Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:16153/25.2BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/23/2025
Relator:JORGE PELICANO
Descritores:AUDIÊNCIA PRÉVIA
Sumário:O despacho que dispensa a realização da audiência prévia nos termos do art.º 87.º-B, nº 2 do CPTA, deve ser precedido da audição das partes.
Votação:Voto vencido
Indicações Eventuais:Subsecção de Contratos Públicos
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência no Tribunal Central Administrativo Sul.

O Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P. e a sociedade ...., S.A., vêm, cada um por si e no âmbito da presente acção de contencioso pré-contratual que a ...., S.A. intentou contra aquele instituto, recorrer do despacho que dispensou a realização da audiência prévia e do saneador sentença proferido no TAC de Lisboa que anulou o acto de adjudicação e condenou o Réu a praticar novo de adjudicação que recaísse sobre a proposta apresentada pela Autora.
O Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P. apresentou as seguintes conclusões com as respetivas alegações de recurso:
1) O presente recurso é interposto do despacho que antecedeu à prolação da sentença, bem como, do conteúdo da douta sentença proferida pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa que julgou a presente ação procedente e, em consequência, anulou o ato de adjudicação do contrato à ...., e condenou a Entidade Demandada a adjudicar o contrato à Autora.
2) Todavia, antes de avançar para a análise à Douta sentença em crise, importa analisar o seguinte despacho: “- Da dispensa de realização da audiência prévia (artº 87º-B, nº 2, ex vi do artº 102º, nº 1, ambos do CPTA) Considerando que a audiência prévia se destinaria apenas ao fim previsto na al. b), do nº 1, do artº 87º-A, do CPTA, dispenso a sua realização. Nesta conformidade, cumpre proferir saneador-sentença.”

3) Salvo o devido respeito por opinião contrária, a alínea b) do artigo 87.º-A do CPTA tem no seu escopo a faculdade de conceder às partes a possibilidade de exercerem o princípio do contraditório, isto é, de apresentarem e discutirem as concretas razões de facto e de direito que lhes assiste na ação, o que não aconteceu no presente caso, vejamos:

4) Embora o n.º2 do artigo 87.º-B do CPTA permita a possibilidade de o juiz do processo dispensar a realização da audiência prévia, quando esta se destine a facultar às partes da discussão de facto e de direito, nas situações em que tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa, não pode a Mm Juiz, avançar para uma decisão, sem notificar previamente as partes dessa sua intenção, concedendo prazo às partes para exercerem o princípio do contraditório, conforme disposto no n.º3 do artigo 3.º do CPA.
5) Ora, no Douto despacho que antecede o despacho saneador sentença, não existe qualquer referência à prova documental e testemunhal, indicadas no processo, e que a Mm Juiz considerou suficientes para apreciar o pedido, pelo que, não se mostra, devidamente, fundamentada a decisão de dispensa de audiência prévia.
6) Sem prejuízo de estarmos um perante um processo de natureza urgente, não fica prejudicado o princípio do contraditório, em todas as fases processuais, encontrando-se a sua tramitação vinculada ao cumprimento das normas consagradas no capítulo II do título III do CPTA.
7) Não tendo as partes sido notificadas para, querendo, se pronunciarem quanto à decisão de não realização de audiência prévia, estamos perante uma omissão processual, que implica a sua nulidade, e consequente nulidade do despacho saneador sentença.
8) Para além da nulidade já arguida, cremos, que a falta de fundamentação do despacho que afastou a realização de audiência prévia, encerra, igualmente uma clara violação da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente, quando o n.º1 do artigo 205.º da CRP consagra o seguinte: “1. As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.”, (vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito no Processo n.º 7331/10.0TBOER.L1.S1), diário da república Acórdão de 2022-05-26 (Processo n.º 058/10.4 BEPRT), de 26 de maio, in https://diariodarepublica.pt.

9) Sem prejuízo do acima exposto, sempre se imporá analisar o teor da Douta decisão proferida, com a qual não concordamos, nomeadamente, na parte em que deu razão à A. por considerar que o Júri do concurso praticou um ato anulável, por violação da lei.
10) Vejamos, do Programa do Concurso, resulta, no que diz respeito à “Experiência de Equipa”, a “Experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público (n.º de projetos nos últimos 5 anos), sendo atribuída 0 pontos, a um número inferior ou igual a 2 projetos, 3 a 4 projetos obterá a pontuação de 20, 5 a 6 projetos, corresponderá a 30 pontos e 6 projetos obterá a pontuação de 40 pontos.
11) Esta expressão embora se encontre patente no Programa de Concurso, não encontra expressão no Caderno de Encargos, nem noutras peças do presente procedimento concursal, tratando-se de um manifesto lapso.
12) O Júri clarificou o porquê de não fazer sentido a expressão “gestor de projeto” no que diz respeito ao perfil Arquiteto de Dados e concluiu que esta característica agora exigida em sede de Programa de Concurso, veio trazer uma exigência, que não se encontra contemplada no Caderno de Encargos.
13) Não apresenta qualquer correspondência com a natureza e o propósito deste tipo de contrato, sendo apenas compaginável com a responsabilidade associada ao gestor de projeto e não aos restantes perfis da Equipa de Projeto.
14) No âmbito dos pedidos de esclarecimentos, a questão ficou devidamente sanada (Pergunta 43), sendo claro para os concorrentes quais as exigências a cumprir, afastando a referência à gestão, pois, ao responder nos moldes em que respondeu, o Júri clarificou para todos os concorrentes, que não estava em causa a “gestão de projetos”, ficando, por isso, sanada qualquer incoerência existente nas peças do procedimento.

