Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:628/13.9BECTB
Secção:CT
Data do Acordão:07/15/2025
Relator:FILIPE CARVALHO DAS NEVES
Descritores:EXTINÇÃO DE SOCIEDADE COMERCIAL
DÍVIDAS FISCAIS
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DOS SÓCIOS
INUTILIDADE DA LIDE
Sumário:I – A sociedade comercial extinta, em consequência de dissolução e liquidação, continua a ser o sujeito da relação jurídica tributária, mesmo que a lei designe outros responsáveis pelo pagamento de créditos tributários cujo facto constitutivo remonte a data anterior à extinção.
II – Nada na lei impede a Autoridade Tributária de emitir um ato tributário de liquidação adicional de imposto já depois de extinta a pessoa coletiva que é o sujeito passivo da obrigação jurídica tributária, ainda que o seu pagamento seja exigido a outrem que a lei designe como responsável, designadamente os sócios.
III – Por ser assim, em caso de anulação de liquidação adicional em resultado de decisão proferida em processo de impugnação judicial iniciado por um dos sócios da sociedade extinta, a ação de oposição à execução fiscal em que é executado o Recorrido perdeu o seu objeto, o que tem como consequência a impossibilidade superveniente da lide (cf. art.º 176.º, n.º 1, alínea b) e art.º 270.º, n.º 1, ambos do CPPT, e alínea e) do art.º 277.º do CPC, ex vi alínea e) do art.º 2.º do CPPT).
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul

I – RELATÓRIO

A Fazenda Pública veio apresentar recurso da sentença proferida a 19/06/2023 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, quanto à oposição judicial apresentada por C… no processo de execução fiscal («PEF») n.º 1198201201006134, instaurado contra a sociedade «Q… Agro Pecuária, Lda.», para cobrança de dívida de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas («IRC») do exercício de 2008, no valor de 271.491,60 Euros, que julgou extinta a instância executiva por inutilidade superveniente da lide.

A Recorrente apresentou alegações, rematadas com as seguintes conclusões:

