Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 7ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MARIA DE DEUS CORREIA | ||
| Descritores: | DIREITO DE PROPRIEDADE RECONHECIMENTO PRÉDIO URBANO PROPRIEDADE HORIZONTAL TÍTULO CONSTITUTIVO APARCAMENTO UTILIZAÇÃO PARTE COMUM AQUISIÇÃO USUCAPIÃO VIA PÚBLICA | ||
| Apenso: | | ||
| Data do Acordão: | 10/16/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
| Sumário : | I-Sendo defensável que um condómino possa adquirir, por usucapião, um direito de propriedade sobre fracções autónomas que não constam como tal do título constitutivo da propriedade horizontal, é pressuposto necessário para que tal suceda, que essas fracções ou outras áreas, sejam parte integrante do imóvel respectivo. II-Num caso como o dos autos em que estão em causa duas áreas de terreno utilizadas como local de carga e descarga de mercadorias e como estacionamento para clientes de um supermercado, mas não há prova de que tais áreas integrem o imóvel mencionado, não se lhes pode aplicar o referido princípio, tão pouco o regime jurídico da propriedade horizontal. III-Não assiste, assim, qualquer direito de utilização exclusiva de tais áreas por parte do titular da fracção autónoma designada pela letra A composta por loja e armazém, destinada a comércio, correspondente ao rés-do- chão e cave do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, onde funciona o referido supermercado. | ||
| Decisão Texto Integral: | I-RELATÓRIO Morais & Filhos, Lda, sociedade comercial por quotas, com sede em Vila Pouca, Castro Daire, propôs acção declarativa de condenação, com processo comum, contra: Lojas Mariana– Comércio de Vestuário Lda, com sede no lugar de Vila Pouca, Castro Daire e AA, comerciante, residente na Rua 1 s/n Vila Pouca, Castro Daire. Formulou os seguintes pedidos: -Se declare que a Autora é dona e legítima possuidora do prédio urbano identificado no artigo 1º desta petição inicial e, em consequência condenarem-se os Réus a reconhecer esse direito, abstendo-se de praticar atos violem esse direito, em qualquer uma das suas vertentes; -Se declare que o espaço que constitui o parque para cargas e descargas localizado nas traseiras do imóvel identificado, bem como o espaço destinado a parqueamento dos clientes e identificado neste articulado se destina ao uso único e exclusivo da autora e/ou dos seus arrendatários, bem, como dos clientes do supermercado, estando, por isso, afeto à utilização da fração “A” do prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo ..15, da freguesia de Lamego (...), propriedade da Autora. e, por via disso; -Sejam os réus condenados a reconhecer esse direito de utilização exclusivo à autora, ou aos seus arrendatários e serem condenados a absterem-se de, por aí passar, aí parar ou estacionar qualquer veículo automóvel ou qualquer outro objeto, deixando esse espaço livre e desembaraçado de pessoas e bens. -Sejam os réus condenados no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória, ao abrigo do artigo 829-A, nº 1 do Código Civil, no montante de €200,00, por cada violação ou por cada incumprimento. Alegou, para tanto, o seguinte: A Autora é dona e legitima proprietária da fração autónoma, identificada com a letra A, composta por loja e armazém, destinada a comércio, do prédio urbano, constituído em propriedade horizontal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..15. A Autora, no ano de 2011, adquiriu tal imóvel em venda judicial no âmbito de um processo de insolvência. A Autora, por si e os ante possuidores, há mais de 20/30 anos, tem estado na posse de tal imóvel, e a Autora realizou obras de adaptação do espaço para funcionar um pronto-a-vestir e na cave da fração, onde veio a ser instalado um supermercado, denominado de “...”, sendo que, antes de tais obras, funcionou, nos dois pisos da fração, um supermercado que todos conheciam como “Supermercados ...”. A instalação deste supermercado obrigou os seus promotores ao cumprimento de regras como seja o acesso dos fornecedores e abastecedores do supermercado pelas traseiras do edifício, ou seja, pelo lado da Praceta 1; construção de um monta-cargas e criação de parque para clientes, e para esse efeito, os promotores apresentaram planta com a indicação do parque, bem como da criação do monta-cargas. Assim, os carros e camiões, para descarregarem as mercadorias que abasteciam o supermercado “...”, entravam para o Largo 1 e acediam a um espaço com a área aproximada de 110m2, que se localiza exatamente nas traseiras do supermercado, onde sempre existiu, um cais para descarga de mercadorias. Deste