Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:54903/24.1BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:08/21/2025
Relator:MARA DE MAGALHÃES SILVEIRA
Descritores:REJEIÇÃO LIMINAR
DECRETAMENTO PROVISÓRIO
DESOCUPAÇÃO DE FOGO MUNICIPAL
Sumário:I - O n.º 4 do artigo 143.º do CPTA não é aplicável às situações em que o efeito meramente devolutivo do recurso é fixado nos termos da lei, designadamente na hipótese prevista no artigo 143.º, n.º 2, alínea b), do CPTA em que a lei prevê que os recursos interpostos de decisões respeitantes a processos cautelares têm efeito meramente devolutivo;
II - Só há lugar à apreciação do pedido de decretamento provisório na hipótese de ser proferido despacho de admissão liminar, porquanto, rejeitada liminarmente a providência cautelar, o processo cautelar finda, não podendo, pois, vir a ser decretada provisoriamente a providência cautelar que já foi (liminarmente) rejeitada;
III - Em fase liminar, as questões a apreciar são as de saber se se mostram verificados os pressupostos para a admissão liminar, traduzidos, essencialmente, na não verificação de qualquer dos fundamentos para a rejeição liminar nos termos do artigo 116.º, n.º 2 do CPTA;
IV - Não se realizam diligências probatórias quando o juiz considera existir fundamento para rejeição liminar, por esta pressupor assumir-se à evidência que o processo que não reúne as condições mínimas de viabilidade;
V - “A rejeição liminar do requerimento inicial deve ser usada com parcimónia, só devendo ocorrer quando não existe qualquer probabilidade de a pretensão poder vir a proceder (por a mesma ser infundada ou pela existência de excepções dilatórias insupríveis), isto é, só quando é evidente, patente, palmar e segura a desnecessidade de tutela cautelar é que pode ser rejeitado o requerimento inicial, pelo que na dúvida não se pode proceder a tal rejeição.” (Ac. deste TCA Sul de 13.9.2023, proferido no processo 350/23.8BEALM).
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:

1. Relatório

E… (Requerente ou Recorrente) instaurou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, providência cautelar contra o Município de Vila Franca de Xira (doravante Entidade Requerida, Requerida ou Recorrida), peticionando, no essencial, a suspensão de eficácia do ato administrativo, proferido verbalmente, que ordenou a desocupação da habitação municipal sita na Rua B…, n.º …, Vialonga e autorizar o Requerente e o seu agregado municipal a permanecer no fogo municipal até ao termo do processo principal.

Por sentença de 17 de janeiro de 2025, o Tribunal indeferiu liminarmente a providência cautelar requerida por considerar ser manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada e de ausência dos pressupostos processuais da ação principal [artigo 116.º, n.º 2 als. d) e f) do CPTA].

Inconformado o Requerente/Recorrente, interpôs recurso jurisdicional dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo, concluindo nos seguintes termos:

“1. O Tribunal ”a quo” rejeitou liminarmente a providência cautelar com base em manifesta falta de fundamento da pretensão e na inexistência de pressupostos processuais, violando o direito do recorrente a ver apreciada a sua pretensão com base nos factos e documentos apresentados.
2. O recorrente sempre residiu no imóvel em questão, tendo convivido economicamente com os seus progenitores e preenchendo os requisitos para a transmissão do arrendamento, conforme disposto no artigo 17.° do Regulamento n.° 42/2016 da Habitação Municipal de Vila Franca de Xira.
3. O Tribunal “a quo” cometeu erro de julgamento ao considerar que o recorrente requeria a anulação de um ato administrativo, quando na realidade a providência cautelar foi intentada com o objetivo de suspender o despejo e assegurar a transmissão do arrendamento, por morte dos seus pais, titulares do arrendamento do fogo municipal.
4. Tal erro de julgamento vicia a decisão recorrida, pois estabelece factos que não correspondem à realidade e conduz à aplicação errada das normas jurídicas ao caso concreto, pois caso isso não tivesso acontecido poderia ter conduzido a uma decisão/sentença diferente.
5. O Tribunal ”a quo” ignorou os elementos probatórios apresentados pelo recorrente, incluindo documentos oficiais (Liberdade condicional) que comprovam a sua residência e condição de beneficiário da habitação em questão, que são prova suficiente para um juízo de prognose favorável na acção principal a intentar e nem sequer ouviu as testemunhas indicadas, não esgotando toda a prova para a boa decisão da causa, conforme lhe competia.
6. A decisão recorrida incorre em nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.°, n.° 1, alínea d) do CPC, ao não apreciar o requerimento de ampliação do pedido com base em factos supervenientes, nomeadamente o efetivo despejo do recorrente e o pedido de decretamento provisório da providência cautelar nos termos do art.° 131.° do CPTA.
7. A falta de apreciação do requerimento configura uma violação do dever de fundamentação e do direito ao contraditório, garantidos pelo artigo 608.°, n.° 2, do CPC, aplicável ex vi artigo 1.° do CPTA.
8. Acresce ainda que, o Tribunal ”a quo” desconsiderou a necessidade de ponderação entre os interesses públicos e privados, conforme exige o artigo 120.°, n.° 2, do CPTA, ignorando a situação de vulnerabilidade social do recorrente, decorrente da perda da sua habitação sem alternativa.
9. A decisão recorrida desconsiderou a Lei n.° 81/2014, nomeadamente o artigo 26.°, n.° 6, que impõe o encaminhamento prévio de agregados familiares com carência habitacional para soluções habitacionais antes de proceder a despejos.
10. O Tribunal ”a quo” errou ao interpretar o artigo 28.° da Lei n.° 81/2014, e ao considerar que o recorrente deveria ter solicitado o apoio habitacional antes do despejo, quando a lei impõe à autarquia o dever de encaminhamento antes da execução do despejo e encaminhar não é o mesmo que informar, pois este último esgota-se em si mesmo com a informação dada e encaminhar pressupõe uma acção humana de dirigir, fazer algo. 
11. A decisão recorrida esvazia o princípio da proporcionalidade e os valores humanitários consagrados no artigo 18.° da Constituição da República Portuguesa e no artigo 9.° do CPTA, violando o direito fundamental à habitação previsto no artigo 65.° da CRP.
12. Nos termos do exposto, requer-se a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que aprecie devidamente a providência cautelar intentada, considerando os factos supervenientes e assegurando o direito do recorrente à transmissão do arrendamento da habitação municipal nos termos do Regulamento n.° 42/2016.
III. DO PEDIDO
Pelo exposto, Requer-se a V. Exa. que se digne a:
a) Admitir, Conhecer e dar provimento ao presente recurso, revogando a decisão por outra que venha a admitir a providência cautelar, Revertendo o despejo, pois o recorrente encontra-se a viver na rua com a sua família e com uma menor de 12 anos de idade ao seu encargo e estando em risco até a sua liberdade condicional, uma vez que esta é a morada que consta no tribunal e onde tem obrigação de permanecer e sobretudo porque se encontram preenchidos os pressupostos para admissão da providência cautelar e o interesse do recorrente é superior ao interesse público, que nem sequer consegue comprovar os prejuízos da não admissão da providência cautelar, em virtude de ser declarada a nulidade da sentença recorrida, nos termos do artigo 615.°, n.° 1, alínea d), do CPC, por omissão de pronúncia; 
b) Seja determinada a apreciação do requerimento de ampliação do pedido e do decretamento provisório, conforme solicitado e sustentado nos autos;
c) Caso se entenda por bem, seja a causa devolvida ao Tribunal a quo para nova decisão que contemple expressamente a matéria omitida.”