«Assim, nos termos do artigo 639º do Código de Processo Civil:
a) Foi violado pela douta sentença o artigo 608/2 do Código de Processo Civil.
b) Nos termos do artigo 608/2 do CPC “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras” (sublinhado nosso).
c) Na situação que ora nos ocupa o Tribunal “a quo” socorreu-se da sentença proferida em 13/01/2023 no âmbito do processo de impugnação judicial n.º 649/14.4BECBR do TAF de Coimbra, em que é impugnante M…, a determinar a anulação da liquidação de IRC n.º 2012 8310004512 com fundamento em vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, para concluir pela extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide, por considerar que “todo e qualquer pagamento de dívida com origem naquele ato mostra-se legalmente indevido”.
d) Ora, para além de M…, também o oponente interpôs impugnação judicial contra a liquidação adicional em apreço, conforme consta na fundamentação de facto da douta sentença.
e) Sendo que, ambos os sujeitos passivos, para além de outros, foram notificados pessoalmente, cada um, na pessoa de liquidatário e sócio da extinta e liquidada “Q…, Lda.”, do imposto ora em causa.
f) Assim, como salientado pelo Tribunal “a quo”, “o Oponente deduziu impugnação judicial
contra a liquidação de IRC n.º 2012, dando origem ao processo n.º 723/15.0BECTB do TAF
de Castelo Branco, que se encontra em fase de recurso interposto da sentença ali proferida, em 16/09/2020, que decidiu «julgar parcialmente a excepção de caducidade do direito de acção e, em consequência, absolver a Fazenda Pública do pedido de anulabilidade do acto de
liquidação e julgar improcedente o pedido de nulidade e, em consequência, manter o ato de liquidação» [consulta ao processo n.º 723/15.0BECTB junto do SITAF].
g) No entanto, desta constatação o Tribunal “a quo” não extraiu qualquer consequência.
h) Ou seja, que se verificará uma relação de prejudicialidade na decisão proferida na impugnação n.º 723/15.0BECTB do TAF de Castelo Branco relativamente à presente oposição no que à discussão do mérito respeita, já o mesmo não se verificando em relação à impugnação judicial n.º 649/14.4BECBR do TAF de Coimbra, em que é impugnante outro sujeito passivo, M….
i) A decisão proferida na impugnação judicial n.º 649/14.4BECBR do TAF de Coimbra não poderá repercutir-se nos presentes autos, tanto mais que o ora oponente interpôs também ele impugnação judicial, a qual assumiu o nº 723/15.0BECTB do TAF de Castelo Branco, na qual obteve perda de causa por caducidade do direito de ação, com decisão anterior à proferida no processo n.º 649/14.4BECBR do TAF de Coimbra, embora ainda sem trânsito em julgado.
j) A decisão proferida na impugnação judicial n.º 649/14.4BECBR do TAF de Coimbra apenas
poderá repercutir-se na esfera jurídica pessoal da impugnante M…, uma vez que a relação de prejudicialidade dos presente autos – oposição nº 628/13.9BECTB – se verifica em relação à impugnação judicial nº 723/15.0BECTB do TAF
de Castelo Branco, interposta pelo ora recorrido, na qual obteve perda de causa por caducidade do direito de ação, e não em relação à impugnação nº 649/14.4BECBR do TAF de Coimbra, na qual se revela outro o sujeito ou parte na ação.
k) Note-se, inclusive, tal como consta em K) e L) da matéria de facto dada como provada, que
“Em 13/12/2013 o Oponente requereu ao Chefe de Finanças a emissão de DUC com vista ao pagamento, «quanto à sua parte», da dívida em cobrança na execução fiscal, nos termos do DL 151-A/2013, de 31/10 [cf. doc. de fls. não numeradas do PEF apenso]”; e que “Em 20/12/2013 o Oponente efetuou um pagamento por conta na execução fiscal de 100.091,33€
[cf. doc. de fls. não numeradas do PEF apenso]”.
l) Ou seja, cada um dos sócios liquidatários da extinta sociedade “Q…
Agro Pecuária Lda.” [sendo que, conforme consta do ponto c) da matéria de facto dada com provada, “À data do cancelamento da matrícula da sociedade “Q… Agro Pecuária Lda.” eram sócios C…, F…, M…, M…, M… e A…, fls. 14 a 18 do documento SITAF n.º 006294891]”, ou os respetivos herdeiros, pagou a
parte proporcional em dívida correspondente à respetiva quota e reagiu, ou não, à respetiva liquidação.
m) O ora recorrido reagiu quer através da oposição judicial em apreço, alegando fundamentos de ilegitimidade e de falta de notificação da liquidação dentro do prazo de caducidade, quer através da impugnação judicial nº 723/15.0BECTB, alegando que a liquidação foi feita em nome de uma sociedade sem personalidade jurídica e tributária, pelo que é nula, e que a liquidação deve ser anulada por erro sobre os pressupostos de direito quanto ao cálculo da matéria tributável.
n) Em sede da impugnação judicial contra a liquidação de IRC n.º 2012 em apreço, dando origem ao processo n.º 723/15.0BECTB do TAF de Castelo Branco, o Tribunal decidiu, pois,
«julgar parcialmente a excepção de caducidade do direito de acção e, em consequência, absolver a Fazenda Pública do pedido de anulabilidade do acto de liquidação e julgar improcedente o pedido de nulidade e, em consequência, manter o ato de liquidação».
o) Assim, a liquidação de IRC nº 2012 mantém-se válida em relação ao oponente ora recorrido, o qual obteve perda de causa na impugnação n.º 723/15.0BECTB do TAF de Castelo Branco, embora ainda sem trânsito em julgado.
p) O Tribunal “a quo”, ao socorrer-se da sentença proferida em 13/01/2023 no âmbito da impugnação judicial n.º 649/14.4BECBR do TAF de Coimbra, em que é impugnante M…, a determinar a anulação da liquidação de IRC n.º 2012 8310004512 com fundamento em vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito, para concluir pela extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide, por considerar que “todo e qualquer pagamento de dívida com origem naquele ato mostra-se legalmente indevido”,
q) em desconsideração da sentença proferida na impugnação n.º 723/15.0BECTB do TAF de Castelo Branco, em que é impugnante o ora oponente, a “julgar parcialmente a excepção de caducidade do direito de acção e, em consequência, absolver a Fazenda Pública do pedido de
anulabilidade do acto de liquidação e julgar improcedente o pedido de nulidade e, em consequência, manter o ato de liquidação”, incorrerá em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do artigo 608/2 do CPC, 1ª parte, o qual estatui que “O juiz deve resolver
todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.”
r) Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso e revogada a douta sentença recorrida, nos termos supra expostos.
Pelo que, com o mais que Vossas Excelências se dignarão suprir, deve ser dado provimento ao recurso e em consequência ser revogada a douta sentença recorrida.».
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Não foram apresentadas contra-alegações.