modo, a Autora, por força do contrato de arrendamento que celebrou com a arrendatária “...”, autorizou a que a mesma utilizasse todo esse espaço para cargas e descargas. Existe ainda um outro espaço, na direção norte e entre as construções urbanas, com o comprimento de 52 metros e largura de 6 metros, onde foi criado pelos anteriores donos do imóvel, hoje da Autora, um parque de estacionamento destinado aos clientes do supermercado “...”, o que sempre foi respeitado por clientes e fornecedores. Sucede que a Ré, a 1 de outubro de 2010, celebrou um contrato de arrendamento comercial com terceiros e que tem por objeto o armazém a que corresponde a fração A do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ..16. As partes outorgantes de tal contrato de arrendamento comercial acordaram que: “A segunda Outorgante (aqui primeira Ré) obriga-se a manter livre e desimpedidos de quaisquer bens a circulação no acesso ao imóvel arrendado, na faixa de terreno que se encontra entre este e os Supermercados ...”. O contrato de arrendamento foi intermediado e negociado pelo segundo réu, que também teve conhecimento e que também aceitou as referidas condições. Sucede que os Réus começaram a ocupar parcialmente o referido espaço, violando os direitos da Autora e da sua arrendatária que se vê impedida de aceder ao monta-cargas para descarregar mercadorias. Mais alegou que a utilização de tais espaços é exclusiva do imóvel da Autora e que a atuação dos Réus viola os seus direitos. * Devidamente citados, os Réus apresentaram contestação, na qual reconheceram o direito de propriedade da Autora sobre a fração A, não pretendendo apresentar qualquer contestação relativamente ao primeiro pedido deduzido pela Autora, nunca tendo praticado qualquer acto violador desse direito, concluindo pela inexistência de interesse em agir e de legitimidade da Autora quanto a este pedido, pugnando pela sua absolvição da instância quanto ao mesmo. Quanto ao demais, alegou a ilegitimidade do 2º Réu, pugnando pela sua absolvição. Impugnando os restantes pedidos, pede a respectiva absolvição dos Réus. * No exercício do direito de contraditório em relação à matéria de excepção, a Autora pugnou pela sua improcedência. * Decorridos todos os trâmites legais, veio a ser realizado o julgamento e proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Julga-se a ação parcialmente procedente, e, em consequência: Declara-se que a Autora é dono e legitima possuidora da fração autónoma, composta por loja e armazém, destinada ao comércio, com a área coberta de 472 m2, identificado pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão e cave do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Av. 1, nº ..., Lamego e inscrito na respetiva matriz sob o art.º ..15 da freguesia de Lamego (...) e descrita na Conservatória do Registo Predial de Lamego sob o n.º .../19890531, estando inscrita a sua aquisição a favor da Autora através da Ap. ...de 2011.08.17, devendo os Réus reconhecer tal direito, abstendo-se de praticar atos que violem esse direito. Do demais peticionado pela Autora, vão os Réus absolvidos. As custas da ação serão suportadas integralmente pela Autora, nos termos do artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.” * Inconformada com esta sentença, vem Autora interpor o presente recurso de revista “per saltum”, formulando as seguintes conclusões: 1. A Recorrente, inconformada com a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que julgou a presente acção parcialmente procedente, mas improcedente nos verdadeiros pedidos controvertidos entre as partes, dela vem interpor recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, por entender que ocorreu incorrecta interpretação e aplicação ao caso concreto do regime jurídico da propriedade horizontal. 2. Através do presente recurso a Recorrente apenas suscita questões de direito, nos termos que se farão constar das presentes conclusões, a causa tem o valor de € 60.000,00, portanto, superior à alçada do Tribunal da Relação, sendo que a sucumbênciaé superiora metadeda alçada da Relaçãoe não sãoimpugnadas quaisquer decisões interlocutórias. 3. Com efeito, requer a Recorrente que o presente recurso suba directamente ao Supremo Tribunal de Justiça e aí seja apreciado, para que, com base na matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo esse Supremo Tribunal aplique definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, que a Recorrente entende ser diferente o alcançado na sentença recorrida. 4. Com base na matéria de facto provada e perante os concretos pedidos formulados pela Recorrente, em especial o n.