Notificada para os termos da causa e do recurso, a Entidade Requerida apresentou oposição, não tendo apresentado contra-alegações.


O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

O Ministério Público proferiu parecer pugnando pela improcedência do recurso.

Prescindindo-se dos vistos legais, atento o carácter urgente do processo, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos juízes desembargadores adjuntos (em turno), foi o processo submetido à conferência para julgamento.

2. Delimitação do objeto do recurso

Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso [cfr. artigos 144.º, n.º 2 e 146.º, n.º 4 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), 608.º, n.º2, 635.º, nºs 4 e 5 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC ex vi artigos 1.º e 140.º do CPTA], as questões que a este Tribunal cumpre apreciar reconduzem-se a saber se a sentença recorrida padece de,
a. Nulidade por omissão de pronúncia;
b. Erro de julgamento de facto (défice instrutório);
c. Erro de julgamento de direito.

Como questão prévia há que aferir da atribuição de efeito suspensivo ao recurso.

3. Fundamentação de facto

Na decisão recorrida não fixada qualquer factualidade.


4. Fundamentação de direito

4.1. Da atribuição de efeito suspensivo ao recurso

Em sede de requerimento de interposição de recurso pugnou o Recorrente pela atribuição de efeito suspensivo, aduzindo que ocorreram factos supervenientes que o deixaram a morar na rua, sem alternativa habitacional e sem dispor de rendimento que permita arrendar no mercado privado, sustentando que a sua situação é de manifesta urgência e gravidade, colocando em risco a sua dignidade humana, bem estar e liberdade, por se encontrar em liberdade condicional, tendo o tribunal determinado a sua permanência nessa habitação.
Como emerge do artigo 143.º, n.º 2 al. b) do CPTA os recursos interpostos de decisões respeitantes a processos cautelares têm efeito meramente devolutivo.
Prevendo-se nos n.ºs 3 a 5 deste artigo 143.º que,
“ 3 — Quando a suspensão dos efeitos da sentença seja passível de originar situações de facto consumado ou a produção de prejuízos de difícil reparação para a parte vencedora ou para os interesses, públicos ou privados, por ela prosseguidos, pode ser requerido ao tribunal para o qual se recorre que ao recurso seja atribuído efeito meramente devolutivo.
4 — Quando a atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso possa ser causadora de danos, o tribunal pode determinar a adoção de providências adequadas a evitar ou minorar esses danos e impor a prestação, pelo interessado, de garantia destinada a responder pelos mesmos.
5 — A atribuição de efeito meramente devolutivo ao recurso é recusada quando os danos que dela resultariam se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua não atribuição, sem que a lesão possa ser evitada ou atenuada pela adoção de providências adequadas a evitar ou minorar esses danos.”
Como resulta destes dispositivos o pressuposto da aplicação das medidas previstas no n.º 4 é que estejamos perante situação em que é o Tribunal que, ao abrigo do disposto no n.º 3, atribui, a requerimento do interessado, efeito meramente devolutivo ao recurso, por reconhecer que a suspensão dos efeitos da sentença é passível de originar situações de facto consumado ou a produção de prejuízos de difícil reparação para a parte vencedora ou para os interesses por ela prosseguidos.
Assim, o n.º 4 do artigo 143.º do CPTA não é aplicável às situações em que o efeito meramente devolutivo do recurso é fixado nos termos da lei.
Nem tão pouco se encontra prevista a possibilidade de atribuição de efeito suspensivo ao recurso, antes fixando a lei que os recursos interpostos de decisões respeitantes a processos cautelares têm efeito meramente devolutivo [artigo 143.º, n.º 2, alínea b), do CPTA].
Pelo que se indefere o requerido, mantendo-se o efeito meramente devolutivo.

