Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:30619/25.0BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:10/23/2025
Relator:MARA DE MAGALHÃES SILVEIRA
Descritores:PROTEÇÃO INTERNACIONAL
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DETERMINAÇÃO DO ESTADO RESPONSÁVEL
Sumário:I - Preenchidos os pressupostos a que se reporta o artigo 37.º, n.º 1 e 2 da Lei do Asilo, concretamente quanto à responsabilidade da Alemanha para a análise do pedido de proteção internacional do Requerente e aceite por aquele a sua responsabilidade, não tendo havido lugar à aceitação de responsabilidade pelo Estado Português nos termos do artigo 40.º, n.º 1 da Lei do Asilo, cumpria à Requerida proferir de decisão de inadmissibilidade nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 19.º-A;
II - Face à inadmissibilidade do pedido de proteção internacional à luz da al. a) do n.º 1 do artigo 19.º-A da Lei do Asilo, não recaía sobre a AIMA, como resulta do n.º 2 desse normativo, a análise sobre as concretas razões invocadas pelo Recorrente no seu pedido de proteção, nem tão pouco qualquer dever instrutório ao abrigo do artigo 18.º da Lei do Asilo;
III - Inexistindo indícios de que o requerente tenha sido ou venha a ser vítima de falhas sistémicas no procedimento de asilo na Alemanha, com a gravidade que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do art.º 3.º, n.º 2 do Regulamento, mostra-se desnecessária uma específica atividade instrutória antes da determinação da transferência;
IV - Competindo às autoridades do Estado-Membro responsável apreciar o pedido de proteção internacional formulado pelo requerente, apurando o eventual risco que implicará o regresso do requerente ao seu país de origem, mas também a aplicação do princípio do non refoulement.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

M… (doravante A., Requerente ou Recorrente) instaurou, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a ação administrativa urgente de ato praticado no âmbito de procedimento de proteção internacional contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo - AIMA (doravante R., Entidade Requerida ou Recorrida), visando a anulação da decisão proferida no âmbito do pedido de proteção internacional n.º 48/25, sendo substituída por outra que lhe conceda o benefício de proteção internacional, sendo-lhe atribuída autorização de residência provisória, ou, caso assim não se entenda, a sua substituição por outra que lhe conceda o benefício de proteção internacional subsidiária, sendo-lhe atribuída autorização de residência provisória.

Por sentença proferida em 18 de julho de 2025, o referido Tribunal julgou totalmente improcedente a presente ação e, em consequência, absolveu a Entidade Demandada dos pedidos.

Inconformado, o Requerente interpôs recurso jurisdicional dessa decisão para este Tribunal Central Administrativo, concluindo nos seguintes termos:

