Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 142/20.6BEALM-A |
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Secção: | CA |
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Data do Acordão: | 07/03/2025 |
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Relator: | MARCELO MENDONÇA - RELATOR POR VENCIMENTO |
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Descritores: | ARRENDAMENTO APOIADO; PROCESSO DE EXECUÇÃO; TÍTULO EXECUTIVO; INTERESSE EM AGIR |
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Sumário: | I - Nas situações do arrendamento apoiado, em que a entidade pública-senhorio já é detentora de uma sentença transitada em julgado, que determinou, na competente acção declarativa, a cessação do contrato de arrendamento apoiado por resolução, que condenou a ora Recorrida a entregar o locado livre e devoluto de pessoas e bens, e que ainda condenou a ora Recorrida no pagamento das rendas vencidas e vincendas, incluindo os correspondentes juros de mora, não é de admitir que, no processo de execução deduzido com base em tal título executivo, se vede o acesso a tal meio processual com o argumento de que a tais entidades falta o pressuposto processual do interesse em agir, porquanto, tal entendimento é contraditório com o princípio de acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva (no caso concreto, restrito apenas à protecção que decorre para a vertente do processo executivo), tal como delineado no artigo 20.º da CRP, e contrário ainda ao disposto nos artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 4, e 158.º do CPTA. II - O argumento da autotutela declarativa e executiva de tais entidades, alicerçado no artigo 28.º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, e no artigo 179.º, n.ºs 1 e 2, do CPA, com vista a sustentar a falta do interesse em agir, ainda que válido e utilizável para a acção declarativa, quando os pedidos se consubstanciem no acima elencado, já não o é para a fase executiva, em que a entidade pública-senhorio, bem ou mal, está já na posse de um título executivo obrigatório, conformador e vinculante, ao qual, nessa circunstância, não lhe deve ser negado o acesso à correspondente execução forçada por intermédio do processo executivo, atento o previsto, nomeadamente, nos artigos 157.º, n.º 5, e 158.º do CPTA. |
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Nº do Volume: | C/ VOTO DE VENCIDO |
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Indicações Eventuais: | Subsecção Administrativa Comum |
Área Temática 1: | |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | I - Relatório. Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, I.P., doravante Recorrente, que no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada (TAF de Almada) requereu execução para entrega de coisa certa e pagamento de quantia certa contra C..., doravante Recorrida, por ser detentor (o Recorrente) de sentença declarativa, transitada em julgado, que determinou a cessação do contrato de arrendamento apoiado por resolução, que condenou a ora Recorrida a entregar o locado livre e devoluto de pessoas e bens, e que ainda condenou a ora Recorrida no pagamento das rendas vencidas e vincendas, incluindo os correspondentes juros de mora, inconformado que se mostra com a sentença do TAF de Almada, de 12/12/2024, que julgou verificada a excepção dilatória inominada da falta de interesse em agir do ora Recorrente e decidiu absolver o ora Recorrida da presente instância, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões: “A. Através de sentença datada de 17/12/2024, o Tribunal a quo julgou verificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir por parte do aqui Recorrente, o que determinou a absolvição da Recorrida da instância. B. Por discordar amplamente, com todo o respeito, do entendimento propugnado pelo Tribunal a quo, o Recorrente não se pode conformar com a decisão recorrida. C. O Recorrente possui um título executivo constituído em contexto judicial, consubstanciado numa sentença transitada em julgado, que reconheceu o direito ao recebimento das quantias devidas e à desocupação do imóvel. D. A referida sentença transitou em julgado, adquirindo desta forma força vinculativa plena, nos termos do artigo 619º, nº 1, do Código de Processo Civil. E. Nos termos do artigo 628.