4.2. Da nulidade da sentença

O Recorrente defende que a sentença incorreu em nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1 al. d) do CPC por não ter apreciado a ampliação do pedido, nem o pedido de decretamento provisório da providência cautelar nos termos do artigo 131.º do CPTA.
O artigo 615.º, n.º 1, do CPC, sob a epígrafe, “Causas de nulidade da sentença”, preceitua que a sentença é nula quando: “d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões que não devia conhecer”.
A nulidade da sentença a que se refere este normativo verifica-se quando ocorre o incumprimento, por parte do julgador, do poder/dever prescrito nos artigos 95.º, n.ºs 1 e 3 do CPTA e 608, n.º 2 do CPC, e que se traduz em decidir todas as questões submetidas à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e, por outro, de só conhecer de questões que tenham sido suscitadas pelas partes, salvo quando a lei lhe permita ou imponha o conhecimento oficioso de outras. No âmbito dos processos impugnatórios esse dever comporta a pronúncia sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas contra o ato (art.º 95.º, n.º 3 do CPTA).
Esclarece-se que, como é jurisprudência pacífica, a causa de pedir, ou melhor, as questões a decidir, não se confundem com as razões ou argumentos de que a parte se serve para sustentar a mesma causa de pedir. Pelo que apenas integra a nulidade prevista no citado normativo, a omissão de conhecimento das “questões”, mas já não a mera falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões.
Isto posto, importa, desde logo, ter em conta que a decisão recorrida foi tomada em sede liminar, ao abrigo do disposto no artigo 116.º, n.º 1 e 2 als. d) e f) do CPTA.
Isto é, a lei prevê, na tramitação dos processos cautelares, uma fase liminar, que ocorre após a distribuição, e destinada a “permitir a eliminação ab initio de processo que não reúnam as condições mínimas de viabilidade” (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 5.ª edição, Almedina, p. 996). Nessa fase liminar, o juiz, designadamente, quando considere evidente ou manifesto que a pretensão deduzida é infundada ou que faltam os pressupostos processuais da ação principal, em termos insupríveis, profere despacho de indeferimento liminar.
Na hipótese de não se verificarem os fundamentos de rejeição liminar tipificados no n.º 2 deste artigo 116.º do CPTA, é que a providência cautelar será liminarmente admitida e citados a entidade requerida e contrainteressados (artigo 117.º, n.º 1 do CPTA).
O decretamento provisório das providências cautelares previsto no artigo 131.º do CPTA e que pode ter lugar no despacho liminar (n.º 1) ou durante a pendência do processo cautelar, corresponde, essencialmente, a um mecanismo que possibilita que, ainda antes de ser proferida a decisão final do processo cautelar e, portanto, na sua pendência, o requerente beneficiar já (a título provisório) dos efeitos que a sentença (a ser-lhe favorável) lhe garantirá. Isto é, em situações de especial urgência, passíveis de dar causa a uma situação de facto consumado na pendência do processo cautelar, o juiz pode, a pedido do requerente ou a título oficioso, decretar provisoriamente a providência requerida ou aquela que julgue mais adequada (artigo 131.º, n.º 1 do CPTA).
Compreende-se, por isso, que só haja lugar à apreciação do pedido de decretamento provisório na hipótese de ser proferido despacho de admissão liminar, porquanto, rejeitada liminarmente a providência cautelar, o processo cautelar finda, não podendo, pois, vir a ser decretada provisoriamente a providência cautelar que já foi (liminarmente) rejeitada.
E no caso dos autos foi, exatamente, isso que sucedeu. Isto é, em fase liminar, o Tribunal a quo indeferiu liminarmente a providência cautelar e, tendo-o feito, naturalmente que, porque prejudicado o seu conhecimento (artigo 602.º, n.º 2 do CPC ex vi artigo 1.º do CPTA), não lhe cabia apreciar o pedido de decretamento provisório formulado, não incorrendo a tal respeito em omissão de pronúncia.
Quanto à alegada omissão de pronúncia respeitante à ampliação do pedido, há que considerar que em 8.1.2025 o Recorrente apresenta requerimento em que peticiona seja admitida a ampliação da providência cautelar, com a consequente reversão imediata do despejo, invocando os artigos 128.º e 131.º do CPTA, em virtude de ter sido executado o despejo.
Importa, desde logo, considerar que o requerimento em causa não consubstancia qualquer ampliação do pedido, na medida em que a pretensão cautelar ab initio formulada contemplava já a suspensão de eficácia do ato administrativo de despejo, a qual, se liminarmente admitida, determina a proibição de execução do ato nos termos do artigo 128.º do CPTA, e a autorização para, provisoriamente e na pendência da ação, o requerente e a sua família se manterem no locado – o que pressupõe, na hipótese de ter sido executado o despejo, o que o Recorrente apelida de reversão deste -, e o correspondente pedido de decretamento provisório destas pretensões cautelares ao abrigo do artigo 131.º do CPTA.
Isto é, o Requerente não apresentou qualquer pedido distinto daqueles que já resultavam do requerimento inicial. Na realidade, o requerimento em causa consubstancia, apenas, a ampliação da causa de pedir, vindo ali o Requerente a invocar factos – que aduz serem supervenientes –, que não alegou no requerimento inicial e destinados a suportar a sua pretensão cautelar.
Não estamos, pois, perante questões sobre as quais o Tribunal a quo se devesse pronunciar, mas apenas perante a ampliação da causa de pedir a considerar, sendo disso caso, na decisão liminar a proferir.
Ora, estando em causa a apreciação liminar, as questões aí a apreciar eram as de saber se se mostravam verificados os pressupostos para a admissão liminar, traduzidos, essencialmente, na não verificação de qualquer dos fundamentos para a rejeição liminar nos termos do artigo 116.º, n.º 2 do CPTA. Questões essas que o Tribunal conheceu, considerando a causa de pedir alegada pelo requerente, e feita a sua subsunção às normas de direito, julgando verificadas as tipificadas nas als. d) e f). E daí, consequentemente, concluiu pelo indeferimento liminar, razão pela qual não há lugar à aplicação do efeito do artigo 128.º do CPTA, nem à apreciação da pretensão de decretamento provisório nos termos do artigo 131.º do CPTA.
Não incorreu, pois, em nulidade por omissão de pronúncia.