“A. O presente recurso versa sobre a douta sentença proferida pelo TAC de Lisboa, em 18/07/2025, que improcedente o pedido de concessão de protecção internacional formulado pelo Recorrente;
B. Não pode o ora Recorrente concordar e aceitar o teor da fundamentação da sentença;
C. Ao contrário da conclusão ínsita na fundamentação de direito da douta sentença, não só não teve em conta o temor pela vida expresso pelo requerente de asilo, ora Recorrente, em sede dos esclarecimentos adicionais às declarações por si prestadas inicialmente junto da AIMA;
D. Como também não teve em conta o itinerário do Recorrente até à chegada a Portugal, que demonstra que lhe seria impossível apresentar qualquer pedido de proteção internacional na Alemanha, porque nunca lá esteve.
E. A M.ª Juiz a quo não teve em linha de conta estes elementos probatórios;
F. Em sede legal, nos termos do mencionado art. 18° do Regime de Concessão de Asilo ou Protecção Subsidiária, não só são estabelecidas as condições para, ao requerente, ser atribuído o regime de proteção internacional;
G. Mas também os deveres por parte da AIMA na obtenção dos meios de prova necessários para confirmar as declarações proferidas por parte daquela;
H. O que, no presente caso, não foi feito;
I. Em sede do procedimento administrativo de concessão de asilo em crise, importava a atribuição de residência provisória, nos termos do art. 27° da Lei n° 27/2008, de 30 Junho;
J. O que permitiria o normal desenrolar do processo de asilo, nomeadamente, obtendo-se os elementos de prova necessários à fundamentação do pedido formulado pela requerente;
K. Não tendo o SEF cumprido com a imposição legal constante do n° 4 do art. 18° do diploma supra citado, tal consubstancia, nos termos do disposto no art. 163°, n° 1, do Código de Processo Administrativo, uma violação dos princípios legais e procedimentais e normas jurídicas aplicáveis ao presente procedimento administrativo;
L. Tal incumprimento a anulabilidade do acto de indeferimento ilegalmente praticado;
M. E, em consequência da anulação da Decisão Final proferida no Processo de Proteção Internacional n° 48/25, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 50°, n° 1, e 163°, n° 1, ambos do CPTA, por violação do disposto nos artigos 3° e 18° da Lei n° 27/2008, de 30 de Junho, bem como dos arts. 33°, da Constituição da República Portuguesa, e 18°, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a sua substituição por outra que conceda à requerente o benefício de proteção internacional, sendo-lhe atribuída autorização de residência provisória, nos termos do artigo 27° do mencionado dispositivo legal, seguindo-se os ulteriores termos do procedimento administrativo em crise;
N. Só assim se assegurando a devida protecção internacional do Recorrente, a legalidade do procedimento administrativo em causa e o cumprimento dos princípios ínsitos na Lei n° 27/2008, de 30 de Junho.
Termos em que, sendo dado provimento ao presente recurso, substituindo a douta sentença proferida por outra que pugne pela procedência do pedido de protecção internacional formulado pelo Recorrente, assim se fará
JUSTIÇA!”

A Entidade Requerida, notificada para o efeito, não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

O Ministério Público junto deste TCA Sul, notificado nos termos e para efeitos do disposto no n.º 1, do artigo 146.º do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

Notificadas do aludido parecer, as partes nada disseram.

II. Delimitação do objeto do recurso

Considerando que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do apelante, cumpre a este Tribunal apreciar se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito.

III. Fundamentação de facto

III.1. Na decisão recorrida foi julgada provada a seguinte factualidade:

1. A 10.01.2025, o Autor apresentou pedido de proteção internacional, ao qual foi atribuído o n. 48/2025, cujo teor aqui se dá aqui por integralmente reproduzido (cf. fls. 3 e seguintes do PA).
2. A 02.04.2025, o Autor prestou declarações no âmbito do pedido de proteção internacional n. 48/2025, cujo teor aqui se dá aqui por integralmente reproduzido, e do qual extrai-se o seguinte:
«(...)




«Imagem em texto no original»




«Imagem em texto no original»






(cf. fls. 28 e seguintes do PA).
3. Na mesma data, os serviços da AIMA elaboraram "relatório", no âmbito do pedido de proteção internacional n.2 48/2025, cujo teor aqui se dá aqui por integralmente reproduzida, da qual consta o seguinte:
«(...)
É titular de um visto que se encontra válido/caducado há menos de 6 meses emitido por Alemanha (REGULAMENTO (UE) N.° 604/2013 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 26 de junho de 2013 que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida-Artigo 12.°, n.° 2 /Artigo 12.°, n.° 4)». (cf. fls. 32 do PA).
4. Foi comunicado ao requerente, aqui Autor, o sentido provável da decisão de inadmissibilidade do seu pedido de proteção internacional em território nacional e consequente transferência para a Alemanha (cf. fls. 33 do PA).
5. A 07.04.2025, o Autor apresentou a sua pronúncia em sede de audiência de interessados, no âmbito do pedido de proteção internacional n.° 48/2025 (cf. fls. 40 e seguintes do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
6. A 09.04.2025, os serviços da AIMA solicitaram às autoridades da Alemanha a retoma a cargo do Autor (cf. fls. 44 e seguintes do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
7. Por ofício, as autoridades da Alemanha aceitaram a retoma a cargo do aqui Autor (cf. documento de fls. 54 e seguintes e 63 do PA, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
8. A 14.10.2024, os serviços da AIMA elaboraram informação/proposta, no âmbito do pedido de proteção internacional n.° 48/2025, cujo teor aqui se dá aqui por integralmente reproduzida, da qual consta o seguinte:









». (cf. fls. 68 e seguintes do PA).
9. A 21.04.2025, a proposta identificada no facto provado anterior mereceu despacho, cujo teor aqui se reproduz:
«Concordo.
Atenta a informação e fundamentos invocados, de acordo com o disposto na alínea a) do n°1 do art.°19- A e art.° 379, ambos da Lei n° 27/2008 de 30 de junho, posteriormente alterada, considera-se o pedido de proteção internacional inadmissível, devendo proceder-se à transferência do requerente para Alemanha, país responsável nos termos do artigo 12.°, n° 2, do Regulamento (CE) N.° 604/2013 do Conselho, de 26 de junho.». (cf. fls. 68 do PA).

III.2. A respeito dos factos não provados consignou-se na sentença recorrida,

“Não se logrou provar outros factos com relevância para decidir os presentes autos.”

III.3. Mais se consignou na sentença recorrida quanto à motivação da matéria de facto:

“A convicção do Tribunal fundamenta-se na prova documental, conforme indicado ponto a ponto do probatório, a qual faculta todos os elementos necessários para proferir decisão.”

IV. Fundamentação de direito

1. Do erro de julgamento de direito


A sentença recorrida julgou a ação improcedente, absolvendo a Entidade Demandada dos pedidos, por considerar, em suma, que, verificando-se que o autor era portador de um visto emitido pela Alemanha, foi solicitada e aceite pelas autoridades alemãs a sua tomada a cargo, pelo que nos termos do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 18.º do Regulamento (CE) n.º 604/2013, do Conselho, de 26 de junho, sendo a Alemanha o estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional, ao abrigo dos artigos 19.º-A, n.º 1 al. a) e 37.º, n.º 2 da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho, o pedido de proteção internacional é considerado inadmissível, prescindindo-se da análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional.
O Recorrente insurge-se contra o assim decidido sustentando que, da sua pronúncia em sede administrativa, resulta o temor pela sua vida e integridade física, tendo sido, e a sua família, ameaçado e agredido.
Alega que nunca pretendeu deslocar-se para a Alemanha, ou ali pedir asilo, antes tendo sido um intermediário sem autorização que o fez, pois foi sempre seu objetivo viajar para Portugal e aqui pedir asilo, nunca tendo estado na Alemanha e não tendo conhecimento de qualquer pedido de proteção internacional na Alemanha, e que o Tribunal a quo não considerou este elemento probatório.
Considera caber à AIMA, ao abrigo do artigo 18.º, n.º 4, obter os meios de prova necessários para confirmar as declarações por si proferidas.
Daí resultando a anulação da decisão proferida no processo de proteção internacional, nos termos do art.º 50.º, n.º 1 e 163.º, n.º 1 do CPTA, por violação do disposto nos artigos 3.º e 18.º da Lei n.º 27/2008, 33.º da CRP e 18.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, e a atribuição de residência provisória nos termos do artigo 27.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho.
Mas não lhe assiste razão.
Consagrando-se no n.º 8 do artigo 33.º da Constituição da República Portuguesa, o “direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência da sua actividade em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana”, encontram-se previstas na Lei n.º 27/2008, de 30 de junho (Lei do Asilo) as condições e procedimentos de concessão de asilo ou proteção subsidiária e os estatutos de requerente de asilo, de refugiado e de proteção subsidiária, em transposição das Diretivas n.ºs 2004/83/CE, do Conselho, de 29 de Abril, e 2005/85/CE, do Conselho, de 1 de Dezembro.
Assim, no art.º 3.º da Lei n.º 27/2008 regula-se o direito de asilo nos seguintes termos,
“1 - É garantido o direito de asilo aos estrangeiros e aos apátridas perseguidos ou gravemente ameaçados de perseguição, em consequência de atividade exercida no Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual em favor da democracia, da libertação social e nacional, da paz entre os povos, da liberdade e dos direitos da pessoa humana.
2 - Têm ainda direito à concessão de asilo os estrangeiros e os apátridas que, receando com fundamento ser perseguidos em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou integração em certo grupo social, não possam ou, por esse receio, não queiram voltar ao Estado da sua nacionalidade ou da sua residência habitual.
