Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1484/08.4BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:10/16/2025
Relator:MARGARIDA REIS
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRS
NULIDADE
MATÉRIA DE FACTO
PEDIDO
RENDIMENTOS DA CATEGORIA F
RENDAS
DOAÇÃO
RENÚNCIA AO USUFRUTO
Sumário:I - A nulidade da sentença por omissão de pronúncia apenas ocorre quando o tribunal deixa de apreciar questões efetivamente suscitadas pelas partes e que devesse apreciar e não quando o tribunal não se pronuncia sobre matéria que não foi objeto do pedido ou da causa de pedir.
II - Se a impugnação judicial incide unicamente sobre rendimentos da categoria F (rendas), não pode o tribunal anular integralmente a liquidação de IRS que abrange também rendimentos da categoria H (pensões), sob pena de violar o princípio da correspondência entre o pedido e a sentença [cf, arts. 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1, al. e), do CPC].
III - Não resultando provado o registo da renúncia ao usufruto das frações doadas e provando-se que, em 2004, parte das rendas continuaram a ser pagas à falecida, deve concluir-se que tais rendimentos foram por esta efetivamente auferidos, recaindo sobre a herança indivisa a obrigação de pagamento do respetivo IRS.
Votação:UNANIMIDADE
Indicações Eventuais:Subsecção Tributária Comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. Relatório

A Fazenda Pública, inconformada com a sentença proferida em 2017-03-31 pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial interposta por M… do tendo por objeto a liquidação oficiosa de IRS n.º 200800000195658, relativa ao ano de 2004 vem dela interpor o presente recurso.

A Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

CONCLUSÕES:

A) Pelo elenco de razões supra arroladas, ressalve-se melhor entendimento, infere-se que a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” enferma de omissão de pronuncia - nulidade, por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, “ex vi” do artigo 2.º, al. e) do CPPT, e de erro de julgamento;

B) No que se refere à omissão de pronúncia, a liquidação que ora se discute, surge por falta de entrega da declaração de rendimentos de IRS do ano de 2004, uma vez em nome de M… “De cujus” (óbito ocorrido em 31.JAN.2005), no ano de 2004, foram - lhe postos à disposição, rendimentos da categoria “F” (rendas) no total de € 212.748,00 e, foram-lhe, também, pagos rendimentos da categoria “H” (pensões) pelo Instituto da Segurança Social no montante de € 4.727,00, totalizando o rendimento global € 217.475,00 (como se pode verificar pela nota de liquidação constante a fls. 9 dos autos;

C) Contudo, o Tribunal “a quo”, apenas, se pronunciou sobre os rendimentos da categoria “F”; ou seja, sobre uma parte da liquidação em crise, mormente sobre o rendimento de € 212.748,00, deixando de se pronunciar, sobre o montante de € 4.727,00, que, também, faz parte integrante da liquidação em crise.

D) Ora tendo a Fazenda Pública colocado em crise a totalidade da liquidação, que ora se discute, e não tendo o tribunal “a quo”, sequer, se pronunciado, quer de facto, quer de direito, quanto aos rendimentos da categoria “H”, auferidos por M…, ocorreu falta absoluta de fundamentação, quanto aos preditos rendimentos;

E) Padecendo a sentença recorrida de omissão de pronuncia, motivo pelo qual, se solicita, desde jà, a sua nulidade, por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, “ex vi” do artigo 2.º, al. e) do CPPT;

F) Mas ainda que assim não se entenda - o que só por mera hipótese académica se admite -, e decidindo-se ao invés que a sentença não padece de omissão de pronúncia, sempre se dirá que;

G) No que se refere ao erro de julgamento, decidiu o Tribunal “a quo” que a liquidação sindicada deveria ser anulada, porque era ilegal, assentando a sua fundamentação na prova testemunhal, mormente pelo depoimento da única testemunha arrolada - filho da ora recorrida, desvalorizando, as escrituras públicas de Habilitação Notarial (cfr. fls. 5 a 7 dos autos) doação (cfr. fls. 27 a 31 dos autos) e de Renúncia de Usufruto (cfr. fls. 32 a 34 dos autos), todas carreadas aos autos pela própria recorrida;

