Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:123/25.3BECTB
Secção:CA
Data do Acordão:10/23/2025
Relator:JORGE PELICANO
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
LEGITIMIDADE ACTIVA
Sumário:A sociedade que alega não ter podido apresentar proposta no procedimento concursal por, entre o momento da publicação do anúncio e o termo final ali fixado para a apresentação das propostas, ter mediado um prazo inferior ao de 24.00 horas previsto no art.º 158.º do CCP, tem legitimidade activa para impugnar o acto de adjudicação e o contrato.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção de Contratos Públicos
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na subsecção de contratos públicos do Tribunal Central Administrativo Sul.
A sociedade .... Ldª, vem, no âmbito da presente acção de contencioso pré-contratual que intentou contra o Município de Avis e em que figura como contra-interessada a .... , Ldª, recorrer da sentença proferida no TAF de Castelo Branco que julgou procedente a excepção de ilegitimidade activa da Recorrente e absolveu o Réu da instância.
Apresentou as seguintes conclusões com as suas alegações de recurso:
A - A sentença absolveu o Réu, Município de Avis, considerando procedente a excepção dilatória da ilegitimidade processual activa da Autora, porque não tendo a Autora participado no procedimento não alcança nenhuma utilidade imediata e pessoal da sua anulação, não sendo, por isso, parte legitima, nos termos do artº 55º, nº 1; al a) do CPTA, nem nos termos do artº 103º, nº 2 do CPTA por entender que o anúncio não é um documento conformador do procedimento de formação dos contractos
B - A Autora invocou a invalidade do anúncio por incumprimento do disposto no artº 158º do CCP que prevê um prazo mínimo de 24h para apresentação de propostas no caso de aquisição ou locação de bens móveis ou de aquisição de serviços, uma vez que conferiu apenas pouco mais de 8h para o efeito (desde as 16h e 36m do dia 27/03/2025 até ás 12h do dia 28/03/2025)

– A Autora tinha todo o interesse em apresentar proposta no concurso AVIS/4/CPNU/B/25, conforme alegou, até de forma exaustiva, para que não restassem dúvidas sobre as circunstâncias da abertura do concurso em causa e a justificação do seu interesse – actual e directo – em participar, atendendo à recente celebração de um contrato com o Réu Município de Avis para aquisição de equipamento semelhante, o que lhe conferia legitimidade nos termos do artº 55º, nº 1, al a) do CPTA
D – Trata-se da sua área de negócio e ficou impedida de concorrer atendendo a que teve conhecimento da existência do dito concurso publico, ainda naquele dia 28/03/2025, mas já depois das 12h, prazo limite concedido, o que, aliás, poderá ter acontecido também com outros agentes económicos
E – O interesse em agir é a “verificação da necessidade ou utilidade da ação tal como configurada pelo Autor, sendo definido como «a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção»” – cfr. Ac RL, proc. n.º 1712/17.5T8BRR-B.L1-6, de 26/09/2019, in www.dgsi.pt –, sendo certo que a procedência da acção equivalia aquele beneficio imediato e pessoal porquanto se traduzia na anulação dos actos ilegais e, dessa forma, a Autora poder vir a concorrer num outro que fosse lançado.
F. Aliás, toda a jurisprudência tem considerado que a vantagem ou interesse direto com a procedência de uma acção não tem de se traduzir “imediatamente num reconhecimento do direito que o interessado se arroga e pretende ver reconhecido” podendo consistir tão somente no facto de a anulação ou declaração de nulidade do ato “manter em aberto a possibilidade de vir a ser proferido um ato que satisfaça a sua pretensão, quando a manutenção do ato impugnado a prejudicar irremediavelmente” – veja-se por todos Ac. STA, de 30/09/2009, proc. n.º 0599/09, in www.dgsi.pt.