º do Código de Processo Civil "a decisão transitada em julgado que condene no cumprimento de uma prestação é título executivo", conferindo ao Exequente o direito de prosseguir com o processo executivo judicial. F. No caso em apreço, estamos perante um título executivo que, por si só, legitima a execução em curso, sem necessidade de quaisquer procedimentos adicionais. G. A autotutela declarativa e executiva permite a certas entidades públicas ou administrativas a realização de determinados atos coercivos sem a necessidade de recorrer ao tribunal. H. No entanto, essa prerrogativa revela-se desnecessária, e diríamos até descabida, no caso aqui em apreço, dado que o aqui Recorrente já possui um título executivo. I. Pôr termo aos presentes autos nos moldes determinados pelo Tribunal a quo equivaleria não apenas a anular uma ação executiva validamente instaurada, mas também a impor ao aqui Recorrente a obtenção de um novo título executivo, apesar de já deter um título plenamente válido! J. Aliás, note-se que a presente ação foi inclusivamente liminarmente admitida pelo Tribunal através de despacho datado de 11.04.2024, tendo sido declarado de forma expressa que “(…) a presente execução se enquadra no âmbito das execuções que correm os seus termos nos Tribunais Administrativos e Fiscais (…)”. K. Nesse sentido, e salvo melhor entendimento, a posição agora assumida pelo Tribunal a quo é até contraditória com a posição que o meritíssimo Tribunal assumiu em abril de 2024. L. Importa salientar que a ação declarativa, que originou o título executivo, foi instaurada em 24 de fevereiro de 2020. M. Desde então, foram praticados diversos atos processuais, culminando com a prolação de sentença em 11 de maio de 2023. N. Na sequência dessa sentença, o Recorrente instaurou a correspondente ação executiva em 20 de fevereiro de 2024, confiando na tutela jurisdicional efetiva que lhe foi garantida. O. Contudo, surpreendentemente, em dezembro de 2024, o mesmo Tribunal que proferiu a sentença vem agora negar o acesso à execução judicial, o que implica não só um flagrante desrespeito pelos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança, como também resulta na anulação prática de quatro anos de esforço processual, frustrando, de forma inadmissível, os direitos do Recorrente. P. Mais grave ainda, a posição do Tribunal parece pretender que o Recorrente volte à estaca zero, sendo compelido a abdicar da execução judicial e a recorrer à autotutela executiva, com a instauração de um processo de execução fiscal e o recurso ao despejo pelos meios próprios. Q. Essa solução, além de desproporcional e manifestamente inadequada, transfere para o Recorrente o encargo de iniciar novos procedimentos, ignorando a eficácia do título executivo judicial já obtido e os atos processuais praticados até ao momento. R. A exigência de recorrer a outros meios, como a execução fiscal, subverte os princípios da economia processual e da celeridade na administração da Justiça. S. Tal postura não só prolonga de forma desnecessária o litígio, como também impõe ao Recorrente encargos adicionais e priva-o da garantia de uma tutela jurisdicional efetiva e célere. T. Assim, não se pode aceitar que, depois de quatro anos de atuação processual pautada pela boa-fé e pela confiança nas instituições judiciais, o Recorrente seja privado da possibilidade de ver cumprida a decisão favorável transitada em julgado. U. Admitir a interpretação defendida pelo Tribunal a quo significaria, em bom rigor, negar a força executiva de uma sentença judicial transitada em julgado e, por conseguinte, pulverizar o próprio princípio da tutela jurisdicional efetiva, assegurado pela Constituição da República Portuguesa. V. Acresce que toda a jurisprudência invocada na sentença não tem, salvo melhor opinião, qualquer aplicabilidade no caso concreto. W. Com efeito, a jurisprudência invocada pelo Tribunal a quo foi proferida no âmbito de ações declarativa, ações no âmbito das quais o aqui Recorrente almejava a formação de um título executivo. X. Isto decorre de forma clara, por exemplo, do Acórdão do STA de 07.12.2023, processo n.