4.3. Do erro de julgamento de facto (e do défice instrutório)


O Recorrente sustenta que o Tribunal a quo ignorou os elementos probatórios por si apresentados, não tendo ouvido as testemunhas indicadas que, em seu entender, comprovavam a sua residência e condição de beneficiário da habitação e são prova suficiente para um juízo de prognose favorável na ação principal a intentar.
Em primeiro lugar importa dar conta que a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, o qual, sob pena de rejeição total ou parcial do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, impõe ao Recorrente o ónus de especificar: 
a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados (cfr. art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC); 
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art. 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (cfr. art. 640.º, n.º 1, al. c), do CPC).
Em segundo lugar, dá-se nota que a omissão de diligências de prova por ser suscetível de afetar o julgamento da matéria de facto, acarreta a anulação da sentença por défice instrutório (entre outros os Acs. deste TCA Sul de 7.1.2021, proferido no processo 235/20.0BEBJA, de 6.1.2023, proferido no processo 80/16.7BELRA, de 4.4.2024, proferido no processo 548/18.7BESNT).
A respeito da produção de prova em sede cautelar artigo 118.º do CPTA no seu n.º 1 determina que, “[j]untas as oposições ou decorrido o respetivo prazo”, a produção de prova tem lugar quando o juiz a considere necessária, devendo ler-se este dispositivo em conjugação com os seus n.ºs 3 e 5.
Assim, cumprindo ao julgador, no âmbito das providências cautelares, ponderar se a produção de prova é ou não necessária para o apuramento da matéria de facto pertinente, há que ter em conta que, por um lado, a prova é sumária [art.º 114.º, n.º 2 al. g) do CPTA], feita com base perfunctória e indiciária, e, por outro, que incidindo a prova sobre factos concretos, ela excluirá conceitos, proposições normativas ou juízos jurídico-conclusivos.
Evidencia-se o incumprimento pelo Recorrente dos ónus impugnatórios que sobre si recaem nos termos do artigo 640.º, n.º 1 do CPC, omitindo a indicação da factualidade que, tendo sido por si alegada, carecia de prova, a decisão que sobre a mesma deveria ser proferida e o concreto meio de prova – designadamente documental ou testemunhal - que a sustentava, o que, per si, é determinante da rejeição da impugnação da matéria de facto.
Sem prejuízo, cumpre importa esclarecer que a decisão recorrida é de indeferimento liminar da providência cautelar, o que significa que, tendo o Tribunal a quo considerado ser manifesta in casu a falta de fundamento da pretensão formulada e a ausência dos pressupostos processuais da ação principal, o processo cautelar findou na sua fase liminar. Ou seja, não houve lugar à citação da requerida – por esta só ocorrer quando, “[n]ão havendo fundamento para rejeição”, o requerimento seja admitido (artigo 117.º, n.º 1 do CPTA) – e, consequentemente, à dedução de oposição ou termo do respetivo prazo.
Como se disse, só há lugar à produção de prova “[j]untas as oposições ou decorrido o respetivo prazo” (artigo 118.º, n.º 1 do CPTA), o que depende, pois, da admissão liminar do requerimento de adoção de medidas cautelares. Daí que não se realizam diligências probatórias quando o juiz considera existir fundamento para rejeição liminar, exatamente por esta pressupor assumir-se à evidência que o processo que não reúne as condições mínimas de viabilidade.
Daí que a circunstância de não terem sido realizadas as diligências de prova requeridas pelo Recorrente não fulmina a decisão de erro de julgamento de facto, designadamente na sua dimensão de défice instrutório. Pois que não há lugar à produção de prova em fase liminar.
O que poderia(á) suceder é que, padecendo a decisão recorrida de erro de julgamento de direito, por, como alega o Recorrente, não se mostrarem verificados os fundamentos para a rejeição liminar – designadamente, porque afinal não seria/é manifesto que não se mostre preenchido o fumus boni iuris -, devendo antes ser liminarmente admitida, após a junção da oposição pela entidade requerida (ou decorrido o respetivo prazo) se viesse/venha a entender ser necessário produzir prova nos termos do referido artigo 118.º do CPTA. Contudo, tal necessidade apenas poderia(á), disso sendo caso, vir a ser aferida no momento próprio e, como dissemos, na dependência da decisão quanto ao erro de julgamento de direito apontado à decisão de rejeição liminar.
Em face do exposto, não padece a sentença do erro de julgamento de facto, ou défice instrutório, que lhe é apontado.