G– Na verdade, sendo o acto considerado ilegal e deixando de produzir efeitos, por via da acção, a Autora retira vantagem porque poderá de seguida (tal como outros agentes económicos) apresentar proposta em novo concurso, aspirando a uma adjudicação, o que equivale a uma utilidade, sendo este benefício que justifica a sua legitimidade activa traduzido no interesse em agir
H – A verificação do pressuposto processual em causa tem de ser verificada em concreto pelos factos alegados pela Autora “por referência ao conteúdo da petição inicial”, isto é, em função da alegação e demonstração das vantagens apontadas pelo autor na alegação, com efectiva incidência na sua esfera jurídica, e de forma actual, imediata e directa (cf. Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 4.ª Edição, 2020, p. 232 e ss.), o que não sucedeu
– A impugnação a que a Autora lançou mão foi o único meio para ver julgada a ilegalidade do acto e poder assim retirar vantagem económica, sendo certo que o entendimento que não tendo a Autora participado no procedimento significa que não terá nenhuma utilidade económica, e consequentemente, não tem utilidade imediata e pessoal na sua anulação – artº 55º, nº 1, al a) CPTA - não tem qualquer acolhimento na jurisprudência dominante, nem tão pouco na doutrina
J – Salientam-se neste aspecto os ensinamentos e conclusões de Marco Caldeira – Da legitimidade Activa no contencioso pré contratual – em especial os pedidos impugnatórios baseados na ilegalidade das peças procedimentais – na Revista do Ministério Público do ano 134, pág. 279 e ss. “Não obstante, no que em particular se refere aos pedidos impugnatórios, esta regra geral sofre uma “adaptação”, visto que neste âmbito a lei não exige que o autor seja titular da relação material controvertida, assentando antes na alegação de (susceptibilidade de) ocorrência de uma lesão na esfera jurídica do autor … a legitimidade activa para impugnar as normas procedimentais não depende da circunstância de o impugnante ter ou não apresentado candidatura ou proposta no procedimento précontratual a que a norma se aplica.”
L – Se a Autora estivesse impedida de impugnar a ilegalidade do anúncio nos termos sobreditos, como seria possível impugnar a ilegalidade cometida pelo Réu Município?
M – Nos termos da sentença de que se recorre, em virtude da ilegalidade do anúncio a Autora não pode participar no procedimento, e por isso mesmo, não pode agora impugnar contenciosamente aquela mesma ilegalidade!
N – Se os interessados que não puderam participar no procedimento em virtude da própria ilegalidade – redução do prazo – se também não tivessem legitimidade activa por falta de interesse em agir, para impugnar, o mesmo seria dizer que uma ilegalidade evidente (sem necessidade de qualquer outra demonstração), era insindicável!
O – A ser admissível e legal a decisão de ilegitimidade da Autora, as entidades públicas poderiam sempre agir ilegalmente (em casos semelhantes) sem qualquer consequência porque quem ficou afastado por causa da dita invalidade, também nunca poderia impugnar aquela
P – Na sequência da “Directiva recursos” foi também determinada a criação de mecanismos processuais destinados a impugnar documentos reguladores dos procedimentos pré contratuais permitindo a impugnação dos que foram impedidos de apresentar candidatura “Por exemplo, porque a entidade adjudicante fixou um prazo de apresentação de candidaturas ou propostas inferior aos mínimos legais, estabeleceu requisitos mínimos de capacidade financeira discriminatórios e não adequados à natureza das prestações objecto do contrato, ou definiu especificações técnicas excessiva e injustificadamente exigentes, apenas para nos reportarmos a alguns dos casos que mais frequentemente se verificam na prática e que têm merecido a atenção da doutrina e da jurisprudência.” – artigo já citado de Marco Caldeira, pág. 283, nota de rodapé 23
Q – E assim considerou o identificado jurista (cfr. pág. 284) “Por conseguinte, o que habilita o acesso de um interessado à justiça administrativa para impugnar normas procedimentais não é o facto de aquele ter apresentado candidatura ou proposta no procedimento pré-contratual, mas sim o facto de ter sido de algum modo lesado pela aprovação e aplicação dessas normas, mesmo sem participar naquele procedimento – até porque a lesão pode precisamente residir no facto de a ilegalidade da norma ter vedado ao interessado essa participação”, como é o caso dos autos