H) Concluindo o referido Tribunal que, em nome de M…, apenas existiam as fracções autónomas, designadas pelas letras “I”, “M” e “O”;

I) Sobre a motivação elencada pelo Tribunal “a quo”, cumpre referir que, existiu erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa;

J) Como supra se referiu nos pontos 22 e 23 das presentes alegações, as fracções e não as que o Tribunal “a quo”, deu como factos provados, como facilmente se comprova pelos documentos oficiais, juntos à pi pela ora recorrida;

K) E não diga o tribunal “a quo”, que “(...) após a produção da prova testemunhal, veio em sede de alegações escritas, previsto no artigo 120.º do CPPT, reconhecer e demonstrar que, somente as fracções referentes às letras “A”, “H”, “J”, “L” “N”, “P” “Q” E “R”, se encontram na titularidade de A… não podendo o rendimento produzidos por estas fracções ser imputado e integrado na declaração de IRS, do ano de 2004 de M…”, uma vez que, tal afirmação carece de fundamentação;

L) Esta afirmação contraria a própria sentença, porque é, também, o próprio Tribunal que refere “(…) Notificadas as partes para produzirem alegações escritas, nos termos do disposto no art. 120.º do CPPT, vierem reiterar a posição assumida nos articulados iniciais”;

M) Ora, se a recorrida, se limita a reiterar a posição assumida nos articulados iniciais, como é que, demonstra que, somente as fracções referentes às letras “A”, “H”,”J”,”L” “N”, “P” “Q” E “R”, se encontram na titularidade de A…;

N) Fica, irrefutavelmente, comprovado que existe uma contradição na decisão judicial proferida quanto à liquidação oficiosa de IRS em crise;

O) Por último e, na mesma esteira, também o parecer do Digníssimo Procurador da República do Ministério Público;

P) Face ao exposto e contrariamente o expendido na douta sentença, a liquidação oficiosa de IRS n.º 2008 5000051735, relativamente a ano de 2004, no montante de €61.171,68, deve permanecer na esfera Jurídica da ora recorrida, porque não padece de qualquer ilegalidade.

Termina pedindo:

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão recorrida ser considerada nula, porquanto padece de omissão de pronuncia, por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, “ex vi” do artigo 2.º, al. e) do CPPT;

ou

se assim, esse Douto Tribunal o não entender, deve ser anulada, por erro de julgamento, revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação judicial improcedente, porém, V. Exas. decidindo, farão a costumada JUSTIÇA.


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A Recorrida não apresentou contra-alegações.

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O Digno Magistrado do M.º Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

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Questões a decidir no recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, tal como decorre do disposto nos arts. 635.º nºs 4 e 5 e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), disposições aplicáveis ex vi art. 281.º do CPPT, salvo se em causa estiver matéria de conhecimento oficioso por este Tribunal.

Assim sendo, no caso em apreço, atentos os termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso, há que apurar se a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia, ou de erro de julgamento de facto, por ter efetuado uma incorreta apreciação da prova documental produzida nos autos.


II. Fundamentação


II.1. Fundamentação de facto

Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz:

III – FUNDAMENTAÇÃO

III. I – DE FACTO

Com relevância para a decisão da presente ação de impugnação, de acordo com as diversas soluções plausíveis de direito e, por acordo, considero provados os seguintes factos:


A)

Em 04.09.2002 foi celebrada escritura de “DOAÇÃO”, entre M… e seu filho A…, doando aquela e reservando para si o usufruto, das seguintes frações autónomas:

A) Fracção Autónoma designada pela letra “A” que corresponde ao rés do chão e cave, para comércio, com entrada pela Avenida de B..., n.º13-A e Avenida..., n.º1.. e 1…-A, com armazém na cave, com valor patrimonial, correspondente a €107.425,50;

