eee) Com base no que lhe era transmitido na Câmara o promotor foi desenvolvendo expectativas, e fechou, inclusive um negócio com os outros contrainteressados.
fff) A 31 de Março de 2006, os Contrainteressados G… e M…, adquiriram a J… o edifício de habitação coletiva.
ggg) Nessa data a obra caminhava para a sua conclusão, e não havia nenhum procedimento cautelar em nem nenhum processo em curso.
hhh) Os contrainteressados adquiriram o imóvel em causa de boa fé, imóvel sobre o qual não pendia, à altura da compra, nenhum processo.
iii) Compraram o imóvel numa perspetiva de habitação própria e de rendimento, confiando que tudo estava bem e que isso não se iria alterar, afinal existia uma licença de Construção válida e a obra corria a bom ritmo, caminhando para o seu término.
jjj) Só um mês depois da aquisição, e quando a obra estava prestes a terminar, é que o Autor intentou a providência Cautelar
kkk) A verdade é que não está aqui em causa o hiato de 1 ano e 4 meses, que é, de facto, o tempo que medeia entre a emissão da licença e a data da Providência Cautelar, o que está aqui em causa é que nesses 16 meses foi construído um prédio o qual foi adquirido por terceiros de boa fé, alheios à perspetiva de qualquer processo, e que se soubessem que o Autor iria colocar o mesmo com certeza não teriam avançado para o negócio.
lll) A juridificação é considerada a última via que obsta à demolição, a qual se encontra disciplinada pelo n.º 3 do artigo 162.º do CPA, cujo preâmbulo do diploma descreve que para clarificar e flexibilizar o regime da nulidade foi acentuada a possibilidade de atribuição de efeitos putativos aos atos nulos em condições mais amplas do que na versão inicial do Código.
mmm) O legislador através do procedimento de juridificação previsto no n.º 3 do artigo 162.º do CPA, quis conferir alguma proteção jurídica às operações urbanísticas consolidadas, estabelecendo para o efeito, a necessidade de harmonização com os princípios gerais de direito, associados ao decurso de um período de tempo, cuja fixação deixou à consideração do intérprete.
nnn) O fator temporal surge simplesmente como um dos elementos a ter em conta para desencadear o procedimento de juridificação preconizado no n.º 3 do art.º 162.º do CPA, desde que verificada a presença de atos favoráveis, utilizados de boa – fé pelos seus destinatários na execução de operações urbanísticas.
ooo) Outro pressuposto a considerar cumulativamente na juridificação das situações de facto inquinadas com a mais grave das invalidades (nulidade) reporta-se aos princípios gerais de direito, os quais assumem na ciência jurídica um papel fundamental.
ppp) No exercício da atividade administrativa e em todas as suas formas e fases, a Administração Pública e os particulares devem agir e relacionar-se segundo as regras da boa-fé; pressuposto indispensável à atuação do particular no que concerne à procedência do procedimento de juridificação de uma operação urbanística não passível de legalização, seja por via da alteração da situação de facto ou da alteração do direito aplicável.
qqq) Porém, a simples atuação do particular fundada na sua boa-fé não basta, também é necessário que da juridificação resulte a garantia da defesa do interesse público subjugado à operação urbanística, merecedor de tutela jurídica,─ e.g., o caso de uma edificação erguida à luz de um ato administrativo de gestão urbanística nulo, ab initio considerado válido, constituída em regime de propriedade horizontal, cujas frações foram alienadas a terceiros, em que posteriormente foi detetado, que o ato de licenciamento enferma do vício da nulidade.
rrr) Que é, com algumas particularidades, o que sucede no caso em apreço, em que os Contrainteressados G… e M… adquiriram o edifício edificado com base numa licença emitida e que era, no momento da compra, considerada válida
sss) Ao Princípio da Boa Fé está intimamente ligado o princípio da confiança como valor fundamental do direito, imprescindível ao cumprimento do princípio da boa-fé.
ttt) Proclamado pela doutrina e jurisprudência como um princípio que postula uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica, assim como na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, tem sido por inúmeras vezes aplicado no espaço do direito do urbanismo tutelando e modelando situações resultantes de atos nulos que enfermam do mais grave desvalor jurídico.
uuu) No caso em apreço, o princípio da tutela da confiança traduz-se na prática, na autorização concedida em 2001, e posteriormente confirmada em 2004 (com as alterações solicitadas em 2003), e todas as expectativas que daí se geraram.
vvv) Um outro princípio relevante em sede de efeitos putativos é o da proporcionalidade.
www) O princípio da proporcionalidade pode desdobrar-se em três subprincípios: o princípio da adequação, o princípio da necessidade e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
xxx) Importa aqui o princípio do equilíbrio ou da proporcionalidade em sentido estrito, que impõe um juízo comparativo entre os benefícios e os custos da eventual declaração de nulidade dos atos administrativos impugnados.
NESTES TERMOS,
E nos mais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão:
1 – Deverá a sentença proferida pelo tribunal a quo ser declarada nula nos termos do artº 615, nº1, alínea c) do Código de Processo Civil.
2 – Caso assim não se entenda deverá o presente recurso ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida e a sua substituição por outra que declare a validade do acto.
3 – Caso assim não se entenda, deverá o presente recurso de apelação ser julgado parcialmente procedente, revogando-se a decisão de demolição do edificado e substituindo-a por outra onde sejam reconhecidos os direitos potestativos dos contrainteressados, e se promova a legalização do edificado.”

Os Contrainteressados aderiram ao recurso apresentado pela Entidade Demandada.

Notificado das alegações, o Recorrido apresentou contra-alegações e, subsidiariamente, requereu a ampliação do âmbito do recurso nos termos do disposto no artigo 636.º do CPC, formulando as seguintes conclusões:

