Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
I – RELATÓRIO
Vem a fazenda pública, interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedentes os embargos de terceiro deduzida por Associação de C…, em representação dos 217 condóminos da Urbanização de São Rafael, «contra o ato de penhora do prédio urbano descrito sob o nº 1… na Conservatória do Registo Predial de Albufeira e inscrito na matriz sob o artigo 8…, praticado no âmbito do processo de execução fiscal nº 3255199801014021 e seus apensos, que correm termos contra “S… Lda.”, para pagamento coercivo da quantia exequenda de € 224 306,15».
Nas alegações de recurso apresentadas, a Recorrente formulou as seguintes conclusões:
«A) In casu, com elevado respeito pelo douto Areópago a quo, na humilde perspectiva fáctico- jurídica do aqui Recorrente, deveria ter sido dada uma maior acuidade ao escopo do vertido no art. 1251.º; 1260.º; 1446.º; e 1621.º todos do CCivil ex vi art. 2.º, al. d) da LGT;
B) Também, deveria o respeitoso Aerópago a quo ter valorado e considerado de outra forma, o acervo probatório documental constante dos autos (máxime os documentos n.º 1; n.º 2; n.º 3 e n.º 4 juntos com a contestação.
C) Pelo que, a Recorrente, com o devido respeito, conclui não ter razão o respeitoso Tribunal a quo, que julgou num determinado sentido que perante a matéria de facto dada como assente, devidamente conjugada e concatenada com o acervo probatório documental constantes dos autos (entre outros, o doc. 1, 2, 3, 4 juntos com a contestação), não tem a devida correspondência com o modo como as normas que constituem o fundamento jurídico da decisão a quo, deveriam ter sido interpretadas e aplicadas.
D) Tudo assim, devidamente condimentado com o Princípio da Legalidade e o Princípio da Justiça que a todos os outros princípios do edifico legal Tributário abarca.
E) Para que, se pudesse aquilatar pela IMPROCEDÊNCIA DOS EMBARGOS aduzidos pela Recorrida, maxime pela inexistência da parte dos embargantes, de uma prática reiterada, pública, pacífica, e de boa fé, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
ACRESCE QUE,
F) Como as conclusões do recurso exercem uma importante função de delimitação do objeto daquele, devendo “corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo” - (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2017, p. 147),
G) A delimitação do objecto do recurso supra elencado, é ainda melhor explanado, explicitado e fundamentado do item 12º ao 43º das Alegações de Recurso que supra se aduziram (itens aqueles que por economia processual aqui se dão por expressa e integralmente vertidos) e das quais as presentes Conclusões são parte integrante.
H) Por conseguinte, salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo lavrou em erro de julgamento.
I) O sobredito “erro de julgamento” foi como que causa adequada para que fosse preconizada uma errada interpretação e aplicação do direito aos factos que constituem a vexata quaestio recorrida.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, e com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido total provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença proferida com as devidas consequências legais.
CONCOMITANTEMENTE,
Apela-se desde já à vossa sensibilidade e profundo saber, pois, se aplicar o Direito é um rotineiro ato da administração pública, fazer justiça é um ato místico de transcendente significado, o qual poderá desde já, de uma forma digna ser preconizado por V. as Ex.as, assim se fazendo a mais sã, serena, objectiva e acostumada
JUSTIÇA!»
A Recorrida apresentou contra-alegações, sem formular conclusões, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, devendo «o recurso de apelação interposto pela Recorrente improceder integralmente, por manifesta falta de fundamento».
O recurso da sentença foi admitido com subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso apresentado.
Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.
II – Fundamentação
Cumpre, pois, apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, as quais são delimitadas pelas conclusões das respetivas alegações, que fixam o objeto do recurso.
Assim, na falta de especificação no requerimento de interposição do recurso, nos termos do artigo 635/3 do Código de Processo Civil, deve-se entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao Recorrente. O objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (artigo 635/4 CPC). Assim, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões e devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.
Atento o exposto, e tendo presentes as conclusões de recurso apresentadas, importa decidir se a sentença padece de erro de julgamento, na seleção e interpretação dos factos e aplicação do direito.