R – Também a este propósito, considera Adolfo Mesquita Nunes, Rodrigo Esteves de Oliveira, conforme supra alegado e que aqui se dá por reproduzido
S - E assim também tem entendido a jurisprudência - Cfr. por todos Ac TCA Norte, de 22.04.2010, processo n.º 00647/09.0 BEAVR e Ac TCA Norte de 12.10.2012, processo n.º 01935/11.0BEBRG
T – Conclui-se que a Autora tem legitimidade para impugnar nos termos em que o fez, sendo certo que a ilegalidade invocada foi a responsável pela sua não participação e que tinha um interesse pessoal no resultado do procedimento
U – Não lhe restando outra opção senão o recurso recorrer às vias judiciais como meio legítimo de reação contra as ilegalidades cometidas e que inviabilizaram a sua participação no procedimento
V - A sentença aqui em crise também entendeu que a Autora não tinha legitimidade, nos termos do artº 103º, nº 2 porque esta norma apenas visa a impugnação dos documentos conformadores do procedimento do contrato, entendendo que a ilegalidade em causa “se reporta à publicitação do procedimento, não propriamente ás peças procedimentais …”, ao contrário do disposto no artº 40º, nº 1, al. c) do CCP que determina que no concurso público, o anúncio também consta como uma das peças dos procedimentos de formação dos contratos
X – O legislador ao qualificar o anúncio como peça procedimental garante a sua subordinação plena ao princípio da legalidade administrativa e permite que os tribunais controlem a validade dos seus conteúdos, assegurando a tutela jurisdicional efetiva de todos os interessados no procedimento e que qualquer ilegalidade do anúncio compromete a validade do procedimento e legitima a sua impugnação por qualquer interessado.
Z – Neste sentido se pronunciou também Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, no Comentário ao CPTA, Almedina, 4.ª ed., onde sustentam que “o anúncio do concurso, sendo uma peça conformadora do procedimento tem natureza jurídica de ato administrativo impugnável”, nomeadamente quando estabelece condições ilegais que impedem ou limitam o acesso ao procedimento
AA – E ainda, entre outros, Nuno Pires de Carvalho, em Contratos Públicos – Introdução e Noções Fundamentais, Almedina, 2019, onde salienta que “o anúncio é simultaneamente o ato que inicia a fase da formação do contrato e uma peça do procedimento, com efeitos conformadores sobre o objeto, prazo e critérios”, devendo, por isso, “ser sujeito ao princípio da legalidade e ao controlo contencioso”
BB - A natureza procedimental do anúncio implica a sua sujeição ao regime de impugnações prevista no artº 103.º, n.º 2 do CPTA, que atribui legitimidade a quem tenha interesse em participar no procedimento.
CC – A sentença violou o disposto nos artºs. 9º, 55º, nº 1, al a) e 103º, nº 2 do CPTA, 40º e 158º do CCP, assim como os princípios da legalidade, da livre concorrência, da igualdade, da confiança jurídica e da boa fé subjacente à contratação pública.