º 02836/18.7BEPRT, “Não carece a Recorrente de tutela judicial para a obtenção de título executivo que permita a cobrança das rendas em dívida, dispondo dos poderes de autotutela executiva.” (sublinhado nosso) Y. No entanto, como já exposto, tal entendimento não se aplica ao caso em apreço, dado que o Exequente já dispõe de um título executivo judicial que fundamenta a presente execução. Z. Não se pretendendo através dos presentes autos obter um novo título executivo, mas sim promover a execução de um título executivo de natureza judicial previamente obtido, as premissas nas quais assenta a posição propugnada nos Doutos Acórdãos invocados pelo Tribunal a quo não se encontram, de todo, aqui reunidas. AA. Ademais, a sentença proferida pelo Tribunal a quo está ferida de inconstitucionalidade! BB. Pois vejamos, CC. Nos termos do artigo 205º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, é de cumprimento obrigatório para todas as partes e tribunais a decisão judicial transitada em julgado, cabendo aos tribunais assegurar a sua efetiva execução. DD. Em consonância com o disposto no artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, o princípio da tutela jurisdicional efetiva garante o direito fundamental de acesso aos tribunais para assegurar a realização de direitos reconhecidos judicialmente. EE. A autotutela executiva, enquanto exceção à intervenção judicial, carece de suporte legal em casos onde a execução judicial já foi instaurada e está em curso. FF. Tal medida contraria os princípios estruturantes do processo executivo e a legalidade consagrada no artigo 2º do Código de Processo Civil: “A proteção jurídica através dos Tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar.” GG. O princípio do acesso à justiça, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, assegura ao Recorrente o direito de ver a sua sentença executada nos moldes fixados pelo Código de Processo Civil, em respeito pela estabilidade das decisões judiciais. HH. Qualquer decisão que vise limitar ou obstar ao prosseguimento da execução judicial, após a prática de atos processuais legitimamente realizados, constitui um retrocesso incompatível com os princípios estruturantes do Estado de Direito, lesando irremediavelmente os direitos do Recorrente. II. A decisão do Tribunal, ao limitar a execução da sentença, coloca em risco a efetividade da tutela jurisdicional, o que contraria a própria função do sistema judicial, que visa garantir a aplicação prática das decisões judiciais. JJ. O princípio da confiança legítima exige que as partes no processo possam contar com a continuidade dos atos executivos realizados pelo Agente de Execução, sem que haja decisões que desconstruam o processo judicial em curso. KK. Em suma, à luz do supra exposto, é entendimento do Recorrente que, relativamente aos factos sub judice, existiu uma incorreta interpretação e aplicação das normais legais aplicáveis por parte do Tribunal a quo. Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença proferida e, consequentemente, ordenando-se o prosseguimento da ação executiva instaurada em ordem à entrega do imóvel ao aqui Recorrente devoluto de pessoas e bens e ao pagamento dos valores em dívida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!” A Recorrida não apresentou contra-alegações. O Ministério Público (MP) junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso. O parecer do MP foi notificado ao Recorrente. Com vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos e com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento. *** II - Delimitação do objecto do recurso.Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, se a decisão recorrida enferma do erro de julgamento que lhe vem assacado, ou seja, no essencial, se se mostra bem julgada, no caso da presente execução, a excepção dilatória da falta de interesse em agir do ora Recorrente/Exequente. *** III - Matéria de facto.A sentença recorrida, em ordem ao julgamento da excepção de falta de interesse em agir, não fixou qualquer factualidade e não se vislumbra qualquer necessidade na sua fixação para a apreciação do presente recurso. *** IV - Matéria de Direito.Vejamos o entendimento propugnado pela sentença recorrida, destacando-se o seguinte excerto: “Nos termos do artigo 1079.