II.1- Dos Factos
O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:
«1. Em 07.08.2010 foi penhorado o edifício descrito sob o nº 1… na Conservatória do Registo Predial de Albufeira e inscrito na matriz sob o artigo 8…, no âmbito do processo de execução fiscal nº 3255199801014021 e seus apensos, em que é executada “S… Lda”, com o NPC 5… (facto não controvertido);
2. O referido prédio urbano encontra-se registado como propriedade da executada S… Lda (facto não controvertido);
3. A executada S… Lda foi a loteadora e construtora da operação de loteamento denominada “Urbanização de São Rafael” realizada ao abrigo de alvará de loteamento emitido pela Câmara Municipal de Albufeira em 07 de Novembro de 1984 (Cfr. Alvará de loteamento junto aos autos como documento nº 5, constante de fls. 408 do processo físico);
4. No referido alvará de loteamento está autorizada a constituição de 45 lotes de terreno e prevista a cedência de parcelas destinadas a designados “equipamentos gerais” (perfazendo o total de 3835 m2) e a arruamentos, passeios e estacionamento (perfazendo 8966 m2) (Cfr. Alvará de loteamento junto aos autos como documento nº 5, constante de fls. 408 do processo físico);
5. O edifício penhorado situa-se na urbanização de São Rafael e foi destinado inicialmente ao funcionamento de um restaurante e de um bar (Cfr. Memória Justificativa e descritiva do projeto do restaurante constante de fls. 515 do processo físico, junta como documento 15);
6. Funcionou um restaurante no edifício penhorado, até ao início da década de 2000, que era aberto ao público em geral, e não apenas aos condóminos e hóspedes de São Rafael (Cfr. depoimento da testemunha J…);
7. Anexo ao edifício penhorado foi projectada, e existe, uma esplanada onde se situam as piscinas da urbanização de São Rafael, uma para adultos e outra para crianças, estas destinadas à utilização exclusiva dos condóminos e hóspedes da urbanização (Memória justificativa e descritiva; depoimento da testemunha F…);
8. A estação de tratamento de águas das piscinas da urbanização de São Rafael encontra-se integrada no edifício penhorado, localizando-se na cave, a qual serve ainda de arrecadação de material de apoio às piscinas da urbanização
(Cfr. Memória justificativa e descritiva; depoimento das testemunhas J... e F...);
9. O edifício penhorado compreende, no piso térreo, ainda as instalações sanitárias e balneários que servem de apoio à utilização das referidas piscinas (Cfr. Memória justificativa e descritiva; depoimento da testemunha J...);
10. Os proprietários de fracções inseridas na Urbanização de São Rafael, quando as adquiriram a esta, obrigaram-se ao pagamento de determinado montante destinado especificamente à manutenção dos espaços comuns e utilidades da urbanização, entre eles as piscinas (Cfr. depoimentos das testemunhas J...e F...; contratos de compra e venda das fracções constantes dos autos);
11. Em data não concretamente apurada, mas não posterior ao ano de 2004, a executada S… Lda deixou de se fazer presente no espaço da Urbanização, deixou de administrar os espaços e serviços comuns e de manter contacto com os proprietários (Cfr. Depoimentos das testemunhas E…, J… e F…)
12. Em 2004 foi criada uma Associação de Condóminos tendo em vista a administração do espaço comum da urbanização de São Rafael - a ACSR (Cfr. Estatutos da Associação a fls.316 e seguintes do processo físico; depoimento da testemunha F...);
13. Desde a sua constituição é a ACSR que garante a manutenção das zonas comuns utilidades da urbanização, financiando tal actividade com o valor pago anualmente por cada condómino para esse efeito, o qual é determinado, em cada ano, consoante orçamento anual da Associação aprovado em Assembleia Geral (Cfr. depoimentos das testemunhas F..., J… e F…)
14. No âmbito da administração que faz da urbanização a ACSR realizou obras no edifício penhorado, a saber: pintura do exterior; construção de um telheiro; divisão das salas internas para separar espaços (Cfr. depoimento das testemunhas J… e F... factura de fls. 505)
15. A ACSR tem assegurado concretamente, desde que assumiu a administração da urbanização, a recolha de lixo, a manutenção dos jardins e a manutenção da piscina e das instalações sanitárias que lhe servem de apoio (Cfr. depoimento da testemunha F…; facturas constantes, designadamente, de fls. 492, 493, 495 e 500 do processo físico, identificadas como documento 11 junto aos autos);