a) Opostas ao recurso apresentado pelos recorrentes
1. Os recorrentes aceitam e conformam-se com a decisão da matéria de facto operada pelo tribunal a quo e, além do mais, com o segmento da decisão da matéria de direito formulado na página 19.
2. De resto, além da factualidade expressa e directamente levada ao probatório pelo tribunal a quo, que aqui se dá por integralmente reproduzida, obviamente há que considerar, caso tal se mostre relevante, todos os factos constantes do processo administrativo instrutor e dos autos que estejam contidos e a coberto do correcto valor probatório dos documentos.
3. Os recorrentes insurgem-se contra a sentença a quo porque consideram inaplicável ao caso vertente o Plano Director Municipal do Concelho de Santa Cruz (PDMSC) que entrou em vigor no dia 5 de Junho de 2004 e porque é nula.
4. É manifesta a insubsistência do recurso interposto em todos os seus fundamentos, o que é particularmente evidente quanto à infundada e até abusiva arguição da nulidade da sentença a quo - páginas 3 a 16 da alegação - vício de que manifestamente não padece.
5. Como decorre dos autos e os recorrentes não contestam, o objecto desta acção abrangeu e abrange a deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 2004/7/28 que aprovou os projectos de arquitectura e de especialidades declarada nula e dos despachos do vereador com o pelouro das obras datados de 7/1/2005 e 10/2/2006 que, respectivamente, deferiu o pedido de licença de construção e prorrogou o prazo da licença de construção por mais 180 dias, o que aliás está bem explicitado no Relatório da sentença a quo.
6. O destaque descrito nos Factos Provados 9 e 11, aprovado também em 28/07/2004 tal como a deliberação que aprovou o projecto de arquitectura, é puro fait divers e manobra de diversão suscitada pelos recorrentes no quadro da invocação da nulidade sob referência com o intuito puramente enganador e embusteiro.
7. Na verdade, a correcta interpretação da parte dispositiva e da fundamentação da sentença a quo é a de que o Meritíssimo Juiz a quo, quando se reporta ao acto de licenciamento de 28/07/2004, está efectivamente a referir-se única e exclusivamente à deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 2004/7/28 que aprovou os projectos de arquitectura e de especialidades impugnada pelo autor.
8. O Meritíssimo Juiz a quo não declarou a nulidade dos actos do vereador da Câmara Municipal de Santa Cruz datados de 07/01/2005 e de 10/02/2006 que, respectivamente, deferiram o pedido de licença de construção e prorrogaram o prazo da licença de construção por mais 180, porque:
> A análise e decisão do acto de 10/02/2006, praticado pelo Vereador das Obras Particulares da Câmara Municipal de Santa Cruz, que deferiu o pedido de prorrogação do prazo para a conclusão das obras requerido pelo Contra-interessado, cf. 13. e 14. dos Factos Provados, fica prejudicada face à declaração de nulidade do acto de licenciamento, do qual depende;
> Quanto ao Alvará de Obras de Construção n. ° 6/05, igualmente impugnado pelo Autor, cumpre apenas referir que o mesmo é o documento que serve de título ao acto de licenciamento impugnado, prendendo-se com a eficácia deste e não com a sua validade;
> Assim, face à declaração de nulidade do acto de licenciamento, do qual depende, fica igualmente prejudicada a análise e decisão sobre o mesmo.
9. Devidamente interpretada a sentença a quo no seu todo e em especial a sua parte dispositiva, é claro e seguro que:
> Quando, na parte dispositiva e nas páginas 16, 18, 20 e 21 da fundamentação de facto e de direito, alude ao acto de licenciamento praticado a 28/07/2004, o Meritíssimo Juiz a quo está efectivamente a referir-se à deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 2004/7/28 que aprovou os projectos de arquitectura e de especialidades impugnada pelo autor;
> O Meritíssimo Juiz a quo considerou que a análise e decisão do acto de 10/02/2006, praticado pelo Vereador das Obras Particulares da Câmara Municipal de Santa Cruz, que deferiu o pedido de prorrogação do prazo para a conclusão das obras requerido pelo Contra-interessado, cf. 13. e 14. dos Factos Provados, fica prejudicada face à declaração de nulidade do acto de licenciamento (leia-se a deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 2004/7/28 que aprovou os projectos de arquitectura e de especialidades impugnada pelo autor a deliberação), do qual depende;
> Quanto ao Alvará de Obras de Construção n.° 6/05, igualmente impugnado pelo Autor, o Meritíssimo Juiz a quo entende que apenas cumpre referir que o mesmo é o documento que serve de título ao acto de licenciamento impugnado, prendendo-se com a eficácia deste e não com a sua validade.
10. Só pode ser considerada a existência de alguma ambiguidade ou obscuridade na sentença quando a interpretação não permita colher um sentido adequado, certo, seguro, e aceitável ou apreensível por um destinatário normal colocado na posição do destinatário real.
11. A invocação da nulidade da sentença com base na utilização porventura menos rigorosa tecnicamente e por facilidade expositiva do vocábulo “licenciamento” reportado à deliberação de 2004/07/28 é aporética e até maliciosa porque os recorrentes sabem bem qual o sentido e alcance da sentença e procuram lançar e prevalecerem-se da confusão onde impera a clareza e a segurança interpretativa.
12. De resto, mesmo que se entendesse que a deliberação de 28/07/2004 era insusceptível de ser declara nula porque não constitui um verdadeiro e próprio acto de licenciamento, é óbvio que o tribunal de recurso, nos termos do disposto no artigo 149.° do CPTA, teria de afirmar a nulidade dos demais actos impugnados o que de igual modo determinaria a procedência da acção.
13. Reitera-se que existe plena congruência e cogência entre os fundamentos e a decisão a quo, porque:
> Ao caso é manifestamente aplicável o PDMSC;
> As actos licenciados e impugnados excedem clamorosamente os parâmetros urbanísticos fixados por aquele plano municipal de ordenamento do território, designadamente quanto ao índice de construção máximo, percentagem de área coberta máxima, superfície impermeabilizada máxima, à cércea e número de pisos, o que está plenamente evidenciado nos factos provados, particularmente nos 16 a 34.
14. Porém, à cautela, aliás no caso manifestamente excessiva, para remover qualquer dúvida quanto ao sentido e alcance da parte dispositiva da sentença a quo, o recorrido requererá a ampliação do âmbito do recurso.
15. Foi na parcela de 523m2 resultante do destaque que foram implantados e construídos o edifício de habitação colectiva e as moradias em banda.
16. Daqui decorre desde logo uma diferença essencial entre o projecto de 2001 e o de 2004:
> A área total do terreno no projecto de 2001 era a de 783 m2 porque abrangia e ligava estrutural e funcionalmente a moradia pré-existente e o novo edifício de habitação colectiva e as duas novas moradias - facto provado n.° 3;
> A área total do terreno a considerar no projecto de 2004 passou a ser a de 523m2, onde está implantado o edifício de habitação colectiva e as duas novas moradias - facto provado n.° 20 e não a de 783 que erroneamente foi indicada na memória descritiva e justificativa de 2004.
17. A área do terreno que serve de base à edificação e construção é determinante para efeitos de índices e parâmetros urbanísticos, tal como definidos na legislação aplicável, designadamente no Dec. Reglm. n.° 9/2009, de 29 de Maio - CONCEITOS TÉCNICOS NOS DOMÍNIOS DO ORDENAMENTO TERRITÓRIO E DO URBANISMO (versão actualizada), alterado pelo - Dec. Reglm. n.° 5/2019, de 27/09 - Rect. n.° 53/2009, de 28/07 - 3a "versão" - revogado (Dec. Reglm. n.° 5/2019, de 27/09) - 2a versão (Rect. n.° 53/2009, de 28/07) – 1ª versão (Dec. Reglm. n.° 9/2009, de 29/05) - Dec. Reglm. n.° 5/2019, de 27/09.
18. A obra em causa foi erigida no prédio - 21/9, Secção “AQ” - facto provado 2. - que tinha originalmente a área total de 783, que incluíam 260 m2 da parcela de terreno na qual estava edificada a denominada construção pré-existente e os 523 onde agora e de acordo com o projecto foi construído o edifício de habitação colectiva e as moradias em banda.
19. Por isso, designadamente para efeitos de apuramento dos índices e parâmetros urbanísticos, é manifesto que no projecto de 2001 devia ter-se em conta a área bruta de construção da moradia pré-existente juntamente com a da habitação colectiva e ainda a das moradias em banda e não apenas as destas.
20. No projecto de 2004, por causa do destaque referido em 9 e 11 dos factos provados, para efeitos de apuramento dos índices e parâmetros urbanísticos, devia atender-se apenas e só à área da parcela de terreno na qual está implantado o edifício de habitação colectiva e as duas moradias, que é de 523 m2.
21. Note-se também que no alvará de obras de construção de 7/01/2005 referido no facto 12 indica-se como área de construção 1.325,36m2 enquanto que no projecto de 2004, erroneamente indica-se como área bruta total 879,90m2.
22. O projecto de 2004 tem finalidade diferente e diversas características estruturais e funcionais quando comparado com o de 2001.
23. O projecto de alteração de 08/07/2004 referido no ponto 8 dos factos provados deu origem a um sub-procedimento bem demarcado do anterior procedimento iniciado em 28/09/2001 descrito nos pontos 3 a 7 dos factos provados.
24. Esse sub-procedimento absolutamente demarcado do procedimento de licenciamento iniciado em 08/07/2004 culminou com a aprovação do projecto de arquitectura pela deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 28/07/2004 e subsequente emissão do alvará de licença de construção e integra a pronúncia final e vinculativa para a entidade demandada sobre o núcleo essencial da pretensão do interessado.
25. É óbvio que estamos perante um procedimento complexo, que comporta 2 sub- procedimentos ou dois procedimentos coligados ou conexos perfeitamente distintos e autónomos:
> O sub-procedimento iniciado em 28/09/2001, que, conforme decorre dos factos provados 3 a 7 acabou por caducar porque o requerente não levantou a licença de construção e porque em 08/07/2004 alterou a sua pretensão construtiva;
> O sub-procedimento iniciado em 08/07/2004, desencadeado com o requerimento descrito no ponto 8 dos factos provados.
26. Só por razões procedimentais e materiais práticas o processo administrativo manteve o mesmo número.
27. Mas obviamente que o número do processo em nada afecta e muito menos determina o conteúdo substantivo e material das pretensões edificativas nele formuladas e muito menos as regras urbanísticas aplicáveis.
28. Este projecto de Junho de 2004 implica a realização de obras novas e não a mera reconstrução ou alteração em edifícios existentes, além do mais porque operou a separação estrutural e funcional entre as novas edificações e a construção pré- existente - facto provado 30 que os recorrentes aceitam.
29. Enfim e sem mais amplas considerações, decorre do processo judicial, do processo administrativo e dos factos provados que:
> O projecto de 2001 foi abandonado pelo próprio requerente e contrainteressado original pelo menos em Março de 2003;
> Mesmo que não tivesse sido abandonado pelo respectivo requerente, esse projecto já tinha caducado pelo menos em Março de 2003.
30. É portanto óbvio que o sub-procedimento iniciado em 2001extinguiu-se o mais tardar em Março de 2003 e o único procedimento ou sub-procedimento subsistente a considerar é o iniciado em 08/07/2004, descrito nos factos provados 8 e seguintes.
31. Tem portanto inteira pertinência a sentença a quo também na parte em que, nas páginas 17 e 18, conclui que o projecto de 2004 é efectivamente novo e distinto do aprovado em 19/10/2001.
32. Pelas referidas razões e conforme lucidamente decidiu o Meritíssimo juiz a quo, é manifesta a aplicação do PDMSC a este procedimento de licenciamento.
33. De resto este projecto de Junho de 2004 implica a realização de obras novas e não a mera reconstrução ou alteração em edifícios existentes, além do mais porque operou a separação estrutural e funcional entre as novas edificações e a construção pré-existente - facto provado 30 que os recorrentes aceitam.
34. Como bem nota o Meritíssimo Juiz a quo, o Alvará de Obras de Construção n.° 6/05 a que se refere o facto provado 12, datado de 07 de Janeiro de 2005, faz referência ao Plano em vigor, que só podia ser o PDMSC.
35. O Plano Director Municipal do Concelho de Santa Cruz (PDMSC) foi:
> Aprovado por reunião da Assembleia Municipal de Santa Cruz no dia 22 de Março de 2004;
> Ratificado pela Resolução n.° 607/2004/M, de 29 de Abril, do Governo Regional da Madeira, publicada no Diário da República n.° 131, II Série de 4 de Junho;
> Entrou em vigor no dia 5 de Junho de 2004 - cfr. artigo 79.°.
36. Por isso, o projecto apresentado pelo primitivo Contra-interessado J… em 8/7/2004, a respectiva deliberação camarária de aprovação de 2004/7/28 e o correspondente licenciamento, estavam sujeitos aos parâmetros urbanísticos por ele instituídos e prescritos.
37. De resto, neste domínio há que ter presente os princípios básicos do direito administrativo e do urbanismo, designadamente o de que a verificação da validade dos actos deve ser feita em função das circunstâncias de facto e de direito existentes no momento da sua prolação - Princípio “tempus regit actum”, que constitui a regra geral de aplicação das leis no tempo, dele decorrendo que “a lei nova é de aplicação imediata”.
38. Ainda de acordo o princípio tempus regit actum, os atos administrativos regem- se pelas normas em vigor no momento em que são praticados, independentemente da natureza das situações a que se reportam e das circunstâncias que precederam a respectiva adopção.
39. Interessa ter presente também do artigo 117.° do DL n.° 380/99, de 22 de Setembro, então em vigor - Este diploma foi revogado pelo(a) Decreto-Lei n.° 80/2015, de 14 de Maio:
40. Ao contrário do defendido pelos recorrentes, é inaplicável ao caso vertente o disposto no n.° 4 deste artigo porque o projecto de 2004 e o respectivo licenciamento operou a divisão em duas parcelas do terreno e a separação física, estrutural e funcional entre, por um lado, a denominada moradia pré-existente e, por outro, o novo edifício de habitação colectiva e as novas moradias.
41. É portanto manifesta a correcção e conformidade à lei da sentença a quo também na parte em que julga aplicável ao caso vertente o PDMSC.
42. Conforme lucidamente ponderou e decidiu o Meritíssimo Juiz a quo, pese embora a consolidação de facto da edificação, atenta a gravidade das causas de nulidade do acto de licenciamento, que consubstanciam a violação de normas de planificação urbanística constantes do Plano Director Municipal de Santa Cruz, a consequência natural da declaração de nulidade do acto é a demolição da operação urbanística concretizada com base nesse mesmo acto, de forma a ser reposta a legalidade.
43. Os recorrentes insurgem-se contra este segmento decisório porque a demolição não é o meio destinado a repor a legalidade, mas o último deles.
44. Porém não explicam como é que em concreto essa legalidade poderia ser reposta por via diversa da demolição, nem o poderiam fazer porque o PDMSC continua em vigor com o conteúdo que lhe foi conferido em 2004.
45. É também manifesta a pertinência da ponderação do Meritíssimo Juiz a quo na parte em que nega provimento à pretensão dos recorrentes da atribuição de efeitos jurídicos à situação de facto decorrente do acto declarado nulo e a inanidade das alegações e conclusões do recurso, que aliás assentam e reproduzem meras generalidades e vacuidades que em nada se acomodam às reais características deste caso concreto.

