Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:425/12.9BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:07/03/2025
Relator:LUÍS BORGES FREITAS
Descritores:OFICIAIS DOS REGISTOS E DO NOTARIADO
SUBSÍDIO DE FIXAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Sumário:Por força do disposto no artigo 51.º/3 do Decreto-Lei n.º 87/2001, de 17 de março, o escriturário da Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada mantém o direito ao subsídio de fixação no período em que esteve destacado no Continente, exercendo funções no Departamento do Cartão de Cidadão.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Social
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul:


I
O SINDICATO DOS TRABALHADORES DOS REGISTOS E DO NOTARIADO intentou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, em representação do seu associado J........, ação administrativa especial contra o INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO, I.P., pedindo a anulação do despacho de 15.9.2011 do Presidente do referido instituto, através do qual determinou a reposição das quantias pagas a título de subsídio de fixação, bem como a condenação da Entidade Demandada no pagamento ao seu associado do valor devido a título de subsídio de fixação nos meses de outubro a dezembro de 2011.
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Por sentença de 30.1.2018 o tribunal a quo julgou a ação totalmente procedente.
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Inconformada, a Entidade Demandada interpôs recurso dessa decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:



1. Ao julgar procedente a presente ação, o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa incorre em erro de julgamento dos pressupostos de direito, porquanto, faz uma errada interpretação e aplicação do direito ao caso em apreço.
2. A questão subjacente à ação sub judice reside em saber se o ato impugnado, nomeadamente o despacho do Sr. Presidente do Instituto dos Registos e do Notariado, IP, proferido em 15/09/2011, que decidiu pela reposição do subsídio de fixação percecionado pelo A. entre 2008 e 2011, bem como a consequente condenação do R. no pagamento ao A. do valor devido a título de subsídio de fixação nos meses de outubro a dezembro de 2011, viola a lei, nomeadamente o artigo 51.°/3 do Decreto-Lei n.° 87/2001.
3. Para a cabal apreciação dessa questão, impunha-se ao Tribunal a quo perscrutar não só o elemento gramatical dos preceitos aplicáveis, bem como, outrossim, os elementos de ordem sistemática, histórica e racional ou teleológica que devem, necessariamente, estar presentes na atividade interpretativa.
4. A ratio subjacente à estatuição do n.° 3 do artigo 51.° do Decreto-Lei n.° 87/2001, de 17/03 (repristinado pelo artigo 11.° do Decreto-Lei n.° 122/2009), reside na circunstância de - contrariamente ao que sucede nos serviços de registo, nos serviços centrais do IRN, IP não haver lugar à arrecadação de qualquer receita que depois deva ser distribuída pelos trabalhadores em conformidade com o disposto nos artigos 61° e 63.° do Decreto-Lei n.° 519-F2/79, de 29/12, com o artigo 137.° do Decreto-Regulamentar 55/80 de 08/10 conjugados com a Portaria n.° 940/99, de 27/10; nem, ademais, a cobrança de quaisquer montantes a título de emolumentos pessoais.
5. Pretender que - como incentivo ao exercício de funções fora de um serviço de registo (ou se quisermos ao não exercício efetivo de funções num serviço de registo), i. é, nos serviços centrais do IRN, IP- o trabalhador possa manter direitos que tinham, precisamente, como escopo, o incentivo ao exercício efetivo de funções num concreto e determinado serviço de registo, in caso, aqueles que se localizem nas regiões autónomas, representa, logicamente um absurdo e extrapola manifestamente a intenção do legislador.
6. Segundo o estatuído no artigo 88.° n.° 1 do Decreto-Lei n.° 343/99 de 26/08, no artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 66/88, de 01/03 e no artigo 73.° n.ºs 4 e 5 da LVCR, o direito ao abono do subsídio de fixação exige a prestação efetiva de trabalho.
7. Por força da conjugação do disposto no artigo 2.° do Decreto-Lei n.° 66/88, de 01/03, com o Decreto-Lei n.° 343/99 de 26/08 e com a LVCR, importa concluir que o abono do subsídio de fixação ao recorrido, só é devido se, e nos casos em que, este preste, de facto, a sua atividade no posto de trabalho localizado na Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada.
8. Encontrando-se o recorrido em exercício de funções noutro local (em destacamento ou em regime de mobilidade na categoria), que não um serviço de registo localizado na Região Autónoma dos Açores, não poderá beneficiar da atribuição do subsídio de fixação, porquanto nessas circunstâncias não se encontram reunidos os pressupostos de que a lei faz depender a possibilidade de atribuição de tal subsídio.