16. A água e a electricidade consumidas no edifício penhorado são pagas através do valor anual pago pelos condóminos à Associação (Cfr. depoimento da testemunha F...; facturas constantes, designadamente, de fls.506 a 514 do processo físico)
17. Em data não concretamente apurada compreendida nos anos de 2008 e 2009 a ACSR instalou o seu escritório no edifício penhorado, onde já não funcionava qualquer restaurante (Cfr. depoimento da testemunha F...);
18. Actualmente existem dentro do edifício penhorado, no andar onde antes funcionava o restaurante, uma zona de lazer e uma sala de leitura, as quais são utilizadas exclusivamente pelos condóminos da urbanização e pelos arrendatários das fracções que as arrendam aos condóminos (Cfr. depoimento da testemunha F...);
19. A zona das piscinas da urbanização de São Rafael é de acesso reservado aos condóminos e arrendatários destes, sendo o controlo da utilização do espaço feito através de uma password que é fornecida aos proprietários (Cfr. depoimento da testemunha F...)
20. A ACR realizou tentativas de pagar o IMI referente ao edifício penhorado, através da sua mandatária, tendo sido comunicado pelo Serviço de Finanças de Albufeira que não era possível emitir o documento para o efeito, uma vez que o edifício estava registado como propriedade de outra entidade (a S… Lda (depoimento da testemunha F...);
21. No ano de 2022 o bar da piscina, integrado no edifício penhorado, esteve a funcionar, tendo sido dado à exploração (Cfr. depoimento da testemunha F…).»
Quanto a factos não provados, na sentença exarou-se o seguinte:
«Não foram alegados factos que devam julgar-se não provados, com interesse para a decisão da acção.»
E quanto à motivação da decisão de facto, consignou-se:
«A convicção do Tribunal quanto aos factos julgados provados resulta dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos das testemunhas inquiridas, conforme vem indicado, especificamente, em cada ponto do probatório.
Os depoimentos de todas as testemunhas inquiridas foram achados credíveis para demonstrar os factos que com base neles de provaram em virtude da concordância entre os vários depoimentos e da concordância entre o teor dos depoimentos e os dados constantes da documentação junta aos autos; da riqueza de detalhes na exposição das respostas; da naturalidade e postura desapaixonada que mantiveram as testemunhas; da circunstância de se tratar, na maioria, de factos do conhecimento directo da testemunha que os reportou.»
II.2 Do Direito
Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedentes os embargos de terceiro deduzidos pela Associação de C…, em representação dos 217 condóminos da Urbanização de São Rafael, e determinou o levantamento da penhora ordenada no processo de execução fiscal que corre termos no Serviço de Finanças de Lisboa-10 sob o nº 3325519980101014021 e apensos, incidente sobre o prédio inscrito na matriz predial respetiva sob artigo 8…, destinado a restaurante e bar, sito no concelho de Albufeira, em S. Rafael, Sesmarias.
Nas conclusões das alegações de recurso a Fazenda Pública, ora Recorrente, imputa à sentença erro de julgamento de facto, fazendo referência aos documentos juntos com a contestação, mas desde já diremos que consideramos que formalmente não apresenta uma verdadeira e própria impugnação da matéria de facto que foi dada por provada na sentença, consubstanciando, sobretudo, razões de discordância com o decidido.
Com efeito, quando impugna a matéria de facto, a Recorrente tem de cumprir os ónus que sobre si impendem, sob pena de rejeição do recurso [artigo 640º, n.º 1, alíneas a) a c) e n.º 2, alínea a) do CPC, aplicável ex vi artigo 281º CPPT], cabendo, assim, à Recorrente especificar:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas quanto aos indicados pontos da matéria de facto.
No cumprimento destes ónus incumbe à Recorrente, identificar os factos que entende terem sido mal julgados: quer por terem sido dados como provados quando o não deveriam ter sido, quer os que foram desconsiderados e considera serem relevantes à decisão, com indicação dos meios de prova que suportam esta sua pretensão de alteração do probatório.
