Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:476/12.3BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:07/03/2025
Relator:LUÍS BORGES FREITAS
Descritores:DISPONIBILIDADE PERMANENTE
TRABALHO EXTRAORDINÁRIO
COMPENSAÇÃO
Sumário:O suplemento previsto no artigo 67.º/1 do Decreto-Lei n.º 290-A/2001, de 17 de novembro, cobre todos os ónus que podem decorrer da disponibilidade total e permanente para o serviço, incluindo a prestação efetiva de serviço para além do horário normal de trabalho.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção Administrativa Social
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul:


I
O Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras intentou, em 19.4.2012, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, ação administrativa comum contra o MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA e o ESTADO PORTUGUÊS, peticionando que:

«a) [Seja] declarado que os funcionários da carreira de investigação e fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para além do suplemento previsto no artigo 67º, nº 1 do Decreto-Lei nº 290-A/2001, de 17 de Novembro, deverão ser remunerados pelo trabalho extraordinário prestado nos termos previstos no artigo 28º do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de Agosto;
b) [Seja] o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras condenado a efectuar o pagamento de trabalho extraordinário sempre que o mesmo seja prestado nas condições previstas no artigo 28º do Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de Agosto».

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Por saneador-sentença de 6.3.2013 o tribunal a quo absolveu da instância o Estado Português, por ilegitimidade, e absolveu do pedido o Ministério da Administração Interna.
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Inconformado, o Autor interpôs recurso dessa decisão, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