Nestes termos, e nos demais de Direito, deve revogar-se a douta sentença recorrida, por incorrer em erro de julgamento dos pressupostos de direito e substituir-se tal decisão por uma outra que julgue absolutamente improcedente a ação.
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O Autor apresentou contra-alegações, defendendo a improcedência do recurso.
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Com dispensa de vistos, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos Juízes Desembargadores adjuntos, vem o processo à conferência para julgamento.


II
Sabendo-se que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do apelante, a questão que vem submetida à apreciação deste tribunal de apelação consiste em determinar se a sentença recorrida errou ao julgar que o Recorrido deveria manter o direito à perceção do subsídio de fixação no período em que exerceu funções no Departamento do Cartão do Cidadão.

III
A matéria de facto constante da sentença recorrida – e que não foi impugnada - é a seguinte:

A) J........, associado do Sindicato dos Trabalhadores dos Registos e Notariado, integra a categoria de escriturário e pertence ao mapa de pessoal da Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada, desde 6 de Dezembro de 2004.
B) Em 03/06/2008 foi proferida a informação CC/051/03.06.2008, com o título: “Cartão de Cidadão – Ciclo de Vida do Cartão de Cidadão – Apoio ao DCC – Destacamentos”, na qual em síntese, era proposto o destacamento de J........, para reforço da equipa de trabalho do Departamento do Cartão do Cidadão (DCC), nomeadamente, na tarefa de back office, no período de 5 a 13 de Junho de 2008.
C) Em 05/06/2008 foi proferido despacho do Sr. Presidente do IRN, IP, no qual se determinou o cumprimento do proposto na informação CC/051/03.06.2008.
D) Em 17/07/2008 foi elaborada a informação CC/066/17.07.2008, com o título: “Cartão de Cidadão – Ciclo de Vida do Cartão de Cidadão – Apoio ao DCC – Destacamentos”, na qual em síntese, era proposto o destacamento de J........, para reforço da equipa de trabalho do Departamento do Cartão do Cidadão (DCC), no período de 14 de Julho a 1 de Agosto de 2008.
E) Em 17/07/2008 foi proferido despacho do Sr. Presidente do IRN, IP, no qual se determinou o cumprimento do proposto na informação CC/066/17.07.2008.
F) Em 23/09/2008 foi elaborada a informação CC/093/23.09.2008, com o título: “Cartão de Cidadão – Ciclo de Vida do Cartão de Cidadão – Apoio ao DCC – Destacamentos”, na qual em síntese, era proposto o destacamento de J........, para reforço da equipa de trabalho do Departamento do Cartão do Cidadão (DCC), desde 18 de Setembro de 2008, pelo período de 3 meses.
G) Em 12/11/2008 foi proferido despacho do Sr. Presidente do IRN, IP, no qual se determinou o cumprimento do proposto na informação CC/093/23.09.2008.
H) Em 29/12/2008 foi proferida a informação CC/124/29.12.2008, com o título: “Cartão de Cidadão – Ciclo de Vida do Cartão de Cidadão – Apoio ao DCC – Destacamentos”, na qual em síntese, era proposto o destacamento de J........, para reforço da equipa de trabalho do Departamento do Cartão do Cidadão (DCC), com início em 29 de Dezembro de 2008.
I) Em 29/12/2008 foi proferido despacho do Sr. Presidente do IRN, IP, no qual se determinou o cumprimento do proposto na informação CC/124/29.12.2008, tendo o referido trabalhador estado no DCC desde 29 de Dezembro de 2008 e por um período de três meses.
J) Em 27/03/2009 foi proferida a informação CC/032/27.03.2009, com o título: “Cartão de Cidadão – SI Ciclo de Vida do Cartão de Cidadão – Apoio ao DCC – Mobilidade Interna na Categoria”, na qual em síntese, era proposto para reforço da equipa de trabalho do Departamento do Cartão do Cidadão (DCC), a modalidade interna na categoria de J........, desde 18 de Setembro de 2008, pelo período de 6 meses.
K) Em 27/03/2009 foi proferido despacho do Sr. Presidente do IRN, IP, no qual se determinou o cumprimento do proposto na informação CC/032/27.03.2009, tendo o mesmo despacho sido objecto de rectificação por despacho de 28.12.2010, exarado na informação CC/094/28.12.2010, tendo o referido trabalhador estado em mobilidade interna desde o dia 30 de Março a 28 de Junho e de 13 de Julho a 30 de Setembro de 2009.