15) Sendo, por isso, de aceitar a resposta do Júri, quando refere no Relatório III o seguinte: “b) De acordo com a análise e avaliação dos factos, considerando o indicado em 9.5.2, o Júri entende que o CV apresentado evidencia de forma factual experiência em 6 projetos envolvendo entidades do setor público, sendo que destes e face aos argumentos apresentados na pronúncia, pelo menos 5 são nos últimos 5 anos, o que está em correspondência com a avaliação e a pontuação atribuída. Apenas na experiência do Instituto de Registo e Notariado, período de 04/2017 a 07/2021, a qual integra 2 projetos, se poderá questionar quanto terminou o primeiro projeto para saber se foi em momento anterior aos 5 anos, todavia, trata-se de uma questão/resposta sem impacto na avaliação, dado que a pontuação a atribuir seria na mesma 5 e 6 projetos; b) Mais precisa o Júri, que o mesmo desempenha um papel crucial para assegurar a isenção e transparência do procedimento, atando estritamente com base nas determinações estabelecidas nas peças do procedimento. Neste contexto, é de mencionar que o Júri na sua atuação esteve sempre orientado pelos princípios estabelecidos no CCP, nomeadamente, os princípios da concorrência, da prossecução do interesse público, da legalidade e da igualdade de tratamento entre os concorrentes, bem como, pelas normas específicas das peças do procedimento, assegurando todas as decisões com objetividade, de forma imparcial e devidamente fundamentadas, pelo que a pronúncia efetuada, não é, em termos gerais, de forma alguma aceite. Neste contexto, o Júri refuta totalmente a pronúncia quanto ao favorecimento da ...., S.A.”
16) Para além do acima referido, sempre se dirá que, de acordo com o n.º 9 do artigo 50.º do CCP, os esclarecimentos fazem parte integrante das peças do procedimento a que dizem respeito e prevalecem sobre estas em caso de divergência, acrescentando, ainda, o Caderno Encargos - Capítulo I, relativo às Cláusulas Jurídicas, artigo 3.º, sob a epígrafe “Documentos Integrantes do Contrato”, al, a) do n. º2 - o seguinte: “O contrato a celebrar integra ainda os seguintes elementos: Os esclarecimentos a celebrar e as retificações relativos às peças do procedimento;”

17) Esclarecendo, ainda, n.º 4 do mesmo artigo que “Em caso de divergência entre os vários documentos que integram o contrato, a prevalência obedece à ordem pela qual vêm enunciadas no número anterior”.

18) Isto é, o caderno de encargos elucida de forma clara e objetiva que os esclarecimentos prestados, prevalecem, em caso de divergência, sob os suprimentos dos erros e omissões das peças do procedimento identificados pelos concorrentes, desde que esses erros e omissões tenham sido expressamente aceites pelo órgão competente para a decisão de contratar (b); o Programa do Concurso (c); O Caderno de Encargos e anexos (d); a Proposta adjudicada (e) e os esclarecimentos sobre a propostas adjudicada prestados pelo Adjudicatário.
19) Logo, não nos oferecem dúvidas que o esclarecimento prestado, clarifica a todos os concorrentes, qual a interpretação daquele critério de avaliação, ficando, deste modo, arredada a expressão “gestão de projetos”. Ou seja, contrariamente à decisão aqui impugnada, cremos que ao cingir a interpretação ao elemento literal, e apoiar a sua decisão, no artigo 9.º do Código Civil, a Mm Juiz a quo não teve em consideração o disposto no caderno de encargos.
20) Sem prejuízo de a letra da lei ser um elemento “de partida” para a interpretação de uma norma jurídica, no caso concreto, não podem ficar arredadas as regras interpretativas contempladas no Caderno de Encargos, as quais, são do conhecimento de todos os concorrentes.
21) No caso concreto, e com o devido respeito, que é muito, parece-nos, que a Mm Juiz a quo iniciou a sua interpretação a partir de uma premissa errada, isto é, da prevalência do que se encontra escrito no Programa do Concurso, afastando o esclarecimento prestado (43).

22) O que não podia nunca acontecer, tendo em conta o referido nas Cláusulas Jurídicas do Caderno de Encargos.

23) E é fazendo uso das regras da interpretação constantes do artigo 9.º, que se afigura totalmente admissível a interpretação avançada pelo Júri, na medida em que se parte da divergência literal de duas normas, mas a sua interpretação terá de ir além do elemento literal, e analisar qual era o fim a que se destinada e a motivação do legislador e a sua adequação ao que era expectável
24) Ora, tendo em conta a divergência em causa, não perdendo de vista a aplicação quer das normas consagradas no Caderno de Encargos (Capítulo I – Cláusulas Jurídicas, Secção I, Procedimento, Cláusula 3, n.º2, al. a) e n.º4.), quer o próprio artigo 9.º do CC, consideramos que andou bem o Júri quando no âmbito do Relatório III, e na sequência da pronúncia da ...., quando manteve a avaliação do Relatório II, fundamentando da seguinte forma:
“a) O Júri desempenha um papel essencial na garantia de isenção e transferência do procedimento, limitando-se a atuar com base nas determinações estabelecidas nas peças de procedimento;
b) As funções do Júri não incluem a elaboração das peças do procedimento, sendo as suas atribuições definidas pelo artigo 69.º do CCP. O Júri intervém exclusivamente na avaliação das propostas, não tendo qualquer participação prévia no processo de contratação, nem na execução do contrato;
c) Nos termos do n.º2 do artigo 40.º do CCP, a responsabilidade pela elaboração e aprovação das peças do procedimento cabe ao órgão competente para a decisão de contratar, neste caso, ao Conselho Diretivo;
d) O Júri pautou a sua atuação pelos princípios do CCP, nomeadamente os da concorrência, da prossecução do interesse público, da legalidade e da igualdade de tratamento entre concorrentes. Adicionalmente, as decisões foram sempre tomadas com bases nas normas específicas das peças do procedimento, assegurando imparcialidade, fundamentação objetiva e espeito pelos critérios definidos;