1. Vem a douta sentença recorrida considerar que "... o pessoal integrado na carreira de investigação e fiscalização do SEF não tem direito a auferir qualquer compensação a título de trabalho extraordinário, por o suplemento remuneratório estipulado no estatuto do pessoal do SEF incluir todo o trabalho prestado, dentro da disponibilidade permanente e obrigatória.”
2. E continua, "... não faz sentido invocar a violação das normas constitucionais, dos arts. 13º e 59° da CRP, «uma vez que o pessoal da carreira de investigação e fiscalização do SEF integra um corpo especial com estatuto próprio, cuia especificidade implica uma ininterrupta disponibilidade, incompatível com a aplicação das regras relativas ao trabalho extraordinário..." julgando assim improcedente a ação.
3. Ora, o Recorrente apresentou como pedido na presente ação julgada improcedente pelo Tribunal a quo, que o disposto no n.° 3 do artigo 67° do Decreto-Lei n.° 290-A/2001 de 17 de Novembro fosse considerado inconstitucional por violação do disposto nos artigos 13° e 59° n.° 1 alínea a) da Constituição da República Portuguesa, e princípio da Igualdade, e, consequentemente que fosse declarado que os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fonteiras para além do suplemento previsto no artigo 67° n.° 1 do Decreto-Lei n.° 290-A/2001, de 17 de Novembro, deveriam ser remunerados pelo trabalho extraordinário prestado nos termos previstos no artigo 28° do Decreto-Lei n.° 259/98 de 1 8 de Agosto; e que, ainda fosse o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras condenado a efetuar o pagamento de trabalho extraordinário sempre que o mesmo seja prestado nas condições previstas no artigo 28° do Decreto-Lei n.° 259/98 de 18 de Agosto.
4. Ora, face às razões supra expostas o Tribunal a quo, a nosso ver erradamente, considerou que não existia qualquer inconstitucionalidade e que julgou o pedido integralmente improcedente, violando não só as disposições inconstitucionais invocadas, mas ainda o disposto no artigo 18° da Constituição da República Portuguesa e ainda, o artigo 66° n.° 1 alínea b) do C. Processo Civil, padecendo assim de nulidade,
5. Desde logo cumpre referir que não se percebe como direitos constitucionalmente consagrados no artigo 59° n.° 1 alínea a) da Constituição da República Portuguesa, podem ser considerados restringidos por disposições legais que constam de um decreto-lei,
6. Mais ainda quado a própria Constituição da República Portuguesa estabelece no seu artigo 18° n.° 1 que “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.", sendo que o seu n.° 2 estabelece que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos."
7. "... toda a restrição tem de estar expressamente credenciada no texto constitucional, tornando-se portanto necessário que a admissibilidade da restrição encontre nele expressão suficiente e adequada." (6-Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1º a 107°, Volume I, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, 4a edição revista, Coimbra Editora, página 395).
8. Ora, o artigo 59° da Constituição não permite que exista restrição aos direitos que nele se encontram consagrados, sendo certo que faz todo o sentido invocar essa disposição constitucional no caso dos Inspetores da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF,
9. O artigo 59° da Lei fundamental, estabelece que “Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas têm direito: b) A organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação da actividade profissional com a vida familiar; d) Ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas; fixando ainda o seu n.° 2 que “incumbe ao Estado assegurar as condições de trabalho, retribuição e repouso a que os trabalhadores têm direito, nomeadamente: b) A fixação, a nível nacional, dos limites da duração de trabalho;"
10. Ao abrigo das disposições constitucionais é definido um regime de horário de trabalho pelo Decreto-Lei n.° 259/98, de 18 de Agosto, estabelecendo o seu artigo 7º n.° 1 que a duração semanal de trabalho é de 35 horas, e por sua vez, de acordo com o artigo 8º n.° 1 que o período normal de trabalho diário é de 7 horas.
11. Os horários de trabalho por sua vez podem ser, de acordo com o disposto no artigo 15º do Decreto-Lei n.° 259/98, de 18 de Agosto, flexíveis, rígido, desfasados, de jornada contínua e por fim trabalho por turnos.
12. Todos eles têm regras estabelecidas, sendo que, com as especificidades que lhe são próprias, nunca podem permitir a violação do disposto no artigo 7º do Decreto-Lei n.° 259/98 de 18 de Agosto.
13. Assim, desde logo considerar a disponibilidade permanente como uma isenção total de horários de trabalho, implicaria violar a Lei fundamental.
14. Na realidade ao se entender que, por causa do suplemento de disponibilidade permanente não têm os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF direito a qualquer compensação pelo trabalho extraordinário que possam prestar, cria uma situação de desigualdade,
15. Estabelece o artigo 13° da Constituição da República Portuguesa o Princípio da Igualdade, que tem reflexo no artigo 59° da mesma Lei fundamental que estabelece, no seu n.° 1 alínea a) que por trabalho igual, salário igual,