º do Código Civil, o arrendamento urbano, independentemente do seu fim (artigo 1067.º, n.º 1, do Código Civil- habitacional ou não habitacional) cessa: (i) por acordo entre as partes (revogação); (ii) por resolução; (iii) por caducidade; (iv) por denúncia; e, (v) por outras causas legalmente previstas. A Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, estabelece o regime do arrendamento apoiado para habitação e regula a atribuição de habitações neste regime (artigo 1º do mencionado diploma legal). Dispõe o artigo 2º, nº 1 da citada Lei, que o arrendamento apoiado é o regime aplicável às habitações detidas, a qualquer título, por entidades das administrações direta e indireta do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais, do setor público empresarial e dos setores empresariais regionais. Sendo que, o contrato de arrendamento apoiado rege-se pelo disposto na mencionada lei, pelos regulamentos nela previstos e pelo Código Civil ( cfr. artigo 17ºnº1 do mencionado diploma). Sem prejuízo de que o contrato de arrendamento apoiado tem a natureza de contrato administrativo, estando sujeito, no que seja aplicável, ao respetivo regime jurídico (cfr. artigo 17ºnº2 do mencionado diploma). Ora, conforme supra exposto, de acordo com o disposto no artigo 8ºnº3 do Código Civil nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito, o que importa também a revisão de posição assumida anteriormente pelo julgador, designadamente, no caso em que não existia posição uniforme na jurisprudência sobre determinada matéria, como acontecia no caso em apreço. Na verdade, era sustentado pela jurisprudência a resolução do contrato de arrendamento também poderia operar por via judicial nos termos do artigo 1084º nº1 do Código Civil, veja-se nesse sentido entre outros Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31 de Maio de 2012, proferido no Processo nº6856/11. Todavia, recentemente, o Supremo Tribunal Administrativo, sustentou no seu Acórdão de 7/12/2023, proferido no processo nº 02836/18.7BEPRT, que o Autor carece de tutela judicial para reaver o imóvel em causa e para exigir coercivamente o pagamento das rendas em dívida, pois detém os correspondentes poderes conferidos para lei para actuar em conformidade nos termos do disposto no n.º 3, do artigo 28.º Lei n.º 81/2014, de 19/12, uma vez que, o Autor é uma das entidades referidas no artigo 2.º da referida Lei (vide ainda o Acordão do Supremo Tribunal Administrativo datado de 14/03/2024 proferido no âmbito do Processo nº214/23.5BEPRT que não admitiu revista por o Acórdão recorrido se mostra coerente e fundamentado quanto à decisão de julgar procedente a excepção de falta de interesse em agir, face aos mecanismos previstos no art. 28º, nºs 1 e 2 na Lei nº 81/2014, de 19/12.). Ou seja, quando esteja em causa a falta de pagamento de rendas o Autor está legalmente habilitado a praticar um acto administrativo que determine o despejo, no exercício de poderes de autotutela declarativa, assim como, a promoção da execução por rendas em atraso, com base no título executivo que constitui a certidão de dívida, nos termos do artigo 179.º, do Código de Procedimento Administrativo, seguindo o processo de execução fiscal. Ao contrário do sustentado pelo Autor a mencionada jurisprudência aplica-se ao caso concreto considerando que se pronuncia também sobre o interesse em agir referente à tutela executiva e não somente relativamente à tutela declarativa conforme é defendido pelo Autor, como de resto se constata do seu sumário, do qual consta o seguinte: “V - Têm aplicação à atividade administrativa desenvolvida pela Autora, de exigir o pagamento de rendas em atraso, no âmbito de um contrato de arrendamento apoiado, nos termos dos artigos 38.º e 39.º, n.º 2, alínea a), do Novo Regime do Arrendamento Apoiado para a Habitação, aprovado pela Lei n.