Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
16743-24.0T8PRT.P1S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
MEDIDAS DE COAÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
CADUCIDADE
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
ABSOLVIÇÃO CRIME
INDEMNIZAÇÃO
VOTO DE VENCIDO
DUPLA CONFORME
DIREITO DE AÇÃO
FUNÇÃO JURISDICIONAL
ILEGALIDADE
Apenso:
Data do Acordão: 10/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO ADMITIDA A REVISTA DO PRIMEIRO AUTOR NEGADA A REVISTA A SEGUNDA AUTO
Sumário :
I- Numa ação de responsabilidade civil contra o Estado, interposta por dois autores com fundamento, em ambos os casos, na prisão ilegal do primeiro autor, é aplicável, também ao segundo autor, o prazo de caducidade do artigo 226.º, do Código de Processo Penal, de um ano.

II – Apesar do artigo 226.º não se aplicar diretamente ao segundo autor, por não ser este quem sofreu detenção ou prisão ilegal, a aplicação do prazo de caducidade impõe-se por força do artigo art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro e à luz do princípio da coerência axiológica do sistema jurídico.

Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

1. AA e Global Workers, Lda. intentaram acção de processo comum contra o Estado Português, peticionando a sua condenação no pagamento ao 1.º A. da quantia de € 151.500,00, e à 2ª A. da quantia de €3.000.000,00.

Para tanto alegaram, em síntese, que o 1.º A. foi detido em 31.05.2016, tendo-lhe sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva, por ser entendido que existiam fortes indícios da prática pelo 1.º A, em concurso real, dos crimes de tráfico de pessoas, p.p. pelo art.º 160.º, n.º 1, als. b) e d), do Código Penal, e adesão a associação criminosa, p.p. pelo art.º 299.º, n.º 2, do Código Penal.

Após abertura de instrução, veio a ser proferida decisão que não pronunciou o 1.º A. pelo crime de associação criminosa, mantendo a pronúncia relativamente ao crime de tráfico de pessoas, tendo também a 2.ª A. sido pronunciada. Em tal decisão instrutória foi revogada de imediato a medida de coação de prisão preventiva, impondo-se em lugar dela a obrigação de permanência na habitação, alteração que veio a ser executada em 1.12.2016.

O 1.º A. manteve-se em cumprimento de tal medida de coação até 25.03.2019, de acordo com o alegado, tendo sido absolvido por acórdão transitado em julgado em 30.06.2021.”

2. O réu Estado Português, representado pelo Ministério Público, apresentou contestação, invocando a excepção peremptória da caducidade do direito de acção do 1º A. (AA), com a consequente absolvição do R. do pedido formulado por este autor; e, sem conceder, defendeu a improcedência da acção, por não provada, nos termos da impugnação deduzida, com a absolvição do réu dos pedidos contra si formulados por ambos os autores.

3. Notificados para se pronunciarem, os AA. nada disseram, sendo que na petição inicial já haviam sustentado que o prazo de prescrição aplicável é de 3 anos, nos termos do artigo 498.º do Código Civil, aplicável por via do artigo 5.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas.

4. Foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:

“Em face do exposto, absolve-se o R. da totalidade do pedido formulado pelos AA., por verificação da exceção perentória de caducidade do direito que fundamenta a presente ação.

Custas pelos AA., nos termos do artigo 527.º do Código de Processo Civil.

Registe e notifique.”

5. Inconformados com a sentença, vieram os autores dela interpor recurso de apelação.

6. O Tribunal da Relação conheceu do recurso e decidiu:

Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, manter a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Registe e notifique.”

7. Não se conformando com o acórdão os AA. apresentaram recurso de revista, no qual formulam as seguintes conclusões:

1. O Tribunal de 1.ª Instância considerou que a totalidade do pedido de indemnização formulado, se encontrava sujeito ao prazo de caducidade de um ano, previsto no art.º 226.º, n.º 1, do CPP, aplicável a pedidos por privação injustificada da liberdade.

2. Após interposição do competente recurso, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, decidiu, por maioria, julgar o recurso improcedente.