16. Todo o trabalhador tem direito a uma justa retribuição e “(a) ela deve ser conforme à quantidade de trabalho (i. é, à sua duração e intensidade), à natureza do trabalho (i. é, tendo em conta a sua dificuldade, penosidade ou perigosidade) e à qualidade do trabalho (i. é, de acordo com as exigências em conhecimentos, prática e capacidade).” (7-In Constituição da República Portuguesa anotada, Artigos 1º a 107°, Volume I, J. J. Comes Canotilho e Vital Moreira, 4a edição revista, Coimbra Editora, página 772)
17. Com base no Princípio da Igualdade e do seu corolário, de que para trabalho igual, salário igual, é claro que o trabalho extraordinário deverá ser remunerado a quem o preste,
18. Ao se considerar que o trabalho extraordinário dos associados da Ré e dos restantes funcionários não é remunerada atendendo ao suplemento atribuído, está-se a premiar o não exercício desse mesmo trabalho extraordinário.
19. Assistimos a funcionários que nunca prestaram horas extraordinárias, por trabalharem em unidades orgânicas em que não surgem situações que a tal exigem, e outros, que por sua vez, prestam trabalho extraordinário. Ambos os funcionários são remunerados da mesma forma e quantidade.
20. Aliás, esta problemática, de forma bastante semelhante, se discutiu com o pessoal da investigação da Polícia Judiciaria, e foi decidido pelo Conselho da Europa em Decisão de 1 7 de Outubro de 2011, (8-http://hub.coe.int/web/coe-portal/home)
21. Ora, a atividade do pessoal do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras encontra-se regulamentada pelo disposto nos seguintes diplomas: Decreto-Lei n.° 252/2000, de 16 de Outubro, que aprova a estrutura orgânica e define as atribuições do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e, pelo Decreto-Lei n.° 290-A/2001, de 17 de Novembro que aprova o regime de exercício de funções e o estatuto do pessoal do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, sendo que ambos os diplomas preveem a disponibilidade permanente como um ónus específico daquele serviço;
22. A disponibilidade permanente está associada às características do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) que são de carácter permanente e obrigatório e, nesse sentido o artigo 8º n.° 1 do Decreto-Lei n.° 252/2000, de 16 de Outubro estabelece que “O serviço no SEF é de carácter permanente e obrigatório não podendo o pessoal eximir-se às missões que lhe sejam confiadas, para além do horário normal do serviço."
23. “Pelo ónus específico do serviço no SEF, pela disponibilidade permanente obrigatória, pelo risco e insalubridade próprios das funções, o pessoal da carreira de investigação e fiscalização tem direito a um suplemento remuneratório graduado de acordo com a natureza das respectivas funções." estabelece o artigo 67° n.° 1 do Decreto-Lei n.° 290-A/2001, de 17 de Novembro, sendo esse suplemento fixado pela Portaria 104/2005 de 26 de Janeiro.
24. O suplemento auferido é referente não só ao facto de o SEF se encontrar sujeito a um regime de disponibilidade permanente, mas também pelo ónus específico do serviço no SEF, pelo risco e insalubridade próprios das funções.
25. Acrescenta o n.° 3 do mesmo dispositivo legal que “Com a percepção do suplemento a que se refere o presente artigo, na é devida qualquer outra compensação remuneratória por trabalho extraordinário, ou prestado em feriados, dias de descanso semanal e complementar."
26. De acordo com o previsto em tal disposição o Recorrido, considera que uma vez que os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF auferem tal suplemento, não têm qualquer direito a compensação pela prestação de trabalho em horas extraordinárias.
27. Ora, este dispositivo legal viola claramente o disposto no artigo 13º e 59° n.° 1 alínea a) da Constituição da República Portuguesa, ou seja o Princípio da igualdade e o seu reflexo, de que por trabalho igual, salário igual,
28. Desde logo se refira que montante auferido a título de suplemento não é atribuído apenas porque existe uma disponibilidade total do funcionário, mas também pelo risco e insalubridade próprio das funções, sendo que no montante que todos os funcionários auferem não é possível concretizar que montante se referirá à disponibilidade permanente, e qual será o referente ao risco e insalubridade próprios das funções.
29. No entanto, a perceção de tal suplemento não pode ser entendida como uma remuneração ao trabalho extraordinário que eventualmente o funcionário realize, mas sim uma remuneração própria pelas características que o SEF tem, as quais, os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF têm que assegurar,
30. Ou seja, o suplemento tem a característica de ressarcir os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF pelo ónus que existe ao prestar serviço numa entidade com serviço permanente, sendo assim que tal suplemento deverá ser interpretado, nunca que o trabalho extraordinário já se encontra compensado e remunerado,
31. A verdade, é que se um funcionário tem sempre a possibilidade de ser chamado para prestar horas de trabalho extraordinário, este último não pode deixar de ser remunerado por essas horas prestadas,