L) Em 28/09/2009 foi proferida a informação CC/111/28.09.2009, com o título: “Cartão de Cidadão – Ciclo de Vida do Cartão de Cidadão – Apoio ao DCC – Mobilidade Interna na Categoria”, na qual em síntese, era proposto o destacamento de J........, para reforço da equipa de trabalho do Departamento do Cartão do Cidadão (DCC), com início em 01 de Outubro, até 31 de Dezembro de 2009.
M) Em 30/09/2009 foi proferido despacho do Sr. Presidente do IRN, IP, no qual se determinou o cumprimento do proposto na informação CC/111/28.09.2009, tendo o referido trabalhador estado no DCC entre 1 de Outubro e 31 de Dezembro de 2009.
N) No ano de 2010, por despacho de 16.12.2009, exarado sobre a Informação n° CC/161/15.12.2009, J........ manteve-se no DCC, em regime de mobilidade desde 1 de Janeiro de 2010, por um período de três meses, tendo a mobilidade sido renovada a partir de 1 de Abril e por um período também de três meses, por despacho de 18.03.2010, exarado na Informação n° CC/016/02.03.2010.
O) Por despacho do Sr. Presidente do IRN, IP, de 16.06.2010 exarado na Informação CC/032/16.06.2010, foi determinada a prorrogação da mobilidade de J........, para o mesmo Departamento, a partir do dia 01 de Julho de 2010 e por mais três meses.
P) Por despacho do Sr. Presidente do IRN, IP, exarado na Informação CC/54/16.09.2010, foi determinada a prorrogação da mobilidade interna do trabalhador junto do DCC até 31 de Dezembro, despacho este que foi objeto de retificação, passando a mobilidade a ser prorrogada não ininterruptamente até 31 de Dezembro, mas a partir do dia 10 de Novembro de 2010, até 31 de Dezembro de 2010, por despacho exarado na Informação CC/063/11.10.2010.
Q) Por despacho exarado na Informação na CC/088/15.12.2010, pelo Sr. Presidente do IRN, IP, o trabalhador J........ esteve em regime de mobilidade interna no DCC, a partir de 10 de Janeiro e por um período de três meses, mobilidade esta prorrogada por despacho de 04/04/2011, exarado na Informação CC/022/24.03.2011, de 11 de Abril até 31 de Dezembro de 2011.
R) Em 08/08/2011 foi elaborada a informação n° 582/2011-SARH, cujo teor se considera aqui integralmente reproduzido, a qual mereceu concordância do Presidente do IRN, IP por despacho de 09/08/2011, e na qual se concluiu, nomeadamente, que:
I – Assim, em face ao que antecede, entende-se que o escriturário J........, não tem direito, pelo mero facto de pertencer à Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada e exercer funções, em regime de mobilidade interna, no Departamento do Cartão de Cidadão em Lisboa, ao subsídio de fixação previsto no Decreto-lei 66/88, de 1 de Março;
II – Com fundamento na argumentação aqui expendida, e no pressuposto que a mesma é ratificada superiormente, sugere-se que sejam retiradas todas as consequências, nomeadamente quanto à suspensão do abono do subsídio de fixação, e quanto à revogação dos actos de processamento do subsídio de fixação que foram pagos ao trabalhador desde o início do destacamento (13 de Junho de 2008), depois convolado em mobilidade interna, impondo-se, desde a mesma data, a reposição nos termos da Lei, pelo trabalhador, dos montantes recebidos a título do referido subsídio, nos termos do artigo 36.º do Decreto-Lei n.º 155/92, de 28 de Julho, que estabelece o Regime de Administração Financeira do Estado”
III – Tendo em conta o teor da informação, que a ser ratificada superiormente, conduz a uma decisão desfavorável ao trabalhador, propõe-se que a mesma lhe seja notificada ao abrigo do artigo 100.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), para que, querendo, possa no prazo de 10 dias úteis, ser ouvido sobre a questão em apreço, antes de ser tomada a decisão final.
S) Em 15/09/2011, pelo Sr. Presidente do IRN, IP, foi proferida decisão final no mesmo sentido do projecto de decisão identificado na al. anterior.
T) Em 20/09/2011 o associado autor apresentou requerimento onde solicitava que não fosse emitida a guia de reposição dos montantes pagos a título de subsídio de subsídio de fixação, que viessem a ser apurados.
U) Em 29/09/2011 foi proferido despacho pelo Sr. Presidente do IRN, IP, por meio do qual foi determinada a suspensão da execução da decisão de reposição das verbas referentes ao subsídio de fixação, mais determinando a solicitação de um parecer à DGAEP sobre o direito à atribuição do subsídio de fixação previsto no Decreto-lei n.º 66/88.
V) Em 23/11/2011, o associado do autor tomou conhecimento do parecer emitido pela DGAEP e da emissão e remessa das guias de reposição ao Serviço de Finanças de Ponta Delgada.