3. Na declaração de voto vencido conclui-se da seguinte forma: “Em face de todo o exposto, entendemos que a apelação deveria ter sido julgada parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida na parte em que foi decidido julgar procedente a excepção de caducidade do direito invocado pela 2ª A./apelante, e determinando-se o prosseguimento dos autos quanto a esta demandante.”

4. Os Recorrentes concordam com a douta posição vertida no voto vencido, mas entendem que o recurso devia ter sido julgado totalmente procedente.

5. Nos termos do art.º 13.º,n.º 1, da Lei n.º 67/2007, de 31.12 (RRCEE), é possível demandar o Estado, por danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respetivos pressupostos de facto, independentemente da existência, ou não, de danos causados por privação de liberdade.

6. Resulta da petição inicial que parte dos danos invocados pelo 1.º Recorrente, emergem, não da sua prisão, mas das duas decisões condenatórias,por crimesdetráfico de pessoas, proferidas pelo Tribunal de 1.ª Instância e revogadas pelo Tribunal da Relação, que no segundo acórdão, o absolveu da prática dos crimes pelos quais havia sido acusado e pronunciado.

7. No caso da 2.ª Recorrente, nenhum dos danos que invoca emerge de privação de liberdade, à qual nem sequer pode ser sujeita, atenta a sua natureza de pessoa coletiva.

8. O art.º 13.º do RRCEE, prevê que o Estado responde, além do mais, pelos danos decorrentes de decisões judiciais manifestamente inconstitucionais, ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto.

9. O art.º 5.º do RRCEE, determina que, nas matérias não reguladas expressamente na lei especial, aplicam-se as regras gerais da responsabilidade civil, remetendo para o Código Civil, nomeadamente o artigo 498.º do Código Civil, que fixa um prazo de prescrição de três anos para a responsabilidade civil extracontratual.

10. Apenas se encontra sujeita a lei especial e, concretamente, à disciplina dos artigos 225.º e 226.º, do CP, a parte do pedido formulado pelo 1.º Recorrente, que funda exclusivamente na privação injustificada da liberdade (artigos 52 a 61, da PI).

11. Nos artigos 31 a 34, 36 e 47 a 51, da PI, relativamente ao 1.º Recorrente, foram alegados danos diversos dos resultantes da privação da liberdade.

12. Estes danos foram causados, não pela privação da liberdade, mas sim, pelas decisões judiciárias de condenação eivadas de erro, pelo que, quanto a estes danos o RRCEE, é o único aplicável.

13. Os danos patrimoniais sofridos pela 2.ª Recorrente e os danos morais e reputacionais do 1.º Recorrente, que decorrem do erro judiciário das respetivas condenações em 1.ª Instância, não estão sujeitos ao prazo de caducidade de um ano, mas sim ao prazo geral de três anos.

14. Apenas as pessoas singulares são suscetíveis de privação de liberdade, mormente, de sofrerem detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.

15. Os artigos 225.º e 226.º, do CPP, apenas podem ser aplicados às pessoas singulares e nunca a pessoas coletivas, como é o caso da 2.ª Recorrente.

16. Sendo as normas dos artigos 225.º e 226.º, do CPP, de aplicação exclusiva às pessoas singulares, o RRCEE, é o único aplicável, in casu, à 2.ª Recorrente.

17. Assim, o Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 225.º e 226.º, do CPP, quando os interpretou no sentido de serem aplicáveis a pessoas coletivas e aplicando-os à 2.ª Recorrente, quando devia ter interpretado estes preceitos legais, no sentido da sua aplicabilidade exclusiva às pessoas singulares, porquanto tutelam bem jurídico eminentemente pessoal, ou seja, a liberdade.

18. O Tribunal a quo violou, também por erro de interpretação, o disposto nos artigos 225.º e 226.º, do CPP, relativamente ao 1.º Recorrente AA, quando os interpretou no sentido de serem aplicáveis aos danos que sofreu e que não são emergentes da privação da liberdade, quando devia ter interpretado estes preceitos legais, no sentido da sua aplicabilidade exclusiva aos danos resultantes da detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação.