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O Exmo. Magistrado do Ministério Público («EMMP») pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos legais, vem o processo submetido à conferência da Subsecção de Execução Fiscal e de Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul para decisão.

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II – DO OBJECTO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações (cf. art.º 635.º, n.º 4 e art.º 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil - «CPC» - ex vi art.º 281.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário - «CPPT»), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente.

Assim, delimitado o objeto do recurso pelas conclusões das alegações da Recorrente, importa decidir se deve ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo com fundamento em erro de julgamento, atendendo a que o julgado no âmbito do processo de impugnação judicial n.º 649/14.4BECBR, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, em que é impugnante M…, não pode fundamentar a conclusão quanto à inutilidade superveniente da lide com base na anulação do ato de liquidação adicional de IRC exequendo.
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III – FUNDAMENTAÇÃO

III.A - De facto

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:
«A) Em 04/04/2008, através da AP. 1/20080404 da Conservatória de Registo Comercial, foi registada a dissolução da sociedade “Q… Agro Pecuária Lda.” [cf. fls. 14 a 18 do documento SITAF n.º 006294891].
B) Em 27/08/2009, através da Ap. 1/20090827 da Conservatória de Registo Comercial, foi registado o encerramento da liquidação e cancelamento da matrícula da sociedade “Q… Agro Pecuária Lda.”, por motivo de «decisão proferida no âmbito do Procedimento Administrativo de Liquidação no regime especial de liquidação oficiosa, a que se refere a Ap. 1/20090827, não tendo resultado do processo nem sido comunicada à Conservatória a existência de activo e passivo a liquidar» [cf. fls. 14 a 18 do documento SITAF n.º 006294891].
C) À data do cancelamento da matrícula da sociedade “Q… Agro Pecuária Lda.” eram sócios C…, F…, M…, M…, M… e A… [fls. 14 a 18 do documento SITAF n.º 006294891].
D) Durante o ano de 2012 a sociedade “Q… Agro Pecuária Lda.” foi alvo de um procedimento externo de inspeção tributária, realizado pela Divisão de Inspeção Tributária da Direção de Finanças da Guarda, de cujas conclusões do relatório de inspeção resultaram correções ao IRC do exercício de 2008, no montante de 960.868,16€ [cf. fls. 19 a 22 do documento SITAF n.º 006294891].
E) Em 19/09/2012, na sequência da referida ação inspetiva, foi emitida em nome da “Q… Agro Pecuária, Lda.”, a liquidação de IRC n.º 2012 8310004512, relativa ao exercício de 2008, de cuja nota de cobrança com o n.º 2012 1670278, após compensação, resultou o valor a pagar de 271.491,60€ [cf. fls. 29 e 30 do documento SITAF n.º 006294891].
F) Em 27/05/2013 o Oponente assinou «Certidão de Notificação» da qual se destaca o seguinte teor: «Certifico que nesta data notifiquei Q… AGRO PECUARIA LDA (…), na pessoa do liquidatário e sócio C… (…), do teor da nota de cobrança n.º 2012 1670278, período de tributação 2008/01/01 a 2008/12/31, de IRC no valor total de € 271.491,60 (…)» [cf. fls. 92 do documento SITAF n.º 006315266].
G) Em 23/11/2012 foi emitida em nome da “Q… Agro Pecuária, Lda.” a certidão de dívida n.º 2012/1109585, referente a IRC e juros compensatórios do exercício de 2008, no valor de 271.491,60€ [cf. fls. não numeradas do PEF apenso].
H) Em 23/11/2012, com base na certidão de dívida mencionada na alínea anterior, no Serviço de Finanças de Figueira de Castelo Rodrigo foi instaurado, contra a “Q… Agro Pecuária, Lda.”, o processo de execução fiscal n.º 1198201201006134, pela quantia exequenda de 271.491,60€ [cf. fls. não numeradas do PEF apenso].