B) Fracção Autónoma designada pela letra “B” que corresponde ao primeiro andar esquerdo, para habitação, com valor patrimonial, correspondente à fracção autónoma de €.16.993,86;

C) Fracção Autónoma designada pela letra “D” que corresponde ao primeiro andar esquerdo, para habitação, com valor patrimonial, correspondente à fracção autónoma de €.16.993,86;

D) Fracção Autónoma designada pela letra “F” que corresponde ao primeiro andar esquerdo, para habitação, com valor patrimonial, correspondente à fracção autónoma de €.16.993,86;

E) Fracção Autónoma designada pela letra “H” que corresponde ao quarto andar esquerdo, para habitação, com valor patrimonial, correspondente à fracção autónoma de €.8.962,40;

F) Fracção Autónoma designada pela letra “J” que corresponde ao quinto andar esquerdo, para habitação, com valor patrimonial, correspondente à fracção autónoma de €.18.660,33;

G) Fracção Autónoma designada pela letra “L” que corresponde ao sexto andar esquerdo, para habitação, com valor patrimonial, correspondente à fracção autónoma de €.27.878,18;

H) Fracção Autónoma designada pela letra “N” que corresponde ao sétimo andar esquerdo, para habitação, com valor patrimonial, correspondente à fracção autónoma de €.27.878,18;

I) Fracção Autónoma designada pela letra “P” que corresponde ao oitavo andar esquerdo, para habitação, com valor patrimonial, correspondente à fracção autónoma de €.14.320,02;

J) Fracção Autónoma designada pela letra “Q” que corresponde ao oitavo andar direito, para habitação, com valor patrimonial, correspondente à fracção autónoma de €.13.424,97;

K) Fracção Autónoma designada pela letra “R” que corresponde ao nono andar, para habitação, com valor patrimonial, correspondente à fracção autónoma de €.5.729,10;

Que as frações fazem todas parte do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida de B..., números 1.. a 1…-B e Avenida C…, números 1…a 1…-A, freguesia de S…., inscrito na matriz sob o artigo 5… da freguesia de Nossa Senhora de Fátima, descrito na Oitava Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número d……… da mencionada freguesa de São Sebastião da Pedreira;

(cfr. fls 28 a 31 dos autos e depoimento da testemunha)


B)

Por escritura de “Renúncia de Usufruto” de 23.04.2003, M… renunciou ao usufruto da das frações acima mencionadas atribuindo ao mesmo o seu valor fiscal;

(cfr. fls 33 e 34 dos autos) e depoimento da testemunha)


C)

De 23.04.2003 até 31.01.2005 permaneceram na titularidade de M… as frações designadas pelas letras “I”, “M” e “O”, cujos rendimentos eram provenientes dos arrendatários “I…” – 4.º Dt.º, “H…” – 6.º Dt.º e “H…” – 7º Dt.º;

(depoimento da testemunha)


D)

Por Habilitação Notarial de 16.02.2005, M… foi nomeada Cabeça de Casal da herança aberta por óbito de sua mãe M…, em 30.01.2005, sem testamento ou outra disposição de vontade, tendo-lhe sucedido como únicos herdeiros, dois filhos: a outorgante e A…;

(cfr. fls 5 a 7 dos autos e depoimento da testemunha)


E)

Através do ofício 017354 de 04.03.2008 a impugnante foi notificada para o exercício do direito de audição prévia do projeto de fixação dos rendimentos de IRS categoria “F” e “H” dos anos 2004 e 2005;

(cfr. fls. 11 dos autos)


F)

Através do ofício 024965 de 01.04.2008 a impugnante foi notificada para o da fixação dos rendimentos de IRS categoria “F” e “H” do ano 2004 no montante para categoria “F” - €212 748,00 e Categoria “H” €4.727,00;

(cfr. fls 25 e 26 dos autos)


G)

Com data-limite de pagamento de 16.08.2008, foi emitida uma liquidação de IRS n.º 2008 5000051735, referente ao ano de 2004, no montante de €61.171,68 em nome de Maria Adelina Januário; (cfr. fls. 9 dos autos e 43 do PA)

III.I – Factos não Provados

Não se provaram outros factos, com relevância para a presente decisão.