b) Conclusões atinentes à ampliação do âmbito do recurso - art. 636. ° do CPC
46. Apesar de julgar procedente a acção, o tribunal a quo desatendeu o pedido formulado pelo autor tendente à declaração da nulidade não apenas da deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 2004/7/28 que aprovou os projectos de arquitectura e de especialidades mas também dos despachos do vereador com o pelouro das obras datados de 7/1/2005 e 10/2/2006 que, respectivamente, deferiu o pedido de licença de construção e prorrogou o prazo da licença de construção por mais 180 dias.
47. Por isso, ao abrigo do disposto no artigo 636.° do CPC, sem prejuízo do acima referido no rebatimento da nulidade da sentença a quo, a título subsidiário, o autor recorrido requer a ampliação do âmbito do recurso.
48. Fá-lo porque na p. i., além do mais, pediu:
• A declaração da nulidade da deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 2004/7/28 que aprovou os projectos de arquitectura e de especialidades e dos despachos do vereador com o pelouro das obras datados de 7/1/2005 e 10/2/2006 que, respectivamente, deferiu o pedido de licença de construção e prorrogou o prazo da licença de construção por mais 180 dias;
• A nulidade consequente dos demais actos do procedimento de licenciamento em causa.
49. A parte III. da sentença a quo - Decisão - está formulada nos seguintes termos:
Pelo exposto, julgo a presente acção procedente e, em consequência, declaro a nulidade do acto de licenciamento praticado em 28/07/2004 pela Câmara Municipal de Santa Cruz a favor de J….
Custas pela Entidade demandada e pelos Contra-interessados.
50. O acto do vereador com o pelouro das obras datado de 7/1/2005 que deferiu o pedido de licença de construção constitui o facto provado 12.
51. Como já referimos, a correcta interpretação da parte dispositiva e da fundamentação da sentença a quo é a de que o Meritíssimo Juiz a quo, quando se reporta ao acto de licenciamento de 28/07/2004, está efectivamente a referir-se única e exclusivamente à deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 2004/7/28 que aprovou os projectos de arquitectura e de especialidades impugnada pelo autor.
52. O Meritíssimo Juiz a quo explicou por que razão não declarou a nulidade dos actos do vereador da Câmara Municipal de Santa Cruz datados de 07/01/2005 e de 10/02/2006 que, respectivamente, deferiram o pedido de licença de construção e prorrogaram o prazo da licença de construção por mais 180 dias.
53. Compreende-se a opção do Meritíssimo Juiz a quo de concentrar a análise do caso em função da aprovação do projecto de arquitectura porque nele se concentra a pronúncia final e vinculativa da administração relativamente aos parâmetros construtivos definidos na lei e regulamentos urbanísticos em vigor, designadamente a área de construção, cérceas e o número de pisos acima e abaixo da cota de soleira, o índice de construção, a percentagem de área coberta, a superfície impermeabilizada e uso a que se destina a edificação.
54. Na verdade, a aprovação do projecto de arquitectura põe termo a um sub-procedimento bem demarcado do procedimento de licenciamento e integra a pronúncia final e vinculativa para a Administração sobre o núcleo essencial da pretensão do interessado, condicionando relevantemente os actos procedimentais subsequentes que assim surgirão como meros actos complementares do acto central do procedimento que é a aprovação do projecto de arquitectura, no qual radica a lesão de direitos ou interesses legalmente protegidos de terceiros ou de interesses públicos, colectivos ou difusos - nesse sentido vide Fernanda Paula Oliveira, in Cadernos de Justiça Administrativa, n° 13, Janeiro/Fevereiro de 1999, p.p. 51-57 e Mário Torres, in Cadernos ..., n° 27, Maio/Junho, p.p. 34-45.
55. Porém, tendo presente que, para a doutrina e jurisprudência dominante, o acto de aprovação do projecto de arquitectura constitui um mero acto preparatório da decisão final de licenciamento, sem autonomia funcional para, por si só e desde logo, ter eficácia lesiva, pelo que, segundo essa óptica, só pode ser impugnado por via da impugnação da licença de construção, o autor impugnou também expressa e destacadamente os despachos do Vereador com o Pelouro das Obras datados de 7/1/2005 e 10/02/2006 que, respectivamente, deferiu o pedido de licença de construção e prorrogou o prazo da licença de construção por mais 180 dias.
56. Aliás, da conjugação do artigo 26° do D.L. 555/99 que determina que "A deliberação final de deferimento do pedido de licenciamento consubstancia a licença para a realização da operação urbanística" com o artigo 67° que faz depender a validade das licenças ou autorizações "da sua conformidade com as normas legais e regulamentares aplicáveis em vigor à data da sua prática, sem prejuízo do disposto no artigo 60°" resulta que é à data de deliberação final que se verifica a conformidade do pedido com as normas em vigor ainda que o projecto de arquitectura já se encontrasse aprovado.
57. Deste modo, prevenindo a hipótese de se considerar que a deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 2004/7/28 declarada nula pelo Meritíssimo Juiz a quo não deve ser destacada do procedimento porque se insere num procedimento que conduz à emissão de outro acto administrativo final (o alvará de licenciamento de construção), o autor recorrido requer que esse Venerando Tribunal declare a nulidade do despacho do vereador com o pelouro das obras datados de 7/1/2005 - facto provado 12 - e a nulidade consequente dos demais actos do procedimento de licenciamento em causa, o que, de igual modo determina a procedência total da acção.
58. Na verdade:
> Ao caso é manifestamente aplicável o PDMSC;
> As actos licenciados e impugnados excedem clamorosamente os parâmetros urbanísticos fixados por aquele plano municipal de ordenamento do território, designadamente quanto ao índice de construção máximo, percentagem de área coberta máxima, superfície impermeabilizada máxima, à cércea e número de pisos, o que está plenamente evidenciado nos factos provados, particularmente nos 16 a 34.
Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de V. Exas. Venerandas, deve negar-se provimento ao recurso interposto pelos demandados.
Subsidiariamente, no caso de dar-se provimento ao recurso interposto pelos demandados - hipótese que não se aceita -, deve admitir-se e conhecer-se a ampliação do âmbito do recurso operada por esta via e declarar-se a nulidade do despacho do vereador com o pelouro das obras datado de 7/1/2005 - facto provado 12 - e a nulidade consequente dos demais actos do procedimento de licenciamento em causa, o que, de igual modo determina a procedência total da acção, pois só desse modo se fará a costumada
Justiça!”