e) O Júri não efetuou nem poderia efetuar qualquer alteração ao critério de avaliação de experiência em gestão de projetos na administração pública, conforme estabelecido no Programa do Concurso. No caso em análise, a avaliação das propostas foi realizada considerando uma solução exequível, com base nos argumentos apresentados no ponto 9.5.2 e respetivos subpontos deste relatório. Tal abordagem considerou as discrepâncias entre as exigências das peças do procedimento (caderno de Encargos, Programa do Concurso e Esclarecimentos Prestados);
f) Na avaliação inicial e nas audiências prévias (1.ª e 2.ª), a questão em apreço não tinha sido identificada. Apenas após a pronúncia da ...., S.A. foi realizada uma revisão da avaliação, de acordo com os considerandos expressos no ponto 9.5.2 e respetivos subpontos deste relatório;
g) As pelas do procedimento de contratação, nomeadamente a cláusula 6.ª das especificações técnicas do Caderno de Encargos, definem requisitos obrigatórios e preferenciais para a equipa. Com base nesses requisitos, foram estabelecidos critérios de adjudicação no Programa do Concurso (artigo 18.º).
h) O Júri valorizou a experiência em “projetos envolvendo entidades do setor público” e não especificamente em “gestão de projetos envolvendo entidades do setor público”. Além disso, as peças do procedimento indicam a existência de uma perfil dedicado à Gestão de Projetos, o que sugere que não se pretende formar uma equipa com múltiplos perfis que acumulem essa função;
i) No esclarecimento prestado relativamente à questão 12, nada foi mencionado relativamente à discrepância entre os critérios de avaliação das propostas indicadas no Programa do Concurso e os requisitos obrigatórios e preferências do Caderno de Encargos. Por sua vez, na questão 43 e respetiva resposta é reafirmada a experiência envolvendo entidades do setor público, independentemente, do espaço geográfico onde ocorreram;

j) Perante, o expresso, o Júri refuta totalmente a pronúncia quanto ao favorecimento da ...., S.A”
25) Face ao exposto, e após prestado o esclarecimento pelo Júri, consideramos que a indicada expressão “experiência em gestão de projeto” não deve ser tomado em consideração, logo nada havendo a apontar à decisão de Júri, em valorar a proposta apresentada pela ...., S.A, e atribuir 40 pontos ao recurso.
26) Pelo que deverá ser revogada a decisão proferida, no sentido de se considerar que o Júri ao atuar nos moldes supra citados não incorreu em manifesto erro, gerador de anulabilidade do ato impugnado, por vício de violação de lei.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso, sendo declarado nulo o despacho proferido pela Mm Juiz a quo e subsequentemente, ser declarado nulo o despacho saneador sentença, o que, caso não venha a ocorrer, consubstancia uma verdadeira inconstitucionalidade, prevista no artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, cuja verificação aqui se pugna.
Sem prescindir, desde já se querer a V/Exas, que seja revogada a decisão recorrida, julgando-se a ação improcedente, conforme o exposto nas Conclusões de Recurso, seguindo-se os ulteriores trâmites até final, com o que V. Exas. farão a costumada Justiça

*
A ...., S.A., apresentou as seguintes conclusões com o respectivo recurso:
1º - O Tribunal a quo incorreu, desde logo, numa nulidade ou erro de julgamento ao ter dispensado a realização da audiência prévia, da audiência pública para discussão de facto e de e de direito e ainda ao ter omitido diligências instrutórias que seriam relevantes para a boa decisão da causa.

2º - Com efeito, atendendo aos contornos eminentemente técnicos do litígio e à vasta prova testemunhal arrolada pelas partes, não podia o Tribunal, sem para tal fundamentar, decidir pela dispensa de produção de prova, quando a mesma seria relevante para dirimir o lapso patente nas exigências do Programa de Procedimento a respeito do perfil Arquiteto de Dados quanto à sua experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público, uma vez que esta exigência apenas é adequada para o perfil principal da Equipa de Projeto, o Gestor do Contrato, e já não para os demais perfis da equipa.

3º - Por outro lado, é certo que o Tribunal a quo não cumpriu o seu dever de gestão processual no que concerne à aferição do grau de execução do contrato, que seria relevante porque a ação não tem efeito suspensivo automático e sendo certo que a realidade fáctica do contrato torna inviável uma decisão de anulação como a que foi tomada no âmbito do processo e ora recorrida.

4º - Revela-se evidente que à data em que foi proferido o saneador-sentença e perante os factos que cabia conhecer, não estavam reunidas as condições para que o Tribunal fosse capaz de dirimir o dissídio de forma justa e cabal.

5º - O Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento na interpretação adotada quanto às peças do concurso no que diz respeito à experiência exigida quanto ao perfil do DA – Arquiteto de Dados em projetos envolvendo entidades do setor público, com efeitos na pontuação atribuída neste subfator.

6º - Com efeito, a interpretação literal que o Tribunal acolhe -, sem cuidar, como se exigia, de analisar os demais elementos hermenêuticos que estavam à sua disposição, em particular, atento o teor e o contexto das peças concursais causa assim como o objeto do contrato e o fim que o mesmo serve - é ostensivamente errada, injusta e desproporcional, não podendo, naturalmente, manter-se.

7º - É clara a existência de uma divergência entre as exigências previstas no Programa do Concurso e as exigências preferenciais do Caderno de Encargos, no que concerne a este subfator, sendo que o primeiro (em contexto de tabela) faz referência à “experiência em gestão dos projetos envolvendo entidades do setor público” e o segundo (em contexto textual e descritivo) apenas refere a “experiência em projetos envolvendo entidades do setor público”.