IV
1. O artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 66/88, de 1 de março, estabelecia que «[o]s oficiais dos registos e do notariado em serviço nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira têm direito à atribuição de um subsídio de natureza e montante iguais ao atribuído, nas mesmas circunstâncias, aos oficiais de justiça».

2. Com interesse para a melhor compreensão da ratio do subsídio em causa, recupera-se o teor do seu preâmbulo: «O preenchimento de lugares de conservador, notário e oficial dos registos e do notariado nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira tem-se mostrado extremamente difícil, por falta de interessados na colocação em tais vagas, o que ocasiona graves perturbações aos serviços. Com vista a minorar as dificuldades já então sentidas, o artigo 81.º do Decreto-Lei n.º 519-F2/79, de 29 de Dezembro, e os artigos 1.º a 3.º do Decreto-Lei n.º 171/81, de 24 de Junho, adoptaram alguns modestos incentivos, que, no entanto, não se têm mostrado suficientes. A tal não será também estranho o facto de o primeiro daqueles preceitos legais só ser aplicável a conservadores e notários e, mesmo quanto a estes, apenas aos colocados em repartições de 3.ª classe. Ora os incentivos à colocação nas regiões autónomas devem abranger todos os conservadores e notários independentemente da classe do lugar, e, bem assim, os oficiais dos registos e do notariado. Realmente, para estes não foram ainda criados quaisquer incentivos. Tratando-se de situação paralela à dos magistrados e oficiais de justiça, adopta-se, assim, uma solução análoga».

3. Portanto, à luz da letra da norma em causa - oficiais dos registos e do notariado em serviço nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira – e da razão de ser ali dada a conhecer, sem dificuldade de maior poderia ser encontrada a solução relativa às situações em que o serviço passa a ser desempenhado no Continente. Nesse caso cessaria o direito à perceção do subsídio de fixação.

4. No entanto, o Decreto-Lei n.º 87/2001, de 17 de março, continha uma norma, constante do artigo 51.º/3, com especial relevo para o caso dos autos, norma essa que foi repristinada, após a revogação do Decreto-Lei n.º 87/2001, pelo artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 20/2008, de 31 de janeiro, tendo os seus efeitos sido mantidos pelo artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 122/2009, de 21 de maio. A norma tinha o seguinte teor:

«Os funcionários dos serviços externos que desempenhem funções em comissão de serviço ou em regime de requisição ou de destacamento nos órgãos ou serviços da DGRN conservam os direitos inerentes ao quadro de origem como se nele exercessem funções».

5. O passo seguinte traduzir-se-á, necessariamente, em determinar se o subsídio de fixação integra o conjunto de direitos inerentes ao quadro de origem. Em caso de resposta positiva mostrar-se-á irrelevante o apelo ao regime constante do artigo 73.º da Lei n.º 12-A/2008, de 27 de fevereiro, em especial o seu n.º 5, nos termos do qual «[o]s suplementos remuneratórios são apenas devidos enquanto haja exercício efectivo de funções».