º 2, o Tribunal a quo subsumiu a questão ao regime jurídico da propriedade horizontal, tendo concluído pela improcedência do mesmo, ancorando bases no facto de as áreas cuja utilização exclusiva se peticionou, não poderem ser adquiridas por usucapião e não constarem do respectivo título constitutivo. 5. Com o devido respeito, discordamos de tal entendimento. 6. A questão que se coloca, é a de saber se o proprietário de fracção autónoma integrada em propriedade horizontal pode adquirir o direito sobre parcelas de terreno que não fazem parte da propriedade horizontal, mas são por este utilizadas. 7. Da matéria de facto provada e com relevância para o enquadramento jurídico da causa, temos por certo que: “os anteriores proprietários do imóvel, que hoje é propriedade da autora, sempre destinaram esse espaço para cargas e descargas, tendo também, para o efeito colocado um monta-cargas” e ainda que “todos os clientes do estabelecimento, bem como os demais cidadãos que aí se deslocavam sempre respeitaram essa indicação, não parando e muito mesmo estacionando nesse espaço”. 8. Mais se provou que após a abertura identificada no artigo 21.º da matéria de facto “e na direcção norte existe um espaço que medeia entre as construções urbanas, com a forma de um rectângulo com o comprimento de 52m e com a largura aproximada de 6m” e que “nesse espaço, foi criado pelos anteriores donos do imóvel que hoje é da autora, um parque de estacionamento destinado aos clientes do supermercado”, “o que sempre foi respeitado por todos, quer clientes, quer fornecedores”. 9.Da matéria de facto dada por provada, resulta cristalino que o cais de carga e descarga e o parque de clientes foram criados pelos anteriores donos do imóvel que hoje é da Autora/Recorrente, sendo que tais espaços estavam destinados ao seu único e exclusivo uso, tanto mais que, nessa senda todos os clientes e demais cidadãos que aí se deslocavam sempre respeitaram essas indicações, não parando e muitomenos estacionando, nesse espaço, isto no que se refere ao cais de carga e descarga e quanto ao parque de estacionamento sabiam e conheciam que o mesmo se destinava apenas a clientes do aludido supermercado. 10.É, precisamente, com esta génese que a Recorrente compra a fracção autónoma identificada no artigo 1.º da matéria de facto provada e se esses espaços não fazem parte do título constitutivo da propriedade horizontal referente à sua fracção, tal não determinou a que, após a compra a Recorrente tenha continuado a exercer esses direitos sobre os referidos espaços, nos termos em que eram efectuados pelos seus anteriores proprietários, o que logrou abundantemente demonstrar e foi levado à factualidade assente. 11.Nada na lei impede que o proprietário de fracção integrada em regime de propriedade horizontal possa adquirir o direito de uso sobre determinado espaço que a não integre e que ao ser reconhecido esse direito não são desvirtuadas as normas da propriedade horizontal. 12.A questão que importa dilucidar é a de saber se um condómino pode adquirir, por usucapião, um direito de propriedade sobre fracções autónomas que não constam como tal do título constitutivo da propriedade horizontal. 13.Através da propriedade horizontal, admite-se que as fracções de um mesmo edifício que constituam unidades independentes, possam pertencer a proprietários diversos. 14.É fundamental, pois, distinguir entre as coisas sobre as quais recai o direito exclusivo de propriedade (as fracções autónomas) e aquelas que são detidas em comunhão (as partes comuns). 15.Não existe na lei qualquer definição do que sejam e quais são as partes comuns, devendo-se para o efeito levar em consideração o disposto no art.º 1421.º do Cód. Civ. 16. Dada a generalidade e abstracção das normas jurídicas, a al. e) do n.º 2 do citado normativo previu uma cláusula geral de carácter residual, ao estabelecer que se presumem comuns “em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos”. 17.Com excepção das partes obrigatória ou necessariamente comuns, a lei permite que o título constitutivo fixe se as partes são comuns ou se se integram nalguma fracção autónoma, funcionando, no silêncio do título, uma presunção – uma presunção ilidível – de comunhão. 18.Importa qualificar o cais de carga e descarga e o parque de clientes que se discute nos presentes autos, não podendo o mesmo ser qualificado como fracção autónoma, porque não foram especificados como tal no título constitutivo, nem parte comum, porquanto, não se reconduz a qualquer das alíneas do n.º 1 do citado art.º 1421.