º 81/2014, de 19/12, enquanto conduta adotada no exercício de poderes públicos ou regulada de modo específico por disposições de direito administrativo, em consequência dos poderes transferidos pelo Município de Vila Nova de Gaia, as disposições do CPA respeitantes aos princípios gerais, ao procedimento e à atividade administrativa. V - As normas referentes à “Execução do ato”, previstas no artigo 175.º e 183.º do CPA, a que se refere a Secção V, integram o Capítulo II, “Do ato administrativo”, pertencem à Parte IV, “Da atividade administrativa”, do CPA. VI - O que traduz que sejam aplicáveis à Autora as normas dos artigos 175.º e seguintes do CPA, em especial, o disposto no n.º 2, do artigo 176.º do CPA, que permite a execução coerciva de obrigações pecuniárias, nos termos do artigo 179.º do CPA. VII - O artigo 179.º do CPA remete a falta de pagamento voluntário de prestações pecuniárias para o processo de execução fiscal, tal como regulado na legislação do processo tributário, a saber, o Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT), aprovado pelo D.L. n.º 433/99, de 26/10. VIII - Não tem acolhimento a interpretação estritamente literal do n.º 1 do artigo 179.º do CPA, ao referir-se a “pessoa coletiva pública”, pois além do que decorre do regime normativo aplicável, em especial, quanto à natureza jurídica, atividade prosseguida e poderes conferidos à Recorrente, que determinam que apenas formalmente seja uma pessoa coletiva privada, afigura-se também relevante o segmento da norma do n.º 1, do artigo 179.º do CPA, “ou por ordem desta”, que prevê que outra entidade, agindo por conta da pessoa coletiva pública, possa lançar mão da execução de obrigações pecuniárias. IX - Assim, em face do disposto no n.º 1 do artigo 179.º do CPA, não é forçoso que o ente jurídico em causa tenha de ser uma pessoa coletiva pública, admitindo-se que possa ser uma outra entidade, agindo sob ordem da pessoa coletiva pública, o que se configura ser o caso. X - Quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas, encargos ou despesas, a decisão de promoção da correspondente execução deve ser tomada, em simultâneo, com a decisão do despejo, conferindo-se a competência legal administrativa para determinar o despejo e a sua execução a um órgão administrativo. XI - Quanto à cobrança da dívida por falta de pagamento de rendas que fundamenta o despejo, no âmbito dos poderes que conferidos pelo n.º 3, do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, sendo a Recorrente uma das entidades referidas no artigo 2.º da referida lei, está legalmente habilitada a praticar um ato administrativo que determine o despejo, no exercício de poderes de autotutela declarativa, assim como, a promoção da execução por rendas em atraso, com base no título executivo que constitui a certidão de dívida, nos termos do artigo 179.º, do CPA, seguindo o processo de execução. XII - Quando o despejo tenha por fundamento a falta de pagamento de rendas a Recorrente não dispõe apenas da competência legal para tomar a decisão de ordenar o despejo, pois segundo o n.º 3 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19/12, deve, em simultâneo, promover a execução da dívida por falta de pagamento das rendas, não necessitando de recorrer a tribunal para obter o título executivo, podendo lançar mão dos seus poderes de autotutela declarativa e também executiva, para cobrar coercivamente as dívidas provenientes de falta de pagamento das rendas devidas ao abrigo do contrato administrativo de renda apoiada para habitação, nos termos da Lei n.º 81/2014, de 19/12 e do regime previsto para a execução de obrigações pecuniárias, dos artigos 176.º, n.º 2 e 179.º, do CPA. XIII - Para a execução de obrigações pecuniárias basta à Recorrente promover a emissão da certidão de dívida, com valor de título executivo e remetê-la ao competente serviço da Administração Tributária para o respetivo procedimento de cobrança coerciva. XIV - Não carece a Recorrente de tutela judicial para a obtenção de título executivo que permita a cobrança das rendas em dívida, dispondo dos poderes de autotutela executiva. Pelo que, o Autor não necessita da tutela judicial requerida nos presentes autos. Sendo que, a falta de interesse processual em agir configura uma excepção dilatória inominada que obsta ao prosseguimento do processo e é determinante da absolvição da Ré da instância (cfr. artigo 89º, nº 2 do CPTA). Ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas (cfr. artigo 608º nº2 do Código de Processo Civil ex vi artigo 1º do CPTA).” *** Desde já adiantamos que o decidido na sentença recorrida não pode manter-se.O Recorrente, inquestionavelmente, é detentor de uma sentença declarativa, de natureza condenatória, já transitada em julgado, pois que, já não é “suscetível de recurso ordinário ou de reclamação”, atenta a noção vertida no artigo 628.º do CPC, “ex vi” do artigo 1.º do CPTA. O Recorrente é titular, portanto, de um título executivo e do seu específico conteúdo, ou seja, “in casu”, das determinações condenatórias que do mesmo emanam. Como tal, o valor da sentença transitada em julgado que decidiu o mérito da causa é o de que “a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele”, nos termos do artigo 619.º, n.º 1, do CPC, “ex vi” do artigo 1.º do CPTA. Mais. O artigo 158.º, n.º 1, do CPTA, estabelece o princípio da “obrigatoriedade das decisões judiciais” “para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades administrativas”. No “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, de Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 5.ª edição, Almedina, 2022, a páginas 1256 e 1257, consta o entendimento de que “O n.º 1 reafirma o princípio constitucional da obrigatoriedade das decisões dos tribunais e da sua prevalência sobre as decisões de quaisquer autoridades, o que inclui as autoridades administrativas (cfr. artigo 205.º, n.º 2, da CRP). Este é um princípio fundamental à efetiva realização do Estado de Direito. Num Estado que aceita estar subordinado às leis e ao Direito, é fundamental que as estruturas de poder do Estado aceitem estar submetidas à autoridade dos órgãos que, dentro do Estado, estão incumbidos de administrar a justiça através de aplicação da lei e do Direito. Daqui resulta a ilicitude das eventuais atitudes de rebeldia em relação às decisões proferidas pelos tribunais.”. Pois bem, se as decisões judiciais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas, mal se compreenderia que a força vinculante e conformadora de uma sentença não se aplicasse à própria estrutura de poder do Estado que a proferiu, ou seja, ao próprio tribunal, e que este, em caso de não cumprimento voluntário pelo demandado, vedasse ao detentor de tal título a possibilidade de o executar, também, judicialmente. É, em primeiro lugar, ao próprio tribunal que emitiu a sentença o ente a quem se deve exigir o respeito pela força do caso julgado que ele próprio criou ao administrar a Justiça no caso concreto, não se consentindo que a primeira “atitude de rebeldia” (nas palavas dos insignes autores atrás citados) comece, precisamente, por quem prolatou tal decisão, nomeadamente, ao não admitir a sua execução pela via judicial. Daqui que, se bem ou mal ajuizada a verificação do pressuposto processual inominado do interesse em agir em sede da precedente acção declarativa, não é, com certeza, na fase executiva que cabe a oportunidade de voltar a reabrir a discussão em torno de tal pressuposto processual (já decidido para aquela acção específica), quando tal podia ter sido suscitado atempadamente, isso sim, no âmbito da acção principal, mas que não o foi. Tanto mais que, nesta sede, quando muito, o que importa saber é se o Recorrente/Exequente tem interesse processual executivo, ou seja, uma vez munido de um título executivo, ainda assim, se lhe podemos permitir que se socorra da via judicial para o impor forçadamente. E a resposta, no caso “sub judice”, tem de ser afirmativa. É que, a vingar a tese da sentença recorrida, deixaria o Recorrente, ainda que detentor da certeza e segurança jurídicas que uma sentença transitada lhe concede, sem possibilidade de aceder ao adequado meio processual que a lei lhe faculta no sentido de impor coercivamente o título executivo de que é beneficiário, coarctando-lhe, por conseguinte, o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, prerrogativa que assiste ao Recorrente por via do artigo 20.º da CRP. No mesmo sentido, aponta o artigo 2.º, n.