19. O Tribunal a quo violou, ainda, por erro de interpretação, o disposto no art.º 1.º, n.º 1, do RRCEE, porque o interpretou no sentido de não ser aplicável aos danos alegados pelo 1.º Recorrente, provocados pela ofensa à sua honra, o crédito e bom-nome, quando estes danos são tutelados, precisamente, pelo regime aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, não existindo qualquer outro regime especial que os tutele.

20. O regime especial dos artigos 225.º e 226.º, do CPP, apenas é aplicável aos danos resultantes, stricto sensu, da detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação e a nenhuns outros.

21. A solução interpretativa defendida no acórdão recorrido, não tem fundamento, nomeadamente, por apelo ao princípio da coerência axiológica da ordem jurídica, uma vez que esse princípio conduz à solução oposta, ou seja, a de que o regime especial dos artigos 225.º e 226.º, do CPP, se cinge à matéria excecionalmente regulada pelos mesmos e que é, unicamente, o ressarcimento dos danos resultantes da privação ilegal ou injustificada da liberdade.

22. Em suma, a decisão do Tribunal a quo, que julgou improcedente o recurso, por aplicação do regime dos artigos 225.º e 226.º, do CPP, violou estes preceitos, bem como, o disposto nos artigos 1.º, n.º 1, 5.º, 12.º, 13.º, n.º 1, do RRCEE e 498.º, do CC, por erro de interpretação.

23. O douto acordo recorrido deve ser revogado ação e substituído por outro que julgue totalmente procedente o recurso interposto, determinando-se o prosseguimento dos autos, para apreciação dos pedidos relativos aos danos patrimoniais e não patrimoniais tempestivamente peticionados e causados pelo erro judiciário das condenações revogadas em sede de recurso, que redundaram nas respetivas absolvições.”

8. O R., representado pelo Ministério Público, contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.

9. O recurso de revista foi admitido no Tribunal recorrido, com a prolação do seguinte despacho: “Requerimento de 4/6/25 (ref. citius ....89): Por estar em tempo e terem legitimidade, admito o recurso interposto pelos autores do acórdão proferido nos autos em 29/4/25, o qual é de revista, a subir de imediato e nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (arts. 671º/1, 675º e 676º/1 todos do CPC). Subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça.”

10. Recebidos os autos, a relatora notificou o 1º AA. para se pronunciar sobre a não admissão do recurso, por via de despacho convite do art.º 655.º do CPC, atenta a dupla conformidade decisória em relação à sua pretensão, em nada afectada pelo voto de vencido aposto no acórdão recorrido – despacho de 12 setembro 2025, via citius.

11. O 1º e o 2º AA. vieram a apresentar a sua posição sobre a questão da admissibilidade do recurso:

“2. (…) não há dúvidas de que o voto de vencido apenas se reporta à 2.ª Recorrente “Global Workers, Lda.”, o que determina que haja dupla conforme, no que respeita o 1.º Recorrente.

3. Isto posto, devem os autos prosseguir, para apreciação do recurso interposto pela 2.ª Recorrente.”

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

12. De Facto

A factualidade relevante para a decisão é a que consta do relatório supra.

De Direito

13. Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir da seguinte questão:

- Caducidade/prescrição do direito de acção do 2º AA.


14. Questão prévia – não admissão do recurso do 1º AA

Conforme se avançou pelo despacho convite, ao abrigo do art.º 655.º do CPC, o recurso do 1º AA. não é admissível, por haver dupla conforme impeditiva da revista.

Não se admite, assim, o recurso do 1º AA.

15. Quanto ao recurso do 2º AA - Global Workers, Lda

15.1. Aproveitando o relato do acórdão recorrido, podemos identificar a questão suscitada assim:

A decisão recorrida, na esteira da sentença, julgou verificada a excepção peremptória de caducidade do direito de indemnização invocado na presente acção e consequentemente absolveu o réu (R.) do/s pedido/s.

Os autores/recorrentes [AA e Global Workers, Lda.] pugnam pela revogação da decisão “na parte em que declara caducado todo o direito de ação”, pretendendo que seja determinado que o tribunal de 1ª instância ordene o prosseguimento dos autos para apreciação dos pedidos relativos aos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelo erro judiciário das decisões penais de condenação dos arguidos/ora apelantes, que por via da procedência do respetivo recurso, conduziram à sua absolvição no processo crime.

