Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 27/25.0BEPDL-A |
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Secção: | JUIZ PRESIDENTE |
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Data do Acordão: | 06/06/2025 |
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Relator: | TÂNIA MEIRELES DA CUNHA |
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Descritores: | PEDIDO DE ESCUSA ESCUSA DE JUIZ IMPARCIALIDADE |
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Sumário: | I. A escusa, tal como a suspeição, é um meio instrumental da garantia da imparcialidade. No entanto, tratando-se de um desvio ao princípio do juiz natural, deve ser usado com ponderação e cautela.
II. A existência de uma relação de amizade do juiz com mandatário da parte, per se, à partida não é suficiente para sustentar um pedido de escusa. III. Sendo o escusante padrinho de batismo de um dos filhos do mandatário, relação socialmente encarada como quase familiar, a ligação pessoal existente é suscetível de ser vista por terceiros como ligação do juiz a uma das partes do processo. |
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Votação: | DECISÃO SINGULAR |
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Aditamento: | ![]() |
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Decisão Texto Integral: | Decisão
[art.º 119.º n.º 5, do Código de Processo Civil (CPC)] I. O Senhor Juiz de Direito ……………………., a exercer funções no Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada, veio, ao abrigo do disposto no art.º 119.º, n.º 1, e no art.º 120.º, n.º 1, alínea g), ambos do CPC, aplicáveis ex vi art.º 2.º, alínea e), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentar pedido de escusa de intervir nos autos n.º 27/25.0BEPDL, por entender que tal intervenção, a manter-se, é suscetível de criar desconfiança acerca da sua imparcialidade. Sustenta o seu pedido, fundamentalmente, no seguinte: “Nos presentes autos é mandatário do oponente, o Dr. P……. …………. - Petição Inicial (58719) Petição Inicial (004306502) Pág. 17 de 25/02/2025 19:49:54 . O signatário mantém, há mais de 30 anos, uma relação de estreita amizade com o Dr. P…………... O signatário é padrinho de batismo da filha mais velha do Dr. P ………... Tendo em conta a dimensão da comunidade em que nos inserimos, facilmente estas relações são percecionadas pela generalidade das pessoas. Assim, considerando que tal factualidade pode ser enquadrada na previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável por remissão da alínea e) do artigo 2.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), cumpre requerer junto do Sr.ª Juíza Presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul, nos termos do disposto no n.º 1 e 3 do artigo 119.º do CPC, que se digne dispensar o signatário de intervir nos presentes autos”.
II. Apreciando. O pedido de escusa do juiz, previsto no art.º 119.º do CPC, visa dotar o julgador de um instrumento que lhe permita ser dispensado de intervir na causa, quando considere que se verificam algumas das circunstâncias elencadas como motivadoras do incidente de suspeição, previsto no art.º 120.º do CPC, ou quando entenda que há outras circunstâncias ponderosas que conduzem à conclusão de que se pode suspeitar da sua imparcialidade (cfr. n.º 1 do mencionado art.º 119.º). A escusa, tal como a suspeição, é um meio instrumental da garantia da imparcialidade. No entanto, tratando-se de um desvio ao princípio do juiz natural, deve ser usado com ponderação e cautela. Desde já se adiante que se considera estar perante situação subsumível ao art.º 119.º, n.º 1, do CPC. Com efeito, a existência de relações de amizade não é, per se e sem mais, suscetível de sustentar um pedido de escusa. Têm de ser, desde logo, relações de amizade com um nível de alguma intimidade entre o juiz e as partes [cfr. alínea g) do n.º 1 do art.º 120.º do CPC]. In casu, a relação de grande proximidade invocada é entre o Senhor Juiz escusante e o mandatário do oponente. A existência de uma relação de amizade do juiz com mandatário da parte, per se, à partida não é suficiente para sustentar um pedido de escusa. Chamamos, à colação, a decisão deste TCAS de 02.10.2024 (Processo: 76/22.0BCLSB-A), com cuja argumentação se concorda e onde foi dito: “É nosso entendimento que a relação de amizade que a Senhora Juíza Desembargadora escusante mantém com o Mandatário de um sujeito processual da ação de impugnação de decisão arbitral que foi chamada a julgar não constitui necessariamente fundamento de escusa. “… essas relações decorrem, necessariamente, da vida em sociedade e da vida profissional prévia ao ingresso na magistratura, sendo até expectável que muitas outras situações equiparáveis possam ocorrer, sem que dessa realidade possa decorrer uma facilitação da concessão das escusas de juiz. A não ser assim, a breve trecho significaria uma efectiva postergação do princípio do juiz natural e consubstanciaria uma autorização genérica para o juiz se furtar a decidir um predeterminado universo de processos, o que é intolerável à luz da Constituição e da Lei” (cfr. acórdão de 20/04/23 já citado). Como se sumariou no acórdão de 08/06/2022 do STJ, proc. n.