MOTIVAÇÃO

A matéria de facto, dada como assente nos presentes autos, foi a considerada relevante para a decisão da causa controvertida, segundo as várias soluções plausíveis das questões de direito e, a formação da convicção do tribunal, para efeitos da fundamentação dos factos, atrás dados como provados, está referida no probatório com remissão para as folhas do processo onde se encontram.

Quanto aos factos elencados de A) a D), a decisão da matéria de facto efetuou-se com base no depoimento da testemunha A…, filho da impugnante e neto de M… que pareceu credível tendo afirmado que após o falecimento do avô administrava, conjuntamente com o seu irmão, as rendas do prédio de sua Avó, sito na Av. de B… tendo acompanhado todo o processo.


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II.2. Aditamento à fundamentação de facto:

Atento o disposto no n.º 1 do art. 662.º do CPC, aplicável ex vi art. 281.º do CPPT, a prova documental produzida nos autos e a alegação da Recorrente, procede-se ao aditamento à fundamentação de facto, nos termos que se passam a enunciar:

H) Ma… faleceu em 31 de janeiro de 2005 (cf. print da base de dados “visão do contribuinte”, constante a fls. 55 do PAT).

I) H… Contratação Coordenação de Empreendimentos de Engenharia; LDA, com o NIPC 50…; E…– SA, com o NIPC: 5…; “M…, SA”, com o NIPC: 5…; “P…Informação, LDA”, com o NIPC: 5…; “Instituto da Segurança Social”, com o NIPC: 5…, e Igespar I P - Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico”, com o NIPC: 5…, declararam, através das respetivas declarações Anexo J/Modelo 10, terem entregue, no ano de 2004, as rendas referentes, respetivamente, às frações L, M, N, O; à fração A; à fração J, às Q e P e às frações H e I a M…, com o NIF 1… (cf. prints das bases de dados “situação do contribuinte” e “consultas ao cadastro por número fiscal”, constantes a fls. 11 a 24 dos autos).

J) A…, declarou através da respetiva declaração de rendimentos Modelo 3 de IRS, referente ao ano de 2004 ter recebido rendas referentes ao prédio urbano (artigo 530) em causa relativamente às fracções autónomas designadas pelas letras “A” e “H”, respectivamente nos montantes de € 16.035,53 e de € 2.382,51, pagas por “M…, SA” NIPC: 5… e por “H… Contratação Coordenação de Empreendimentos de Engenharia”; LDA NIPC: 5… (cf. prints da pesquisa à base de dados referente ao conteúdo das declarações de IRS, a fls. 58 a 60 do PAT apenso).


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A matéria de facto aditada dá-se como provada com base nas impressões (prints) das bases de dados detidas pela Administração fiscal, correspondente, no caso do ponto I), a uma pesquisa feita às declarações Modelo 10 do Anexo J referentes a rendas, das quais resultou, em confronto com a base de dados do cadastro, da qual constam os números de contribuintes dos vários arrendatários, que as rendas em questão foram declaradas como tendo sido pagas em 2004 a M… .

Importa ainda salientar que não resulta provado nos autos que a renúncia ao usufruto referida no ponto B) tenha sido submetida a registo, ou que no ano de 2004 A… tenha declarado em sede de IRS rendimentos auferidos a título de rendas de outras frações para além das referidas no ponto J), da matéria de facto aditada.

II.2. Fundamentação de Direito

A Fazenda Pública insurge-se contra a sentença, que julgou procedente a presente impugnação judicial e, em consequência, anulou integralmente a liquidação de IRS impugnada, referente ao exercício de 2004, alegando que a mesma é nula por omissão de pronúncia e, em qualquer caso, enferma de erro de julgamento, porque o tribunal apenas apreciou os rendimentos da categoria F (rendas), no valor de EUR 212.748, mas omitiu qualquer pronúncia quanto aos rendimentos da categoria H (pensões), no montante de EUR 4.727, e igualmente incluídos na liquidação impugnada, implicando tal omissão implica uma absoluta falta de fundamentação e nulidade da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC.