º 1, do CPTA, a propósito do princípio da tutela jurisdicional efectiva, ao consagrar que, nos processos que correm nos tribunais administrativos, assiste o direito “de obter…uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar…” (destaques nossos). Na mesma orientação vai o n.º 4 do artigo 3.º do CPTA, estipulando, quanto aos poderes dos tribunais administrativos, que os mesmos “asseguram ainda a execução das suas sentenças” (destaques nossos). E ainda que a sentença recorrida tivesse sustentado a sua decisão da falta do interesse em agir do ora Recorrente com fundamento no princípio da autotutela declarativa e executiva que assiste às entidades públicas-senhorios em matéria do arrendamento apoiado, com base no artigo 28.º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, e no artigo 179.º, n.ºs 1 e 2, do CPA, para o que citou, em seu apoio, jurisprudência dos tribunais superiores da jurisdição administrativa, o certo é que tal entendimento, conforme tem sido propugnado em diversos acórdãos deste TCAS, tem sido disseminado quando se trata de sindicar o pressuposto processual do interesse em agir em sede da acção declarativa, mas já não quando a situação tem a ver com a acção executiva, como é o caso em apreço. É que, como atrás dissemos, na actual fase de execução, bem ou mal, o Recorrente já dispõe de um título executivo legítimo, constituído e obrigatório, que lhe atribui prerrogativas condenatórias contra uma particular, designadamente, de entrega de coisa certa e de pagamento de quantia certa, que deve poder impor de modo forçado à contraparte, a executada, não se vendo que, ante tal cenário, se deva agora vedar ao Recorrente o acesso à tutela jurisdicional efectiva por intermédio do correspondente e adequado meio processual, que é o processo executivo tal como preconizado no artigo 157.º, n.º 5, do CPTA. Daqui que, somos levados a concordar com o Recorrente quando alega em conclusão de recurso de que, a ser como defende a sentença recorrida, dar-se-ia o caso de, ainda que detentor de um título executivo (uma sentença judicial), mas impedido de o executar no tribunal que o emitiu (situação preclusiva que, no mínimo, constituiria uma anomalia do sistema de administração de Justiça), ter que se lançar em nova demanda executiva, sobretudo, no que toca à cobrança coerciva da dívida por rendas, pois que, tendo presente o artigo 179.º do CPA, que rege sobre a execução de obrigações pecuniárias, o que daí resulta é que o Recorrente seria forçado a despoletar um novo processo, de execução fiscal, regulado pelo CPPT. Esse seria um resultado paradoxal e de duplicação de processos judiciais, evitável face às circunstâncias próprias do caso vertente. Deste modo, procede o erro de julgamento, impondo-se revogar a sentença recorrida, mais devendo os autos de execução baixarem à 1.ª instância para, se nada mais obstar, prosseguirem os seus termos, tendo presente o preceituado no artigo 157.º, n.º 5, do CPTA. *** Custas a cargo da Recorrida – cf. artigos 527.º, n.º 1, do CPC, 1.º e 189.º do CPTA, 7.º, n.º 2, e 12.º, n.º 2, do RCP, sem prejuízo de eventual apoio judiciário.*** Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:I - Nas situações do arrendamento apoiado, em que a entidade pública-senhorio já é detentora de uma sentença transitada em julgado, que determinou, na competente acção declarativa, a cessação do contrato de arrendamento apoiado por resolução, que condenou a ora Recorrida a entregar o locado livre e devoluto de pessoas e bens, e que ainda condenou a ora Recorrida no pagamento das rendas vencidas e vincendas, incluindo os correspondentes juros de mora, não é de admitir que, no processo de execução deduzido com base em tal título executivo, se vede o acesso a tal meio processual com o argumento de que a tais entidades falta o pressuposto processual do interesse em agir, porquanto, tal entendimento é contraditório com o princípio de acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva (no caso concreto, restrito apenas à protecção que decorre para a vertente do processo executivo), tal como delineado no artigo 20.º da CRP, e contrário ainda ao disposto nos artigos 2.º, n.º 1, 3.º, n.º 4, e 158.º do CPTA. II - O argumento da autotutela declarativa e executiva de tais entidades, alicerçado no artigo 28.