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O Município recorrido contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
1 - A Recorrente intentou ação de contencioso pré-contratual sem, contudo, ter apresentado proposta no procedimento de Concurso Público AVIS/4/CPNU/B/25.
2 - O Tribunal a quo, em sede de Despacho Saneador-Sentença, julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade processual ativa, absolvendo, em consequência, a Ré da instância.
3 - A Recorrente interpôs recurso da decisão, alegando erro na interpretação e aplicação dos factos e do direito, mas não impugnou a matéria de facto dada como provada.
4 - Conforme já referido a Recorrente não apresentou proposta no procedimento concursal em causa, o que inviabiliza a sua legitimidade processual ativa.
5 - A legitimidade ativa no contencioso pré-contratual exige a titularidade de um interesse direto e pessoal, o que não se verifica quando o concorrente não participa validamente no concurso.
6 - Veja-se neste sentido o Ac. do Supremo Tribunal Administrativo datado de 14 de fevereiro de 2013, processo n.º 01212/12, quando refere que o interesse em participar em futuros concursos é meramente eventual e hipotético, não sendo suficiente para fundar legitimidade ativa.
7 - O Tribunal a quo fez correta interpretação e aplicação do direito aplicável, nomeadamente quanto aos pressupostos processuais da ação administrativa.
8 - Deve, por isso, o recurso interposto pela Recorrente ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida na íntegra.
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O Ministério Público junto deste Tribunal foi notificado nos termos e para efeitos do disposto no art.° 146.° do CPTA.

Do objecto do recurso.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações.
Há, assim, que decidir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito por violação do disposto nos artigos. 9.º, 55.º, nº 1, al a) e 103.º, nº 2 do CPTA, dos artigos 40.º e 158.º do CCP, assim como dos princípios da legalidade, da concorrência, da igualdade, da confiança e da boa fé.

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O processo vem à Conferência para julgamento, sem vistos das Exmas. Senhoras Juízas-Adjuntas, por se tratar de processo urgente.
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Fundamentação
De facto.

Na sentença recorrida foi fixado o seguinte a título de matéria de facto:
a) Em 27.03.2025, o Presidente da Câmara Municipal de Avis proferiu o seguinte despacho:
«(…)
Nos termos das normas conjugadas dos arts 18º, 20º, 36º e 38º do Código dos Contratos Públicos aprovado pelo D.L. nº 18/2008 de 29 de Janeiro e do artº 18º ss, na sua actual redação e do D.L. nº 197/99 de 8/6, determino a realização de Concurso Público Urgente para aquisição de varredora.
A urgência deve-se com o facto de já ter sido aberto procedimento para aquisição por mais de uma vez e ainda não termos conseguido adquirir o equipamento que tanta falta faz para a limpeza pública.
Nos termos da alínea do nº 1 e nº 2 do artigo 40º do Código dos Contratos Públicos aprovo o Programa do Concurso e do Caderno de Encargos.
Conforme nº 2 do artº 156º do CCP não é constituído júri.
Nos termos do artigo 290º-A do Código dos Contratos Públicos designo para gestor do contrato o trabalhador Nuno Ildefonso.
(…)»
(cfr. fls. 130 do ficheiro com o n.° 006930566, que contém o segundo vol. do PA não numerado, cujo teor se dá por reproduzido);

b) O Programa de Procedimento do Concurso Público AVIS/4/CPNU/B/25 contém, designadamente, as seguintes disposições:
«(…)
Artigo 1º
Objecto do Concurso
1. 0 presente concurso tem por objecto o fornecimento de uma varredora em conformidade com o descrito no presente Programa de Procedimento e respectivo Caderno de Encargos.
2. A plataforma electrónica de contratação pública utilizada é a Vortal, e encontra-se acessível através do sítio electrónico http://www.vortalgov.pt
(...)

Artigo 4.º
Prazo e Modo de Apresentação de Propostas
1. As propostas e os documentos que a instruem, serão entregues até 24 horas após a data de envio para publicação no Diário da República, exclusivamente na plataforma electrónica de contratação, acessível através do sítio electrónico http://www.vortalgov.pt
Após "Disponibilizar" a proposta, o concorrente deverá assiná-la electronicamente com recurso a um certificado digital qualificado.
(...)»
(cfr. fls. 118 a 126 do ficheiro com o n.° 006930566, que contém o segundo vol. do PA não numerado, cujo teor se dá por reproduzido);