32. O suplemento não pode significar uma contrapartida por os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF prestarem trabalho em qualquer momento, para além do horário semanal de 35h, sem que esse trabalho seja remunerado como trabalho extraordinário, já que tal equivaleria a uma total isenção de horários de trabalho,
33. O suplemento que a ela se refere não poderá de deixar de ser entendido como compensação pelo ónus que decorre das funções que exerce como funcionário da Carreira,
34. Os suplementos por disponibilidade permanente “constituem acréscimos remuneratórios destinados a compensar o sacrifício imposto aos funcionários e agentes que se encontram vinculados a um dever de permanente disponibilidade para o serviço..." e “a disponibilidade permanente não significa um permanente exercício de funções; pelo contrário, traduz uma continua receptividade para o trabalho, de tal forma que o funcionário ou agente há-de satisfazer o comando que lhe ordene a execução de funções, independentemente do momento em que o mesmo seja proferido.", (9- Função Publica - Regime Jurídico, Direitos e Deveres dos Funcionários e Agentes, 1º Volume, Paulo Veiga e Moura, Coimbra Editora, 1 99, pagina 320) não podendo o trabalhador deixar de ser remunerado pelas horas extraordinárias calculadas de acordo com o disposto no artigo 25° e seguintes do Decreto-Lei n.° 259/98 de 1 8 de Agosto,
35. Por sua vez, a disponibilidade permanente acaba por ter carácter residual no funcionamento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, que apenas deverá recorrer a essa disponibilidade do funcionário em caso de falha no regime de turnos, de piquete ou de prevenção, e, na medida em que se recorra a tal regime de “disponibilidade permanente" deverá ser o funcionário remunerado de acordo com o trabalho extraordinário prestado e calculado e acordo com o disposto no artigo 28° do Decreto-Lei n.° 259/98 de 1 8 de Agosto,
36. Efetivamente, a não ser considerado assim também nos encontraríamos perante uma situação de isenção de horário de trabalho e não é o sentido que o legislador pretendeu dar ao suplemento;
37. Sendo que a própria lei estabelece - artigo 23° e 24° do Decreto-Lei n.° 259/98 de 18 de Agosto, que se deverá entender como isenção de horário de trabalho, que é diferente da disponibilidade permanente.
38. Assim, o trabalho prestado além das 35 horas semanais e não enquadrado nos regimes de piquete, prevenção ou de turnos, deve ser remunerado como trabalho extraordinário,
39. Sendo certo que o suplemento auferido reveste a qualidade de compensação pelo ónus da disponibilidade permanente, não pelas horas prestadas, já que a ser assim nenhum outro trabalho (piquete ou prevenção) seria remunerado,
40. Como é concluído por Parecer da Procuradoria-Geral da República (10-Parecer da Procuradoria-Geral da Republica n.° 328/2000 de 16 de Agosto de 2000): “O suplemento de disponibilidade permanente mostra-se teleologicamente orientado para remunerar o estado de contínua receptividade e sujeição do funcionário ao chamamento para prestação efetiva de trabalho, com uma consequente maior limitação da liberdade do funcionário e um agravamento da subordinação;...Esse suplemento não se confunde com o que é devido pela prestação de trabalho extraordinário, que se destina a remunerar o trabalho efectivamente prestado nas circunstâncias previstas na lei, por imperiosas necessidades de serviço, devido a acumulação anormal ou imprevista de trabalho ou da urgência na realização de tarefas especiais;...não há incompatibilidade na cumulação entre o suplemento de disponibilidade permanente e o suplemento por trabalho extraordinário..."
41. Violou assim o Tribunal a quo o disposto nos artigos 13o e 59° n.° 1 alínea a) da Constituição da República Portuguesa, assim como o disposto no artigo 28° do Decreto-Lei n.° 259/98 de 1 8 de Agosto,
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ A SENTENÇA ORA RECORRIDA SER REVOGADA E CONSEQUENTEMENTE DEVERÁ SER CONSIDERADO INCONSTITUCIONAL O DISPOSTO NO N.°3 DO ARTIGO 67° DO DECRETO-LEI N.° 290-A/2001 DE 17 DE NOVEMBRO POR VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 13° E 59° N.° 1 ALÍNEA A) DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, E AINDA NESSA MEDIDA, SER DECLARADO QUE OS FUNCIONÁRIOS DA CARREIRA DE INVESTIGAÇÃO E FISCALIZAÇÃO DO SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FONTEIRAS PARA ALÉM DO SUPLEMENTO PREVISTO NO ARTIGO 67° N.° 1 DO DECRETO-LEI N.° 290-A/2001, DE 17 DE NOVEMBRO, DEVERÃO SER REMUNERADOS PELO TRABALHO EXTRAORDINÁRIO PRESTADO NOS TERMOS PREVISTOS NO ARTIGO 28° DO DECRETO-LEI N.° 259/98 DE 18 DE AGOSTO, E AINDA QUE SEJA O SERVIÇO DE ESTRANGEIROS E FRONTEIRAS CONDENADO A EFETUAR O PAGAMENTO DE TRABALHO EXTRAORDINÁRIO SEMPRE QUE O MESMO SEJA PRESTADO NAS CONDIÇÕES PREVISTAS NESSE DIPLOMA LEGAL, FAZENDO-SE ASSIM ACOSTUMADA
JUSTIÇA!
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O Ministério da Administração Interna não apresentou contra-alegações.
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Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o Ministério Público não emitiu parecer.