Sustentam, em síntese, que:

- O Tribunal a quo considerou que todo o pedido de indemnização se encontrava sujeito ao prazo de caducidade de um ano, previsto no art. 226º/1 do CPP, aplicável a pedidos por privação injustificada da liberdade.

- Contudo, os Recorrentes não fundamentam o seu pedido, exclusivamente, na privação da liberdade, mas também no erro judiciário que determinou as duas condenações em sede de primeira instância.

- Os danos patrimoniais sofridos pela 2ª recorrente e os danos morais e reputacionais do 1.º Recorrente, que decorrem do erro judiciário das respetivas condenações em 1.ª instância, não estão sujeitos ao prazo de caducidade de um ano (previsto no art. 226º do CPP), mas sim ao prazo (de prescrição) geral de três anos (previsto no art. 498º do Código Civil, aplicável ex vi art. 5º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro).

- Apenas as pessoas singulares são suscetíveis de privação de liberdade, mormente, de sofrerem detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação, pelo que os artigos 225.º e 226.º do CPP apenas podem ser aplicados às pessoas singulares e nunca a pessoas coletivas, como é o caso da 2.ª Recorrente.

Concluem que a decisão do Tribunal a quo, que julgou procedente a excepção peremtória de caducidade do exercício dos direitos dos Recorrentes, por aplicação do art. 226º do CPP, apenas é aplicável aos pedidos de indemnização por privação injustificada da liberdade e não à totalidade dos pedidos formulados, porquanto têm diversos fundamentos.

Contra posiciona-se o R. Estado Português/ora apelado, representado pelo Ministério Público, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, aduzindo, em suma, que decorre do alegado pelos AA. que os pretensos danos resultaram da aplicação das medidas de coação de prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica e a sua revalidação em decisões posteriormente proferidas, não se divisando, para os mesmos, outra causa que não essa. Além disso, alega que o pedido deduzido quanto à 2ª A. alicerça-se, também e ainda, na privação da liberdade do 1º A., conforme se infere, entre outros, dos arts. 72º, 73º e 75º da petição inicial.

Concluindo, o Ministério Público que o pedido final formulado por cada um dos Autores não se fundamenta em causas autónomas e diferenciadas, mas sim, nas decisões de privação da liberdade do 1º Autor, às quais é imputado erro.”

15.2. Para responder a essa questão o Tribunal recorrido disse:

Vejamos antes de mais, a questão de saber se o fundamento do pedido se atém exclusivamente à privação da liberdade, ou também ao erro judiciário que determinou as duas condenações em sede de primeira instância.

Os AA. fundam o pedido de indemnização formulado no invocado erro judiciário decorrente das decisões judiciais que, segundo alegam, validaram a detenção do ora 1º A. (arguido no processo crime identificado na petição inicial), lhe aplicaram medidas de coação privativas da liberdade (prisão preventiva e posteriormente, obrigação de permanência na habitação) e a mantiveram durante 2 anos, 9 meses e 25 dias (entre 31.05.2016 e 25.03.2019), assim como a sentença penal condenatória, que terá sido alterada em sede de recurso, “tornando as decisões anteriores totalmente injustificadas e eivadas de erro grosseiro, pois, só um erro qualificado pode determinar tão grave situação.” (v. art 27º da petição inicial).

Consideram os AA. que “o erro judiciário pelo qual o R. é responsável, atentou contra a honra, o crédito e o bom-nome dos AA., causando neste danos de natureza não patrimonial que, pela sua gravidade, merecem a tutela do direito e são passíveis do pagamento de uma indemnização nos termos dos artigos 13.º e 2.º, do RRCEE, este decalcado do art.º 496.º, n.º 1, do CC.” (art. 26 da petição inicial). Concluindo que: “os danos provocados pelo erro judiciário de que foi vítima, além de terem afetado negativamente o seu bom nome, de terem atingido a sua honra e dignidade, geraram no 1.º A sentimentos de vergonha, humilhação, angústia e tristeza, que perduram até hoje. Esses danos consubstanciaram-se, ainda, em sentimentos de ansiedade e medo, bem como, perturbações de sono, com insónias recorrentes, perda de apetite e alguma apatia” (arts 47 e 48 da petição inicial).