Mais alega que ainda que se não entenda existir nulidade, a sentença padece de erro na apreciação da prova e na fixação da matéria de facto, desvalorizando a prova documental em benefício do depoimento da única testemunha ouvida, filho da Recorrida.

Vejamos então.

Na sua petição inicial (PI), a aqui Recorrida alega que na liquidação oficiosa em causa, respeitante a IRS de 2004 é feita uma errada qualificação e quantificação dos rendimentos, porque, estando em causa proventos provenientes de rendas - categoria F -, foram ali considerados rendimentos referentes a várias frações do prédio em causa que já não pertenciam a M…, porque em 2002 tinham sido doadas ao seu filho A…, com reserva de usufruto, tendo M… renunciado a esse usufruto em 2003, pelo que, em 2004 já não tinha qualquer direito às rendas tributadas, não sendo o correspondente IRS devido pela herança indivisa.

Com efeito, resulta da PI com meridiana clareza, que o que nela se alega é, tão só, que “Na parte em que incluiu as rendas daquelas fracções, a liquidação impugnada fez errónea qualificação e quantificação dos rendimentos a considerar no IRS de 2004 relativamente a M…(cf. art. 15.º da PI) o que de resto está em harmonia com o pedido formulado, de que “Na parte impugnada, o acto tributário impugnando deve ser anulado, devendo os competentes serviços de Finanças proceder a nova liquidação abrangendo apenas as fracções de que M… era titular no ano de 2004(destacado nosso).

Ou seja, e dito por outras palavras, em momento algum na sua PI a Recorrida suscita qualquer invalidade do ato no que diz respeito à liquidação de rendimentos da categoria H (pensões), ou pede a anulação do mesmo na totalidade, limitando-se a pedir que seja anulado “na parte impugnada”, ou seja, na parte relativa aos rendimentos da categoria F (rendas), referentes às frações identificadas.

Aqui chegados, adivinha-se já que a decisão sobre recurso não padece de nulidade por falta de pronúncia.

Com efeito, a omissão de pronúncia é uma nulidade que diz respeito, tão só, às situações em o tribunal deixe de se pronunciar sobre as questões suscitadas pela parte (cf. art. 125.º do CPPT).

Ora, não tendo em momento algum sido suscitada pela Recorrida outra questão que não a da invalidade – parcial - do ato de liquidação, apenas e só no que se refere aos rendimentos da categoria F, não ficou por apreciar qualquer questão na sentença.

Tanto basta para que se decida pela – aliás, manifesta – improcedência da alegada nulidade por falta de pronúncia.

Mais alega a Recorrente que a sentença padece de erro de julgamento de facto, por ter feito uma errada interpretação da prova produzida, valorizando inadequadamente a prova testemunhal em detrimento da prova documental.

Vejamos então.

Antes de mais, cumpre esclarecer que o relevo dado à prova testemunhal na fundamentação de facto se revela perfeitamente inócuo, atendendo a que a testemunha apenas é referida como meio de prova (de factos desfavoráveis à Recorrente) que se encontravam já provados documentalmente, a saber, relativamente aos pontos A) (escritura de doação), B) (escritura de renúncia ao usufruto), e relativamente à habilitação notarial da cabeça de casal da herança – ponto D) – também ele provado documentalmente.

Há, no entanto, que dar razão à Recorrente na crítica que faz à sentença no que se refere à desconsideração e errada apreciação da prova documental produzida nos autos.

Se não, vejamos.

Antes de mais, a sentença ignorou em absoluto a prova documental produzida pela Recorrente, falha que foi, entretanto, suprida através do aditamento à fundamentação de facto efetuada por este Tribunal.