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Com dispensa de vistos, mas com envio prévio do projeto de acórdão aos Juízes Desembargadores adjuntos, vem o processo à conferência para julgamento.


II
Sabendo-se que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do apelante, as questões que se encontram submetidas à apreciação deste tribunal de apelação consistem em determinar:

a) Se a sentença recorrida é nula;
b) Se existe erro de julgamento por se ter considerado que o artigo 67.º/3 do Decreto-Lei n.º 290-A/2001, de 17 de novembro, não permite a compensação remuneratória correspondente à prestação de trabalho extraordinário.


III
A matéria de facto constante da sentença recorrida – e que não foi impugnada - é a seguinte:

A) O Autor é o Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, estando em juízo em representação dos trabalhadores do SEF seus associados.
B) O serviço no SEF é de caráter permanente e obrigatório.
C) O pessoal do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras exerce funções em regime de disponibilidade permanente.


IV
Da alegada nulidade da sentença

1. De acordo com o Recorrente, «o Tribunal a quo, a nosso ver erradamente, considerou que não existia qualquer inconstitucionalidade e que julgou o pedido integralmente improcedente, violando não só as disposições inconstitucionais invocadas, mas ainda o disposto no artigo 18º da Constituição da República Portuguesa e ainda, o artigo 66º n.º 1 alínea b) do C. Processo Civil, padecendo assim de nulidade».

2. Admitindo que o Recorrente quis indicar o artigo 668.º/1/b) do Código de Processo Civil, nos termos do qual a sentença é nula quando «[n]ão especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão», a alegação em causa demonstra um manifesto equívoco na distinção entre nulidade da sentença e erro de julgamento.

3. De resto, nas alegações de recurso o Recorrente demonstra bem que tais fundamentos existem e que os compreendeu. Apenas não os aceita. Mas essa é matéria, como se disse, de eventual erro de julgamento, e que como tal será apreciada.


Do alegado erro de julgamento

4. O artigo 67.º do Decreto-Lei n.º 290-A/2001, de 17 de novembro, estabelecia o seguinte (este diploma foi quase integralmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 40/2023):

«1 - Pelo ónus específico do serviço no SEF, pela disponibilidade permanente obrigatória, pelo risco e insalubridade próprios das funções, o pessoal da carreira de investigação e fiscalização tem direito a um suplemento remuneratório graduado de acordo com a natureza das respectivas funções.
2 - O suplemento previsto no número anterior é fixado em diploma autónomo.
3 - Com a percepção do suplemento a que se refere o presente artigo, não é devida qualquer outra compensação remuneratória por trabalho extraordinário, ou prestado em feriados, dias de descanso semanal e complementar.
4 - A opção pela remuneração do lugar de origem não prejudica o direito ao suplemento fixado no presente artigo.
5 - Excepciona-se do direito ao suplemento previsto neste artigo o pessoal da carreira de investigação e fiscalização admitido a estágio, até que se verifique o provimento na categoria de ingresso das respectivas carreiras».

5. Como o próprio Recorrente lembrou no artigo 3.º das suas alegações de recurso, o mesmo pretende, através da presente ação, o reconhecimento de que os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do Serviço de Estrangeiros e Fonteiras têm direito ao pagamento de trabalho extraordinário prestado nas condições previstas no regime geral (o pedido ficou limitado na sua vertente prospetiva, face à extinção do referido serviço que veio, entretanto, a ocorrer).