4.4. Do erro de julgamento de direito


O Recorrente sustenta que o Tribunal a quo incorreu em erro ao rejeitar liminarmente a providência cautelar com base na manifesta falta de fundamento da pretensão e na ausência de pressupostos processuais, sustentando ser provável a procedência da ação principal dado que sempre morou no locado, com os seus progenitores, disso sendo prova os documentos que juntou ao requerimento inicial. E que, nesse sentido, preenche os pressupostos para a regularização habitacional, concretamente o requisito mencionado no artigo 17.º, n.º 1 do Regulamento 42/2016, pois 1 ano antes do falecimento da mãe residia em economia comum com a mãe, apesar de se encontrar a cumprir pena de prisão, e a sua mãe é que ajudava nas despesas da esposa e filha.
Sustenta que o Tribunal erra ao considerar que o recorrente pretende a anulação de ato administrativo ao abrigo dos artigos 4.º, n.º 2, al. e) e 37.º, n.º 1 als. a) e f) do CPTA, e que ocupou ilegalmente a habitação, pois o que alegou foi que ali sempre viveu com os pais.
Advoga, ainda, que não foi respeitada a Lei n.º 81/2014 porquanto o Recorrente não foi encaminhado para nenhuma alternativa habitacional previamente ao despejo.
Mais aduz que o Tribunal a quo desconsiderou o risco de periculum in mora, porquanto, ao ser despejado, ficou numa situação de grave precariedade social e que os seus interesses são superiores ao interesse público, pois a Requerida dispõe de outras habitações e o Requerente sempre pagou a renda.
A sentença recorrida rejeitou liminarmente o requerimento inicial entendendo, nos termos do artigo 116.º, n.º 2 als. d) e f) do CPTA, ser manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada e a ausência dos pressupostos processuais da ação principal. Para tanto entendeu que o Recorrente não pode obter, por via de ação de reconhecimento de direito, o efeito que pretende por, estando dependente de juízos valorativos próprios da Administração, estar dependente de pedido do interessado dirigido à Administração.
Assim, considerou que o artigo 65.º da CRP não confere ao requerente o direito de exigir da requerida a atribuição da habitação que ocupa, pois que tal direito só emergia na sua esfera jurídica se a habitação lhe tivesse sido atribuída de acordo com os procedimentos e critérios previstos na Lei n.º 81/2014, de 19/12. Entendeu, ainda, que também o artigo 28.º, n.º 6 da Lei n.º 81/2014 não confere o direito de exigir a atribuição de habitação social, pois, sendo conjugado com o artigo 14.º, não prescinde de valorações própria da entidade requerida quanto ao juízo sobre a verificação de uma situação «de vulnerabilidade e emergência social e perigo físico ou moral para as pessoas», bem como quanto à definição das «condições de adequação e de utilização das habitações».
Considera-se, ainda, na sentença que, estando em causa uma pretensão de abstenção à prática de atos (administrativos) determinantes da desocupação voluntária e despejo, nenhum dos factos alegados permitem concluir que, nos termos do artigo 39.º, n.º 2 do CPTA, vindo tais atos a ser praticados a esfera jurídica do requerente não é tutelada por pedido de impugnação.
Mais se entendendo que (i) as soluções de encaminhamento previstas no n.º 6 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, não têm aptidão a perpetuar a ocupação irregular de fogo social, (ii) que o requerente não alega ter apresentado perante a Requerida pedido, tendo sido este deferido, que sustentasse a sua pretensão no artigo 17.º do Regulamento n.º 42/2016, de 15.01 do Município de Vila Franca de Xira, e que (iii) não concretizou a violação do princípio da igualdade, nem tão pouco o direito à saúde.
Refira-se a tal respeito que, tendo o Tribunal a quo considerado ser manifesta a falta de fundamento da ação, no essencial por considerar evidente a ausência de preenchimento do requisito do fumus boni iuris, naturalmente que, sendo cumulativos os requisitos de adoção das providências cautelares vertidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º do CPTA, não havia lugar (como assim sucedeu), por prejudicado (artigo 608.º, n.º 2 do CPC), à apreciação dos pressupostos do periculum in mora e da ponderação de interesses.
De acordo com o disposto no artigo 116.º, n.º 2 do CPTA, constituem fundamento de rejeição liminar do requerimento da providência cautelar, além do mais, a manifesta falta de fundamento da pretensão formulada [al. d)] e a manifesta ausência dos pressupostos processuais da ação principal [al. f)].
A respeito deste artigo 116.º do CPTA escrevem Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 5.ª edição, págs. 996 e ss., que, “a existência de despacho liminar, ao permitir a eliminação ab initio de processos que não reúnam condições mínimas de viabilidade, favorece, em teoria, a economia processual. (…) E, a haver despacho liminar, justifica-se que seja em processos como os cautelares, que são processos urgentes, na medida em que, uma vez recebido o requerimento, este deve ser apresentado ao juiz sem mais delongas e que, por outro lado, ao juiz, no despacho liminar, não só cumpre evitar o inútil prosseguimento de processos inexoravelmente condenados ao insucesso, como também promover, desde logo, através da emissão de um despacho de aperfeiçoamento, o suprimento das eventuais deficiências de que a instância possa padecer, quando esse suprimento possa ser feito através da correcção do requerimento inicial.
O despacho liminar só deve ser de indeferimento quando o tribunal considere que é evidente ou manifesto que a pretensão deduzida é infundada ou que existem exceções dilatórias insupríveis de conhecimento oficioso que impedem a emissão de uma pronúncia de mérito sobre a pretensão do requerente ou se verifique uma total ausência do pedido ou da causa de pedir em termos de o requerimento não poder ser objecto de convite ao aperfeiçoamento (…)”.
Assim, o indeferimento liminar “constitui um julgamento prévio ou preliminar, através do qual a lei procura proteger o requerido de demanda absolutamente injustificada, limitando o exercício do direito de acção aos casos em que exista um mínimo de viabilidade aparente da pretensão” (cf. Antunes Varela, in RLJ, 126º, pág. 10475).