No que tange à 2ª A. Global Workers, Lda., é alegado se trata de sociedade que se dedicava à prestação de serviços destinados à contratação de mão-de-obra estrangeira, mediante a obtenção dos necessários vistos de trabalho, junto das embaixadas portuguesas, e que a partir da data da detenção do 1.º A., não foi deferido mais nenhum dos vistos porquanto a situação processual do 1.º A. (sócio da 2ª R) e demais intervenientes foi transmitida às entidades oficiais competentes (art. 72º da petição inicial), o que levou a que a 2.ª A. tivesse deixado de receber a retribuição correspondente ao exercício da sua atividade e as empresas ficaram sem os trabalhadores de que careciam para as suas campanhas agrícolas, perdendo a 2ª R. a possibilidade de emitir 367 vistos (art. 73 da petição inicial), o que redundou num prejuízo de €751 275 (art. 76º da petição inicial).

Analisando o circunstancialismo supra descrito, o tribunal a quo pronunciou-se assim:

“O valor indemnizatório peticionado pelo 1.º A. decorre integralmente da sua detenção, prisão preventiva e obrigação de permanência na habitação, quer seja pela vergonha, humilhação, angústia e tristeza que lhe causaram, quer seja pela própria privação da liberdade a que foi sujeito.

Nos termos do artigo 226º, nº 1 do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização por privação da liberdade ilegal ou injustificada «não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou definitivamente decidido o processo penal respetivo.»

De acordo com o alegado pelos AA., o transito em julgado da decisão absolutória teve lugar em 30.06.2021, pelo que a ação indemnizatória devia ter sido proposta pelo 1.º A., enquanto pessoa que sofreu a detenção, até 30.06.2022.

A mesma conclusão se alcança relativamente ao pedido formulado pela 2.ª A. uma vez que, também este, tem por causa de pedir a detenção do 1.º A. e a sua situação processual que, de acordo com o alegado, impossibilitou o exercício da sua atividade comercial por não ter sido deferido nenhum dos vistos necessários para o efeito – artigo 72 da petição inicial.

Na realidade, o valor alcançado pela 2ª A. como sendo devido pelo R. respeita ao valor que iria faturar com a emissão de 367 vistos, que se encontravam em condições de obter deferimento mas que não o obtiveram por causa da privação de liberdade do A., e o valor que previsivelmente faturaria até 2019, e que não faturou por força da detenção do seu sócio e 1.º A.

Assim, também a indemnização peticionada pela 2.ª decorre diretamente da privação injustificada da liberdade e, consequentemente, cumpre aplicar o mesmo regime legal, já que o artigo 13.º do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas apenas é aplicável para as situações que não se fundem em privação injustificada da liberdade, uma vez que esta tem um regime especial para o qual tal disposição legal remete.

Desta feita, conclui-se que os pedidos formulados pelos AA. deveriam ter sido peticionados até 30.06.2022.

Nos termos do artigo 298.º, n.º 2 do Código Civil quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.

Não fazendo o artigo 226.º do Código de Processo Penal menção à prescrição, concluímos que a figura em causa é a caducidade, e não a prescrição, conforme alegado pelo Ministério Público.

A caducidade é apreciada oficiosamente e pode ser alegada em qualquer fase do processo, se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes. Se for estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, necessita, para ser eficaz, de ser invocada por aquele a quem aproveita, pelo seu representante ou, tratando-se de incapaz, pelo Ministério Público – artigos 333.º, n.º 1 e 303.º, n.º 2 do Código Civil.

A exceção foi invocada na contestação pelo Ministério Público, a parte a quem aproveita, ainda que erradamente designada, razão pela qual se impõe o seu conhecimento pelo tribunal e a correção da figura em causa.

Uma vez que a presente ação foi proposta em 28.06.2024, mostra-se decorrido o prazo de interposição da ação pelos AA. com base na privação de liberdade injustificada, razão pela qual se julga caducado o seu direito de ação.

A caducidade do direito constitui uma exceção perentória, na medida em que extingue o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, conforme o previsto no artigo 578.º, n.º 3 do Código de Processo Civil.”