Com efeito, e atendendo a que dos autos não resulta provado, ou sequer alegado, que a renúncia ao usufruto tenha sido objeto de registo, e como tal, que fosse oponível a terceiros de boa fé, não podia ter sido ignorada a prova documental apresentada pela Recorrente da qual resulta, por um lado, que os arrendatários continuaram, em 2004, a pagar as rendas a M.., e por outro, que relativamente a esse mesmo exercício A.. apenas declarou e pagou IRS referente às rendas correspondentes às frações A e H (cf. pontos I e J da fundamentação de facto aditada à sentença por este tribunal), sendo certo, aliás, que a Recorrida não rebateu ou questionou esta prova.

Assim sendo, no caso em apreço, o que resulta da matéria de facto provada na sentença é que em 4 de setembro de 2002, M.. efetuou escritura pública de doação, pela qual transmitiu ao seu filho A… a nua propriedade das frações A, B, D, F, H, J, L, N, P, Q e R do prédio sito na Avenida de B... e Avenida..., em Lisboa, reservando para si o usufruto sobre as mesmas (cf. ponto A da fundamentação de facto).

Posteriormente, em 23 de abril de 2003, através de escritura pública de renúncia de usufruto, a referida doadora abdicou do direito de usufruto que detinha sobre tais frações (cf. ponto B, da fundamentação de facto).

Nos termos do artigo 940.º do Código Civil, a doação é um contrato pelo qual o doador, por espírito de liberalidade, dispõe gratuitamente de um bem em benefício de outrem, e de acordo com o disposto no art. 947.º do mesmo diploma, a doação de bens imóveis só é válida se formalizada por escritura pública, requisito que no caso se mostra plenamente observado.

Por outro lado, é certo que não se demonstrou nos autos que a referida doação tenha prejudicado a legítima dos herdeiros legitimários, e muito menos foi alegado ou provado que tenha sido objeto de ação de redução por inoficiosidade ou de colação.

Sucede, no entanto, que, e com exceção das frações A e H, relativamente às quais é a própria Recorrente que admite, na sua contestação, que A… auferiu e declarou as correspondentes rendas referentes ao ano de 2004 (cf. ponto J, da fundamentação de facto aditada), não resulta provado nos autos que tenha sido efetuado o registo da renúncia de usufruto relativamente às frações doadas, ou que tenham sido celebrados novos contratos de arrendamento em que Américo Trindade figure como senhorio, ou ainda que o mesmo tenha declarado ter recebido as rendas resultantes do correspondente arrendamento e pago o correspondente imposto.

Pelo contrário, que resulta provado é que relativamente às demais frações, a saber, L, N, J, Q e P, durante o ano de 2004 as rendas continuaram a ser pagas a M…, pelo que, como alega, e bem, a Recorrente, estando em causa uma herança indivisa, é esta que responde pelo pagamento do correspondente IRS (cf. art. 2068.º do CC).

Com efeito, a doação de imóveis é válida entre as partes por escritura pública (cf. art. 954.º do Código Civil), mas a sua eficácia perante terceiros está sujeita a registo [cf. art. 408.º, n.º 1, do Código Civil e os arts. 2.º, n.º 1, alínea a) e 7.º do Código do Registo Predial], o mesmo sucedendo relativamente à renúncia ao usufruto, que sendo um ato extintivo de um direito real [cf. art. 1476.º, n.º 1, al. e), do Código Civil] sujeito, também ele, a registo, só produz efeitos em relação a terceiros depois de verificado o mesmo.

Pelo que, perante a omissão do registo, que nos conduz à conclusão de que a renúncia do usufruto não era oponível aos arrendatários, conjugada com a prova de que os mesmos continuaram a declarar que pagavam as rendas a M…, e ao facto de A… apenas declarar rendimentos auferidos pelas rendas referentes às frações A e H, pagando o correspondente imposto referente a 2004 (cf. ponto J, da fundamentação de facto aditada à sentença) há que concluir que não resulta provado que as demais rendas tenham sido auferidas por este último, antes tendo continuado a ser recebidas por M…, sendo por isso a herança indivisa responsável pelo pagamento do correspondente IRS relativamente ao exercício de 2004, em causa nos presentes autos.