E como se deu conta, entre outros, no Ac. deste TCA Sul de 13.9.2023, proferido no processo 350/23.8BEALM, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/8c4128cf11a9f28d80258a2a004aaf95?OpenDocument, «[t]ambém a jurisprudência, nomeadamente a deste TCA Sul, vem sustentando que a rejeição liminar duma providência cautelar deve ser reservada para situações excepcionais, uma vez que a mesma “(…) deve ser utilizada com cautela e reservada para aquelas situações em que seja manifesta a existência de fundamento para tal, pois que a regra é a do prosseguimento dos autos, com a citação da entidade requerida, a apresentação por esta da sua defesa, a instrução do processo e a prolação de decisão, tanto mais que o despacho de rejeição é proferido sem audição da parte” (cfr., neste sentido, os acórdãos deste TCA Sul, de 20-11-2014, proferido no âmbito do processo nº 11555/14, de 16-1-2020, proferido no âmbito do processo nº 1575/19.6BELSB, e de 7-7-2021, proferido no âmbito do processo nº 1893/20.0 BELSB-A-A),
16. Significa isto que a rejeição liminar do requerimento inicial deve ser usada com parcimónia, só devendo ocorrer quando não existe qualquer probabilidade de a pretensão poder vir a proceder (por a mesma ser infundada ou pela existência de excepções dilatórias insupríveis), isto é, só quando é evidente, patente, palmar e segura a desnecessidade de tutela cautelar é que pode ser rejeitado o requerimento inicial, pelo que na dúvida não se pode proceder a tal rejeição.»
A respeito da falta de fundamento da pretensão formulada [al. d)] está em causa “a aplicação dos critérios de que depende da adoção das providências cautelares e há de fundar-se num juízo negativo sobre o preenchimento de algum dos pressupostos de que depende a aplicação desses critérios: por via de regra, de acordo com o regime comum dos n.ºs 1 e 2 do artigo 120.º, o periculum in mora, o fumus boni iuris e a ponderação de danos. (…) Por último, a manifesta existência de circunstâncias que obstem, por falta de preenchimento de pressupostos processuais, ao conhecimento do mérito da causa no processo principal (alínea f)) determina a improcedência do processo cautelar, atenta a relação de instrumentalidade que se estabelece entre este e aquela.” (Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in ob.cit., p. 999).
Se bem se compreende a sentença recorrida, a “manifesta ausência dos pressupostos processuais da ação principal” resultaria de, pretendendo o recorrente instaurar ação de reconhecimento do direito ao arrendamento do fogo municipal, a sua pretensão estar dependente de uma (prévia) atuação administrativa sem a qual não poderia obter tal efeito e não se mostrar indispensável a pretensão de condenação da Administração à abstenção de prática dos atos de desocupação voluntária e despejo por poder impugnar os atos que o determinem.
Impõe-se dar nota que o Recorrente no requerimento inicial sustentou que a ação cautelar “é preliminar à ação de administrativa de impugnação prevista nos artigos 50.º, 53.º e seguintes do CPTA a intentar para reconhecimento do direito à regularização da ocupação do fogo habitacional (…), preenchimento de condições para ser regularizada a sua situação habitacional e consequente direito ao arrendamento do fogo municipal” e que o Recorrente, nesta ação cautelar, peticiona a suspensão do ato administrativo (que terá sido verbalmente proferido no dia 20.12.2024) que lhe ordenou a desocupação do fogo habitacional, autorizando-o a permanecer no fogo municipal até que haja decisão na ação principal.
Ou seja, opostamente ao que agora vem alegar, o Recorrente indicou de forma expressa que a ação principal a intentar correspondia a uma ação administrativa de impugnação de ato administrativo, nos termos do artigo 37.º, n.º 1 al. a) e 50.º e ss. do CPTA, destinada, pois, a obter a anulação ou declaração de nulidade desse ato em conformidade com o artigo 50.º, n.º 1 do CPTA.
Isto é, o que está em causa, de resto porque na ação cautelar o Recorrente peticionou a suspensão de eficácia de ato administrativo nos termos da al. a) do n.º 2 do artigo 112.º do CPTA, ato esse que o Recorrente indicou corresponder à ordem de desocupação que lhe terá sido notificada verbalmente no dia 20.12.2024, é uma pretensão principal de natureza impugnatória, visando a anulação ou declaração de nulidade de ato administrativo.
Efetivamente, embora o Requerente refira que a ação a intentar será para “reconhecimento do direito à regularização da ocupação do fogo habitacional (…), preenchimento de condições para ser regularizada a sua situação habitacional e consequente direito ao arrendamento do fogo municipal”, do que se trata é de uma miscigenação entre a causa de pedir, ou melhor os fundamentos que subjazem à sua pretensão impugnatória – concretamente ser titular do direito à regularização da ocupação do fogo habitacional e ao arrendamento do fogo, por preencher as condições para ser regularizada a sua situação habitacional -, e o pedido que, como expressamente refere, é impugnatório. Ou seja, a presente pretensão cautelar de suspensão de eficácia de ato administrativo – na qual, também se deteta a referida confusão entre pedido e causa de pedir [vg. os “pedidos” c), d) e e)] -, foi, como o próprio requerente assim configurou, instaurada como preliminar a ação administrativa de impugnação do ato administrativo que lhe ordenou a desocupação do fogo habitacional.
Não se trata a ação principal, como erroneamente considerou o Tribunal a quo, sequer em termos cumulados, de uma ação de reconhecimento de situação jurídica subjetiva, nos termos do artigo 37.º, n.º 1 al. f) do CPTA, aliada a um pedido de condenação à abstenção de prática de atos administrativos, que, exigindo a apreciação dos direitos reclamados pelo requerente de valorações próprias da entidade requerida, à sua míngua (e de ato que as denegasse) não lhe assistisse o direito a obtê-las por via de ação de simples apreciação – entendida como “meio processual complementar, destinado a ser utilizado nos casos em que a lei não faculte aos administrados, na situação em que se encontram no momento da propositura da acção, outro meio jurisdicional adequado à efectiva tutela jurisdicional desses direitos ou interesses legítimos”, quando existe ato administrativo impugnável e para obter o efeito que resultaria da sua anulação (Ac. do STA de 14.1.2024, proferido no processo 01125/03, disponível em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/24cf3f806960907e80256e230040d166?OpenDocument&ExpandSection=1) – e para que fosse convocável o disposto no artigo 39.º, n.º 2 do CPTA.