6. Esta norma – que o Recorrente tanto evidenciou, por diversos prismas que em nenhum momento estiveram em causa – não revogou o citado artigo 51.º/3 do Decreto-Lei n.º 87/2001, de 17 de março. O que, de resto, o próprio Recorrente não coloca em causa, pois certamente que não deixou de ter presente o disposto no artigo 7.º/3 do Código Civil, nos termos do qual «[a] lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador».

7. Concentremo-nos, portanto, no artigo 51.º/3 do Decreto-Lei n.º 87/2001, de 17 de março, cujo teor se recorda:

«Os funcionários dos serviços externos que desempenhem funções em comissão de serviço ou em regime de requisição ou de destacamento nos órgãos ou serviços da DGRN conservam os direitos inerentes ao quadro de origem como se nele exercessem funções».

8. Relembre-se, então, que o artigo 9.º do Código Civil, sob a epígrafe Interpretação da lei, estabelece o seguinte (segue-se, nesta parte, o discurso constante do acórdão, do ora relator, exarado no processo n.º 2214/13.4BELSB):

«1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».

9. Da disposição legal transcrita – que, como se sabe, consagra princípios desenvolvidos pela doutrina ao longo dos tempos – resulta que o texto da lei é, por um lado, o ponto de partida da interpretação, cabendo-lhe ainda, como refere Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1993, p. 182), «uma função negativa: a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer “correspondência” ou ressonância nas palavras da lei». Ou seja, assume-se como ponto de partida e como limite de interpretação. No entanto, e sem prejuízo desse limite, o referido artigo 9.º é claro ao determinar que a «interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo», devendo o intérprete socorrer-se, para tal, dos elementos sistemático, histórico e teleológico.

10. Ora, na fixação do sentido da lei o intérprete não pode, desde logo, procurar o sentido que julga – ele próprio - mais adequado, ponderando se o mesmo é admitido pela letra da lei. Não pode porque os vários sentidos que, em abstrato, poderão ser admitidos não partem em situação de igualdade. A primazia – inicial, bem entendido – tem de ser dada àquele que corresponde à letra da lei, sob pena de o intérprete correr o risco de sobrepor a sua própria solução – e ainda que esta tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal – à que foi efetivamente pretendida pelo legislador. O que significa, então, que o intérprete tem, desde logo, de aferir se os elementos racionais de interpretação admitem o sentido que resulta da literalidade da lei. Porque se o admitirem o respeito pelo pensamento legislativo dificilmente permitirá a opção por outras vias, ainda que as mesmas tenham na lei um mínimo de correspondência verbal. É o que resulta da conjugação dos três números que compõem o artigo 9.º do Código Civil, e que traduz igualmente uma exigência de segurança jurídica para os destinatários das normas.

11. Assim sendo, há que indagar se existe substrato racional para a solução que, na sua literalidade, não exclui o subsídio de fixação da referência genérica aos direitos inerentes ao quadro de origem. E julga-se que há, nos termos assim explicados pela sentença recorrida:

«Por último, refira-se que a própria ratio legis do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 66/88 se coaduna com a previsão legal do artigo 51.º, n.º3 do Decreto-Lei n.º 87/2001.
Conforme se começou por explanar, a razão de ser da criação do suplemento de fixação atribuído aos oficiais do registo que exercessem funções na Região Autónoma dos Açores prendia-se com a necessidade de incentivar à ocupação dos lugares em causa, tarefa que, conforme resulta do preâmbulo do diploma resultava de difícil concretização, em face do carácter periférico da própria região. Visou pois a iniciativa legislativa a atracção de trabalhadores para o exercício daquelas concretas funções, procurando desse modo atrair trabalhadores dispostos a transferir a sua vida para o arquipélago em causa, o que englobará para além da vida profissional, a vida pessoal e familiar.
O exercício de funções em regime de mobilidade fora do arquipélago, porque constitui uma realidade transitória, não importa uma transferência da esfera envolvente do trabalhador para fora do local do seu quadro de origem. Porque assim é, mantendo-se a ligação do trabalhador ao posto de origem, ainda que o mesmo se encontre transitoriamente no exercício das suas funções fora da Região, mantém-se actual a razão de ser da criação do subsídio em causa, a compensação para o trabalhador como forma de deslocação para uma região periférica como forma de atracção.
O que se acabou de dizer é bem exemplificado no caso em análise nos autos, onde os sucessivos destacamentos ou colocações em mobilidade interna, foram intervalados por períodos em que se verificou o regresso do trabalhador ao posto de origem.
Desse modo, a colocação de um trabalhador em mobilidade interna não tem como consequência inevitável que o mesmo mude toda a sua esfera envolvente para o local para onde for temporariamente deslocado, sendo expectável que, encontrando-se vinculado a um lugar do quadro, aí continue uma parte da sua vida.
Mostrando-se assim um trabalhador em mobilidade interna e por isso transitoriamente fora do seu quadro de origem, não se mostra a ratio legis do artigo 2.º do Decreto-Lei 66/88 contrária à previsão do referido artigo 51.º, n.º 3 do Decreto-Lei 87/2001».

12. Portanto, demonstrada que foi, pela sentença recorrida, a racionalidade da solução que resulta da literalidade do preceito contido no artigo 51.º/3 do Decreto-Lei n.º 87/2001, de 17 de março, não há que sobrepor-lhe a explicação, ainda que igualmente racional, de uma solução que corresponde, afinal, a uma interpretação restritiva dessa norma. Porque é disso que se trata, já que, onde o legislador estabeleceu que conservam os direitos inerentes ao quadro de origem o Recorrente pretende que se leia conservam os direitos inerentes ao quadro de origem, quando em exercício de funções nos serviços centrais do IRN, I.P. (vd. artigo 48.º das alegações de recurso).

13. De resto, é compreensível, em geral, que o legislador possa dizer mais do que efetivamente pretende. Ou o inverso, evidentemente. Na análise dessas hipóteses, que conduzem à interpretação restritiva – no primeiro caso – ou à interpretação extensiva – no segundo -, mostra-se sempre relevante efetuar um juízo de compreensibilidade do erro legislativo em causa. Ou seja, situações existirão em que, com alguma facilidade, é apreendida a causa da falha legislativa. Ora, esse juízo, integrante do elemento racional da interpretação, também é relevante naquela ponderação.

14. Sabendo nós que «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (artigo 9.º/3 do Código Civil), a interpretação defendida pelo Recorrente tem como pressuposto um legislador especialmente descuidado.

15. Na verdade, se – como defende o Recorrente – o legislador pretendia contemplar apenas uma única situação – exercício de funções nos serviços centrais do IRN, I.P. – só um manifesto grau de inépcia legislativa poderia explicar a redação usada. O que, naturalmente, não é de presumir.

16. De qualquer modo, a leitura restritiva do Recorrido não se fica pela limitação do artigo 51.º/3 do Decreto-Lei n.º 87/2001, de 17 de março, aos seus serviços centrais. Mesmo quanto a estes exclui o subsídio de fixação. Interpretação que não se acolhe.

17. Como o próprio Recorrente afirmava, «[é] verdade que não está totalmente posta de parte a possibilidade de um suplemento cujo abonamento implica o exercício efetivo de funções ser auferido mesmo sem o desempenho dessas funções. Mas, para isso, seria necessário que o legislador dispusesse nesse sentido, ou seja, previsse, de forma imediata ou mediata, a existência de situações legalmente equiparadas ao exercício efetivo de funções». É o caso da norma em apreço, ao estabelecer que «[o]s funcionários dos serviços externos que desempenhem funções em comissão de serviço ou em regime de requisição ou de destacamento nos órgãos ou serviços da DGRN conservam os direitos inerentes ao quadro de origem como se nele exercessem funções» (destaque e sublinhado nossos, evidentemente).


V
Em face do exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Custas a cargo do Recorrente (artigo 527.º/1 e 2 do Código de Processo Civil).


Lisboa, 3 de julho de 2025.

Luís Borges Freitas (relator)
Maria Helena Filipe
Teresa Caiado