15.3. E no Tribunal da Relação foi dito:

“Concordamos com o entendimento da 1ª instância na apreciação e julgamento desta questão.

É inegável que os danos invocados, quer pelo 1ª A, quer pela 2ª A., para sustentar o pedido indemnizatório formulado, se fundam na privação de liberdade sofrida pelo 1º A., não se divisando outra causa autónoma para a indemnização peticionada.1 Aliás, nem os AA. formulam pedidos de indemnização com base em diferentes atuações de órgãos jurisdicionais. De acordo com o alegado na petição inicial, o 1ª A. foi detido, submetido a 1ª interrogatório judicial, na sequência do que lhe foi aplicada prisão preventiva e posteriormente obrigação de permanência na habitação, vindo ambos os AA. a ser condenados por decisão criminal proferida na 1ª instância, acabando os factos por vir a ser dados como não provados por acórdão da Relação.

Dito isto, a questão a decidir prende-se tão só com a exceção arguida pelo Ministério Público (em representação do R.) e conhecida pelo tribunal, sendo entendido pelo tribunal a quo que tal exceção se integra na figura da caducidade (de conhecimento oficioso, por se tratar de matéria excluída da disponibilidade das partes) e não da prescrição, em face do disposto no art. 298º/2 do Código Civil e dado que o art 226º do CPP não faz qualquer menção à prescrição.

Ou seja, no enquadramento referido, importa apurar se caducou o direito de ação dos autores pedirem quanto aos danos sofridos pela prisão ilegal do 1.º A.

Notamos que não está em causa apreciar a verificação in casu dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado, pois essa apreciação, atinente aos requisitos de procedência da ação, respeita ao mérito da causa, ainda que importe convocar a análise dos regimes de responsabilidade civil aplicáveis ao caso e os respetivos prazos de caducidade.

Quer a doutrina quer a jurisprudência têm vindo a considerar que o fundamento da obrigação de indemnizar do Estado emerge diretamente do art. 22º da Constituição da República Portuguesa (CRP), que consagra um princípio geral de direta responsabilidade civil do Estado, por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa, administrativa e jurisdicional (v. ac STJ 29/6/2005, P. 05A1064, relator Ponce de Leão).

Para resolver esta questão, concorrem três regimes:

i) o regime geral da responsabilidade civil (art. 483.º e segs. do Cód. Civil);

ii) o regime especial da responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional (art. 12.º e segs. da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, sistematicamente inserido no capítulo III homónimo);

iii) o regime especialíssimo da indemnização por danos decorrentes privação da liberdade ilegal ou injustificada (arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal).

Quanto ao regime especial, estabelecem os artigos 12º e 13º daquele diploma (Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro)

Art 12º

“Salvo o disposto nos artigos seguintes, é aplicável aos danos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente por violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável, o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa.”

Art 13º

“1 - Sem prejuízo do regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta e de privação injustificada da liberdade, o Estado é civilmente responsável pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto.

2 - O pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.”

Como bem sintetiza o acórdão do TRE de 7/5/2020, P. 1303/17.0BEELRA.E1, relatora Florbela Lança (www.dgsi.pt), “A LRCEE prevê a existência de três tipos de responsabilidade da função jurisdicional: por violação do direito a uma decisão em prazo razoável (art.º 12.º); por prolação de sentença condenatória injusta e privação injustificada da liberdade (art.º 13.º/1, 1.ª parte); por prolação de decisão inconstitucional, ilegal ou em erro grosseiro sobre a apreciação dos factos (art.º 13.º/1, 2.ª PARTE).”

Mais referindo o citado aresto que “Para efeitos do regime previsto no art.º 13.º da responsabilidade civil extracontratual do Estado, entendido à luz do art.º 22.º da Constituição, que é o seu fundamento, o erro judiciário reconduz-se ao erro cometido pelo juiz ou pelo Ministério Público.”