Evidencia-se, por um lado, que em momento algum o Recorrente sustentou que a ação principal se destinaria a obter a abstenção à prática dos atos administrativos determinantes da desocupação voluntária ou despejo da habitação em termos que afastam a aplicabilidade do artigo 39.º, n.º 2 do CPTA. Por outro, verifica-se que o Recorrente sustenta a sua pretensão na prática de um ato administrativo que, referindo ter sido verbalmente notificado em 20.12.2024, lhe determinou a desocupação voluntária do locado, ao qual, para fundar o preenchimento do requisito do fumus boni iuris, imputa diversas ilegalidades, e que constituirá o objeto da ação principal. Daí que não se pode aceitar que, nos termos considerados pela sentença recorrida, seja evidente a ausência de pressuposto processual da ação principal – designadamente, a falta de uma prévia atuação administrativa denegadora dos direitos cujo reconhecimento pretenderia obter ato administrativo ou utilização da ação de reconhecimento de posição jurídica subjetiva para obter o efeito da anulação de ato administrativo ou indispensabilidade da pretensão de condenação à não emissão de atos administrativos.
O Tribunal a quo rejeitou, ainda, liminarmente a providência cautelar sustentando ser manifesta a falta de fundamento da pretensão cautelar, concretamente por ser evidente o não preenchimento do requisito do fumus boni iuris.
A respeito do requisito do fumus boni iuris a lei exige que “seja provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente”, isto é, sobre o requerente impende o encargo de fazer prova sumária do bem fundado da pretensão deduzida no processo principal. O juiz tem, assim, que verificar em sede cautelar o grau de probabilidade de êxito do requerente na ação principal.
De notar que o juízo sobre a aparência do direito deve ser positivo, mas não deixa de ser apenas perfunctório. Ao julgar a providência o juiz não antecipa o julgamento da ação, não formulando um juízo de certeza da procedência, mas cumpre-lhe adiantar se é plausível e provável o seu êxito. E só em caso afirmativo pode decretar a providência.
Em sede liminar, haverá rejeição quando seja manifesta a não procedência da ação principal. Isto é, não basta que se afigure a improcedência da ação, antes se exigindo que essa não procedência seja notória.
Ora, o Requerente funda a verificação do preenchimento do fumus boni iuris na ilegalidade do ato alega ter determinado a desocupação (voluntária) do fogo habitacional decorrente de erro nos pressupostos por ter ocorrido a aceitação tácita da transmissão do arrendamento e dispor do direito à regularização da sua situação habitacional por preencher o requisito do artigo 17.º do Regulamento 42/2016, assistir-lhe o direito à habitação ao abrigo do artigo 65.º da CRP, por violação do principio da igualdade, incumprimento da obrigação de encaminhamento nos termos do artigo 28.º, n.º 6 da Lei n.º 81/2014, nulidade da notificação realizada verbalmente e violação do direito de audiência prévia.
Refira-se que, desde logo, se deteta que o Tribunal, no julgamento que fez quanto à manifesta improcedência da pretensão cautelar, não aborda as referenciadas aceitação tácita da transmissão do arrendamento, a invalidade da notificação ou a violação do direito de audiência prévia.
No que às demais questões respeita, anuímos ao juízo que o Tribunal a quo faz quanto à manifesta inexistência do direito ao arrendamento do fogo municipal fundado no direito à habitação previsto no artigo 65.º da CRP.
Com efeito, a tal respeito, a jurisprudência é unânime na consideração que “o invocado direito à habitação com base no artigo 65.º da CRP não serve para fundamentar os pedidos cautelares, nem, de igual maneira, as pretensões materiais a expressar pelo ora Recorrente na acção principal, porquanto, o referido comando constitucional tem a natureza de norma programática, carecendo a sua execução da intermediação que é conferida pela lei ordinária (infraconstitucional), designadamente, no que toca à definição de critérios e regras de acesso à habitação pública em condições de igualdade e em concurso com outros cidadãos igualmente carecidos de um fogo social.” e que “doartigo 65.º da CRP não se extrai a interpretação que o mesmo consinta aos cidadãos carecidos de habitação a prática de actos de ocupação abusiva de casas municipais, ainda que momentaneamente devolutas, sem que exista para tal apropriação um qualquer título válido (um contrato ou um acto administrativo autorizador ou atributivo da habitação), mesmo que a tal panorama tenha conduzido a carência económica do ocupante (…), pois, nas palavras do mencionado acórdão, “pelo facto de a carência económica do agregado familiar do recorrente ser notória, tal circunstância não é apta a, de modo automático, conferir-lhe o direito a usar uma habitação social.” (Ac. deste TCA Sul de 14.11.2024, proferido no processo 2013/24.8BELSB, disponível em https://www.dgsi.pt/jtca.nsf/170589492546a7fb802575c3004c6d7d/fb6539569b8e7e9d80258bd6004e5029?OpenDocument).
E também a respeito do princípio da igualdade assume-se como notório que o Recorrente limita-se a sustentar que outros cidadãos, ocupantes não autorizados, terão tido oportunidade de regularizar a sua situação, razão pela qual lhe teria que ser dada idêntica possibilidade. Só que não identifica que cidadãos foram esses, invocando uma situação de alegada desigualdade de forma não concretizada que impossibilita, desde logo, atestar da igualdade de situações entre os referidos cidadãos e o requerente que demandariam tratamento idêntico, sob pena de violação do referido princípio. Em termos que se terá considerar que, de forma manifesta, a ação principal não procede com fundamento na violação do princípio da igualdade.
Com referência ao incumprimento da obrigação de reencaminhamento prevista no artigo 28.º, n.º 6 da Lei n.º 81/2024, também a jurisprudência é unânime na consideração de que «[a] obrigação de «encaminhamento» é, pois, uma consequência, e não um pressuposto legal do despejo.
Acresce, aliás, que o cumprimento da obrigação legal em questão não é, sequer, uma consequência necessária e automática do despejo, dado que apenas beneficiam do «encaminhamento» previsto na lei «os agregados alvos de despejo com efetiva carência habitacional», o que supõe uma avaliação casuística da sua necessidade, o que, no caso dos autos, não se encontra sequer demonstrada.