8º - Contudo, esta divergência não só foi oportunamente sanada pelo júri do concurso nos esclarecimentos prestados pelo júri do concurso, que fazem parte integrante das peças do concurso (esclarecimentos 12 e 43) como é evidente tratar-se de um mero lapso de escrita resultante da sua inserção sistemática e do contexto dos requisitos técnicos exigidos para a Equipa de Projeto.

9º - Em bom rigor, esta exigência respeitante à gestão de projetos é adequada e compreensível se estivermos a falar do Gestor do Contrato, que é o perfil mais relevante e central da Equipa do Projeto, mas já não quando nos reportamos ao perfil do Arquiteto de Dados, que aqui está em causa, assumindo uma função acessória, tendo, aliás, no âmbito deste contrato um período de alocação muito reduzido, conforme resulta da matéria de facto provada

10º - Com efeito, além de não existir qualquer tipo de dado acerca da valência de putativas aptidões de “gestão” do arquiteto de dados, para a execução do contrato aqui em causa, há elementos que confirmam a sua total irrelevância, como é o caso da cláusula 6.ª vertida no ponto 3 da Matéria de Facto Provada, donde resulta a exigência de apenas 1 recurso com o perfil de Arquiteto de Dados e uma afetação previsível do mesmo na fase de desenvolvimento de 50% (o que contrasta com os 100% do Gestor de Projeto e até com outros perfis), e uma afetação acumulada na fase de desenvolvimento de 4,5, e na fase sequente a alocação estimada deste recurso é de 0%.

11º - Ora, atento o tempo e a alocação do perfil em causa, não sobram dúvidas de que, pela natureza das coisas, o arquiteto de dados não pode ter funções de gestão (considerando a não afetação permanente do recurso).

12º - Além do mais, aquilo que a cláusula do Caderno de Encargos reflete é a preferência, isto é, a fixação dos termos do aspeto submetido à concorrência, que é o número de projetos em entidades do setor público, não podendo, depois, atraiçoar-se tal fixação, no local onde, adequadamente, foi feita.

13º - Por seu turno, o que o Programa do Concurso está habilitado a fazer, como fez, é determinar uma escala distinta de pontos em função de intervalos ou números de projetos (questão que não cabe, de facto, no CE), mas já não, criar um novo atributo que é radicalmente diferente do atributo criado pelo CE, para mais quando não há qualquer relação substancial com a obrigação a avaliar.

14º - De notar ainda que, dos n.os 3, 4 e 6 da Cláusula 6.ª do Anexo I resulta expressa a vontade da Entidade Adjudicante de que no caso de uma eventual substituição do arquiteto de dados, em sede de execução contratual, aquilo que terá de ser respeitado, pelo Cocontratante privado, são os requisitos desta cláusula, não sendo a experiência em gestão (por lapso inserida) um limite à substituição, nem podendo a Entidade Adjudicante opor-se a tal proposta.

15º - Assim sendo, torna-se claro que aquele requisito inserto no Programa do Procedimento, com aquela formulação (e inerente exigência adicional) além de estar em desconformidade com o CE, não apresenta correspondência com a natureza e o propósito deste tipo de contrato, nem sendo sequer compaginável com a função e responsabilidade associadas a um Arquiteto de Dados, muito menos com a alocação que está prevista para este recurso no contrato.

16º - Ora, sendo as peças do procedimento uma declaração negocial, sujeita, como tal, às respetivas regras de interpretação, é seguro que a evidência do lapso impõe, contrariamente ao sufragado pelo Tribunal a quo, a sua resolução no sentido de ter como efetiva a exigência que consta do Caderno de Encargos, sem, portanto, a menção à “gestão”, não se exigindo que o DA - Arquiteto de Dados tenha experiência como gestor de projetos envolvendo entidades do setor público, mas apenas experiência em projetos envolvendo aquelas entidades.

17º - Além do mais, sempre se dirá que a interpretação ora defendida é a mais conforme ao interesse público e aos princípios enformadores da contratação pública, uma vez que, não prejudica nenhum outro concorrente (muito menos a Autora, que optou por apresentar recurso mais qualificado não era exigido) e salvaguarda a posição da Contrainteressada, que agora se vê prejudicada por uma solução manifestamente restritiva e enviesada das peças do concurso do Tribunal a quo (exigindo o “mais” que a entidade adjudicante não exige e que não é sequer adequado exigir-se nestes contratos, para este tipo de perfil).

18º - Certo é que, nunca um potencial erro ou omissão das peças do concurso poderia ser utilizado em desfavor de um determinado concorrente e da avaliação da proposta apresentada, o que acontece se seguirmos a interpretação sugerida pelo Tribunal a quo em clara violação da lei e do Caderno de Encargos.

19º - Como vem ditando a nossa jurisprudência os erros textuais (que no caso foram sanados com os esclarecimentos) não podiam, em qualquer caso, fazer recair sobre os concorrentes ou potenciais concorrentes as consequências funestas que tais dúvidas/confusões geram ou podem gerar nos e para os concretos procedimentos concursais (cf. Ac. do Tribunal Central Administrativo Norte, de 25/01/2013, tirado do processo n.º 01312/11.3BEBRG, relatado pelo Juiz Desembargador Carlos Luís Medeiros de Carvalho).

20º - A lei impõe que seja assegurada, de forma clara, transparente e objetiva para todos os interessados, a revelação de todos os aspetos essenciais da contratação, não podendo qualquer eventual erro ou obscuridade, ser usado contra os interessados no procedimento, como conclui o Tribunal a quo, assim tornando a decisão proferida manifestamente ilegal.

21º - Por outro lado, é certo que o Tribunal a quo acaba por adotar uma solução que se afigura desproporcional, prejudicando injustificadamente a posição da Contrainteressada no procedimento e que é também inviável face ao grau de execução do contrato que se encontra a ser cumprido (uma vez que a ação não é dotada de efeito suspensivo automático).