º do Cód. Civ. 19.Contudo, provou-se, que os espaços correspondentes ao cais de carga e parque de clientes pertencem em exclusivo à Recorrente, não contendo o título constitutivo sequer referência a eles. 20.Ficou provado que o cais de carga e descarga e o parque de clientes foram criados pelos anteriores donos do imóvel que hoje é da Autora/Recorrente e, desde o início, tais espaços, com características necessárias para a sua qualificação como partes comuns, de uso exclusivo da fracção A e que a Recorrente exerce sobre tais partes, desde o início, a posse de forma reiterada e ostensiva, provinda dos seus antecessores. 21.Por essa razão está ilidida a presunção de comunhão daquela parte do edifício (que constitui parte de uso exclusivo da Autora), ainda que, não mencionada no título constitutivo. 22.O prédio foi constituído em propriedade horizontal 26/08/1991 e antes desta data existiam já aqueles espaços afectos à referida fracção, como se infere da matéria de facto provada e dos documentos de licenciamento camarário juntos aos autos. 23.Apesar de terem sido omitidos do título constitutivo, aqueles espaços cumpriam, desde o início, todos os requisitos que o art.º 1415.º do Cód. Civ. exige para a sua qualificação como fracções autónomas e como tal foram desde o primeiro momento, objecto de posse pelos antecessores da Recorrente. 24.Desde essa ocasião, ocorrida há mais de20/30 anos, a Recorrente por sie seus antecessores comportaram-se, de facto, reiterada e ostensivamente, como proprietários de tais espaços, de modo que, como foi dado como provado a recorrente “por força do contrato de arrendamento que celebrou com a arrendatária “...”, autorizou, a que a mesma utilizasse todo esse espaço para cargas e descargas”. 25.A posse da Recorrente sobre tais espaços é não titulada, de boa-fé, pacífica e pública, provinda dos anteriores possuidores, ou seja, dos antigos proprietários do Supermercado ..., verificando-se acessão na posse, pois que, a sucessão na posse ocorre por título diverso da sucessão por morte. 26.A Recorrente, que acedeu na posse, exerceu a mesma por tempo suficiente para adquirir o respectivo direito de propriedade, o mesmo se verificando, caso a posse fosse de reputar de má-fé, caso em que o lapso temporal ascenderia a vinte anos. 27.Sendo os espaços em causa, parte integrante da fracção autónoma da Autora/ Recorrente e cumprindo os mesmos o que dispõe o art.º 1415.º do Cód. Civ. e a posse da mesma sobre tais espaços que propicia a sua aquisição por usucapião, não poderá deixar de reconhecer-se que a Recorrente adquiriu o direito de propriedade exclusiva daqueles espaços que devem integrar a sua fracção. 28.Aqui chegados, a questão que importaria solucionar seria a de verificar se tal realidade implicaria a modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, dados os constrangimentos a que alude o art.º 1419.º do Cód. Civil. 29.A resposta deverá ser negativa, uma vez que, se a usucapião tem aptidão para constituir a propriedade horizontal, tal aptidão não pode ser negada para modificar os termos em que a mesma foi constituída. 30.Portanto, há que operar uma interpretação restritiva do n.º 1 do art.º 1419.º do Cód. Civ., no sentido de que quando esteja em causa uma modificação da propriedade horizontal por usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial não será de aplicar este comando legal. 31.Assim, as exigências de forma que alude o citado n.º 1 do art.º 1419.º do Cód. Civ. apenas se reconduzem à modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por negócio jurídico, pois doutra sorte não se perceberia a mens legislatoris quando admite todas aquelas formas para a sua constituição e as restringe para a modificação. 32.Por tudo o que afirmamos, não se vê razão para que, ante a matéria de facto provada, não se possa atribuir à Autora/Recorrente o direito de uso exclusivo das áreas destinadas a parque de cargas e descargas localizada nas traseiras do prédio urbano e a destinada ao parqueamento de viaturas de clientes e por conseguinte ser julgado procedente o segundo pedido deduzido na petição inicial. 33.Concomitantemente, procedendo tal pedido, como se espera, os demais (números três e quatro) também deverão ser julgados procedentes, atenta a violação desse direito pelos Recorridos, como foi dado por provado nos pontos 28.º e 29.º da matéria de facto provada. 34.Ocorreu incorrecta interpretação e aplicação, entre outros, dos comandos legais insertos nos arts. 1251.º, 1256.º, 1259.º, 1260.º, 1261.º, 1262.º, 1287.º, 1296.º, 1415.º, 1418.º, 1419.º, 1421.