(…)
4 - Para efeitos do n.º 2, é irrelevante que o requerente possua efetivamente a característica associada à raça, religião, nacionalidade, grupo social ou político que induz a perseguição, desde que tal característica lhe seja atribuída pelo agente da perseguição.”
E no artigo 7.º a proteção subsidiária,
“1 - É concedida autorização de residência por proteção subsidiária aos estrangeiros e aos apátridas a quem não sejam aplicáveis as disposições do artigo 3.º e que sejam impedidos ou se sintam impossibilitados de regressar ao país da sua nacionalidade ou da sua residência habitual, quer atendendo à sistemática violação dos direitos humanos que aí se verifique, quer por correrem o risco de sofrer ofensa grave.
2 - Para efeitos do número anterior, considera-se ofensa grave, nomeadamente:
a) A pena de morte ou execução;
b) A tortura ou pena ou tratamento desumano ou degradante do requerente no seu País de origem; ou
c) A ameaça grave contra a vida ou a integridade física do requerente, resultante de violência indiscriminada em situações de conflito armado internacional ou interno ou de violação generalizada e indiscriminada de direitos humanos.
3 - É correspondentemente aplicável o disposto no artigo anterior.”
Sem prejuízo, assente no princípio de que qualquer pedido de asilo ou de proteção internacional apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida no território de um Estado-Membro, incluindo na fronteira ou numa zona de trânsito, deve ser analisado por um único Estado-Membro, em conformidade com o Regulamento (UE) n.° 604/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013 (Regulamento Dublim III), que estabelece os critérios e mecanismos de determinação do Estado-Membro responsável pela análise de um pedido de proteção internacional apresentado num dos Estados-Membros por um nacional de um país terceiro ou um apátrida, prevê-se nos artigos 36.º a 40.º da Lei do Asilo o “procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional”.
Dispõe-se, então, no artigo 37.º da Lei do Asilo que, “quando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado-Membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Junho, a AIMA, I. P., solicita às respectivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo” (n.º 1), e, “aceite a responsabilidade pelo Estado requerido, o conselho diretivo da AIMA, I.P., profere, no prazo de cinco dias, decisão nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 19.º-A” (n.º 2), a considerar o pedido inadmissível [artigo 19.º-A, n.º 1 al. a)].
Nesta hipótese, de inadmissibilidade do pedido por se verificar estar sujeito ao procedimento especial de determinação do Estado responsável pela análise do pedido de proteção internacional [artigo 19.º-A, n.º 1 al. a)], não há lugar à análise das condições a preencher para beneficiar do estatuto de proteção internacional (n.º 2 do artigo 19.º-A).
Refira-se que o apuramento da responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional é feito nos termos do Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, o qual, desde logo, prescreve no n.º 1 do artigo 3.º que,
“Os Estados-Membros analisam todos os pedidos de proteção internacional apresentados por nacionais de países terceiros ou por apátridas no território de qualquer Estado-Membro (…). Os pedidos são analisados por um único Estado-Membro, que será aquele que os critérios enunciados no Capítulo III designarem como responsável.”
Entre esses critérios de determinação do Estado-Membro responsável, aplicados pela ordem contida no Regulamento e “efetuada com base na situação existente no momento em que o reque rente tiver apresentado pela primeira vez o seu pedido de proteção internacional junto de um Estado-Membro” (artigo 7.º, n.º 1 e 2), encontra-se, designadamente a emissão de documentos de residência ou vistos (artigo 12.º), a determinar a responsabilidade do Estado-Membro que emitiu o título de residência ou visto válido.