22º - De facto, considerando os dados apurados (com execução prevista até final de setembro de 2025 na ordem dos 66%) resulta claro que o grande avanço técnico e temporal do contrato tornará praticamente impossível (e certamente inviável) que outra equipa disponibilizada por outra empresa possa prosseguir com um sistema que se encontra praticamente concluído.

23º - Revela-se, pois, inexequível uma decisão como a recorrida, acarretando um elevado prejuízo para o interesse público levado a cabo pelo Réu e ainda para os interesses da Contrainteressada, atendendo aos recursos já investidos e aos custos inerentes à implementação do contrato.

24º - Além disso, o princípio da proporcionalidade aconselha-nos a uma especial prudência nesta matéria por forma a adequar todos os interesses em presença, em particular, quando a margem de atuação do tribunal é limitada apenas aos casos em que exista um erro grosseiro e manifesto (o que não é o caso), devendo privilegiar-se as soluções que representem o menor sacrifício possível para a posição dos particulares, principalmente quando não exista, como é o caso, outros interesses prevalentes a acautelar (como a concorrência).

25º - Tal não se verificou na decisão recorrida que, ao arrepio deste princípio e demais regras da contratação pública, acolheu uma interpretação claramente restritiva que tem apenas em consideração elemento literal, ignorando todos os demais elementos contextuais patentes no procedimento, o que a torna ilegal.

26º - Ora, em face ao erro de julgamento demonstrado, impõe-se que seja agora conhecida pelo Tribunal, ao abrigo do artigo 149.º, n.º 2 do CPTA, a questão que ficou prejudicada quanto à pontuação atribuída pelo júri à proposta apresentada pela Contrainteressada a respeito deste subfator.

27º - Com efeito, contrariamente ao referido na petição inicial (sob manifesto erro), resulta do currículo do Recurso apresentado pela ora Contrainteressada para o perfil Arquiteto de Dados (....), a sua participação em seis projetos envolvendo entidades do setor público.

28º - Sendo que, desde 2019 (isto é, nos últimos 5 anos) participou em 4 projetos diferentes para os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde e até 2021 (também nos últimos 5 anos) participou em outros dois projetos para o Instituto dos Registos e Notariado, não obstante a sobreposição de períodos temporais.

29º - E mesmo que houvesse dúvida sobre a participação nestes dois projetos em simultâneo, com término em 2021, é certo que resulta do currículo que, pelo menos um, terá terminado nesse ano e, por isso, nos 5 últimos anos, a que se reporta o critério em questão, pelo que, sempre deveria a Contrainteressada ser pontuada neste subfactor com 30 pontos, como resulta do Relatório Final III.

30º - Face ao exposto, conclui-se que o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro de julgamento, devendo, por isso, a decisão recorrida ser revogada, sendo, em consequência, julgada totalmente improcedente a ação, mantendo-se na ordem jurídica o ato de adjudicação e o contrato celebrado.


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A Recorrida ...., S.A., apresentou um único requerimento com as contra-alegões que opôs a ambos os recursos, que concluiu dizendo:

A) A decisão recorrida - ao dispensar a realização da audiência prévia com fundamento no art.º 87º-B/2, por força do 102º/1, ambos do CPTA, tendo em vista a prolação de decisão de mérito no saneador-sentença e nos termos constantes deste mesmo despacho, ao anular o ato de adjudicação com fundamento “em erro manifesto ou palmar (...) gerador de anulabilidade do ato impugnado, por vício de violação de lei.” e, finalmente, ao condenar a ED IGFEJ a adjudicar o contrato à Autora ....- não merece qualquer censura e deve ser mantida incólume;

B) Embora seja verdade que o Tribunal a quo em despacho prévio ao despacho saneador-sentença decidiu dispensar a audiência prévia (com fundamento no art. 87º-B, n.º 2, ex vi do art.º 102º, n.º 1 ambos do CPTA e considerando que a audiência prévia se destinaria apenas ao fim previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 87ºA do CPTA) importa considerar, com manifesto relevo para o caso, que tal despacho, ainda que prévio, foi proferido, em simultâneo, e no mesmo momento, que o despacho saneador-sentença;

C) No despacho saneador-sentença o Tribunal a quo, para além de ter conhecido e julgado improcedente a única exceção invocada (no caso, de ilegitimidade, invocada pela ....), mais (i) considerou não haver outras exceções ou questões prévias que obstassem à apreciação do mérito da causa e com relevância para a decisão a proferir, (ii) proferiu decisão quanto à matéria de facto provada (“Tendo em atenção as posições expressas pelas partes, os documentos juntos aos autos e constantes do processo administrativo...”), (iii) decidiu não existirem factos não provados “...relevantes para a decisão, em face das possíveis soluções de direito”, e (iv) decidiu ainda que “Quanto à restante matéria alegada, por se tratarem de meros juízos conclusivos, de valor ou considerações de direito, não são os mesmos suscetíveis de ser objeto de juízo probatório (pese embora a sua pertinência nos respetivos articulados).” (cf. fls. 5, 65 e 66 da sentença recorrida), pelo que, a decisão recorrida – que, não obstante integrar o despacho prévio e o despacho saneador-sentença, é una e única por ter sido tomada em simultâneo e no mesmo momento – contrariamente ao alegado pelos recorrentes teve em consideração toda a prova oferecida pelas partes, incluindo a testemunhal, mas entendeu, fundamentadamente, que a prova documental era suficiente para a apreciação do mérito da causa e que, tendo sido as questões de fundo debatidas nos articulados, mostrava-se assegurado o princípio do contraditório e, portanto, reunidos os pressupostos para dispensar a realização da audiência prévia considerando que a mesma apenas se destinaria ao fim previsto na al. b) do n.º 1 do art.º 87º-A do CPTA;