6. Portanto, uma coisa é certa: a pretensão apenas poderia ser sustentada por via da desaplicação da norma contida no transcrito artigo 67.º/3, tal é a clareza da sua solução. Precisamente o que vem feito, por apelo à alegada violação do disposto nos artigos 13.º e 59.º/1/a) da Constituição da República Portuguesa.

7. Adiante-se, desde já, que nenhuma das normas se mostra violada.

8. Como há muito já referia o Supremo Tribunal Administrativo, «o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei constitucionalmente consagrado no 13º da CRP não impõe a absoluta e total uniformidade de regimes jurídicos, para todos os cidadãos, qualquer que seja a situação em que se encontrem, permitindo diversidade de regimes justificados pela diferença de situações; assim, não se impõe que todas as pessoas sejam tratadas da mesma forma. O que é necessário é que todos aqueles que se encontrem em situações semelhantes ou idênticas tenham o mesmo tratamento» (acórdão de 16.1.96, processo n.º 36418).

9. Ora, quais serão as situações que, na perspetiva do Recorrente, justificariam – em nome do princípio da igualdade – a solução que defende?

10. Quanto aos alegados «funcionários que nunca prestaram horas extraordinárias, por trabalharem em unidades orgânicas em que não surgem situações que a tal exigem, e outros, que por sua vez, prestam trabalho extraordinário», sendo que «[a]mbos os funcionários são remunerados da mesma forma e quantidade», desconhece-se nos autos quem serão e quais os termos concretos da alegada diferenciação, pelo que nada poderá ser apreciado.

11. Quanto à generalidade dos trabalhadores da Administração Pública, também não será o seu regime a fornecer suporte para a alegada violação do princípio da igualdade. É certo que têm direito, nos termos gerais, ao pagamento do trabalho prestado fora do horário de trabalho (hoje designado trabalho suplementar na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, com a noção que lhe é dada pelo artigo 226.º/1 do Código do Trabalho). Mas tal sucede porque – e ao invés dos associados do Recorrente – não beneficiam de um suplemento que visa, nomeadamente, a compensação pelo trabalho prestado para além do horário normal de trabalho.

12. Vejamos melhor.
O artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 252/2000, de 16 de outubro, estabelecia o seguinte:

«1 - O serviço no SEF é de carácter permanente e obrigatório, não podendo o pessoal eximir-se às missões que lhe sejam confiadas, para além do horário normal do serviço.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, será definido por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna, das finanças e da Administração Pública o horário normal da prestação de serviço, o qual poderá revestir a modalidade de trabalho por turnos.
3 - O serviço no SEF pode ser assegurado em regime de piquete e de prevenção de acordo com regulamentação a aprovar conjuntamente pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna, das finanças e da Administração Pública».

13. Temos, portanto, que, não obstante a existência de um horário normal da prestação de serviço, esse serviço tem natureza permanente e obrigatório. Ora, essa ininterrupta disponibilidade determina que o trabalho prestado para além do referido horário normal não tenha, afinal, a natureza extraordinária que se verifica quanto à generalidade dos trabalhadores. De resto, os próprios limites à prestação de trabalho extraordinário – fixados à data no Decreto-Lei n.º 259/98, de 18 de agosto, e atualmente na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, já por referência à designação comum de trabalho suplementar – são, naturalmente, incompatíveis com a situação de disponibilidade permanente.

14. O que determina que os trabalhadores sujeitos a esse ónus tenham de ser compensados de uma forma alternativa. O que, em regra, é efetuado através de uma remuneração base, ela própria, já fixada em patamar superior ao correspondente em carreiras gerais de igual nível habilitacional ou mediante a atribuição de um suplemento remuneratório. Poderá suceder, até, que ambas as realidades coexistam.