º 27/16.0GEMMN.E1-A.S1, aqui parcialmente transcrito: “(…) VII - O requerimento de escusa funda-se na relação de amizade entre o relator do recurso e o mandatário do arguido, sendo acentuada a intensidade e publicidade do convívio entre ambos, no círculo de amigos comuns. VIII - As relações de amizade entre magistrados judiciais, do MP e advogados, são frequentes, recuando, muitas vezes, aos tempos de vida académica. São, em regra, proporcionadas por circunstâncias como a formação comum, a vida judiciária, atividades de formação ou o convívio organizado pelas associações profissionais, a nível local. IX - A ligação de Desembargador relator e de advogado com o processo é profissional e orientada, num e noutro caso, por regras legais e normas deontológicas e éticas rigorosas. X - Em causa está, exclusivamente, a perceção exterior de imparcialidade; saber se, numa compreensão de razoabilidade dos limites das aparências, esta amizade pode suscitar, no público conhecedor da situação relacional exposta, e especialmente nos destinatários da decisão a proferir, apreensão quanto à imparcialidade. XI - Mas não uma apreensão qualquer; terá de, razoavelmente, ter motivo “sério e grave”, de modo a cumprir a exigência legal e afastar o princípio do juiz natural. XII - A mera desconfiança sem fundamento sério ou motivação grave, suscetível de ser entendida como tal pelo cidadão médio, não integra razão para escusa de juiz.” Ainda com pertinência para o caso, veja-se o acórdão do STJ, de 06/04/23, no processo nº 127/19.5YUSTR.L1-M.S1-A, em cujo sumário se pode ler: “I - O pedido de escusa ou de recusa de juiz assenta na apreciação do risco de que, em determinado processo, a sua intervenção possa ser considerada suspeita, por haver motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade. II - Objectivamente, o facto de um Juiz possuir um conhecimento e relação cordial com um Ilustre Advogado e de ter conhecido familiares seus ou a actual amplificação no espaço público do escrutínio de quem atua em qualquer órgão de soberania ou a circunstância do juiz e representante de um sujeito processual estarem ligados por uma fraterna amizade, não se mostra suficiente para evidenciar que, qualquer intervenção do juiz em processo em que pontue o visado representante de um sujeito processual, seja susceptível de criar dúvidas sérias sobre a posição de inteira equidistância do juiz. III - Relevante para que se considere a suspeição, é, antes do mais, a natureza e a extensão do comprometimento do Juiz no processo em causa, como juiz natural, que justifique o cuidado e escrúpulo que agora se tem, para evitar que sobre a sua decisão recaia qualquer dúvida, porquanto, não está em causa uma amizade com um sujeito processual, mas com alguém que intervém no processo a título profissional”. Concluindo, do pedido não resultam alegados factos que, séria e concretamente, permitam extrair que a intervenção da Requerente no processo em causa possa correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, fundado na indicada relação fraterna de amizade entre o Senhora Desembargadora e o Senhor Advogado de um dos sujeitos processuais. Apesar do desconforto que a situação pode gerar na Senhora Magistrada, daí não resultam dúvidas sobre a sua imparcialidade e independência - muito menos, um motivo sério e grave”. Com efeito, a potencialidade de o juiz se relacionar, profissionalmente, com mandatários com os quais tem uma relação próxima de amizade é bastante recorrente e isso surge evidenciado, aliás, na jurisprudência a esse propósito [cfr., v.g., a decisão deste TCAS de 20.04.2023 (Processo: 358/23.3BESNT-A)]. No entanto, in casu, a existência dessa relação próxima de amizade é acompanhada de específicas particularidades que, na nossa opinião, alteram a caraterização da situação para uma relação quase familiar e que tem a ver com o facto de o escusante ser padrinho de batismo da filha mais velha do mencionado mandatário. Sendo certo que o Estado português é um Estado laico, não se pode ignorar que o conceito religioso de padrinho ou madrinha, aqui trazido à colação, tem ínsita a criação de uma relação que, não sendo juridicamente uma relação familiar, é encarada socialmente como uma relação quase familiar. E essa particularidade faz com que consideremos que há aqui uma relação de amizade que, aliada à relação religiosa que une o escusante e o mandatário em causa, torna a ligação pessoal existente suscetível de ser vista por terceiros como ligação do juiz a uma das partes do processo [cfr., a este respeito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2023 (Processo: 16/20.0GALLE.E1-A.S1)]. Face a este contexto, é razoável admitir que existe uma efetiva suscetibilidade de, na comunidade em geral, se poderem suscitar dúvidas e desconfianças sobre a isenção e imparcialidade do Senhor Juiz escusante na apreciação e julgamento dos autos principais. É certo que, do ponto de vista subjetivo, não existe notícia de que o comportamento do escusante possa inculcar uma possível falta de imparcialidade, bem pelo contrário, tendo sido o presente incidente suscitado pelo próprio magistrado, atitude que só pode ser qualificada de escrupulosa, por parte do Senhor Juiz requerente. Não estando, pois, em causa qualquer prevenção quanto à garantia de imparcialidade subjetiva, o certo é que pode estar criado um quadro de aparências capaz de sustentar, no juízo público conhecedor daquela situação de relacionamento, dúvidas, desconfianças ou suspeitas sobre a indispensável imparcialidade do julgador e sobre o modo de funcionamento da Justiça. Como tal, o pedido formulado tem de ser deferido, nos termos do disposto no art.º 119.º, n.ºs 1 e 5, do CPC.
III. Face ao exposto e decidindo: Defere-se o pedido de escusa apresentado pelo Senhor Juiz de Direito ………………………., para intervir nos autos, como titular do processo em causa. Sem custas. Registe e notifique. Baixem os autos. Lisboa, d.s. A Juíza Desembargadora Presidente, (Tânia Meireles da Cunha) |