Contudo, no que concerne à decisão da matéria de facto, a mesma não deverá conter formulações genéricas, de direito ou conclusivas. Na seleção dos factos, e na decisão sobre a matéria de facto deve o Juiz acolher apenas o facto cru, despido de conceitos de direito e de conclusões, afastando, pois, conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos.
A ora Recorrente nas conclusões e alegações de recurso, apesar de indicar os meios de prova em que funda a sua discordância, ou que imporiam, a seu ver, decisão diferente, não enuncia a decisão que, no seu entender pretende aditar, complementar ou substituir, limitando-se a apresentar razões de divergência com o decidido na sentença, não requerendo, pois, qualquer alteração ou aditamento, seja por complementação, seja por substituição, apenas argui o erro de julgamento, o qual, nessa medida, será analisado infra em sede e momento próprios.
Em boa verdade, a crítica que faz à sentença é direcionada à valoração (ou falta dela) dada aos referidos documentos e não é facto controvertido que a posse que se arroga a Embargante e ora Recorrida é uma posse não titulada.
Ora, está precisamente em causa se a Embargante é uma mera detentora do prédio em causa ou se tem a posse do mesmo, posse não titulada e que se presume de má-fé (artigo 1260/2 do Código Civil).
Todavia, quer nas alegações quer nas conclusões das alegações de recurso a Fazenda Pública defende não ter existido ato de transmissão da posse, mas um mero uso do prédio por parte da Embargante e ora Recorrida.
Assim, a crítica que é feita à sentença não se dirige tanto aos factos que foram dados por assentes, mas ao juízo conclusivo que deles se retirou.
Em suma, apesar de ser feita a indicação dos meios de prova em que funda a sua discordância, a crítica dirige-se à valoração que é feita, não se tratando, pois, de uma verdadeira e própria impugnação da matéria de facto assente.
Prosseguindo:
Como é consabido, no processo tributário, os embargos de terceiro constituem incidente no processo de execução fiscal [artigo 166/1.a) CPPT].
Diz o artigo 237/1 CPPT, sob a epígrafe função do incidente dos embargos de terceiro (…):
1 - Quando o arresto, a penhora ou qualquer outro ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens ofender a posse ou qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular um terceiro, pode este fazê-lo valer por meio de embargos de terceiro.
Os embargos de terceiro são, pois, o meio processual apropriado para defender os direitos do possuidor ou detentor de qualquer outro direito incompatível pré-existente com a penhora.
Como enunciamos supra, no caso em análise está em causa se a Embargante e ora Recorrida é, ou não, possuidora do prédio em causa.
Não vem posta em causa a qualidade de terceiro da Embargante, nem a tempestividade da sua dedução, pelo que não nos deteremos sobre estes temas, tendo a sentença recorrida transitado em julgado nesta parte.
Os embargos de terceiro são, pois, um meio de defesa da posse legítima contra ato público de apreensão de bens que não devam responder pelas dívidas exequendas.
Pode dizer-se que a penhora não retira a propriedade dos bens (a qual só se operará pelos futuros atos executivos), gerando tão só a respetiva indisponibilidade material já que priva o possuidor do relativo poder de detenção e fruição (1-Cf. CASTRO, Anselmo de, ACÇÃO EXECUTIVA SINGULAR, COMUM E ESPECIAL, 1970, pág. 150 ss.).
Como decorre do artigo 1251º do Código Civil (CC), a posse integra um corpus ou elemento objetivo (um poder de facto sobre a coisa no sentido da sua submissão à vontade do sujeito para dela usar, fruir ou dispor como bem entender) e um animus ou elemento subjetivo (a intenção por parte do sujeito de, ao exercer tal poder de facto, atuar como titular do correspondente direito real de gozo).
A utilização direta da coisa há de ainda revestir-se de um carácter duradouro e público.
Em contraponto, o exercício de um poder de facto sobre a coisa, mas desprovido da intenção de agir como beneficiário do direito (animus) implica que será havido como mero detentor ou possuidor precário [artigo 1253º alínea a) Código Civil].