15. Para o caso dos autos a compensação dessa disponibilidade permanente bem como do trabalho prestado em função dela e para além do horário normal da prestação de serviço mostra-se bem explicada no acórdão de 6.12.2011 do Supremo Tribunal Administrativo, processo n.º 252/10: Aí se pode ler, com especial interesse, o seguinte:

«Refere-se no preâmbulo do referido diploma, o seguinte: «O Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) é um serviço de segurança que exerce as suas competências no quadro global da política de segurança interna, constituindo o pessoal de investigação e fiscalização do SEF um corpo de funcionários civis com atribuições policiais nos domínios da fiscalização e investigação da permanência de actividades de estrangeiros em todo o território nacional e do controlo da circulação de pessoas nas fronteiras. Àquele pessoal, para além de habilitações e qualificações profissionais específicas, são impostas condições de exercício de funções particularmente onerosas em termos de maior desgaste físico e psíquico, permanente disponibilidade e risco.
Assim, a sua integração no conjunto dos corpos especiais, correspondendo ao disposto no Decreto-Lei nº 353-A/89, de 16 de Outubro, visa compensar minimamente aqueles ónus através de um sistema retributivo próprio.» (negrito nosso) Ou seja, quer da redacção do nº1 do artº4º do DL 160/92, quer do preâmbulo desse diploma, resulta claro, a nosso ver, que foi intenção do legislador compensar todos os ónus específicos inerentes às funções de fiscalização e investigação do SEF, através de um sistema retributivo próprio, que atribui um suplemento remuneratório único, ao pessoal da CIF do SEF, pelas particularidades específicas das respectivas funções, globalmente consideradas, cujo regime fixou nos nº3, 4 e 5 do referido preceito, abrangendo, desse modo, realidades bem diversas, desde logo as exemplificativamente referidas no seu nº1 (a permanente e total disponibilidade, o maior desgaste físico e o risco), com o que ficou afastada qualquer outra compensação remuneratória pelos ónus ou particularidades específicas inerentes às referidas funções, incluindo por trabalho extraordinário. Aliás, a realidade subjacente ao suplemento remuneratório previsto no artº4º do DL 160/92 é, no essencial, a mesma que está subjacente ao suplemento remuneratório previsto no artº 67º do DL 290-A/2001, cujo nº1 dispõe que «Pelo ónus específico do serviço no SEF, pela disponibilidade permanente obrigatória, pelo risco e insalubridade próprios das funções, o pessoal da carreira de investigação e fiscalização tem direito a um suplemento remuneratório graduado de acordo com a natureza das respectivas funções», embora o nº 3 deste preceito já esclareça, expressamente, que «Com a percepção do suplemento a que se refere o presente artigo, não é devida qualquer outra compensação remuneratória por trabalho extraordinário, ou prestado em feriados, dias de descanso semanal e complementar». Veja-se que o referido diploma manteve em vigor o citado artº4º do DL 160/92 até à entrada em vigor do diploma que veio fixar o montante do suplemento remuneratório em causa, o que só aconteceu pela Portaria nº 104/2005, de 26.01.6. O que, de resto, no que respeita concretamente ao trabalho extraordinário se compreende perfeitamente, pela dificuldade em considerar como extraordinário, o trabalho prestado, pelo pessoal da CIF do SEF, para além do seu horário normal de trabalho, nos casos, obviamente, em que está sujeito a um horário, pois não o estando, ou estando isento, nem sequer se coloca a questão, face ao disposto no nº2 do artº 25º do DL 259/98, que dispõe que “Não há lugar a trabalho extraordinário no regime de isenção de horário e no regime de não sujeição a horário”.
(…)
Disponibilidade total e permanente que determina a obrigatoriedade de se apresentar ao serviço sempre que convocado, ou independentemente dessa convocação, quando ocorram situações que pela sua urgência justifiquem a sua presença no serviço, não podendo, designadamente, eximir-se ao cumprimento de qualquer missão de serviço (cf. 8ºdo DL440/86), o que, num serviço de carácter permanente e obrigatório como é o SEF pode ocorrer com uma certa regularidade. E, por isso, a prestação de serviço no exercício dessa disponibilidade, não pode estar sujeita às limitações da prestação de trabalho extraordinário impostas pelo DL 258/98, de 18.08, que é de carácter excepcional, pois, nos termos do seu artº26º, «só é admitida a prestação de trabalho extraordinário quando as necessidades de serviço imperiosamente o exigirem, em virtude de acumulação anormal ou imprevista de trabalho ou urgência na realização de tarefas especiais não constantes do plano de actividades e, ainda, em situações que resultem de imposição legal», não podendo exceder 2h por dia, nem ultrapassar as 120h por ano (cf. 27º, nº1 do mesmo diploma). Portanto, o trabalho prestado pelo pessoal da CIF do SEF para além do horário normal de trabalho diário, não tem aqui, verdadeiramente, o carácter excepcional que a lei confere ao trabalho extraordinário prestado nos termos do DL 259/98, antes surge como uma situação de normalidade, com a qual o trabalhador deve antecipadamente contar quando exerce funções em regime de disponibilidade total e permanente para o serviço. Por isso se compreende, perfeitamente, que o suplemento previsto no artº4º, nº1 do DL 160/92, quisesse abranger, desde logo, todos os ónus ou sacrifícios que pudessem decorrer para o trabalhador dessa disponibilidade total e permanente para o serviço, incluindo a prestação efectiva de serviço para além do horário normal, que não se confundindo com aquela disponibilidade, é dela consequência, isto embora o suplemento em causa seja atribuído independentemente dessa efectiva prestação, mas incluindo esse previsível ónus no seu cálculo. Intenção que, como referimos, o legislador manteve e melhor esclareceu no estatuto remuneratório do pessoal do SEF aprovado pelo DL 290-A/2001, de 17.11».