I) Em 21/10/2013, no âmbito do processo de execução fiscal n.º 1198201201006134, foi expedido, por correio registado e aviso de receção, ofício de citação dirigido ao Oponente «na qualidade de liquidatário e sócio e antigo gerente da dissolvida e extinta sociedade Q… Agro Pecuária, Lda», recebido em 28/10/2013, do qual se destaca o seguinte teor:
«(…)
Processo Executivo n.º: 1198201201006134 – Proveniência: Imp. Cont. Corr.
N.º Certidão: 1109585
Qta. Exequenda: € 271.491,60 Acrescido: € 18.469,04
(…)
Fica por este meio citado(a), nos termos dos artigos 189º e 190º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), nos termos do artigo 147º e 163º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) e artigos 21º e 22º da Lei Geral Tributária (LGT), de que foi instaurado neste Serviço de Finanças o processo de execução fiscal à margem referido, para cobrança da dívida supra identificada. No prazo de 30 dias após a presente citação, deverá proceder ao pagamento da dívida exequenda e acrescido (…)»
[cf. doc. de fls. não numeradas do PEF apenso].
J) A petição inicial da presente oposição deu entrada no Serviço de Finanças em 27/11/2013 [cf. fls. 3 do documento SITAF n.º 006294891].
K) Em 13/12/2013 o Oponente requereu ao Chefe de Finanças a emissão de DUC com vista ao pagamento, «quanto à sua parte», da dívida em cobrança na execução fiscal, nos termos do DL 151-A/2013, de 31/10 [cf. doc. de fls. não numeradas do PEF apenso].
L) Em 20/12/2013 o Oponente efetuou um pagamento por conta na execução fiscal de 100.091,33€ [cf. doc. de fls. não numeradas do PEF apenso].
M) Em 26/02/2018 o processo de execução fiscal foi extinto por pagamento da quantia exequenda e acrescido [cf. informação a fls. 1 do documento SITAF n.º 006809523].
N) O Oponente deduziu impugnação judicial contra a liquidação de IRC n.º 2012, dando origem ao processo n.º 723/15.0BECTB do TAF de Castelo Branco, que se encontra em fase de recurso interposto da sentença ali proferida, em 16/09/2020, que decidiu «julgar parcialmente a excepção de caducidade do direito de acção e, em consequência, absolver a Fazenda Pública do pedido de anulabilidade do acto de liquidação e julgar improcedente o pedido de nulidade e, em consequência, manter o ato de liquidação» [consulta ao processo n.º 723/15.0BECTB junto do SITAF].
O) Em 13/01/2023, no âmbito do processo de impugnação judicial n.º 649/14.4BECBR do TAF de Coimbra, em que é impugnante M…, foi proferida sentença a determinar a anulação da liquidação de IRC n.º 2012 8310004512 com fundamento em vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito [cf. fls. 1 a 38 do documento SITAF n.º 006804685 e fls. 1 do documento SITAF n.º 006805778].
P) Em 02/03/2022, em cumprimento da sentença mencionada na alínea anterior, a AT procedeu à anulação da liquidação de IRC n.º 2012 8310004512 [cf. fls. 1 do documento SITAF n.º 006804686 e fls. 1 do documento SITAF n.º 006804687].
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A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:
«Com interesse para a decisão nada mais se provou.».
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Mais resulta consignado em termos de motivação da matéria de facto o seguinte:
«A decisão da matéria de facto efetuou-se com base nos documentos juntos aos autos na plataforma informática SITAF, ao processo de execução fiscal apenso e por consulta ao processo n.º 723/15.0BECTB, conforme discriminado em cada uma das alíneas dos factos provados.».

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III.B De Direito

Insurge-se a Recorrente contra a sentença recorrida por, alegadamente, padecer de erro de julgamento, concretamente em relação à manutenção da utilidade da presente lide. Vem, assim, a Recorrente peticionar a revogação da sentença que recaiu sobre a oposição à execução fiscal apresentada no PEF n.º 1198201201006134, defendendo, em suma, que a decisão proferida no processo de impugnação judicial n.º 649/14.4BECBR, em que o Recorrido não é parte, não pode produzir efeitos na sua esfera jurídica, dado que também contestou judicialmente a liquidação de IRC em causa.