º todos do Cód. Civ. Nestes termos (…), deve ser concedido o presente recurso de revista e por via do mesmo ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que julgue procedente todos os pedidos formulados pela recorrente, com as devidas e legais consequências.” * Os Recorridos apresentaram contra-alegações pronunciando-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão recorrida e pedindo ainda a condenação da Autora como litigante de má-fé. II-OS FACTOS Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos: 1-Existe uma fração autónoma, composta por loja e armazém, destinada ao comércio, com a área coberta de 472 m2, identificado pela letra “A”, correspondente ao rés-do-chão e cave do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Av. 1, nº ... e ... nesta cidade de Lamego e inscrito na respetiva matriz sob o art.º ... da freguesia de Lamego (...); - artigo 1º da petição inicial. 2-Tal fração encontra-se descrita na Conservatória do Registo Predial de Lamego sob o n.º 294/19890531, estando inscrita a sua aquisição a favor da Autora através da Ap. 288 de 2011.08.17; - artigo 2º da petição inicial. 3-A Autora adquiriu tal fração por compra judicial no processo de insolvência n.º 183/10.1TBLMG que correu termos pelo Tribunal de Lamego; - artigo 4º da petição inicial. 4-A Autora procedeu a obras de adaptação do interior do rés-do-chão para aí ser instalado um pronto-a-vestir. – artigo 11º da petição inicial. 5-Procedeu também a obras de adaptação da cave da fração para nela ser instalado, como o veio a ser, um supermercado que gira no mundo comercial sob a designação de “...”. – artigo 13º da petição inicial. 6-A autora, por contrato escrito, para fins não habitacionais deu de arrendamento a cave da referida fração ao “...” e este tomou de arrendamento essa cave e aí desenvolve a sua atividade comercial. – artigo 15º da petição inicial. 7-O acesso ao pronto-a-vestir e ao supermercado faz-se pela Av. 1, ficando o pronto-a-vestir à cota do passeio daquela artéria e o supermercado numa cota inferior pelo que, o público acede a essa unidade comercial através de elevador, de escadas. – artigo 24º e 25º da petição inicial. 8-Sendo certo que, antes da instalação desta unidade comercial funcionou nessa fração (nos dois pisos) um supermercado que todos conheciam como “Supermercados ...”. – artigo 14º da petição inicial. 9-Esse Supermercado tinha acesso ao público pela Avenida 1 e pela Praceta 1, da cidade de Lamego – artigo 31º da petição inicial. 10-Aquando da instalação do supermercado foi apresentada na planta a criação do monta-cargas que construído ao qual acedem os fornecedores e abastecedores do supermercado pelas traseiras do edifício, ou seja, pelo lado da Praceta 1 – artigo 32º e 33º da petição inicial e artigo 5º, n.º 2 alínea b) do Código de Processo Civil. 11-Por isso, o abastecimento ao supermercado pelos fornecedores era, como sempre foi, feito pelas traseiras do imóvel. – artigo 34º da petição inicial. 12-Os carros e camiões, para descarregarem as mercadorias que abasteciam o supermercado, entravam para o Largo 1 que fica à direita da Rua 2, considerando o sentido Avenida 2. – artigo 35º da petição inicial. 13-Depois do Largo 1 acediam a um espaço com a área aproximada de 110m2, que se localiza exatamente nas traseiras do supermercado. – artigo 36º da petição inicial. 14-Nesse local existe, como sempre existiu, um cais para descarga de mercadorias depois de aí acederem os veículos de transporte de mercadorias. – artigo 37º da petição inicial. 15-Aliás, nesse local, de forma bem visível e à entrada do espaço acima referido, considerando o sentido Praceta 1 para esse local, existe e desde sempre existiu uma placa com indicação de “Parque Privativo” – artigo 38º da petição inicial. 16-Os anteriores proprietários do imóvel, que hoje é propriedade da autora, sempre destinaram esse espaço para cargas e descargas, tendo também, para o efeito, colocado um monta-cargas – artigo 39º da petição inicial. 17-Todos os clientes do estabelecimento, bem como os demais cidadãos que aí se deslocavam sempre respeitaram essa indicação, não parando e muito menos estacionando nesse espaço - artigo 40º da petição inicial. 18-Deste modo, a autora, por força do contrato de arrendamento que celebrou com a arrendatária “...”, autorizou, a que a mesma utilizasse todo esse espaço para cargas e descargas. – artigo 43º da petição inicial. 19-Utilizando-o, sobretudo, para abastecimento do supermercado com mercadorias e bens alimentícios destinados ao consumo final. – artigo 44º da petição inicial. 