c) A abertura do Concurso Público AVIS/4/CPNU/B/25 foi divulgada por meio de Anúncio publicado no Diário da República, II série, n.° 61, parte L, de 27.03.2025, que refere o seguinte:
«(…)
MUNICÍPIO DE AVIS
Anúncio de procedimento n.° 7995/2025
1 - IDENTIFICAÇÃO E CONTACTOS DA ENTIDADE ADJUDICANTE Designação da entidade adjudicante: Município de Avis
NIPC: ....
Serviço/Órgão/Pessoa de contacto: Serviço de Aprovisionamento
Endereço: Lg. ....
Código postal: 7480-112
Localidade: Portalegre
País: Portugal
NUTIII: PT186
Distrito: Portalegre
Concelho: Avis
Freguesia: Todas
Telefone: ....
Fax: ....
Endereço da Entidade (URL): www.cm-avis.pt
Endereço Eletrónico: geral@cm-avis.pt
eDelivery Gateway (URL): https://community.vortal.biz/public/
Função da Organização: Adquirente
Norma jurídica da Entidade Adjudicante: Autoridade local
Área de atividade da Autoridade Adjudicante: Serviços públicos das administrações públicas
2 - JORNAL OFICIAL DA UNIÃO EUROPEIA
0 procedimento a que este anúncio diz respeito também é publicitado no Jornal Oficial da União Europeia? Não
3 - AVISO
Modelo de Anúncio: Concurso público urgente Data de Envio do Anúncio: 27-03-2025 16:19:00

(...)
13 - CONDIÇÕES DE APRESENTAÇÃO
Plataforma eletrónica utilizada pela entidade adjudicante: VORTAL URL para Apresentação: https://community.vortal.biz/public/
Admissibilidade da apresentação de propostas variantes: Não autorizado Prazo para apresentação das propostas: 28-03-2025 12:00
Prazo durante o qual os concorrentes são obrigados a manter as respetivas propostas: 10 dias a contar do termo do prazo para a apresentação das propostas
Indicação de Subcontratação na Proposta: Inexistência de indicação de subcontratação (…)»
(cfr. fls. 93 a 95 do ficheiro com o n.° 006930566, que contém o segundo vol. do PA não numerado, e doc. 14 junto com a p.i., cujo teor se dá por reproduzido);

d) O Anúncio foi enviado para publicação no Diário da República naquele dia 27.03.2025, pelas 16h e 19m e publicado ainda na plataforma Vortal, na mesma data, pelas 16h e 36m;
(cfr. docs. 14 e 15 juntos com a p.i., cujo teor se dá por reproduzido);

e) Estipulando como prazo limite para apresentação de propostas as 12h do dia 28.03.2025;
(cfr. fls. 93 a 95 do ficheiro com o n.° 006930566, que contém o segundo vol. do PA não numerado, e docs. 14 e 15 juntos com a p.i., cujo teor se dá por reproduzido);

f) A Autora não apresentou proposta no âmbito do procedimento de Concurso Público AVIS/4/CPNU/B/25;
(pacífico nos autos);
*
Direito
A Recorrente defende que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de direito ao ter julgado procedente a excepção de ilegitimidade activa.
Começa por alegar que tinha interesse em apresentar proposta no procedimento, mas que o não fez por o anúncio em que se procedeu à publicitação do procedimento concursal ter previsto um prazo inferior a 24 horas para apresentação das propostas, o que diz violar o artº 158º do CCP.
Refere que ficou impedida de concorrer por ter tido conhecimento da abertura do procedimento em momento em que já havia decorrido o prazo fixado para a apresentação das propostas.
Entende que da anulação dos actos impugnados decorre vantagem imediata para a sua esfera jurídica, dado que poderá vir a apresentar proposta em novo procedimento.
Sustenta que o teor do anúncio que publicita a abertura do procedimento pode ser judicialmente sindicado por se encontrar sujeito ao princípio da legalidade e ao regime de impugnação de normas previsto no n.º 2 do art.º 103.º do CPTA, que atribui legitimidade a quem tenha interesse em participar no procedimento.