O Recorrente, Município de Santa Cruz, apresentou resposta à matéria da ampliação, pugnando pela nulidade da sentença e pela improcedência do alargamento do âmbito do recurso.

Também os Contrainteressados apresentaram resposta à matéria da ampliação. Pugnaram pela inadmissibilidade da ampliação do âmbito do recurso e pelo seu não provimento.

Por despacho de 20 de maio de 2022, o Tribunal a quo admitiu a ampliação do âmbito do recurso requerida pelo Recorrido.

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

O Ministério Público junto deste TCA Sul, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso apresentado pela Entidade Demandada.

Notificadas do aludido parecer, as partes nada disseram.

Sem vistos, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II. Delimitação do objeto do recurso

Conforme jurisprudência firmada, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA, na redação anterior ao DL 214-G/2015 a que doravante nos referimos), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA).
Tendo em conta o exposto, as questões que a este Tribunal cumpre apreciar são as de saber se
(i) A sentença recorrida padece de,
· Nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão e ambiguidade que torna a decisão ininteligível;
· Erro de julgamento de direito quanto à nulidade do ato de 28.7.2004, à obrigação de demolição e ao não reconhecimento dos efeitos putativos do ato;
(ii) Subsidiariamente, para a hipótese de ser dado provimento ao recurso, cumpre apreciar se a sentença incorre em erro de julgamento ao não declarar a nulidade dos atos do vereador com o pelouro das obras de 7.1.2005 e 10.2.2006.


III. Fundamentação de facto

III.1. Na decisão recorrida foi julgada provada a seguinte factualidade:

1. Pela apresentação 08/170594 encontra-se registada a propriedade do prédio misto localizado na Rua d…, freguesia de Santa Cruz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o n.º 0…/1…, e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo n.º … da Secção “…” e a parte urbana sob o artigo n.º 3…, a favor de C….
2. J… e mulher M… são proprietários de um prédio misto, localizado ao Sítio d…, freguesia e concelho de Santa Cruz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o n.º 9…, fls. …, livro B…, inscrito na matriz rústica sob o artigo …/…, Secção “….” e na matriz urbana sob o artigo 2…..
3. A 28/09/2001, J… apresentou na Câmara Municipal de Santa Cruz um “projecto de arquitectura para alteração e ampliação de uma pensão e habitação colectiva”, que aqui se dá por integralmente reproduzido e de cuja Memória Descritiva e Justificativa consta:

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4. A 19/10/2001, o projecto de arquitectura foi deferido por despacho do Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz, do qual consta:


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5. A 12/04/2002, J… entregou na Câmara Municipal de Santa Cruz os projectos de especialidade relativos a betão, água, esgotos, electricidade e incêndios.
6. A 31/03/2003, J… requereu ao Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz um prazo de 365 dias para levantamento da licença de construção, em virtude de lhe ter sido rejeitado o empréstimo bancário.
7. Por despacho de 04/04/2003, do Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz, foi deferido o prazo de 365 dias referido em 6. supra.
8. A 08/07/2004, J… submete à Câmara Municipal de Santa Cruz um projecto de alteração, com projectos de especialidades, que aqui se dão por integralmente reproduzidos e de cuja Memória Descritiva e Justificativa consta:


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9. A 22/07/2004, o Contra-interessado requereu o destaque de uma parcela de terreno, com a área de 548 m2, sobre o prédio referido em 2. supra.
10. Por deliberação de 28/07/2004, da Câmara Municipal de Santa Cruz, foi deferido o projecto apresentado pelo Contra-interessado, referido em 8. supra, nos seguintes termos:
“Deferido, por unanimidade, o projecto de alteração apresentado para habitação colectiva, condicionado a rectificar o projecto quanto aos afastamentos relativos ao alçado confinante com a Avenida 25 de Junho, devendo aí os pisos acima da cota do passeio, sofrer um recuo de um metro e cinquenta centímetros de modo a salvaguardar a zona pública. Deverá também apresentar novo estudo cromático que comtemple pormenor dos beirais, sugerindo-se também guardas verticais nas varandas. Esta deliberação foi aprovada em minuta.”
11. A 28/07/2004, a Câmara Municipal de Santa Cruz autorizou o destaque da parcela referida em 9. supra.
12. A 07/01/2005 foi emitido o Alvará de Obras de Construção n.º 6/05, em nome de J…, do qual consta:


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13. A 30/11/2005, J… requereu ao Presidente da Câmara Municipal de Santa Cruz a prorrogação do prazo da licença de construção titulada pelo Alvará 6/05, pelo período de 180 dias.
14. A 10/02/2006, o Vereador das Obras Particulares da Câmara Municipal de Santa Cruz deferiu o pedido de prorrogação do prazo referido em 13. supra.
15. Por escritura pública de compra e venda e doação, outorgada a 31/03/2006, os Contra-interessados G… e M… adquiriram uma parcela de terreno, objecto de destaque, com a área de 548 m2 desanexada do prédio misto referido em 2. supra.
16. A área da parcela de terreno em que está implantada a construção pré-existente é de 260 m2.
17. O índice de construção da edificação pré-existente é de 1,44 (quociente entre a área bruta de construção e a área da parcela da construção pré-existente).
18. A percentagem de área coberta da construção pré-existente é de 48,7%.
19. A percentagem da superfície impermeabilizada da construção pré-existente é de 87,1%.
20. A área da parcela de terreno na qual está implantado o edifício de habitação colectiva e as duas moradias é de 523 m2.
21. A área da parcela de terreno ocupada pela edificação pré-existente, pelo edifício de habitação colectiva e pelas duas novas moradias é de 783 m2.
22. O índice de construção que resulta da soma da área bruta de construção da edificação pré-existente, do edifício de habitação colectiva e das duas novas moradias, é 1,81.
23. A percentagem da área coberta, considerando a ocupação horizontal do terreno da construção pré-existente pelo edifício de habitação colectiva e pelas duas novas moradias, é de 70,5%.
24. A percentagem da superfície impermeabilizada, considerando a superfície do terreno ocupada pela construção pré-existente, pelo edifício de habitação colectiva e pelas duas novas moradias, é de 87,9%.
25. O índice de construção (quociente entre a área bruta de construção e a área da parcela) do prédio de habitação colectiva é de 2,45.
26. A cércea do edifício de habitação colectiva é de 19,5 m.
27. A altura máxima de edificação do prédio de habitação colectiva é de 19,5 m.
28. A percentagem da parcela ocupada por construção relativamente ao prédio de habitação colectiva é de 79,8%.
29. A superfície impermeabilizada do prédio de habitação colectiva é de 96,6%.
30. O edifício de habitação colectiva é uma obra nova e independente da construção pré-existente.
31. A distância da fachada frontal do prédio de habitação colectiva ao eixo da Avenida 25 de Junho é de 6,70 m.
32. A distância da fachada frontal do prédio de habitação colectiva ao lancil do passeio é de 2,48 m.
33. As duas novas moradias não são dotadas de garagens próprias.
34. A percentagem da área impermeabilizada pelas duas novas moradias é de 73,1%.
35. Não foi estabelecida servidão aeronáutica a favor do Aeroporto da Madeira.
36. A 30/04/2002, a Câmara Municipal de Santa Cruz solicitou parecer ao Serviço Regional de Protecção Civil sobre o projecto de segurança contra incêndios.
37. O projecto apresentado pelo Contra-interessado em 08/07/2004 não foi instruído com projecto de especialidade contra incêndios.”