Sobre as formas de aquisição da posse dispõe o artigo 1263.º CC, que a posse se adquire pela prática reiterada e pública dos atos materiais correspondentes ao exercício do direito, a tradição material ou simbólica da coisa, feita pelo antigo possuidor, o constituto possessório e a inversão do título da posse.
Ora, no caso em análise, não é facto controvertido que naquele espaço a Embargante e ora Recorrida instalou um escritório e uma sala para uso comum pelos condóminos.
Tais factos, porém, além do exercício de poderes de facto sobre a coisa não comprovam a aquisição da posse por si só, sendo certo que a crítica feita à sentença se prende sim, com a falta de prova sobre a intenção de atuar como se fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro direito real de gozo.
Vejamos o que se decidiu na sentença, no segmento que aqui interessa:
(…)
Da publicidade da prática reiterada de actos conformes ao exercício do direito
Para que exista posse merecedora da tutela do Direito é necessário que a prática reiterada com que se adquire a posse seja pública (Cfr. artº 1263º do CC).
Define o artº 1262º desse diploma que posse pública é que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados.
Não consta – não vem alegado nem se prova – que o uso, fruição e administração do edifício penhorado e das piscinas que estão na sua dependência por parte dos proprietários das fracções inseridas na urbanização de São Rafael tenham sido por algum modo ocultados por parte destes, sendo manifesto e susceptível de constatação por parte da generalidade das pessoas, traduzindo-se em actos visíveis (as obras, a continuidade do funcionamento da piscina, a sua utilização), devendo, por isso, considerar-se verificado o requisito da publicidade.
Do carácter pacífico e de boa-fé da posse exercida pelos embargantes
Nos termos do artº 1260º nº 1 do CC, A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem.
No caso presente, o direito de propriedade sobre o edifício penhorado encontra-se registado em nome da executada S… Lda (Cfr. facto provado 2).
Tal facto, porém, não obsta, no presente caso, ao reconhecimento do carácter de boa-fé da posse do edifício de penhorado, atendendo a que se constituiu uma situação de facto que justifica, pelo menos, a razoabilidade da dúvida a acerca da existência e da titularidade do direito sobre tal edifício, consubstanciando-se tal situação na circunstância de a entidade loteadora da urbanização - a S… Lda., em nome da qual se encontra registado o edifício, e que procedia à sua manutenção e gestão, tal como à manutenção e gestão de todos os espaços e serviços comuns da urbanização – ter deixado de se apresentar, fisicamente, no espaço da urbanização, durante longo período de tempo, não tendo tornado a fazer-se presente até à data da propositura da acção, e tendo cessado a comunicação com os condóminos e a actividade de gestão manutenção que costumava desempenhar (Cfr. facto provado 11); acompanhada das circunstâncias de o edifício penhorado se encontrar inserido no espaço da urbanização, estar indissociavelmente ligado à zona das piscinas que constituem espaço comum da urbanização e de ter servido, mesmo enquanto ainda era gerido pela entidade proprietária, como utilidade da própria urbanização (haja em vista, além, da infra-estrutura de tratamento de águas instalada na cave, o bar da piscina, que funcionava no edifício, e as instalações sanitárias que o mesmo integra, que são apoio da utilização das piscinas).
De facto, as circunstâncias descritas permitem razoavelmente a suposição, por parte dos proprietários das fracções situadas na urbanização - que as adquiriram também em função dos espaços e utilidades comuns nesta compreendidas - que continuaria a assistir-lhes o direito de utilização desses espaços e utilidades comuns, bem como o direito de realizarem os actos materiais necessários a essa utilização.
Sublinha-se que o edifício em causa está fisicamente integrado no espaço da urbanização, a qual compreende zonas que são compropriedade de todos os condóminos; e que o mesmo foi abandonado pela proprietária, que não voltou a fazer-se aí presente nem a praticar em relação ao edifício quaisquer actos indiciadores do direito de propriedade, pelo menos desde 2004 até ao presente. Tal situação é suficiente para permitir a razoabilidade da dúvida, por parte dos condóminos, acerca da titularidade do direito sobre o edifício em causa.
Pelo exposto, deve concluir-se ser de boa-fé a posse exercida pelos embargantes.