Já quanto ao regime especialíssimo, estabelece o art. 225º do Código de Processo Penal, para que remete o supra citado art. 13º/1, que:

“Quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando:

a) A privação da liberdade for ilegal, nos termos do n.º 1 do artigo 220.º, ou do n.º 2 do artigo 222.º;

b) A privação da liberdade se tiver devido a erro grosseiro na apreciação dos pressupostos de facto de que dependia;

c) Se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou atuou justificadamente; ou

d) A privação da liberdade tiver violado os n.ºs 1 a 4 do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.”

E o art 226º/1 do CPP

“O pedido de indemnização não pode, em caso algum, ser proposto depois de decorrido um ano sobre o momento em que o detido ou preso foi libertado ou foi definitivamente decidido o processo penal respetivo”.

Sendo certo, como é sabido, que os regimes (mais) especiais afastam os regimes (mais) gerais, à indemnização por danos decorrentes da privação da liberdade ilegal ou injustificada é prevalecentemente aplicável o disposto nos arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal, como, aliás, é afirmado pelo n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro.

Como também foi sumariado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/1/24, proferido no P. 1359/20.3T8SNT.L1.S1 (2ª secção), relatora Ana Paula Lobo (acessível em www.dgsi.pt):

“I - A ação de responsabilidade civil extracontratual do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional com fundamento em detenção ilegal e absolvição do arguido segue o regime especial aplicável aos casos de privação injustificada da liberdade constante dos arts. 225.º e 226.º do CPP.

II - Tal é reconhecido pelo art. 13.º, n.º 1, da Lei n.º 67/2007, de 31-12, e impede a aplicação do regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, determinado pelo art.º 12.º da mesma lei, nomeadamente em matéria de prescrição do direito à indemnização, como ocorre com os demais danos ilicitamente causados pela administração da justiça.”

Ora, baseando-se no regime especialíssimo, o tribunal concluiu que “Uma vez que a presente ação foi proposta em 28.06.2024, mostra-se decorrido o prazo de interposição da ação pelos AA. com base na privação de liberdade injustificada, razão pela qual se julga caducado o seu direito de ação.”

Concordamos com a decisão do tribunal de primeira instância quanto a ambos os autores, reconhecido que foi ser a privação da liberdade ilegal o único fundamento do pedido indemnizatório.

A resposta quanto ao primeiro A. decorre da aplicação direta do regime legal, não se oferecendo dúvidas interpretativas.

Quanto ao segundo A., pese embora se imponha reconhecer ser indiscutível que o terceiro sempre estaria excluído do direito a uma indemnização a este título – a aplicação direta do regime dos artigos 225.º e 226.º é apenas ao lesado -, é também necessário considerar que qualquer dano sofrido por um terceiro com fundamento nos mesmos factos que sustentam o pedido do próprio lesado obriga a convocar o regime dos artigos 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal. A tanto obriga o n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro ao determinar expressamente a aplicação do regime especialíssimo da privação injustificada da liberdade2.

Ou seja, quando o facto danoso invocado pelo suposto lesado seja a privação da liberdade ilegal ou injustificada, imediatamente temos de enquadrar o caso nos arts. 225.º e 226.º do Cód. Proc. Penal, por força do n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, quer o lesado seja o afetado direto, quer seja um terceiro.

E encontrado o regime aplicável temos de, à luz do mesmo, aferir dos pressupostos do direito a uma indemnização e dos prazos aplicáveis para o exercício do direito.

O que não pode acontecer é invocar-se o regime dos artigos 225.º e 226.º para reclamar danos sofridos e, concomitantemente, pretender contornar-se o mesmo regime para excluir a aplicação do respetivo prazo de exercício do direito.

Uma tal solução é incoerente e viola o mais importante de todos os fatores hermenêuticos na interpretação de lei (art. 9.º do Cód. Civil): o princípio da coerência axiológica do sistema jurídico.

Ou seja, uma vez determinado o regime aplicável, a unidade do sistema jurídico impõe a sua aplicação em todas as dimensões nele previstas – no caso, verificação dos pressupostos quanto ao mérito e prazos para o exercício do direito.”

E não teríamos dificuldade em ver a necessidade de convocação deste princípio noutras situações.