III.2. Mais se consignou na sentença recorrida quanto a factos não provados:

“Inexistem factos alegados e relevantes para a decisão a dar como não provados.”

III.3. E quanto à motivação da matéria de facto:

“O Tribunal deve indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, indicando e fazendo o exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção.
Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas. Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
Relativamente à matéria de facto, o juiz não tem o dever de pronúncia sobre toda a matéria alegada, tendo antes o dever de seleccionar apenas a que interessa para a decisão, levando em consideração a causa de pedir que fundamenta o pedido formulado e consignar se a considera provada ou não provada.
A matéria de facto dada como assente nos presentes autos foi a considerada relevante para a decisão da causa controvertida segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito.
Assim:
Os factos 1. a 15., 35. e 36. consideram-se provados pela análise crítica e ponderada de todos os meios de prova conjugados entre si, documentos juntos aos autos, processo administrativo e documentos juntos ao processo cautelar, os quais foram valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum.
A convicção do Tribunal para a determinação da restante matéria de facto dada como provada, designadamente os factos 16. a 34. resultou do teor do relatório pericial, conjugado com os esclarecimentos prestados pelo perito J…, em audiência final.
Quanto à prova testemunhal produzida:
O depoimento da testemunha S…, indicada pelo Autor, foi totalmente desvalorizado, revelando-se sempre muito amiga e defensiva dos interesses do mesmo. A referida testemunha assumiu que, previamente ao depoimento, consultou as anotações do mandatário do Autor.
Não logrou, assim, obter a credibilidade do depoimento por parte do Tribunal, perante os evidentes sinais de compromisso para com o Autor.
O depoimento prestado pela testemunha O… mostrou-se genérico e sem utilidade sobre a factualidade relevante para a decisão.
De todo o modo, considerando que todos os factos provados assentam em prova documental, os depoimentos das testemunhas não assumiram relevância, não tendo logrado contrariar o que resulta dos documentos juntos.”

IV. Fundamentação de direito

1. Da nulidade da sentença


Os Recorrentes (Município de Santa Cruz e, por adesão, os contrainteressados) imputam nulidade à sentença, com fundamento no disposto no artigo 615.º, n.º 1 al. c) do CPC, sustentando que os fundamentos se encontram em oposição com a decisão e que a sentença padece de ambiguidade que a torna ininteligível porquanto declara a nulidade do ato de licenciamento praticado a 28.7.2004 quando, na realidade, o ato praticado em 28.7.2004 corresponde à aprovação do destaque de uma parcela, confundindo o Tribunal a quo o deferimento do projeto do contrainteressado na reunião de Câmara de 28.7.2004 com o ato de licenciamento praticado em 7.1.2005 e que entende corresponder ao alvará de construção.
As nulidades da sentença são vícios da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença e encontram-se previstas no artigo 615.º, n.º 1 do CPC, no qual se prescreve que é nula a sentença se, além do mais, ocorrer oposição entre fundamentos e decisão ou se verifique alguma obscuridade ou ambiguidade que torne a decisão ininteligível [al. c)].
A oposição entre os fundamentos e a decisão, respeita «à contradição intrínseca da decisão judicial, pela circunstância de “os fundamentos invocados pelo tribunal conduzirem logicamente a uma conclusão oposta ou, pelo menos, diferente daquela que consta da decisão”» (Ac. do STJ de 12.01.2021, proferido no proc. 4258/18.0T8SNT.L1.S1).
Por sua vez, a nulidade da sentença, fundada em ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, “implica que, seja na decisão, seja na fundamentação, se chegue a resultado que possa traduzir dois ou mais sentidos distintos e porventura opostos, que permita hesitar sobre a interpretação adoptada, ou não possa ser apreensível o raciocínio do julgador, quanto à interpretação e aplicação de determinado regime jurídico, considerados os factos adquiridos processualmente e visto o decisório in totum.” (Ac. do STJ de 12.01.2021, proferido no proc. 4258/18.0T8SNT.L1.S1).
Isto posto, é patente que a decisão recorrida não padece de qualquer contradição entre os seus fundamentos e a decisão tomada, nem tão pouco de uma obscuridade – “[é] obscuro o que não é claro, aquilo que não se entende” (Ac. do TCA Norte de 12.4.2019, proferida no proc. 00510/09.4BEBRG) – ou ambiguidade – “é ambíguo o que se preste a interpretações diferentes” ” (Ac. do TCA Norte de 12.4.2019, proferida no proc. 00510/09.4BEBRG) – que a tornem ininteligível.
Com efeito, o Tribunal a quo, considerando que o A. havia identificado como ato impugnado a deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 28.7.2004, que verteu no facto 10, e entendendo que este corresponde ao ato de licenciamento que “suportou a emissão do alvará de obras de construção n.º 6/05, de 07/01/2005” (fls. 16 da sentença), apreciou um dos vícios a este imputados – julgando prejudicada a apreciação dos demais -, concluindo que, em conformidade com o art.º 68.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, o ato é nulo por violar os parâmetros urbanísticos previstos no Plano Diretor Municipal de Santa Cruz. Consequentemente declara a nulidade do ato de licenciamento, que entende corresponder ao praticado a 28.7.2004, pela Câmara Municipal de Santa Cruz a favor de J….
Portanto, sem qualquer contradição entre os fundamentos que avocou para considerar que o ato de licenciamento que considerou ser o praticado em 28.7.2004 pela Câmara Municipal de Santa Cruz e a decisão de declaração de nulidade desse mesmo ato que tomou.
E, também, sem qualquer ambiguidade, pois que se mostra perfeitamente apreensível o raciocínio adotado, sem que a decisão, que é a de declarar nulo o ato que o Tribunal a quo identificou como o de licenciamento, traduza qualquer caráter dúbio.
A questão considerada pelos Recorrentes, concretamente quanto à alegada errónea identificação do ato administrativo de licenciamento e que, no entender destes, não seria o praticado em 28.7.2004, mas sim o alvará n.º 6/05 emitido em 7.1.2005, a verificar-se contenderia com o erro de julgamento. Mas não consubstancia nulidade da sentença.
Sem prejuízo, adianta-se que o alvará de licença de construção “é um mero documento que titula um direito (direito a edificar) e que externa a eficácia do reconhecimento ou da concessão formal do direito”, mas não se confunde com o ato administrativo que confere o direito de edificar e que corresponde ao ato de licenciamento (entre outros, o Ac. do STA de 17.10.2002, proferido no processo 048141). Isto é, o alvará é (apenas) o documento que titula o ato administrativo de licenciamento, sendo condição de eficácia daquele. Mas o ato que contém uma decisão, no exercício de poderes jurídico-administrativos, que visa produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta, no caso sobre a pretensão submetida em 8.7.2004 referente ao projeto de alteração (facto 8.), é o de aprovação do projeto de alterações praticado em 28.7.2004 (facto 10.). Sendo este o ato administrativo cuja (in)validade foi apreciada na sentença e declarada a nulidade.
Em suma, não padece a sentença recorrida da nulidade que lhe é apontada.