Nos termos do artº 1621º nº 1 do CC Posse pacífica é a que foi adquirida sem violência e, nos termos do nº 2 desse artigo, considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coacção física, ou de coacção moral nos termos do artigo 255.º
Resulta da factualidade provada que a posse exercida não tem origem em qualquer acto violento de coacção física ou moral, mas sim na autoorganização dos condóminos - face ao abandono da gestão dos espaços comuns da urbanização, compreendendo as piscinas e o edifício penhorado, por parte da loteadora (S… Lda) - para assegurar a continuidade da manutenção e utilização desses espaços e serviços comuns.
Pelo que dúvidas não há de que a posse há-se ser considerada, também pacífica.
Em face de todo o exposto, resta concluir que tem sido exercida, pelo menos desde 2004, e que merecer tutela, a posse do edifício penhorado, por parte dos embargantes, proprietários das fracções autónomas inseridas na urbanização de São Rafael que são representados pela ACSR, razão pela qual devem os Embargos ser julgados procedentes, e ordenar-se o levantamento da penhora embargada.
Entendemos, todavia, que da matéria de facto dada como provada não se pode presumir, sem mais, que os condóminos atuaram como donos da coisa, podendo da mesma inferir-se igualmente que os condóminos usam o espaço por mera tolerância (ou inércia) do proprietário como tal inscrito no registo predial.
Ora, o mero exercício de poderes de facto sobre a coisa, mas desprovido da intenção de agir como beneficiário do direito (animus) implica que este será havido como mero detentor ou possuidor precário [cf. a já citada alínea a) do artigo 1253º, do CC].
Da matéria dada como provada não se retira, sem mais, que o condomínio/Embargante ora Recorrido tenha atuado com intenção de haver a coisa para si, mas como mero administrador em nome de outrem e por forma a permitir a utilização pelos condóminos dos espaços comuns que com ela confluem. Dela apenas resulta a prática de atos materiais sobre a coisa, não a intenção de agir como dono ou titular de outro direito real de gozo.
Sendo certo que, contrariamente ao decidido, a posse não titulada se presume de má-fé, não tendo sido feita qualquer prova no sentido de que, caso tivesse adquirido a posse, ignorava estar a lesar o direito de outrem, no caso o direito do proprietário, proprietário esse conhecido que é conhecido pelo Embargante.
O simples facto de não ter havido violência, e ser pacífica, não é suficiente para caraterizar uma posse como sendo de boa fé, tinha que estar convencido que a coisa era sua e que não lesava ou prejudicava o direito de outrem.
Assim, em face da prova produzida, tem, desde já, de ser dada razão à ora Recorrente. Com efeito não foi feita prova da posse por parte da Embargante e ora Recorrida, pelo que terá, pois, que ser havida como mera detentora ou possuidora precária da coisa.
A sentença recorrida, que concluiu pela procedência dos embargos não se pode, pois, manter.
Tem, pois, razão a Recorrente, procedendo as conclusões de recurso.
Relativamente à condenação em custas importa considerar que nos termos dos artigos 527/1 Código de Processo Civil (nCPC): a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa aplicável ex vi artigo 2.e) CPPT.
Assim, atento o princípio da causalidade, consagrado no artigo 524/1, do CPC, aplicável por força do artigo 2º, alínea e), do CPPT, as custas ficam a cargo da Embargante e ora Recorrida, que lhe deu causa.
Sumário/Conclusões:
I - Os embargos de terceiro são um meio de defesa da posse legítima contra ato público de apreensão de bens que não devam responder pelas dívidas exequendas.
II - Como decorre do artigo 1251º do Código Civil (CC), a posse integra um corpus ou elemento objetivo (um poder de facto sobre a coisa no sentido da sua submissão à vontade do sujeito para dela usar, fruir ou dispor como bem entender) e um animus ou elemento subjetivo (a intenção por parte do sujeito de, ao exercer tal poder de facto, atuar como titular do correspondente direito real de gozo).
III - Decisão
Termos em que, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar os embargos improcedentes.
Custas pela Recorrida, que decaiu
Lisboa, 3 de abril de 2025.
Susana Barreto
Luisa Soares
Isabel Vaz Fernandes |