13. Sempre se dirá, a benefício da certeza do direito, que ainda que os Recorrido beneficiassem do «encaminhamento» previsto no número 6 do artigo 28.º, a efetivação do respetivo despejo não estaria legalmente dependente da existência de uma alternativa concreta para a resolução do seu problema habitacional.
Aquela disposição legal não lhes confere o direito a exigir a disponibilidade de uma habitação determinada, dado que a mesma apenas estabelece uma obrigação de meios, mas não de resultado.
É nesse sentido que se tem de interpretar a expressão «encaminhamento», que literalmente significa uma simples orientação, e não permite a leitura garantística que dela fez o tribunal a quo.
Tem, por isso, razão o Recorrente, que nessa matéria é acompanhado pelo Ministério Público, quando alega que o cumprimento daquela obrigação se consubstancia, essencialmente, através da prestação de informações sobre as «soluções legais de acesso à habitação» e os «apoios habitacionais» existentes, mas não da realização de diligências concretas para obtenção de uma nova habitação.» (Ac. do STA, de 02/05/2024, prolatado no processo sob o n.º 02681/17.7BEPRRT, consultável em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/2bf8758333087f1080258b1c004a4bf9?OpenDocument.
Ora, como se disse no Ac. deste TCA Sul de 15.5.2025, proferido no processo 2608/24.4BELSB, “o incumprimento da obrigação de encaminhamento prevista no n.º 6 do artigo 28.º da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, não afecta a legalidade do acto de despejo, na medida em que este acto é um pressuposto da obrigação de encaminhamento, sendo anterior à mesma”.
Daí que, ainda que se demonstrasse que in casu não teria havido lugar ao cumprimento da obrigação de meios em causa, informando e esclarecendo os ocupantes das prerrogativas e alternativas legais ao seu dispor e reencaminhamento para as mesmas, tal omissão não afetaria a validade do ato suspendendo, em termos tais que, por tal motivo, a ação principal seria improcedente.
Também se afigura manifesta a improcedência da ação cautelar com fundamento na invocada “nulidade da notificação realizada verbalmente”, assim sucedendo porque, como é sabido, sendo a notificação um ato posterior e externo ao ato administrativo (impugnado/suspendendo), a sua falta ou irregularidades não geram a nulidade ou anulabilidade do ato, antes contendendo apenas com o prazo de impugnação (artigo 59.º, n.º 2 do CPTA).
Mas o mesmo já não sucede quanto ao invocado (i) reconhecimento tácito da transmissão do direito ao arrendamento, (ii) ao direito à transmissão do arrendamento por força do preenchimento dos pressupostos do artigo 17.º do Regulamento n.º 42/2016, de 15/01 do Município de Vila Franca de Xira e (iii) à violação do direito de audiência prévia, cuja improcedência não se assumem à evidência, antes exigindo do Tribunal a quo labor (ainda que perfunctoriamente) quanto à sua apreciação, considerando ademais os elementos probatórios, designadamente documentais juntos aos autos.
E reiterando-se que o Tribunal a quo concluiu pela manifesta falta de fundamento da pretensão sem sequer apreciar as questões referidas em (i) e (ii), desde já adiantamos que não acompanhamos o entendimento que “[o] artigo 17.º do Regulamento n.º 42/2016, de 15/01 do Município de Vila Franca de Xira depende (i) de prévio pedido para o efeito formulado junto do Município e (ii) do deferimento do pedido em causa pelo Município”.
Com efeito, o que aí se prevê no n.º 1 é que “por morte do arrendatário, pode o município transferir os direitos e deveres daquele para o cônjuge, para qualquer um dos filhos, ou outros membros do agregado familiar, desde que qualquer destes últimos convivessem com o arrendatário há mais de um ano, em economia comum antes da morte e desde que tal residência seja documentalmente comprovada”.
Mostrando-se necessário averiguar se em causa está um dever/obrigação do Município, ou se se encontra atribuída margem de livre decisão à Administração e/ou em que se traduz o requisito da convivência em economia comum há mais de um ano antes da morte do arrendatário, designadamente para o efeito de saber se, como alega o Requerente, ao mesmo não obsta a circunstância de se ter encontrado a cumprir pena privativa da liberdade e/ou se se basta com a alegada convivência do arrendatário com outros elementos do agregado familiar.
Nestas circunstâncias em que se verifica que a decisão pela falta de fundamento da ação cautelar está dependente da análise de elementos de prova e, bem assim, de juízos de direito que não se revelam à evidência, assume-se como prematuro o juízo contido na decisão recorrida, nomeadamente no tocante à falta de “fumus boni iuris”, pois a rejeição liminar do requerimento inicial, ao abrigo do n.º 2 do artigo 116º do CPTA, exige o carácter evidente e óbvio da falta de fundamento da pretensão.
Sem prejuízo, como se disse no Ac. deste TCA Sul de 13.9.2023, proferido no processo 350/23.8 BEALM, já citado, “[e]ste erro de julgamento não se traduz em qualquer condicionamento quanto ao juízo que, ponderadamente, venha a fazer-se, no momento próprio, quanto aos pressupostos processuais que têm de estar reunidos e aos requisitos necessários para a decretação da providência cautelar, previstos no artigo 120º do CPTA, ou seja, o erro de que enferma a decisão recorrida não impede que, a final, possa vir a ser julgado improcedente o presente processo cautelar”.
Por conseguinte, impõe-se a conclusão de que a decisão recorrida incorreu em erro ao rejeitar liminarmente o requerimento inicial, pelo que a mesma deverá ser revogada e, em consequência, ser determinada a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, tendo em vista, se a tal nada obstar, o prosseguimento do processo nessa instância, incluindo a apreciação do pedido de decretamento provisório da providência.

Da condenação em custas


Custas pelo Recorrido (n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), não sendo devida taxa de justiça por não ter contra-alegado.


V. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul, em,
a. Conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e, em consequência, determinar a baixa dos autos ao Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, tendo em vista, se a tal nada obstar, o seu prosseguimento nessa instância;
b. Condenar o Recorrido nas custas, não sendo devida taxa de justiça por não ter contra-alegado.

Mara de Magalhães Silveira
Sara Diegas Loureiro (em turno)
Teresa Costa Alemão (em turno)