20-Também com a indicação “sentido proibido” a partir da Rua 2, nesta cidade, e nesse mesmo sentido existe uma abertura com indicação de “Supermercados ...” – artigo 45º da petição inicial. 21-Após essa abertura e na direção norte existe um espaço que medeia entre construções urbanas, com a forma de um retângulo com o comprimento de 52m e com a largura aproximada de 6m. – artigo 46º da petição inicial. 22-Nesse espaço, foi criado pelos anteriores donos do imóvel que hoje é da autora, um parque de estacionamento destinado aos clientes do supermercado. – artigo 47º da petição inicial. 23-O que sempre foi respeitado por todos, quer clientes, quer fornecedores. – artigo 48º da petição inicial. 24-Com início em 1 de outubro de 2010 e fim em 30 de setembro de 2015, entre BB, CC e DD, como senhorios, e aqui a primeira ré como arrendatária, foi celebrado um contrato de arrendamento comercial destinando-se à instalação de uma sapataria. – artigo 49º da petição inicial. 25-Que teve por objeto o armazém destinado a atividade comercial, sito na travessa 1, nesta cidade e que corresponde à fração A do prédio urbano inscrito na matriz sob o art.º .... – artigo 50º da petição inicial. 26-No referido contrato de arrendamento, na cláusula 11ª, as partes acordaram o seguinte: “A segunda Outorgante (aqui primeira ré) obriga-se a manter livre e desimpedidos de quaisquer bens a circulação no acesso ao imóvel arrendado, na faixa de terreno que se encontra entre este e os Supermercados ...”. – artigo 52º da petição inicial. 27-O contrato de arrendamento foi intermediado e negociado pelo segundo réu, que também teve conhecimento e que também aceitou as referidas condições. – artigo 56º da petição inicial. 28-Embora não seja gerente da primeira ré, arroga-se e publicamente é conhecido como sendo “o dono das lojas Mariana”. – artigo 57º da petição inicial. 29-Os réus começaram, de há uns meses a esta parte, a ocupar parcialmente o espaço de que se vem falando e para tanto, estacionam aí viaturas, atravessando as mesmas nesse local, impedindo a circulação e movimentação de veículos automóveis. – artigo 58º e 59º da petição inicial. * E foi dado como não provado o seguinte: Artigo 24º e 25º da petição inicial “n.º 11” (…) “rampa”; Artigo 32º e 33º da petição inicial, na parte não transportada para os factos provados; Artigo 42º da petição inicial “E foi com base nessa utilização e nessas circunstâncias que a então proprietária logrou obter o licenciamento da sua obra para os fins de supermercado”. III-O DIREITO Tendo em conta as conclusões de recurso que delimitam o respectivo âmbito de cognição do Tribunal, (cfr. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, consiste em saber se a sociedade Autora proprietária de uma fracção autónoma de um prédio em regime de propriedade horizontal tem direito à utilização exclusiva de um espaço que tem servido como parque para cargas e descargas e de um espaço destinado a parqueamento de viaturas. A Autora fundamenta o seu direito no argumento jurídico segundo o qual o proprietário de fracção integrada em prédio constituído em propriedade horizontal pode adquirir por usucapião, um direito de propriedade sobre parcelas de terreno que não fazem parte do título constitutivo da propriedade horizontal, mas são por aquele utilizadas. Sobre a questão de saber se é possível a aquisição do direito de propriedade por usucapião, de partes comuns de edifícios constituídos em propriedade horizontal, não existe unanimidade de entendimento, quer na Jurisprudência deste Supremo, quer na Doutrina1. Porém, num relativamente recente acórdão,2 este Supremo Tribunal de Justiça, confirmou a decisão da Relação que tinha declarado que os ali Réus adquiriram por usucapião, o direito de propriedade sobre o espaço em questão correspondente ao sótão de um prédio constituído em propriedade horizontal, sendo certo que esse sótão não consta do título constitutivo da propriedade horizontal. E como se nota do mencionado acórdão, a solução propugnada “não constitui uma originalidade ou uma novidade na Jurisprudência nem sequer neste Supremo Tribunal”.3 Na verdade, na linha desta Jurisprudência, em tese, não vemos obstáculo a admitir a aquisição por usucapião de fracção de um prédio constituído em propriedade horizontal, ainda que essa fracção não conste do título constitutivo da propriedade horizontal. No recente acórdão de 18-04-20244, num caso em que os Réus vinham ocupando, em exclusivo, determinadas áreas que faziam parte do perímetro do imóvel, mas não mencionadas no título constitutivo da propriedade horizontal, onde construíram uma piscina e uma garagem, foi-lhes reconhecido o direito