D) A não realização da audiência prévia nestas concretas circunstâncias mostra-se, assim, suficientemente fundamentada e não constitui nulidade processual nem, tão-pouco, preterição do princípio do contraditório (veja-se neste sentido o recentíssimo Acórdão do TCAN de 25/10/2024, acessível no site da dgsi.pt sob o processo n.º 00846/24.4BEPRT) segundo o qual “ I. Não constitui violação do princípio do contraditório – decisão surpresa – o facto de o juiz proferir saneador sentença conhecendo do mérito da causa, tendo dispensado quer a audiência prévia, quer a produção de prova testemunhal, em despacho emitido uno actu com o saneador sentença. II – Não constituía nulidade processual prevista no artigo 195º nº 1 do CPC, a não produção da prova testemunhal requerida, quando expressamente dispensada a produção, por desnecessária e quando não foram julgados não provados quaisquer factos relevantes para a decisão.”;

E) Quanto aos invocados erros de julgamento imputados à decisão recorrida, importa começar por desfazer algumas das premissas, erradas, em que assentam tais imputações. Assim,

F) O Programa de procedimento (PC) não padece de qualquer lapso de escrita no que concerne ao subfactor EE (Experiência da Equipa) e em particular à Pontuação da Experiência relativa ao Arquiteto de Dados (EEDA) ao exigir, entre outras, “Experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público (n.º de projetos nos últimos 5 anos)”, porquanto a circunstância de o Caderno de Encargos (CE) apenas exigir, como requisito preferencial para o referido perfil de Arquiteto de Dados (DA), a “Experiência em projetos envolvendo entidades do setor público (n.º de projetos nos últimos 5 anos” nada referindo sobre a aludida experiência em “gestão” de projetos, não significa que, em sede de Programa de Procedimento, esse critério não possa ser densificado, como foi, não resultando daqui qualquer divergência ou incongruência entre as mencionadas peças do procedimento;

G) Tal como se refere a este respeito, a fls 87 e 88 da decisão recorrida, “No caso, a densificação do subfactor experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público (n.º de projetos nos últimos 5 anos) do perfil Arquiteto de Dados integrante do modelo de avaliação das propostas incluiu e descreveu adequadamente o conjunto ordenado dos atributos necessários à correspondente avaliação. ”. Aliás, diga-se, o mesmo sucedeu relativamente ao perfil “BA – Analista Funcional” relativamente ao qual se exigia igualmente no CE, como requisito

preferencial, a aludida a “Experiência em projetos envolvendo entidades do setor público (n.º de projetos nos últimos 5 anos”, tendo tal critério vindo a ser densificado exatamente do mesmo modo no Programa exigindo-se, igualmente, entre outras, “Experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público (n.º de projetos nos últimos 5 anos)”, jamais tendo sido invocado, ou reconhecido, idêntico “lapso” em relação a esse perfil;

H) Se se tratasse de um lapso e ainda para mais tão manifesto – e obviamente sem conceder – o Júri devia ter dado conta do mesmo logo no Relatório Final 1 ao invés de (como sucedeu) ter dado razão à ora A. ....nesta exata questão julgando procedente a referida pronúncia da Autora ....e corrigindo a pontuação então atribuída à ....;

I) Se se tratasse de um efetivo lapso e ainda para mais tão manifesto – e novamente sem conceder – impunha-se que o Júri tivesse procedido à sua atempada retificação nos termos previstos no art.º 50º/7 do CCP, o que tão-pouco sucedeu!

J) Mais sustentam os recorrentes, IGEF e .... – embora sem qualquer razão, como se verá - que esse alegado lapso foi objeto dos esclarecimentos n.º 12 e 43 prestados pelo Júri do procedimento, que esses esclarecimentos; i) fazem parte integrante das peças do procedimento e prevalecem sobre as mesmas (cf. 50º/9 do CCP); ii) tornaram claro para os concorrentes quais as exigências a cumprir (que não incluíam no referido perfil a “gestão” de projetos); e iii) sanaram a incoerência existente entre as peças do procedimento que em caso de divergência sempre seriam sanadas de acordo com a ordem de prevalência prevista na Cl.ª 3ª/4 do CE;

K) Sucede que, os referidos pedidos de esclarecimento, e as respostas que aos mesmos foram dadas, não se destinaram a esclarecer esta questão sendo totalmente alheios ao perfil aqui em apreço, respeitante ao Arquiteto de Dados, nada referindo sobre a exigência desse perfil relativamente à “gestão” de projetos envolvendo entidades do setor público (cf. Facto Provado n.º 5, a fls. 28 e 29 da decisão recorrida); Efetivamente,

L) Resulta, de forma ostensiva, dos mencionados esclarecimentos que os mesmos nada referem especificamente sobre o referido alegado “lapso” – relativo, ou respeitante, à referida exigência de “experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público no perfil Arquiteto de Dados” - sendo perfeitamente abusivo querer retirar dos mesmos algo que deles não consta, nem implícita nem, muito menos, explicitamente, pelo que, ainda que tais esclarecimentos tenham passado a fazer parte integrante das peças do procedimento e até prevaleçam sobre as mesmas (cf. 50º/9 do CCP), isso é irrelevante para a questão em apreço uma vez que nada se retira dos mesmos com respeito à referida exigência do PC (respeitante à “experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público” relativamente ao perfil Arquiteto de Dados); De resto,

M) Sem conceder, ainda que se entendesse existir alguma incoerência/divergência entre as referidas peças do procedimento (PC e CE) a esse respeito, sempre se impunha que a mesma fosse decidida nos termos previstos na Cl.ª 3ª do CE e pela ordem aí prevista, com prevalência do disposto no Programa e, nesse sentido, com prevalência da exigência nele prevista, quanto à aludida “experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público” relativamente ao perfil Arquiteto de Dados;