Acresce que da sentença resultara também já provado que as frações I, M e O – relativamente às quais se prova agora, igualmente, que as rendas continuaram a ser pagas, em 2004, a M… (cf. ponto I, da fundamentação de facto aditada à sentença) – permaneceram na titularidade de M… (cf. ponto C, da fundamentação de facto).

Assim sendo, e no que se refere aos rendimentos da categoria F postos em causa pela Recorrida, a impugnação judicial apenas poderia ter sido julgada procedente, por provada, relativamente às frações A e H, devendo o ato impugnado ser anulado relativamente aos rendimentos da categoria F referentes a estas frações, sendo certo, aliás, que se prova nos autos que o respetivo IRS foi oportunamente pago por A… (cf. ponto J, da fundamentação de facto aditada à sentença).

Por fim, e como já aqui se referiu, há ainda assim que dar razão à Recorrente no que se refere à errada anulação da liquidação relativamente aos rendimentos da categoria H (pensões), ainda que por requalificação jurídica dos factos que invoca, quando alega o Tribunal não podia ter anulado o ato de liquidação na sua totalidade.

Com efeito, nos termos do Código de Processo Civil a sentença que decide para além do que lhe foi pedido — isto é, extra petita — viola o princípio do dispositivo e o princípio da correspondência entre o pedido e a sentença, dispondo claramente o artigo 608.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC que o juiz “não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

Assim, ao anular na totalidade a liquidação de IRS quando apenas fora pedida a anulação parcial — circunscrita aos rendimentos da categoria F — e não tendo sido invocada qualquer causa de pedir relativa aos rendimentos da categoria H, o tribunal excedeu os limites do pedido e incorreu em erro de julgamento de direito, por errada interpretação e aplicação do regime jurídico aplicável, traduzindo-se numa violação do princípio do dispositivo e das normas acima referidas.

Assim sendo, e em face do exposto, o presente recurso deve ser julgado parcialmente procedente, também na parte referente à incorreta anulação da liquidação no que diz respeito aos rendimentos da categoria H (pensões).


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Recorrente e Recorrida devem ser condenadas em custas na proporção do seu decaimento, que se fixa em 8% para a Recorrente Fazenda Pública, em ambas as instâncias, não sendo devida taxa de justiça pelo recurso à Recorrida, por nele não ter contra-alegado [cf. art. 527.º, n.º s 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT e art. 7.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais – RCP].

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Conclusão:

Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:

I. A nulidade da sentença por omissão de pronúncia apenas ocorre quando o tribunal deixa de apreciar questões efetivamente suscitadas pelas partes e que devesse apreciar e não quando o tribunal não se pronuncia sobre matéria que não foi objeto do pedido ou da causa de pedir.

II. Se a impugnação judicial incide unicamente sobre rendimentos da categoria F (rendas), não pode o tribunal anular integralmente a liquidação de IRS que abrange também rendimentos da categoria H (pensões), sob pena de violar o princípio da correspondência entre o pedido e a sentença [cf, arts. 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1, al. e), do CPC].

III. Não resultando provado o registo da renúncia ao usufruto das frações doadas e provando-se que, em 2004, parte das rendas continuaram a ser pagas à falecida, deve concluir-se que tais rendimentos foram por esta efetivamente auferidos, recaindo sobre a herança indivisa a obrigação de pagamento do respetivo IRS.

III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, conceder parcial provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que anulou a liquidação relativamente a rendimentos da categoria H (pensões), e aos rendimentos da categoria F (rendas) provenientes das frações I, J, L, M, N, O, P, Q.

Custas na proporção do decaimento, que se fixa em 8% para a Fazenda Pública, em ambas as instâncias.

Lisboa, 16 de outubro de 2025 - Margarida Reis (relatora) – Tiago Brandão de Pinho – Isabel Silva.