Não obstante estes critérios de determinação do Estado-Membro responsável, o n.º 1 do artigo 17.º do Regulamento prevê a possibilidade de “[e]m derrogação do artigo 3.º, n.º 1, cada Estado-Membro pode decidir analisar um pedido de proteção internacional que lhe seja apresentado por um nacional de um país terceiro ou por um apátrida, mesmo que essa análise não seja da sua competência por força dos critérios definidos no presente regulamento.”
E no artigo 3.º, n.º 2 do Regulamento dispõe-se que “[c]aso seja impossível transferir um requerente para o Estado-Membro inicialmente designado responsável por existirem motivos válidos para crer que há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes nesse Estado-Membro, que impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante na aceção do artigo 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o Estado-Membro que procede à determinação do Estado-Membro responsável prossegue a análise dos critérios estabelecidos no Capítulo III a fim de decidir se algum desses critérios permite que outro Estado-Membro seja designado responsável.”
Feito este enquadramento, como resulta do ato impugnado, após a submissão das impressões digitais do Autor no sistema Eurodac, as autoridades portuguesas verificaram que o Requerente era portador de um visto emitido pela Alemanha válido até 27.2.2025, razão pela qual solicitaram às autoridades da Alemanha a retoma a cargo do Autor, a qual veio a ser aceite por este Estado-Membro (factos 6 e 7).
Assim sendo, por ser a Alemanha emissor do visto do Requerente é este o Estado-Membro competente para a análise do pedido de proteção internacional (artigo 12.º, n.º 2 do Regulamento), razão pela qual o pedido apresentado em Portugal é, nos termos do artigo 19.º-A, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 27/2008, de 30/06, considerado inadmissível.
Pelo que, em consequência, a AIMA limita-se a aplicar o disposto no artigo 37.º, n.º 1, da Lei do Asilo, que determina o seguinte: “[q]uando se considere que a responsabilidade pela análise do pedido de proteção internacional pertence a outro Estado-Membro, de acordo com o previsto no Regulamento (UE) n.º 604/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho, a AIMA, I. P., solicita às respetivas autoridades a sua tomada ou retoma a cargo”.
É que, como dissemos, nesta sede vigora o princípio de que cabe a um único Estado-Membro a apreciação dos pedidos de asilo ou de proteção internacional, como forma de obstar ao designado “asylum shopping”, enquanto prática de apresentação sucessiva de pedidos em diversos países do espaço europeu.
Assim, porque preenchidos os pressupostos a que se reporta o artigo 37.º, n.º 1 e 2 da Lei do Asilo, concretamente quanto à responsabilidade da Alemanha para a análise do pedido de proteção internacional do Requerente e aceite por aquele a sua responsabilidade, não tendo havido lugar à aceitação de responsabilidade pelo Estado Português nos termos do artigo 40.º, n.º 1 da Lei do Asilo, cumpria à Requerida proferir de decisão de inadmissibilidade nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 19.º-A.
Refira-se que, a tal respeito, é inócua a alegação do Requerente quanto a ter sido um intermediário a solicitar o visto emitido pelas autoridades alemãs, e a sua invocada falta de autorização para o efeito, pois que não cabe às autoridades portuguesas sindicar as alegadas vicissitudes relativas aos procedimentos administrativos in casu de atribuição de vistos desenvolvidos pelas autoridades alemãs, cabendo ao Recorrente, disso sendo caso, suscitar tais questões perante as autoridades administrativas ou judiciais alemãs (em sentido similar, veja-se o Ac. deste TCA Sul de 9.10.2025, proferido no processo 32138/25.6BELSB).
Em face do exposto, face à inadmissibilidade do pedido de proteção internacional à luz da al. a) do n.º 1 do artigo 19.º-A da Lei do Asilo, não recaía sobre a AIMA - nem recai sobre este Tribunal -, como resulta do n.º 2 desse normativo, a análise sobre as concretas razões invocadas pelo Recorrente no seu pedido de proteção, nem tão pouco qualquer dever instrutório ao abrigo do artigo 18.º que sempre dependeria da admissibilidade do pedido apresentado.
Não há, pois, que falar em qualquer violação do artigo 18.º da Lei do Asilo, designadamente o seu n.º 4, dado que a apreciação dos pressupostos de que depende a atribuição ao Requerente do pedido de proteção internacional e, consequentemente, os deveres instrutórios a cargo da Administração, é da competência das autoridades alemãs, responsáveis pela retoma a cargo do Recorrente.