Apreciemos.

Adiantando, desde já, a nossa posição, entendemos que a sentença em dissídio não padece do desacerto que lhe vem assacado nas alegações recursivas.

Vejamos, então, porquê.

No caso sub judice a execução em apreço foi instaurada na sequência da dissolução e liquidação da sociedade Q… Agro Pecuária, Lda. e da posterior realização de uma ação de inspeção pela Autoridade Tributária («AT»), da qual resultou a emissão da liquidação adicional de IRC n.º 2012 8310004512, relativa ao exercício de 2008, que não foi objeto de pagamento (cf. pontos A), B), C), D), E), F), G), H) e I) dos factos provados).

Comecemos, então, por dilucidar a que título é que o Recorrido foi chamado para a presente execução fiscal, de modo a clarificar a natureza e os limites da sua responsabilidade tributária no caso que agora nos ocupa.

Cumpre, desde logo, notar que as sociedades se extinguem e, portanto, deixam de ter personalidade jurídica de direito civil, com o registo do encerramento da sua liquidação, o que resulta do n.º 2 do art.º 160.º do Código das Sociedades Comerciais («CSC»).

E embora, como dimana do disposto nos art.º 15.º e 18.º, n.º 3 da Lei Geral Tributária («LGT»), a personalidade tributária não tenha de coincidir sempre exatamente com a personalidade jurídica civilística, por força do disposto no art.º 11.º da LGT só será de considerar como tendo personalidade tributária uma entidade sem personalidade jurídica de direito civil quando alguma disposição legal assim o indique explicita ou implicitamente. Não havendo tal disposição legal, a pessoa coletiva extinta para efeitos de direito civil considera-se igualmente extinta no plano do direito tributário.

Também com relevo para este tema, dispõe o art.º 21.º, n.º1 da LGT, com a epígrafe «Solidariedade passiva», que «Salvo disposição da lei em contrário, quando os pressupostos do facto tributário se verifiquem em relação a mais de uma pessoa, todas são solidariamente responsáveis pelo cumprimento da dívida tributária.», preceituando o n.º2 do art.º 22.º do mesmo diploma legal que «Para além dos sujeitos passivos originários, a responsabilidade tributária pode abranger solidária ou subsidiariamente outras pessoas.».

Atentemos, agora, no regime jurídico ínsito no CSC relativamente à responsabilidade tributária dos sócios no caso de extinção de sociedades comerciais.

Nos termos da interpretação combinada dos art.ºs 147.º, 152.º, 154.º, 156.º, 158.º, 162.º, 163.º e 164.º do CSC, a sociedade comercial extinta deixa de ter personalidade jurídica, mantendo-se, porém, algumas das relações jurídicas de que era titular, designadamente as obrigações não cumpridas no momento da liquidação.

Por regra, só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade, salvo estipulação contratual em contrário (cf. art.º 197.º, n.º 3, do citado diploma legal). É o chamado princípio da limitação da responsabilidade dos sócios em sociedades de responsabilidade limitada, que, todavia, sofre exceções, nomeadamente a prevista no art.º 163.º, que em relação ao passivo superveniente determina que «encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada.».

Por seu turno, o art.º 147.º, n.º 2 do CSC dispõe que «as dívidas de natureza fiscal ainda não exigíveis à data da dissolução não obstam à partilha nos termos do número anterior, mas por essas dívidas ficam ilimitada e solidariamente responsáveis todos os sócios, embora reservem, por qualquer forma, as importâncias que estimarem para o seu pagamento». Ou seja, os sócios respondem solidariamente relativamente às dívidas tributárias não exigíveis à data da extinção da sociedade, não sendo essa responsabilidade limitada pelo valor da respetiva quota, sem prejuízo do sócio que efetuar à AT pagamento superior à sua quota-parte gozar de direito de regresso contra os outros sócios, nos termos gerais (cf. art.º 524.º do Código Civil - «CC»).