N) Estabeleceu-se no PC uma exigência específica, não constante do CE, ao introduzirse como critério de avaliação a referida “experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público”, mostrando-se vedada, tal como foi entendido pelo Tribunal a quo, qualquer interpretação corretiva da norma (descritivo do subfactor) do modelo avaliativo do Programa - nomeadamente a interpretação pretendida pelos aqui recorrentes IGFEJ e .... tendo em vista a exclusão da expressão “gestão” por alegada incongruência com os requisitos preferenciais previstos na Cl.ª 6ª do CE - dado que uma tal interpretação nas exatas palavras do Tribunal a quo “...carece totalmente de apoio na letra daquela norma, e guiar-nos-ia a um resultado hermenêutico inadmissível nos termos do artigo 9º do Código Civil (excluído pelo elemento gramatical).”;

O) A interpretação do Programa decorrente da decisão recorrida, contrariamente ao que invocam e pretendem os recorrentes, não se cinge ao elemento literal em detrimento do CE ou dos esclarecimentos prestados, sendo, pelo contrário, a interpretação feita pelos recorrentes, precisamente, aquela que dispensa e ignora, por completo, esse elemento literal o que, como se viu, é inadmissível à luz das mais elementares regras de interpretação;

P) Finalmente, não tem razão a recorrente e .... ao imputar ao Tribunal a quo um “manifesto erro de julgamento” quanto à classificação de 0 (zero) pontos que o Tribunal entendeu atribuir-lhe no referido subfactor “Experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público (n.º de projetos nos últimos 5 anos)” relativamente ao perfil DA-Arquiteto de Dados, pois, considerando que este subfactor exigia simultaneamente a referida experiência (em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público) e um determinado número de projetos nos últimos 5 anos, e considerando que a proposta apresentada pela CI e aqui recorrente ...., no que se refere ao recurso proposto para o mencionado perfil (....), não evidenciou, dentre os projetos em que este participou nos últimos 5 anos envolvendo entidades do setor público, qualquer experiência em gestão de projetos, é manifesto que só podia ter-lhe sido atribuída, neste subfactor, a classificação de 0 (zero) pontos, pelo que,

Q) Em suma, bem andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, nomeadamente ao julgar a ação procedente e, consequentemente, ao anular o ato de adjudicação do contrato à .... e ao condenar a ED IGFEJ a adjudicar o mesmo à Autora, aqui recorrida, ....,

Nestes termos, e nos mais de direito, devem os presentes recursos, quer do recorrente IGFEJ quer da recorrente ...., ser julgados totalmente improcedentes, mantendo-se incólume o despacho saneador-sentença, assim se fazendo a costumada justiça.


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O Ministério Público foi notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 146.º do CPTA.
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Do objecto do recurso.
Importa, assim, em face do teor das conclusões das alegações de recurso, decidir se o despacho que dispensou a realização da audiência prévia e o saneador sentença são nulos por não ter sido observado o contraditório e ainda por falta de fundamentação quanto à dispensa da prova testemunhal e, a título subsidiário, se o despacho saneador incorreu nos erros de julgamento que lhe são imputados, quer na fixação da matéria de facto, quer os relativos aos erros de direito que as Recorrentes indicam.
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Com dispensa de vistos das Exmas. Juízes-Adjuntas, vem o processo à Conferência para julgamento.
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Da nulidade
Provam os autos que, antes de proferir o despacho saneador sentença, o Tribunal a quo dispensou a realização da audiência prévia nos termos do artº 87º-B, nº 2, ex vi do artº 102º, nº 1, ambos do CPTA, dizendo o seguinte:
Considerando que a audiência prévia se destinaria apenas ao fim previsto na al. b), do nº 1, do artº 87º-A, do CPTA, dispenso a sua realização. Nesta conformidade, cumpre proferir saneador-sentença.”.
As Recorrentes alegam que foi violado o princípio do contraditório por o Tribunal ter passado de imediato à prolação do saneador sentença sem as ter ouvido sobre a dispensa da audiência prévia. Entendem ainda que tal despacho não se encontra devidamente fundamentado e que o Tribunal também não se pronunciou expressamente sobre os requerimentos probatórios apresentados, o que dizem também constituir uma nulidade.
O art.º 87.º-B, nº 2 do CPTA, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 118/2019, de 17 de Setembro, aplicável por força da remissão operada pelo art.º 102.º, n.º 1, do CPTA, confere ao juiz o poder de dispensar a realização da audiência prévia nas situações em que, tencionando conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa, a mesma se destinasse apenas a facultar às partes a discussão de facto e de direito.
Trata-se de um juízo de oportunidade que o juiz leva a efeito no uso dos poderes de gestão processual que lhe são atribuídos, não só pelo referido art.º 87.º-B, nº 2 do CPTA, mas ainda, de uma forma mais abrangente, pelo art.º 7.º-A, n.º 1, do mesmo código.
O uso de tais poderes não está, porém, dispensado da observância do dever de consulta das partes.
O art.º art.º 7.º-A, n.º 1, do CPTA, refere expressamente que a adopção dos mecanismos de simplificação e agilização processual deve ser precedida da audição das partes.
O que resulta igualmente do n.º 3 do art.º 3.º do CPC, que, em termos mais latos, estabelece que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório.
Tal princípio confere às partes a garantia da participação efectiva […] no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão” (Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil anotado, vol. 1.º, 1999, págs. 7 e 8).
Em anotação ao art.º 87.º-B, nº 2, do CPTA, referem Aroso de Almeida e Carlos Cadilha (1) Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2021, 5ª ed, pág. 730 que o despacho de dispensa da audiência prévia deve ser precedido da audição das partes e chamam a atenção de que tal despacho “… apenas se justifica quando as questões de fundo tenham sido suficientemente discutidas pelas partes nos articulados e não subsistam dúvidas ou imprecisões na matéria de facto que pudessem ser supridas na audiência prévia, e, nesses termos, que a decisão a proferir se possa de revestir de manifesta simplicidade.