Refira-se que apenas não ocorreria a retoma a cargo do Recorrente pela Alemanha se, no caso concreto, como dissemos, houvesse lugar à aplicação do disposto no artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/2013.
Contudo, entende-se uniformemente pela «“desnecessidade de uma específica atividade instrutória antes da determinação da transferência, tendente ao apuramento da verificação de falhas sistémicas nos procedimentos de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes de proteção internacional quando não existam indícios que o requerente tenha sido, ou venha a ser, vítima dessas falhas, nomeadamente com a gravidade extrema que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante no art. 3.º n.º 2 do Regulamento (EU) n.º 604/13, do Parlamento Europeu e do Conselho de 26 de Junho de 2013” (cfr. acórdãos de 16/01/2020, P. 02240/18.7BELSB; de 04/06/20, P. 01322/19.2BELSB; de 02/07/2020, P. 01786/19.4BELSB e P. 010/88/19.6BELSB; de 09/07/20, P. 1419/.9BELSB; de 10/09/2020, P. 01705/19.8BELSB e P. 03421/19.1BEPRT; de 5/11/2020, P. 2364/18.0BELSB; de 19/11/2020, P. 1301/19.0BELSB; de 19/11/2020, P. 1009/20.3BELSB; de 04/02/2021, P.115/20.9BELSB; de 11/03/2021, P. 01282/20.7BELSB; de 24/11/2022, P.0269/22.0BELSB)» e que, «apenas em casos devidamente justificados, naqueles casos em que existam motivos válidos para crer que «há falhas sistémicas no procedimento de asilo e nas condições de acolhimento dos requerentes» e que tais falhas impliquem o risco de tratamento desumano ou degradante, nomeadamente, por envolver tortura, é que se impõe ao Estado em causa diligenciar pela obtenção de informação atualizada acerca da existência de risco de o requerente ser sujeito a esse tipo de tratamentos» (Acórdão do STA de 19.4.2023, proferido no processo n.º 1988/20.0BELSB, disponível em www.dgsi.pt).
No caso em apreço, nada é alegado que caraterize a existência de falhas gritantes no procedimento de asilo alemão, nem pela falta de condições de acolhimento ou pela existência de um risco sério de o Recorrente vir a ser alvo de tratamentos desumanos ou degradantes na Alemanha, não se verificando o pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento n.º 604/13, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013.
E, de resto, em face ao princípio da confiança mútua entre os Estados-Membros da União Europeia e de partilha dos mesmos valores, princípios e regras em matéria de respeito pelos direitos humanos e pelos direitos, liberdades e garantias mais elementares, deve presumir-se que o tratamento dado por um Estado-Membro aos requerentes de proteção internacional está em conformidade com as exigências da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, da Convenção de Genebra relativa ao Estatuto dos Refugiados, bem como, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, não tendo o Recorrente, relativamente à Alemanha, alegado factos suscetíveis de ilidir tal presunção.
Donde, inexistindo indícios de que o requerente tenha sido ou venha a ser vítima de falhas sistémicas no procedimento de asilo na Alemanha, com a gravidade que é pressuposto da aplicação da cláusula de salvaguarda constante do art.º 3.º, n.º 2 do Regulamento, mostra-se desnecessária uma específica atividade instrutória, antes da determinação da transferência.
Competindo às autoridades do Estado alemão apreciar o pedido de proteção internacional formulado pelo requerente, apurando o eventual risco que implicará o regresso do requerente ao seu país de origem, mas também a aplicação do princípio do non refoulement.
Em suma, impõe-se confirmar a sentença recorrida, a qual não enferma do erro de julgamento que lhe vem apontado.

2. Da condenação em custas


Sem custas, por ser gratuito o processo, nos termos do artigo 84.º da Lei n.º 27/2008, de 30 de junho.


V. Decisão

Nestes termos, acordam os juízes desembargadores da Subsecção Administrativa Comum, do Tribunal Central Administrativo Sul, em,
a. Negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida;
b. Sem custas.

Mara de Magalhães Silveira
Marcelo da Silva Mendonça
Joana Costa e Nora