2. Do erro de julgamento de direito


Alegam os Recorrentes que, opostamente ao consignado na sentença recorrida, os projetos submetidos à Câmara Municipal de Santa Cruz em 2001 e em 2004 são apenas um, pelo que, dado que o licenciamento das alterações deferido em 2005 teve por base o processo iniciado em 2001, não está sujeito às Normas do Plano Diretor Municipal do Município de Santa Cruz que apenas entrou em vigor a 5 de junho de 2004, devendo aplicar-se a legislação urbanística em vigor em 2001. Entendimento que entendem ser reforçado pelo artigo 117.º do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de fevereiro, que refere que não há suspensão dos procedimentos de licenciamento urbanístico até à entrada em vigor do novo Plano – que entrou em vigor no dia 5 de junho de 2004 -, por estar em causa um pedido que tem por objeto obras de reconstrução ou alteração em edificações existentes (n.º 4).
Assim, porque o processo se iniciou em 2001, apesar do seu término ter acontecido em 2005 na vigência do PDM, estava sujeito às condicionantes do artigo 45.º B do POTRAM (Plano para o Ordenamento do Território na Região Autónoma da Madeira), aprovado pelo Decreto Legislativo Regional 9/97/M, de 18 de Julho, que diz especificamente que as obras de habitação podem, fundamentada e excecionalmente ser admitidos, assegurada a prossecução dos respetivos objetivos, através dos mecanismos de concertação de conflitos de interesse públicos representados pelos vários sujeitos da Administração Pública previstos na legislação aplicável.
Sustentam que, não obstante o destaque, a área a edificar e o projeto se mantiveram os mesmos, tendo sido licenciado um conjunto habitacional único, formado por dois edifícios, constituídos por frações autónomas, independentes, isoladas entre si e com saída para a via pública e partes comuns do prédio e que têm em comum os estacionamentos, acessos ao prédio, acessos verticais e horizontais, estando, portanto, funcionalmente ligadas entre si. Razão pela qual não se aplica o disposto no RJUE quanto às operações de loteamento.
Aduzem que o Tribunal não poderia ter estipulado a demolição como forma de repor a legalidade, porquanto esta constitui o último meio, a utilizar somente quando seja de todo inviável a legalização ou não for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis mediante a realização de trabalhos de correção ou de alteração.
Assim, invocam a possibilidade de alteração da norma do PDM cuja violação ditou o indeferimento da legalização e, igualmente, dado que o edificado preenche todos os requisitos de habitabilidade, segurança, salubridade e de estética e que o custo da demolição é superior aos benefícios obtidos, deve ser ponderado, como forma de evitar a demolição, o grave prejuízo para o interesse púbico e a causa legítima de inexecução / impossibilidade absoluta de executar demolição, à luz dos princípios da adequação, da necessidade, da proporcionalidade, da paz social e da boa gestão financeira dos recursos públicos.
Entendem, ainda, que o Tribunal errou ao não reconhecer os efeitos putativos decorrentes do decurso do tempo e do princípio da proporcionalidade e da tutela da confiança, verificando-se os pressupostos para a jurisdicização com vista a salvaguardar os efeitos de facto gerados por atos nulos de gestão urbanística, perante a principal consequência da ilegalidade –, i.e., a demolição.
Referem a necessidade de tutelar a confiança porquanto ao longo de 5 anos foram criadas expetativas relativamente a uma licença validamente emitida em 2001, e posteriormente confirmada em 2004 (com as alterações solicitadas em 2003), ao abrigo da qual foi construído um prédio, o qual foi adquirido a 31 de março de 2006 por terceiros de boa-fé, numa perspetiva de habitação própria e rendimento, quando a obra caminhava para a sua conclusão, existia uma licença válida e não havia nenhum processo judicial em curso.

A primeira questão que cumpre analisar é se, como alegam os Recorrentes, a pretensão urbanística apresentada em 8.7.2004, e sobre a qual incidiu o ato impugnado, não se rege pelo Plano Diretor Municipal de Santa Cruz, ratificado pela Resolução n.º 607/2004/M, de 29 de abril, publicado em Diário da República, N.º 131, II Série, de 4 de junho, e que entrou em vigor a 5 de Junho de 2004.
A este respeito entendeu-se na sentença recorrida que,
“A validade do acto impugnado deve, por força do princípio tempus regit actum, ter em conta as regras e parâmetros urbanísticos aplicáveis à data em que o mesmo foi praticado.
O Plano Director Municipal de Santa Cruz foi ratificado pela Resolução n.º 607/2004/M, de 29 de Abril, publicado em Diário da República, N.º 131, II Série, de 4 de Junho, e entrou em vigor a 5 de Junho de 2004.
A Entidade Demandada e os Contra-interessados defendem que o Plano Director Municipal de Santa Cruz não é aplicável ao caso dos autos, essencialmente, porque o acto de licenciamento impugnado respeita ao procedimento administrativo de licenciamento iniciado em 2001, a impulso do Contra-interessado, cf. 3. dos Factos Provados. Não lhes assiste razão.
O projecto submetido à Câmara Municipal de Santa Cruz em 2001 [aprovado condicionalmente, mas nunca executado] e o projecto submetido em 2004 são projectos distintos e foram objecto de actos de licenciamento igualmente distintos. A este propósito cumpre referir que, para além da alteração de finalidade do projecto inicial, com o abandono da finalidade de pensão e restaurante para a finalidade habitacional, o projecto de arquitectura aprovado em 2004 altera em muito as áreas de volumetria e implantação inicialmente aprovadas em 28/09/2001, obrigando, ainda, à entrega de novos projectos de especialidades por parte do Contra-interessado.
Estamos, assim, perante um novo licenciamento.”
Em concordância com o princípio tempus regit actum, dispõe-se no artigo 67.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE, na redação da Lei n.º 4-A/2003) que a “validade das licenças ou autorizações das operações urbanísticas depende da sua conformidade com as normas legais e regulamentares aplicáveis em vigor à data da sua prática, sem prejuízo do disposto no artigo 60.º”.
Este mesmo princípio mostra-se, igualmente, acolhido nos n.ºs 2 e 3 do artigo 117.º do então vigente Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de setembro, na redação do DL 310/2003, de 10/12, doravante RJIGT).
Com efeito, sabido que a suspensão dos procedimentos de informação prévia, de licenciamento e de autorização, no período entre a data fixada para o início do período de discussão pública e até à data da entrada em vigor das novas regras urbanísticas constantes de plano municipal ou especial de ordenamento do território ou sua revisão, prevista no n.º 1 do artigo 117.º do RJIGT corresponde a uma das “medidas que têm por função acautelar opções a plasmar no futuro plano em trâmite de elaboração, alteração ou revisão, de molde a que a aplicação das novas soluções urbanísticas nele contidas não fiquem prejudicadas ou inviabilizadas durante o período que antecede a vigência do novo plano” (Ac. do STA de 22.1.2009, processo 0720/08), o n.º 2 dispõe que, cessando a suspensão do procedimento o pedido será decidido de acordo com as novas regras urbanísticas em vigor. Sendo certo que, ao abrigo do n.º 3 “caso as novas regras urbanísticas não entrem em vigor no prazo de 150 dias desde a data do início da respectiva discussão pública, cessa a suspensão do procedimento, devendo nesse caso prosseguir a apreciação do pedido até à decisão final de acordo com as regras urbanísticas em vigor à data da sua prática”.
Assim, “[o] princípio tempus regit actum tem, portanto, como consequência a inaplicabilidade aos actos administrativos quer de normas entradas em vigor em momento posterior àquela data, quer de norma ainda não vigentes nesse momento, quer ainda de regras que já deixaram de vigorar”. Entendendo-se “uniformemente que o bloco de legalidade aplicável a um acto administrativo é o vigente na data em que for proferido, mesmo em casos em que tenha havido deferimento de actos intermédios do respectivo procedimento de licenciamento” (Filipe Avides Moreira, As medidas cautelares dos planos e o relacionamento entre medidas preventivas e suspensão de procedimentos – o princípio tempus regit actum, in O urbanismo, o ordenamento do território e os Tribunais, coord. Fernanda Paula Oliveira, Almedina, dezembro 2010, pp. 122 e 123).
Refira-se, ainda, que a pretensão urbanística apresentada em 28.9.2001 não corresponde à mesma que foi submetida em 8.7.2004, para o efeito de se poder sustentar que a apreciação desta última se devesse fazer à luz das normas urbanísticas anteriores ao PDM de Santa Cruz.
De facto, ainda que possam ser utilizados os documentos constantes do processo que se mantenham válidos e adequados (artigo 27.º, n.º 6 do RJUE), o procedimento de licenciamento da alteração não deixa de corresponder a uma distinta operação urbanística, que vai dar origem ao aditamento ao alvará (artigo 27.º, n.º 7 do RJUE).
Ou seja, o pedido de licenciamento inicial e o pedido de licenciamento das alterações àquela licença, são (distintos) requerimentos (artigos 54.º e 74.º e ss. do CPA, na redação do DL 442/91, alterada pelo DL 6/96) que, ainda que incidam sobre um mesmo prédio, dão origem a procedimentos administrativos que não se confundem e que culminam na prática de atos administrativos diversos.
Daí que o projeto de alterações apresentado em 2004 e o apresentado em 2001 não se confundem. São pedidos diversos, apresentados com um hiato temporal entre si, o que, desde logo, os sujeita às prescrições de distintos instrumentos de planeamento urbanísticos.
O que significa que, tendo o PDM entrado em vigor a 5 de junho de 2004 e estando vigente à data da prática do ato impugnado, o pedido de licenciamento das alterações em causa nos autos sempre se regeria pelos parâmetros urbanísticos que dele emergem.
Note-se que não há aqui lugar à aplicabilidade do disposto no n.º 4 do artigo 117.º do RJIGT, pois que o procedimento de licenciamento que deu origem ao ato de aprovação do projeto de alterações impugnado apenas se iniciou após a entrada em vigor do novo PDM. Não estando, pois, em causa situação em que o procedimento se encontrasse em curso, ou tivesse sido iniciado, antes da entrada em vigor das novas regras urbanísticas constantes de plano municipal ou especial de ordenamento do território ou sua revisão, e que por ter por objeto obras de reconstrução ou de alteração em edificações existentes não tivesse que ser suspenso nos termos do n.º 1 desse normativo.
Daí que o princípio tempus regit actum determine que se deva aferir a conformidade das operações urbanísticas com as normas legais e regulamentares aplicáveis em vigor à data da prática do ato, o que in casu significa, como se entendeu na sentença recorrida, que o projeto apresentado em 8.7.2004 deveria, sob pena de nulidade nos termos do artigo 68.º, al. a) do RJUE, respeitar o PDM de Santa Cruz.
Não se encontrando aquela operação urbanística, apenas, sujeita às previsões do Plano para o Ordenamento do Território na Região Autónoma da Madeira (PROTAM, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional 12/95/M, de 24 de junho e alterado pelo Decreto Legislativo Regional 9/97/M), antes se devendo (também) conformar com os parâmetros urbanísticos daquele Plano Diretor Municipal.