16. Elucidativo, sem dúvida. E esclarecedor quanto à total inviabilidade da chamada à colação de uma pretensa violação do princípio constitucional da igualdade, como já se havia antecipado, demonstrada que está a razão de ser da diferenciação de regimes.

17. De resto, são precisamente as especificidades evidenciadas pelo acórdão citado que repudiam a igualmente alegada violação do disposto no artigo 59.º/1/a) da Constituição da República Portuguesa, nos termos do qual «[t]odos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito [à] retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual salário igual, de forma a garantir uma existência condigna».

18. Por isso mesmo se havia concluído, no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul sobre o qual incidiu a referida revista, que «não faz sentido invocar a inobservância do disposto no artigo 59º n.º 1 da C.R.P., uma vez que o pessoal da carreira de investigação e fiscalização do SEF integra um corpo especial com estatuto próprio, cuja especificidade implica uma ininterrupta disponibilidade, incompatível com a aplicação das regras relativas ao trabalho extraordinário previstas no Dec.Lei n.º 259/98, de 18 de Agosto, sendo esta a ratio do artigo 67º do Estatuto do Pessoal do SEF, aprovado pelo Dec.Lei n.º 290-A/2001, de 17 de Novembro».

19. Em suma, e ao contrário do que anteviu o Recorrente, o artigo 67.º/3 do Decreto-Lei n.º 290-A/2001, de 17 de novembro, não violou as normas contidas nos artigos 13.º e 59.º/1/a) da Constituição da República Portuguesa. O problema decorre do pressuposto do Recorrente, que assenta na ideia base de que «não têm os funcionários da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF direito a qualquer compensação pelo trabalho extraordinário que possam prestar». Têm, como se viu, na medida em que o suplemento em causa cobre todos os ónus que podem decorrer da disponibilidade total e permanente para o serviço, incluindo a prestação efetiva de serviço para além do horário normal de trabalho, como acentuou o Supremo Tribunal Administrativo.





V
Em face do exposto, acordam os Juízes da Subsecção Social do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas, por isenção do Recorrente (artigo 4.º/1/f) do Regulamento das Custas Processuais).


Lisboa, 3 de julho de 2025.

Luís Borges Freitas (relator)
Maria Helena Filipe
Rui Fernando Belfo Pereira