Neste conspecto, dissolvendo-se a sociedade e uma vez concluída a sua liquidação, as dívidas de natureza fiscal que venham a tornar-se exigíveis são da responsabilidade dos sócios, o que poderia ser indicativo de uma substituição dos sócios em todas as posições da extinta sociedade nas respetivas relações jurídico-tributárias. Porém, como se aponta no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo («STA») de 01/07/2020, no processo n.º 01041/17.4BEBRG, disponível em www.dgsi.pt, «a segunda parte do n.º 2 do artigo 147.º do Código das Sociedades Comerciais pode ser considerada uma disposição especificamente tributária (indevidamente enxertada num diploma com vocação distinta) e, ainda assim, sem interesse para o caso, porque não trata do problema de saber se a sociedade extinta tem personalidade tributária, mas do problema de saber quem tem responsabilidade tributária. Ou seja, não trata do problema de saber quem é que é o sujeito passivo na relação jurídica de imposto, mas do problema de saber quem deve ser chamado a pagar o imposto. E para quem tenha a ideia de que é a mesma coisa, importa objetar o seguinte: há muitas situações no direito tributário em que quem é chamado a pagar o imposto não é o sujeito passivo da relação jurídica tributária (a pessoa jurídico-tributária), mas quem detém o património ou a riqueza. O que sucede precisamente nos casos em que certas entidades que relevam como tal no direito tributário não são pessoas de direito privado e, por isso, não podem efetuar pagamentos.».

Lê-se ainda nesse aresto, com relevância para o caso em dissídio que «(...) isto sucede porque a lei tributária releva como facto gerador de obrigações tributárias muitas situações de facto que nem sequer são reconhecidas ou tratadas, noutros ordenamentos, como factos suscetíveis de gerar relações jurídicas. E considera, por isso, sujeitos de direito certas sociedades e certas unidades patrimoniais sem personalidade jurídica, quando tal seja necessário para realizar os fins da tributação mencionados no artigo 5.º da Lei Geral Tributária e, designadamente, a distribuição equitativa da carga contributiva.».

Assim, se por um lado, à luz do disposto nos art.ºs 15.º e 18.º, n.º 3 da LGT, a extinção da personalidade jurídica de uma sociedade não acarreta, inevitavelmente, o fim da personalidade tributária, ou seja, a possibilidade de ser sujeito de relações tributárias, também o n.º 2 do art.º 147.º do CSC, ao atribuir responsabilidade pelas dívidas tributárias aos sócios da sociedade extinta, não indica, de forma inequívoca, que não seja esta o sujeito passivo de tais obrigações tributárias.

Pelo que se levanta a questão de saber quem é verdadeiramente o sujeito passivo da obrigação tributária nos casos em que apesar de dissolvida e liquidada, foram apuradas dívidas tributárias cujo facto constitutivo se verificou anteriormente à extinção da sociedade.

A respeito deste tema, o STA tem considerado que, apesar de extinta, a sociedade dissolvida e liquidada continua a ser o sujeito passivo das relações jurídicas tributárias, respeitantes a dívidas tributárias cujo facto constitutivo se verificou anteriormente à extinção. No acórdão do STA de 17/12/2014, no processo n.º 01433/13, consultável em www.dgsi.pt, foi firmada posição no sentido que «a sociedade extinta continua a ser o sujeito da relação jurídica tributária, mesmo que a lei designe outros responsáveis pelo seu pagamento. Nada na lei impede a AT de efetuar um ato tributário de liquidação de imposto já depois de extinta a pessoa (singular ou coletiva) sujeito passivo da obrigação jurídica tributária, ainda que o seu pagamento haja de ser exigido a outrem, que a lei designe como responsáveis pelo pagamento, designadamente os sócios.».

Esta posição, notamos, já tinha sido assumida pelo STA em acórdãos anteriores (disponíveis em www.dgsi.pt):
- no acórdão de 10/02/2010, proc. n.º 0925/09 é afirmado que «Como sustenta a Recorrente Fazenda Pública e se deixa dito a liquidação efectuada em nome da sociedade incorporada é válida, eficaz e susceptível de demandar a responsabilidade pela liquidação pagamento da respectiva dívida pela sociedade incorporante.»;

- no acórdão de 16/09/2009, proc. n.º 372/09 é referido, além do mais, que «(...) nada obstando igualmente à instauração contra a sociedade incorporada por fusão do processo de execução fiscal tendente à cobrança coerciva daquela dívida, pois que, (...) a sociedade extinta continua, de resto, a ser o sujeito da relação jurídica tributária, mesmo que a lei designe outros responsáveis pelo respectivo pagamento.».