A sentença recorrida não reconheceu legitimidade activa à Recorrente, por ter entendido que da anulação da decisão de abertura do procedimento concursal não decorre qualquer vantagem para a esfera jurídica da Recorrente.
Para tanto, referiu que:
“(…)
A A. alega que este ato - abertura de novo concurso com o mesmo objeto e com um preço superior 115.000 Euros (“o anterior de julho de 2024 tinha um preço de 108.000 Euros”), foi praticado em prejuízo do erário público e acrescenta que nem a justificação da urgência, ou da brevidade, podia colher atendendo a que a A. entregaria o equipamento (anteriormente objeto de contrato celebrado com a Entidade Demandada) até ao final do mês de abril.
Todavia, não vemos em que medida a decisão de abertura do novo procedimento concursal destinado à aquisição de varredora encerra um potencial lesivo sobre a esfera jurídica da A., que, aliás, refere na sua p.i. ter interesse na apresentação de proposta a esse procedimento. Por outras palavras: se a A. invoca ter interesse em participar no novo procedimento de contratação pública aberto pela Entidade Demandada, criticando esta última por alegadamente ter inviabilizado essa participação, é de meridiana clareza que a anulação da decisão de abertura do procedimento não lhe aporta qualquer vantagem jurídica concreta.
Considerando a conformação da causa de pedir enunciada na p.i., a A. não associa ao ato de abertura do procedimento qualquer aptidão de impedir a sua participação no procedimento. Diz ter sido impedida de participar por força dos moldes em que o procedimento foi anunciado/publicitado, o que é coisa diferente.
Não conseguiu, pois, ser bem sucedida na sua tarefa de caraterizar uma posição jurídica subjetiva protegida [direitos ou interesses legalmente protegidos, na terminologia da parte final da alínea a) do n.° 1 do artigo 55.°] a que o ato visado (abertura do procedimento) possa ter infligido uma lesão.
A A. impugna, genericamente, todos os demais atos do procedimento, tendentes ao ato de adjudicação, e celebração do contrato, sem lhes apontar qualquer vício próprio, invocando somente a invalidade consequente. Sucede que, não tendo a A. participado sequer no procedimento, ela não alcança nenhuma utilidade imediata e pessoal da sua anulação.
Quer isto dizer que falta à A., desde logo, o interesse pessoal para impugnar, quer o ato de abertura do procedimento, quer os demais atos inseridos nesse procedimento (e o próprio contrato), por não poder retirar para si própria uma utilidade concreta da sua anulação. Por isso, queda- se inverificada a sua legitimidade processual, não sendo necessário avançar para a análise do interesse direto (sob o ângulo do pressuposto processual do interesse em agir, que é o segundo nível de análise).