Tomemos como exemplo o direito a uma indemnização por dano não patrimonial indireto, em geral. Podemos discutir se ele existe fora do caso de morte, conforme previsto na segunda parte do n.º 4 do art. 496.º do Cód. Civil, ou se pode ser reconhecido a outros terceiros não referidos nessa norma.

No entanto, se se admitir que um terceiro (que não o lesado direto) tem direito a uma indemnização por um dano não patrimonial fora do caso previsto na segunda parte do n.º 4 do art. 496.º do Cód. Civil, é indiscutível que o seu direito está sujeito ao prazo de prescrição de 3 anos previsto no art. 498.º do Cód. Civil. Não lembra a ninguém dizer que, não estando o caso expressamente previsto na lei, o prazo de prescrição aplicável é o prazo ordinário de 20 anos (art. 309.º do Cód. Civil).

Ora, também no caso dos autos, se se admitir que um terceiro (que não o lesado direto) tem direito a uma indemnização por um dano decorrente da prisão ilegal de outrem, é indiscutível que o seu direito está sujeito ao prazo de caducidade de 1 ano previsto no n.º 1 do art. 226.º do Cód. Proc. Penal. Não nos parece razoável dizer que, não estando o caso expressamente previsto na lei especial (art. 225.º do Cód. Proc. Penal) não está o exercício do direito do terceiro sujeito ao mesmo prazo de caducidade.

Imaginemos que, chegados ao Cód. Proc. Penal, depois de para este enviados pelo n.º 1 do art. 13.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, nos deparava-mos com uma norma estabelecendo, singelamente (e inconstitucionalmente, diga-se): em caso algum o detido tem direito a uma indemnização. Não lembraria a ninguém dizer: “bom, o detido não tem direito a uma indemnização, mas isso não quer dizer que um terceiro não o possa ter”. E se a lei concedesse ao detido o direito a uma indemnização num caso excecionalíssimo, estando o seu exercício sujeito a um curtíssimo prazo de caducidade, também não seria razoável defender não ser este prazo aplicável ao terceiro, mas apenas ao detido.

Em conclusão, à data de interposição da ação, o direito de ação dos dois AA já se mostrava caducado, como acertadamente reconheceu o tribunal de primeira instância, pelo que improcede o recurso.”

15.4. Concorda-se integralmente com esta explicação do Tribunal recorrido no que se reporta à 2ª AA – o prazo que esta teria para reclamar uma indemnização contra o Estado, com o fundamento que invoca – sempre assente na prisão indevida do 1º AA – não pode fazer-se valer em juízo em prazo diverso do que o 1º AA teria para equivalente pretensão, em que são convocados os factos base da prisão indevida para daí se ajuizar do direito à indemnização.

Seria, aliás, estranho que o principal destinatário da norma que permite accionar a responsabilidade do Estado tivesse um prazo de caducidade mais restrito do que outros interessados, quando o objectivo da norma é reparar o dano que o indevidamente detido/preso possa ter tido – princípio da coerência axiológica.

A posição expressa pelo adjunto, na sua declaração de voto, junta ao acórdão recorrido confirma igualmente a justeza da interpretação realizada pela maioria do colectivo do acórdão recorrido.

Isto significa que não se acompanha o voto de vencida aposto no acórdão recorrido, por se entender que as razões indicadas são prevalecentes face aos argumentos que aduz e se consideram assim ultrapassados.

Inversamente, a coerência axiológica do sistema de justiça impõe a solução adotada no acórdão, não havendo nenhuma interpretação ab-rogante ou contrária à letra das normas jurídicas aplicadas, mas uma interpretação das mesmas no seio do espírito do legislador e do sistema, como um todo, a partir do mesmo facto – averiguar da privação injustificada da liberdade e suas consequências, nomeadamente ao nível indemnizatório.

III. DECISÃO

Pelos fundamentos indicados:

1. Não se admite o recurso do 1º AA;

2. Julga-se revista da 2ª AA. improcedente e, consequentemente, mantém a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 16 de Outubro de 2025

Relatora - Fátima Gomes

1ª Adjunta - Maria de Deus Correia

2º Adjunto - Nuno Pinto Oliveira


1. Negrito nosso, para salientar a ideia.

2. Idem.

(mantendo o que veio do acórdão recorrido - art. 663º/7 CPC):