Os Recorrentes não questionam que, à luz do PDM de Santa Cruz, o prédio referido em 2. dos Factos Provados se encontra situado na classe qualificada como de espaço urbano consolidado no território do Município de Santa Cruz, relativamente à qual dispõe o art. 37.º daquele instrumento de planeamento que,
“A construção de edifícios em terreno livre ou para substituição de edifícios existentes fica sujeita cumulativamente ao preconizado nos artigos 33.º, 34.º e 35.º e às seguintes prescrições, enquanto não existir plano de urbanização ou plano de pormenor plenamente eficaz:
(…)
5 – Para as novas intervenções, a cércea máxima é determinada pela média da cércea dos edifícios adjacentes lateralmente mais próximos, com o limite máximo de quatro pisos, excluídos que sejam os casos dissonantes, sem prejuízo do art. 59.º do REGEU, sendo admissível a construção contínua no estrito cumprimento do REGEU.
6 – Os indicadores urbanísticos aplicáveis ao lote ou parcela são os seguintes:
6.1 – Índice de construção máximo – 1,50;
6.2 – Percentagem de área coberta máxima – 60%;
6.3 – Superfície impermeabilizada máxima – 80%.”
No artigo 10.º do PDM, epigrafado “Definições”, definem-se, além do mais, os conceitos de Área Bruta de Construção, Índice de Construção, Percentagem de Área Coberta, Percentagem da Superfície Impermeabilizada, Altura Máxima de Edificação e Cércea.
Ora, considerando que o ato impugnado aprova o projeto de alteração apresentado em 8.7.2004, apenas “condicionado a rectificar o projecto quanto aos afastamentos relativos ao alçado confinante com a Avenida 25 de Junho, devendo aí os pisos acima da cota do passeio, sofrer um recuo de um metro e cinquenta centímetros de modo a salvaguardar a zona pública. Deverá também apresentar novo estudo cromático que contemple pormenor dos beirais, sugerindo-se também guardas verticais nas varandas”, constata-se que, sendo de 783 m2 a área total do terreno, a operação urbanística licenciada apresenta:
· Um índice de construção – correspondente ao quociente entre a área bruta de construção pela área de parcela ou lote que serve de base à operação de licenciamento da edificação (artigo 10.º do PDM) - de 1,81 (facto 22);
· Uma percentagem de área coberta – isto é, a percentagem de parcela ou lote ocupada por construção, considerando para o efeito a projeção horizontal dos edifícios, delimitada pelo perímetro dos pisos mais salientes, contabilizados todos os elementos (artigo 10.º do PDM) - de 70,5% (facto 23);
· A percentagem de superfície impermeabilizada, traduzida na soma da superfície de terreno ocupada por edifícios, vias, passeios, estacionamentos, acessos, piscinas, e demais obras que impermeabilizam o terreno (artigo 10.º do PDM), é de 87,9% (facto 24);
· O índice de construção – correspondente ao quociente entre a área bruta de construção pela área de parcela ou lote que serve de base à operação de licenciamento da edificação (artigo 10.º do PDM) - é de 2,45 (facto 25);
· A cércea, entendida esta como o número total de pisos emergentes de um edifício, na fachada de maior dimensão, tendo como referência uma altura média de piso de 3m, é de 5 pisos (factos 12, 26, 27 e 30).
Ou seja, como se entendeu na sentença recorrida, mostra-se inegável que o ato impugnado aprovou uma operação urbanística que excede, e assim viola, os parâmetros urbanísticos referentes ao índice de construção, percentagem de área coberta, percentagem de superfície impermeabilizada, índice de construção e cércea, previstos no artigo 37.º, n.ºs 5 e 6 do PDM de Santa Cruz.
Sendo, consequentemente, nulo porque praticado em violação das normas constantes do Plano Diretor Municipal de Santa Cruz, conforme emerge do art. 68.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de dezembro.
Refira-se que embora o Tribunal a quo, em sede de fundamentação de direito, se tenha referido ao ato de autorização de destaque praticado em 28.7.2004 (factos 9 e 11) - entendendo que este “permitiu o fracionamento do prédio mãe, alcançando, na prática, um aumento da capacidade edificativa” e que tal correspondeu a uma “situação de fraude à lei quanto à aplicação dos índices urbanísticos. É que a aprovação do segundo projecto em 28/07/2004 ao ter com suporte o prédio mãe, suportou-se na sua maior área, ainda que a implantação da habitação colectiva tivesse lugar apenas na área da parcela destacada. Simplificando, primeiro dá-se a aprovação do licenciamento do projecto para a totalidade do prédio mãe, a seguir aprova-se o destaque de uma parcela cuja volumetria de construção nunca poderia ser aprovada para a área da mesma, necessariamente inferior” -, na realidade, este ato de autorização de destaque não era objeto dos autos, não tendo sido o mesmo impugnado e, consequentemente, não foi proferida qualquer decisão que, apreciando a sua (in)validade, determinasse a sua remoção da ordem jurídica.
Daí que se mostrem inócuas à decisão as eventuais questões que apenas contendem com a validade do ato de autorização de destaque veiculadas nos pontos ll) a oo) das conclusões de recurso e que, como tal, não cumpre apreciar.
Estando em causa o ato de aprovação do projeto de alterações apresentado em 8.7.2004 para o prédio referido 2. dos factos provados é à luz dos pressupostos contemplados no ato impugnado, incluindo no que respeita à área total do terreno abrangida pelo projeto (783 m2), e não (apenas) da área da parcela destacada – porque a pretensão apresentada não incidiu (apenas) sobre esta -, que é analisado o cumprimento dos parâmetros urbanísticos previstos no PDM.
E, como vimos, desrespeitado o disposto no artigo 37.º, n.ºs 5 e 6 do PDM de Santa Cruz é nulo o ato de aprovação do projeto de alterações impugnado.