º, n.ºs 1 a 3, da Lei n.º 81/2014, de 19/12, e no artigo 179.º, n.ºs 1 e 2, do CPA, com vista a sustentar a falta do interesse em agir, ainda que válido e utilizável para a acção declarativa, quando os pedidos se consubstanciem no acima elencado, já não o é para a fase executiva, em que a entidade pública-senhorio, bem ou mal, está já na posse de um título executivo obrigatório, conformador e vinculante, ao qual, nessa circunstância, não lhe deve ser negado o acesso à correspondente execução forçada por intermédio do processo executivo, atento o previsto, nomeadamente, nos artigos 157.º, n.º 5, e 158.º do CPTA. *** V - Decisão.Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida, mais determinado que os presentes autos de execução baixem à 1.ª instância para, se nada mais obstar, prosseguirem os seus termos. Custas a cargo da Recorrida, sem prejuízo de eventual apoio judiciário. Registe e notifique. Lisboa, 03 de Julho de 2025. Marcelo Mendonça – (1.º Adjunto, por vencimento) No caso vertente, diferentemente do decidido no acórdão supra, confirmaria a decisão recorrida e julgaria o recurso improcedente, por entender que a intenção do legislador [neste caso com o artigo 28.º, n.ºs 1 a 3, do NRAAH (Lei n.º 81/2014, de 19/12)], foi, justamente, a de desjudicializar de determinados litígios, retirando a sua resolução aos Tribunais do Estado, seja por atribuição a diferentes entidades de resolução alternativa de conflitos, seja por se considerar, como aqui acontece, que o cabal exercício dos poderes legais de autoridade de um instituto público já permitem alcançar os objetivos aqui clamados pelo Recorrente, sem uma necessidade imperiosa de recurso à via judicial.Ana Cristina Lameira – (2.ª Adjunta) Ricardo Ferreira Leite – (Relator vencido, nos termos da declaração de voto infra) Declaração de voto (vencido): Tendo presente o estipulado no artigo 179.º do CPA, entendo que, na falta do pagamento voluntário das rendas, tendo em vista o processo de execução fiscal por tal dívida, à Recorrente bastava a emissão da certidão do valor em dívida, como título executivo, remetendo-a, depois, à Autoridade Tributária. A Recorrente tem ao seu dispor um meio legal de autotutela para garantir a cobrança/execução da dívida por rendas em atraso e obtenção do correspetivo pagamento, o que evidencia não existir necessidade de tutela judicial, ou seja, de se dirigir com a presente acção a um Tribunal Administrativo para tal desiderato, carecendo, por isso, de interesse em agir. Repete-se que o desiderato aqui é mesmo desonerar os tribunais com a resolução de determinados litígios e, se bem que seria premente lograr a consecução de tal imperativo logo numa fase inicial, declarativa, nihil obstat a que o julgador, apercebendo-se disso apenas na fase executiva, disso retire as devidas consequências e procure fazê-lo na fase de execução do processo. Afigura-se-me inconsequente estarmos na fase executiva e já ter existido uma “sentença declarativa, transitada em julgado”, a qual inadvertidamente [porque não cuidou de aplicar o disposto no artigo 28.º, n.ºs 1 a 3, do NRAAH (Lei n.º 81/2014, de 19/12)], e no artigo 179.º do CPA], decidiu sobre o mérito da questão e emitiu um título executivo. Nem vejo como tal poderia, como sustenta a Recorrente, consubstanciar uma violação do principio da tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artº 20º da CRP, porquanto, como se adiantou já acima, o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, preconizados no artigo 20.º da CRP, não sendo valores absolutos em si mesmos, não impedem que o legislador opte em determinado momento pela desjudicialização de determinados litígios, retirando a sua resolução aos Tribunais do Estado, seja por atribuição a diferentes entidades de resolução alternativa de conflitos, seja por se considerar, como aqui acontece, que o cabal exercício dos poderes legais de autoridade de um instituto público já permitem alcançar os objectivos aqui clamados pelo Recorrente, sem uma necessidade imperiosa de recurso à via judicial. Pelo exposto, como adiantado acima, confirmaria a decisão recorrida e julgaria o recurso improcedente. Ricardo Ferreira Leite |