Não olvidamos que a A. se insurge contra o prazo dado para a apresentação das propostas, e alega que houve atropelo ao estipulado no art. 158.° do CCP, “prejudicando, além do mais, a publicidade que o procedimento merece”.
A A. não invoca esta ilegalidade como fundamento de impugnação do ato de abertura do concurso (situado a montante da publicação do anúncio), nem das peças do procedimento (sendo conveniente ressaltar que o prazo de apresentação das propostas previsto no artigo 4.° do Programa de Procedimento coincide com o previsto no art. 158.° do CCP, visto que é de 24 horas o prazo legal mínimo para a apresentação das propostas no caso de aquisição de bens móveis), nem dos atos administrativos praticados no contexto do Concurso Público em crise.
No fundo, a A. relata que sofreu um prejuízo patrimonial em resultado do «não cumprimento obrigatório do prazo mínimo de 24h para apresentação de propostas (art° 158° do CCP), atendendo a que apenas teve conhecimento depois daquele período inferior a 24h».
Poder-se-ia eventualmente cogitar que, mesmo não tendo participado no procedimento, a A. gozaria de legitimidade processual por via do disposto no n.° 2 do art. 103.° do CPTA, supracitado, que abre essa legitimidade a quem «tenha interesse em participar no procedimento em causa».
Só que a legitimidade regulada no n.° 2 do art. 103.° do CPTA concerne unicamente à impugnação dos documentos conformadores do procedimento de formação dos contratos, e aquela alegada ilegalidade se reporta à publicitação do procedimento, não propriamente às peças procedimentais ou a atos administrativos pré-contratuais. Chamando novamente à colação Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, ob. cit., p. 872, «[n]o que diz respeito ao anúncio, ele éprevisto no CCP como um mero ato de publicitação. Tratando-se de um ato de comunicação, que se destina a dar a conhecer aos potenciais interessados a decisão de contratar e o procedimento através do qual se pretende efetuar a adjudicação, ele não tem conteúdo decisório». O anúncio não derroga as provisões regulamentares contidas nas peças do procedimento, e não é um documento conformador do procedimento.
Em súmula, a A. encontra-se desprovida de legitimidade processual, não sendo possível reconduzir a sua situação, seja às regras gerais do art. 9.°, n.° 1 e 55.°, n.° 1 al. a) do CPTA, por remissão do art. 101.° do mesmo Código, seja à regra especial do art. 103.°, n.° 2 do CPTA. Simetricamente, não está em condições de retirar da procedência da ação qualquer utilidade.
(…)”.