E assim sendo, e tendo em vista o princípio consagrado no n.º 3 do art.º 8.º do Código Civil, de que «nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito», será também esta a solução que agora perfilharemos.

E se é assim, regressando, agora, ao caso concreto dos autos, concluímos, tal como na sentença recorrida, pese embora não ter feito de forma explícita o raciocínio jurídico que acima se explanou, que a oposição à execução fiscal deve ser extinta, porquanto desapareceu o seu objeto.

Senão vejamos.

Em 13/01/2023, no âmbito do processo de impugnação judicial n.º 649/14.4BECBR, que correu termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, em que é impugnante M…, foi proferida sentença a determinar a anulação da liquidação de IRC n.º 2012 8310004512, com fundamento em vício de violação de lei, por erro nos pressupostos de direito (cf. ponto O) dos factos provados).

Em consequência, em 02/03/2022, em cumprimento da sentença acima mencionada, a AT procedeu à anulação da liquidação de IRC n.º 2012 8310004512 (cf. ponto P) do probatório).

Como visto acima, a responsabilidade do Recorrido é apenas quanto ao pagamento da dívida exequenda, já que, tendo em conta o quadro normativo aplicável e a posição adotada pelo STA nesta matéria, se deve considerar que a sociedade Q… Agro Pecuária, Lda., apesar de extinta, continua a ser o sujeito passivo da relação jurídica tributária respeitante à dívida exequenda.

E assim, se a anulação do ato tributário de liquidação tem como consequência a extinção da execução fiscal, é evidente a conclusão que o presente processo de oposição deixou de ter objeto, dado que já não existe fundamento que legitime a cobrança coerciva da dívida exequenda (cf. art.ºs 176.º, n.º 1, alínea b) e 270.º, n.º 1, do CPPT e alínea e) do art.º 277.º do CPC, ex vi alínea e) do art.º 2.º do CPPT).

E o argumento avançado pela Recorrente de que a decisão proferida no processo de impugnação judicial n.º 649/14.4BECBR não pode produzir efeitos relativamente aos presentes autos, dado que também contestou judicialmente a liquidação de IRC em causa, não pode proceder: é que, como visto, o que está em causa é a mesma liquidação adicional de IRC e o mesmo sujeito passivo (a sociedade Q… Agro Pecuária, Lda.), sendo que o Recorrido e a M… (assim como os outros sócios) apenas foram chamados à execução fiscal para efeitos de representação daquela entidade, na qualidade de sócios. Ou seja, foi apenas o funcionamento das regras relativas à responsabilidade tributária dos sócios da sociedade extinta que determinou o seu chamamento à presente execução fiscal, pelo que a anulação da liquidação exequenda tem, também por maioria de razão, de produzir efeitos jurídico-tributários em relação aos sócios, ainda que nem sequer tenham reagido contra o ato tributário de liquidação adicional de IRC. Pelo que concluímos que a oposição à execução fiscal deixou de ter objeto, tendo em conta a anulação do ato tributário de liquidação adicional de IRC exequendo.

Donde também não se vislumbra qualquer violação do art.º 608.º, n.º2 do CPC, na parte que preceitua que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;», dado que no caso que agora nos ocupa, pelas razões já apontadas, a impugnação judicial apresentada pelo Recorrido contra a liquidação de IRC exequenda não se perfila como possuindo qualquer relação de prejudicialidade com a decisão dos presentes autos.

Em face do exposto, impõe-se concluir que o recurso não merece provimento, sentido em que diante se decidirá.
*
IV- DECISÃO

Termos em que acordam, em conferência, os Juízes da Subsecção de Execução Fiscal e Recursos Contraordenacionais do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 15 de julho de 2025

(Filipe Carvalho das Neves)

(Lurdes Toscano)

(Susana Barreto)