a manterem tal situação, contra a pretensão da Autora que era a demolição dessas construções efectuadas em zona considerada “parte comum do edifício”. É certo que, neste caso particular, o reconhecimento da situação jurídica dos Réus se fundamentou na figura do abuso de direito, por parte da Autora e não na aquisição por usucapião, por razões que não importa aqui analisar. De resto, é precisamente por tais espaços não constarem do título constitutivo da propriedade horizontal que é mais fácil defender a possibilidade de aquisição por usucapião. Na verdade, caso determinada área esteja contemplada no título constitutivo da propriedade horizontal, será necessariamente uma fracção autónoma ou uma parte comum, pois o que “verdadeiramente caracteriza a propriedade horizontal é a fruição de um edifício por parcelas ou fracções independentes, mediante a utilização de partes ou elementos afectados ao serviço do todo. Trata-se, em suma, da coexistência, num mesmo edifício, de propriedades distintas, perfeitamente individualizadas, ao lado da compropriedade de certos elementos, forçadamente comuns”.5 E, por conseguinte, a utilização de cada uma das partes constitutivas do edifício terá de respeitar o regime jurídico-civilístico da propriedade horizontal que, por via das respectivas disposições legais, poderá conter “impedimentos ao reconhecimento de efeitos jurídicos sustentados na figura da usucapião.6 É, pois, fundamental distinguir entre as fracções autónomas e as partes comuns. Quanto às primeiras, dispõe o artigo 1415.º do Código Civil que “Só podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que, além de constituírem unidades independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública” e o artigo 1418.º, n.º 1, do Código Civil7 que “no título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias fracções, por forma a que estas fiquem devidamente individualizadas”. Já quanto às partes comuns, a lei refere-se às mesmas no art.º 1420.º n.º 1 referindo que “o condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício”. E no art.º 1421.º o legislador enumera no n.º 1 as partes do prédio que devem considerar-se obrigatoriamente comuns e no n.º 2 as partes que devem presumir-se comuns. Na alínea e) do n.º 2 estabelece-se que se presumem comuns “em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos”. Prevendo o n.º 3 que “o título constitutivo pode afectar ao uso exclusivo de um condómino certas zonas das partes comuns”. Ou seja, com excepção das partes obrigatoriamente comuns, a lei permite que o título constitutivo fixe se as partes são comuns ou se integram uma fracção autónoma, funcionado, no silêncio do título, uma presunção ilidível de comunhão.8 Deste breve bosquejo a propósito do regime jurídico da propriedade horizontal e da alusão aos casos jurisprudenciais que a título exemplificativo se mencionaram deduz-se um pressuposto fáctico essencial para que faça sentido a subsequente análise. Esse pressuposto é que a fracção ou área em discussão constitua parte integrante do edifício constituído em propriedade horizontal. Pode não estar mencionada no título constitutivo da propriedade horizontal, mas não poderá haver dúvida de que a área em discussão é parte integrante do imóvel em causa, seja da área coberta, seja da área descoberta. Ora, analisando a factualidade assente, no caso que nos ocupa, resulta que estão em causa dois espaços, um com a área de 110 m2 (vide ponto 13.º da matéria de facto) e outro com 312 m2 (vide ponto 21.º dos factos provados). O primeiro destinado a cargas e descargas (ponto 16.º dos factos provados), por parte dos veículos de transporte de mercadorias que fornecem o supermercado que funciona na fracção autónoma descrita nos pontos 1 e 2, de que a Autora é proprietária. Tal espaço, “depois do Largo 1 (…) localiza-se nas traseiras do supermercado” - ponto 13.º dos factos. Por sua vez, o segundo espaço tem sido “um parque de estacionamento destinado aos clientes do supermercado” - vide ponto 22.º dos factos provados. Não existe qualquer prova de que os referidos espaços, exteriores ao edifício onde se insere a fracção autónoma de que a Autora é proprietária, faça parte do lote de terreno onde foi construído tal edifício e faça parte da área descoberta daquele imóvel. Conforme consta do ponto 21.