Nesse sentido, entende-se que quando o processo não deva prosseguir por ser possível conhecer no despacho saneador do mérito da causa, o juiz só poderá dispensar a audiência prévia, ao abrigo dos princípios de gestão processual e adequação formal, se a apreciação do mérito assentar em questão que tenha sido já objeto de suficiente debate (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de maio de 2015, Proc. n.s 1386/15), sendo que é também exigível a audição prévia das partes sobre o propósito de dispensar a audiência prévia, com vista a evitar, em aplicação do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, a prolação de decisão surpresa (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de setembro de 2015, Proc. n.e 128/14).”.
No caso, o saneador-sentença recorrido foi proferido imediatamente a seguir à prolação do despacho que dispensou a realização da audiência prévia, sem que as partes tivessem tido oportunidade de previamente se pronunciarem sobre este despacho.
O qual deve indicar, ainda que de forma resumida, as razões em que o juiz assenta o seu juízo, o que, na presente situação, não foi observado.
Encontra-se violado o dever de consulta prévia das partes que resulta do art.º 7.º-A, n.º 1 do CPTA e ainda do n.º 3 do art.º 3.º do CPC.
O que importa a nulidade do saneador-sentença, por excesso de pronúncia, uma vez que, como refere a doutrina (2) João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, vol. II, AAFDL, 2022, pág. 90., conheceu do mérito numa fase processual que o não admitia – art.º 615.º, n.º 1, al. d) do CPC.

Neste sentido veja-se o acórdão proferido por este Tribunal a 10/04/2025 no âmbito do processo n.º 19077/24.7BELSB e o acórdão do STA de 26/06/2025, que não admitiu o recurso de revista que daquele foi interposto.
A sociedade Recorrente defende ainda que o Tribunal a quo praticou uma nulidade ao não fundamentar a desnecessidade da produção da prova testemunhal e ainda por ter dispensado a sua produção.
O Tribunal a quo não proferiu despacho sobre os requerimentos probatórios apresentados pelas partes, pelo que, inexistindo tal despacho, não há que aquilatar da sua fundamentação.
A falta de produção da prova testemunhal apenas poderia importar a nulidade processual que a Recorrente invoca se se pudesse concluir que a irregularidade teve influência no exame ou na decisão da causa (art.º 195.º, n.º 1 do CPC).
O que, no caso, se desconhece, uma vez que tal pressupõe que o Tribunal a quo exteriorize as razões que o levam a dispensar a audiência prévia e a produção da prova e aquelas por que entende que é de passar ao conhecimento do mérito.
Impondo-se ainda que as partes se pronunciem sobre tais razões.
Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento aos recursos, anular o despacho e o saneador recorridos e determinar que os autos baixem ao Tribunal a quo onde devem prosseguir os ulteriores termos com a prolação de despacho a exarar nos termos acima indicados.
Custas pela Recorrida – art.º 527.º do CPC.
Lisboa, 23 de Outubro de 2025


Jorge Martins Pelicano

Helena Maria Telo Afonso (com voto de vencido)

Paula Cristina de Ferreirinha Loureiro





(Helena Telo Afonso – 1.ª adjunta), vencida, nos termos da declaração de voto seguinte.

O despacho recorrido que dispensou a realização da audiência prévia, ao abrigo do disposto no artigo 87.º-B, n.º 2, ex vi do art.º 102.º, ambos do CPTA, com a fundamentação de que “Considerando que a audiência prévia se destinaria apenas ao fim previsto na alínea b), do n.º

1, do artigo 87.º-A, do CPTA, dispenso a sua realização”, mostra-se fundamentado, ainda que sinteticamente. Sem que tenha feito qualquer “referência à prova documental e testemunhal”, o despacho tem subjacente o entendimento de que o processo contém já todos os elementos necessários para conhecer dos pedidos formulados, e portanto, a desnecessidade de produção de prova por testemunhas requerida pelas partes.

Analisadas as alegações recursórias e respetivas conclusões da entidade demandada e da contrainteressada verifica-se que as mesmas não impugnaram a decisão da matéria de facto, limitando-se a discordar da interpretação jurídica que da mesma é feita na sentença recorrida, defendendo a contrainteressada que a prova testemunhal arrolada pelas partes "seria relevante para dirimir o lapso patente nas exigências do Programa de Procedimento a respeito do perfil Arquiteto de Dados quanto à sua experiência em gestão de projetos envolvendo entidades do setor público, uma vez que esta exigência apenas é adequada para o perfil principal da Equipa de Projeto, o Gestor do Contrato, e já não para os demais perfis da equipa.". Em concreto está em causa, em ambos os recursos, a interpretação das peças procedimentais.

Atenta a redação do n.º 2 do artigo 87.º-B do CPTA, o Tribunal a quo, ao não convocar as partes para a realização da audiência prévia, proferindo despacho a dispensar a sua realização, quando pretendia conhecer do mérito da causa, não incumpriu com nenhuma formalidade obrigatória na tramitação da ação. Prevendo a lei a possibilidade de dispensa de audiência prévia, a sua não realização não constitui uma nulidade processual.Neste sentido tem sido decidido quer por este TCA Sul (cfr. acórdão de 06/06/2024, proc. n.º 3450/23.0BELSB), quer também pelo TCA Norte (cfr. acórdão de 25/10/2024, proc. 00846/24.4BEPRT), ambos consultáveis em www.dgsi.pt.

Assim, inexistindo matéria de facto controvertida, considero que a omissão de notificação das partes para, querendo, se pronunciarem quanto à decisão de não realização de audiência prévia, não configura nulidade processual - cfr. artigo 195.º, n.º 1, do CPC, nem o despacho viola o disposto no n.º 1 do artigo 205.º da CRP.

Pelo que, apreciaria o mérito do recurso.

Helena Telo Afonso