A Recorrente, na P.I., impugna a decisão de abertura do procedimento concursal e ainda o acto de adjudicação e o contrato.
Na P.I. alegou, entre o mais, que tinha interesse em apresentar proposta no procedimento, mas que o não fez por só ter tido conhecimento do anúncio de abertura do procedimento quando já havia decorrido o prazo para apresentação das propostas.
Refere que o anúncio da abertura do concurso foi enviado para publicação no Diário da República no dia 27/03/2025, pelas 16.19h. e foi ainda publicado na plataforma vortal, na mesma data, pelas 16.36h, tendo sido fixado no anúncio, como prazo limite para a apresentação das propostas, as 12.00h do dia 28/03/2025.
O que diz violar o art.º 158.º do CCP, que estabelece o prazo mínimo de 24 horas para a apresentação de propostas.
É certo que o anúncio do concurso tem por função a publicitação da decisão de abertura do procedimento e, enquanto acto de comunicação, não tem vocação regulamentar, não podendo introduzir alterações àquela decisão.
No entanto, isso não afasta a possibilidade dos interessados virem impugnar judicialmente o acto de adjudicação com fundamento na inobservância de formalismos a que deva obedecer a publicação do anúncio.
No caso, a entidade adjudicante decidiu proceder à abertura do procedimento fixando, no P.P., o prazo de 24.00 horas para a apresentação das propostas.
Porém e de acordo com o alegado, os concorrentes não puderam aproveitar de tal prazo por, entre o momento da publicação do anúncio e o termo final ali fixado para a apresentação das propostas, ter mediado um prazo inferior ao de 24.00 horas previsto no art.º 158.º do CCP.
O reconhecimento de tal facto pode levar à anulação do acto de publicação do anúncio e dos actos posteriormente praticados, bem assim como à repetição da publicação do anúncio, com abertura de novo prazo para apresentação de propostas.
O que demonstra que a Recorrente, que alega estar interessada em apresentar proposta no procedimento, pode vir a retirar uma vantagem pessoal e directa da procedência da acção.
Pelo que se conclui que tem legitimidade activa em face do disposto no art.º 55.º, n.º 1, al. a) do CPTA, que estabelece que “tem legitimidade para impugnar um acto administrativo: a) Quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.”.
A sentença referiu ainda que a Recorrente não tem interesse pessoal em impugnar os actos praticados no procedimento por aí não ter apresentado proposta.
A Directiva 89/665, aplicável aos contratos a que se refere a Diretiva 2014/24/EU, estabelece no seu art.º 1.º, n.º 3, que “Os Estados-Membros devem garantir o acesso ao recurso, de acordo com regras detalhadas que os Estados-Membros podem estabelecer, pelo menos a qualquer pessoa que tenha ou tenha tido interesse em obter um determinado contrato e que tenha sido, ou possa vir a ser, lesada por uma eventual violação.”.
E no seu art.º 2.º-A, n.º 2, parágrafo 2º, estatui que “Considera-se que os proponentes estão interessados se ainda não tiverem sido definitivamente excluídos. Uma exclusão é definitiva se tiver sido notificada aos proponentes interessados e se tiver sido considerada legal por uma instância de recurso independente ou já não puder ser objecto de recurso.”.
O TJUE tem vindo a decidir (embora a propósito da excepção relativa ao interesse em agir) que nas situações em que a decisão de exclusão de determinada proposta se encontra consolidada, quer porque não foi objecto de impugnação, quer porque a impugnação judicial da decisão de exclusão foi julgada improcedente, o supra transcrito art.º 1.º, n.º 3, da Directiva 89/665, não se opõe a que não se reconheça interesse em agir ao proponente excluído para impugnar o acto de adjudicação e o contrato.
Neste sentido, veja-se o acórdão do TJUE, de 09/02/2023, proc. n.º C-53/232, em que, entre o mais, se realça a circunstância de tal orientação jurisprudencial não se mostrar contrária à adoptada anteriormente pelo mesmo Tribunal no âmbito de outros acórdãos em que se admitiu que o proponente excluído pode vir a impugnar o acto de adjudicação e o contrato, uma vez que, nas situações a que se referem esses outros acórdãos (cfr. processos C-100/12, C-689/13, C-771/19, C-497/20), o acto de exclusão da proposta do impugnante ainda não se tinha consolidado.
Veja-se ainda o acórdão do STA de 23/06/2022, proc. n.º 0648/20.7BELRA, proferido na sequência do reenvio prejudicial da questão para o TJUE, o qual proferiu o Despacho de 17/05/2022 (proc. n.º C-787/21) e em que se discutiu a questão de saber se um concorrente que não impugnou o acto de exclusão da sua proposta, tem interesse em agir quanto à impugnação do acto de adjudicação, por existir a possibilidade de vir a apresentar proposta no âmbito do novo procedimento que viesse eventualmente a ser aberto na sequência de uma eventual sentença anulatória, tendo-se decidido que não existe tal interesse, não obstante o recorrente alegar que, com a anulação do ato de adjudicação, mantinha a chance de vir a obter a adjudicação no âmbito do procedimento que viesse a ser aberto.
Tal doutrina não é transponível para a situação dos autos.
É certo que a Recorrente não está no procedimento.
Mas isso verifica-se porque não pôde apresentar proposta no procedimento (de acordo com o alegado) e não porque a sua proposta tenha sido excluída do procedimento.
O que a Recorrente pretende através dos presentes autos é vir a exercer o direito a participar no procedimento através da apresentação de uma proposta.
O n.º 2 do art.º 2.º do CPTA, estabelece que a todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos.
A sentença recorrida, ao ter concluído que a Recorrente não tem legitimidade por não ter apresentado proposta no procedimento, quando esta alega que a não pôde apresentar por ter sido violado o prazo previsto no art.º 158.º do CCP, recusa tutela jurisdicional à Recorrente e, por conseguinte, viola o mencionado n.º 2 do art.º 2.º do CPTA.
Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da subsecção de contratos do Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso e julgar improcedente a excepção de ilegitimidade activa deduzida, devendo os autos prosseguir os ulteriores termos no Tribunal a quo se a tal nada mais obstar.
Custas pelo Recorrido por ter ficado vencido – art.º 527.º do CPC.

Lisboa, 23 de Outubro de 2025.
Jorge Martins Pelicano

Helena Maria Telo Afonso

Ana Carla Duarte Palma