Cumpre, por isso, analisar se, como alegam os Recorrentes, o Tribunal a quo errou ao determinar que a consequência da nulidade do ato praticado em 28.7.2004 é a demolição do que ao abrigo desse ato foi edificado, seja porque a demolição enquanto última ratio apenas tem lugar quando a edificação não seja suscetível de legalização, seja porque deve haver lugar à salvaguarda dos efeitos putativos decorrentes de ato de licenciamento por intermédio da jurisdicização da situação de facto em correspondência à tutela da boa fé e da confiança.
Importa, desde logo, dar conta que a decisão proferida foi (apenas) a de declarar a nulidade do ato praticado em 28.7.2004 impugnado. Assim foi porque a pretensão deduzida nos autos era(é), em singelo, de natureza meramente impugnatória.
Sucede que, sem nada a esse respeito ter sido requerido, o Tribunal a quo, em sede de fundamentação de direito, pronunciando-se sobre as consequências do julgado por referência à existência no plano dos factos de uma situação desconforme ao direito, considerou que “a consequência natural da declaração de nulidade do acto é a demolição da operação urbanística concretizada com base nesse mesmo acto, de forma a ser reposta a legalidade” e, tratando o instituto da jurisdicização da situação de facto como exceção peremptória, considerou que não se mostravam preenchidos os pressupostos para a mesma.
Ora, importa notar que, não tendo sido cumulado, nos termos do artigo 4.º, n.º 2 do CPTA, um pedido de condenação da Administração ao restabelecimento da situação que existiria se o ato não tivesse sido praticado, não cabia ao Tribunal a quo, em sede declarativa, determinar os moldes em que se realizaria a reposição da legalidade urbanística. Isto porque, visando a ação apenas a declaração de nulidade dos atos impugnados, “perante a declaração de nulidade de um ato, cabe à Administração executar o julgado, tirando do mesmo as devidas ilações, as quais, sendo caso disso, poderão igualmente vir a ser sindicadas judicialmente” (Ac. deste TCA Sul de 13.7.2023, proferido no processo 934/13.2BELLE).
É certo que o R./Recorrente, em sede de contestação, invocou o instituto da jurisdicização da situação de facto. Contudo, o instituto da jurisdicização da situação de facto não corresponde ao “afastamento ou sanação da ilegalidade geradora do desvalor da nulidade que afeta a validade do ato administrativo e na sequência do qual se criou a situação de facto” (Ac. do STA de 18.6.2020, proferido no processo 01701/10.0BEBRG 0200/18). Isto é, o n.º 3 do art. 134.º do CPA/91 (atenta a data da prática do ato impugnado é aplicável o CPA na redação do DL 442/91, doravante CPA/91) não consagra a sanação ou supressão da ilegalidade do ato nulo, a qual é legalmente impossível. Do que se trata é, verdadeiramente, de “uma ressalva àquilo que seriam as decorrências da reposição da legalidade urbanística quanto a edificações realizadas em desconformidade às normas vigentes de planeamento nesse domínio e quando as mesmas não se mostrem suscetíveis de legalização” (cf. Ac. do STA de 18.6.2020, proferido no processo 01701/10.0BEBRG 0200/18).
Ou seja, a possibilidade de jurisdicização da situação de facto, a que subjaz a também invocada tutela da boa fé e da confiança, não constitui exceção peremptória – enquanto causa impeditiva da declaração de nulidade do ato - no âmbito do processo de natureza meramente impugnatória em que (apenas) foi peticionada a declaração de nulidade do ato. Antes constitui causa impeditiva dos (eventuais) efeitos desse julgado e que, portanto, tão só relevaria no âmbito de processo em que tivesse sido cumulada a pretensão de reintegração da legalidade violada ou em sede de execução de julgado. Como se disse no Acórdão deste TCA Sul de 13.7.2023, proferido no processo 934/13.2BELLE, “a ação declarativa não corresponde ao momento de atribuição de efeitos aos atos declarados nulos”.
Do exposto emerge, desde logo, o erro em que incorreu o Tribunal a quo ao, embora não o fazendo refletir no segmento decisório, considerar que a consequência da declaração de nulidade do ato impugnado se traduzia na demolição do edificado e que não se verificavam os pressupostos para a jurisdicização da situação de facto.
Com efeito, tal como na hipótese apreciada no processo deste TCA Sul supra citado, a presente ação tinha como objeto apenas a apreciação da legalidade do ato objeto de impugnação, pelo que
«(…) cabe à Administração executar o julgado, tirando do mesmo as devidas ilações, as quais, sendo caso disso, poderão igualmente vir a ser sindicadas judicialmente.
Na realidade, refere-se no Artº 102º do RJUE - "reposição da legalidade urbanística":
1 - Os órgãos administrativos competentes estão obrigados a adotar as medidas adequadas de tutela e restauração da legalidade urbanística quando sejam realizadas operações urbanísticas:
c) Ao abrigo de ato administrativo de controlo prévio revogado ou declarado nulo;
(...)
2 - As medidas a que se refere o número anterior podem consistir:
a) No embargo de obras ou de trabalhos de remodelação de terrenos;
b) Na suspensão administrativa da eficácia de ato de controlo prévio;
c) Na determinação da realização de trabalhos de correção ou alteração, sempre que possível;
d) Na legalização das operações urbanísticas;
e) Na determinação da demolição total ou parcial de obras;
f) Na reposição do terreno nas condições em que se encontrava antes do início das obras ou trabalhos;
g) Na determinação da cessação da utilização de edifícios ou suas frações autónomas.
Sendo estas as operações urbanísticas suscetíveis de serem adotadas, pode a entidade administrativa no âmbito da sua discricionariedade, preconizar as soluções processuais que entenda adequadas, como seja a inexecução do julgado (art.°s 174.° e 163.° do CPTA) ou outras soluções materiais, como seja a atribuição de efeitos aos atos declarados nulos (art.° 162.°, n.º 3, do CPA).
Cabe pois, sendo caso disso, à Administração, nomeadamente, declarar existência de causa legítima de inexecução; promover a demolição do edificado, ou atribuindo efeitos aos atos declarados nulos.
Em qualquer caso, a execução do julgado é originariamente da iniciativa da entidade administrativa.
Como se decidiu no Acórdão do STA, trazido pelo Ministério Público, proferido no processo 0649/13.1BALSB, de 24/09/2020, "Não cabe à sentença anulatória o "reconhecimento de efeitos putativos do ato nulo", devendo a "primeira palavra" nesta matéria ser dada à Administração no âmbito da execução do julgado, ficando a posição jurídica do administrado (aqui contrainteressado) salvaguardada pelos meios administrativos e judiciais especificamente desenhados para a respetiva tutela."».
Sabido que, nos termos do art.º 106.º, n.º 2 do RJUE (na sua atual redação), “a demolição pode ser evitada se a obra for susceptível de ser licenciada ou objecto de comunicação prévia ou se for possível assegurar a sua conformidade com as disposições legais e regulamentares que lhe são aplicáveis mediante a realização de trabalhos de correcção ou de alteração” e que, como notam Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes e Fernanda Maçãs (in RJUE Comentado, 2012, 3.ª edição, p. 663), “por homenagem ao princípio da proporcionalidade, só depois de concluída a apreciação sobre a viabilidade ou inviabilidade da pretensão de legalização é que poderá lançar-se mão do procedimento de demolição”, ainda que se reconheça do probatório que as edificações objeto do ato de licenciamento foram implantadas nos termos que emergem dos pontos 20 a 34 dos factos provados, deduzida pretensão meramente declarativa da nulidade dos atos impugnados, não poderia o Tribunal a quo aferir e determinar que a demolição era, efetivamente, a única forma de reposição da legalidade urbanística.
Assim é porque, também a este respeito, se trata “de não subverter o princípio da execução administrativa das sentenças anulatórias, o qual é uma decorrência do princípio da separação de poderes” (Ac. do STA de 24.9.2020, proferido no processo 0649/13.1BALSB), e ainda porque tal questão, não sendo objeto dos autos, nem sequer foi verdadeiramente debatida nos autos pelas partes. Isto é, as partes – consoante a qual recaísse o ónus da prova - não tiveram oportunidade de alegar e provar que a demolição (não) é a única forma de reposição da legalidade urbanística, nem a (im)possibilidade de assegurar a conformidade das construções edificadas com as disposições legais e regulamentares.
E, do mesmo modo, no que respeita à invocada jurisdicização da situação de facto incorreu em erro o Tribunal a quo, pois o que esse respeito cumpria decidir é(era) apenas que a mesma não representa causa impeditiva da declaração de nulidade do ato impugnado e que, consequentemente, não obsta à procedência da ação. Antes só podendo ser (judicialmente) apreciada - averiguada e determinada que seja a insusceptibilidade de legalização do edificado -, em sede de ação de execução.
Sem prejuízo, como demos conta, de tais erróneas considerações não extraiu o Tribunal a quo qualquer consequência, limitando-se a, conforme peticionado, declarar a nulidade do ato que aprovou o projeto de alteração consubstanciado na deliberação da Câmara Municipal de Santa Cruz de 28.7.2004 (facto 10.). O que significa, portanto, que, em sede de execução de julgado cabe aos Recorrentes, obrigados que estão a cumprir a decisão judicial, e, concretamente ao Município de Santa Cruz, aferir, em primeiro lugar, da possibilidade de legalização nos termos dos artigos 102.º-A e 106.º, n.º 2 do RJUE (ora na sua atual redação), e, não sendo o caso, se se verifica a possibilidade de ser juridicamente reconhecida a necessidade de conservação de certos efeitos nos termos do atual n.º 3 do artigo 162.º do CPA, anteriormente n.º 3 do art.º 134.º do CPA/91.
Sendo que é das decisões que a esse respeito tomar o Recorrente, Município, ou da omissão no cumprimento do julgado, que o Recorrido poderá, em sede de execução de julgado, reagir, discutindo-se aí se a demolição corresponde, efetivamente, à única forma de reposição da legalidade urbanística e se assiste, ou não, aos contrainteressados o direito à tutela da sua posição jurídica por via da jurisdicização da situação fáctica constituída ao abrigo do ato declarado nulo, à luz da tutela conferida pelos princípios da boa fé e da confiança.
Face ao exposto, embora com a presente fundamentação, há que concluir que a sentença recorrida, ao julgar procedente a ação e declarar a nulidade do ato praticado a 28.7.2004 pela Câmara Municipal de Santa Cruz não incorreu em erro de julgamento de direito.

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Considerando a improcedência do recurso, fica prejudicada a apreciação do objeto da ampliação do recurso, porque requerida a título subsidiário (artigos 636.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2 do CPC).

3. Da condenação em custas


Vencidos, são os Recorrentes responsáveis pelas custas (art.ºs 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC, 7.º, n.º 2 e 12.º, n.º 2 do RCP e 189.º, n.º 2, do CPTA).

V. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul, em,
a. Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida;
b. Condenar os Recorrentes em custas.

Mara de Magalhães Silveira
Marta Cavaleira
Lina Costa