º dos factos provados este segundo espaço “medeia entre construções urbanas”. De acordo com as fotografias do local, juntas aos autos, resulta que se trata de uma zona urbana, em que os edifícios são separados por arruamentos alcatroados, sinalizados até com sinais de trânsito. Não há qualquer prova de que tais áreas constituam parte integrante do imóvel constituído em propriedade horizontal, pelo contrário, aparentemente, trata-se de áreas situadas na via pública. Tal como a sentença recorrida bem observa, este prédio mostra-se descrito como sendo um prédio urbano destinado a comércio e habitação, composto por cave, r/ch, 3 andares e sótão, constituído em propriedade horizontal, com 13 frações autónomas, não existindo qualquer referência à existência de qualquer área descoberta, conforme consta da caderneta predial urbana, junta aos autos. Por sua vez, quanto a fração A, inscrita a favor da Autora, mostra-se descrita como sendo composta por loja e armazém, destinada a comércio, correspondente ao rés-do- chão e cave do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida 1 , n.º ... e ... da cidade de Lamego ( vide ponto 1 dos factos provados.) Por conseguinte, não existe qualquer prova de que o prédio em que se integra a fracção autónoma A, de que a Autora é proprietária, inclua qualquer área descoberta, designadamente as áreas em apreço. Não existe igualmente qualquer prova de que essas áreas façam parte da fracção A, conferindo à Autora o direito ao uso exclusivo das mesmas. Nestas condições, carece de utilidade a resposta que seja dada à questão inicialmente colocada de saber se um proprietário de fracção integrada em prédio constituído em propriedade horizontal pode adquirir por usucapião, um direito de propriedade sobre parcelas de terreno que não fazem parte do título constitutivo da propriedade horizontal, mas são por aquele utilizadas. Como se referiu, a questão só faz sentido no pressuposto de que essas parcelas de terreno façam parte do imóvel constituído em propriedade horizontal pressuposto que, no caso em apreço, não se verifica. Assim, prejudicada fica a análise sobre a verificação dos elementos da usucapião. Não tem lugar igualmente a análise da questão relacionada com alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, uma vez que as áreas ajuizadas estão excluídas do regime da propriedade horizontal face à inexistência de prova de fazerem parte do imóvel em causa. De qualquer modo, da factualidade apurada nada se retira sobre um eventual direito de uso das áreas em apreço, sendo certo que o direito de uso não pode adquirir-se por usucapião, como expressamente estipula o art.º 1293.º na sua alínea b). Destarte, não pode este Tribunal deixar de chegar à mesma conclusão a que chegou a sentença recorrida, ou seja, pela improcedência do segundo pedido deduzido, pois que, a factualidade assente não permite concluir que à Autora assista o direito de usar de forma exclusiva as áreas destinadas a parque de cargas e descargas localizada nas traseiras do prédio urbano e a parqueamento de viaturas de clientes. IV-DECISÃO Em face do exposto, acordamos na 7.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista, confirmando a decisão recorrida. Custas pela Recorrente. Lisboa, 16 de outubro de 2025 Maria de Deus Correia (Relatora) Ferreira Lopes Rui Machado e Moura ___________________ 1. ANA SOFIA GOMES, Assembleia de Condóminos, alterações ao título constitutivo, pp 89-90; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, anotação ao artº 1419º; MOITINHO DE ALMEIDA, Propriedade horizontal, pp 25-48; JORGE ARAGÃO SEIA, Propriedade Horizontal, 2ª ed., pp 54-59; Revista de Direito e Estudos Sociais, Jan-Dez 1976, Ano XXIII, pp 117-119; FERNANDO PEREIRA RODRIGUES, Usucapião, pp; SANDRA PASSINHAS, A Assembleia de Condóminos (…), 2ª ed., pp 143-164. 2. Acórdão do STJ de 19-12-2018, Processo 6115/08.0TBAMD.L1.S2, 6.ªsecção, disponível em www.dgsi.p 3. Veja-se, por exemplo, o acórdão do STJ de 16-12-2010, Processo 1727/07.1TVLSB.L1.S1, referido no Acórdão mencionado na nota anterior,.em que se entendeu que “provado que os autores, ao longo de mais de vinte anos, exerceram uma posse própria e exclusiva sobre uma divisão do prédio, que designaram por cave frente, que não se encontra descrita como fracção autónoma no respectivo título de constituição da propriedade horizontal, o Tribunal decidiu correctamente, ao reconhecer a propriedade dos autores sobre o descrito apartamento”. 4. Proferido no Processo n.º 804/15.3T8ABF.E1.S1, 2.ª Seccção, disponível em www.dgsi.pt 5. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol.III, (artigos 1251.º a 1575.º). 6. Vide Acórdão do STJ de 06-12-2018, Processo 8250/15.9T8VNF.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt. 7. Serão deste diploma legal, os preceitos que doravante vierem a ser citados sem indicação de proveniência |