Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
28891/23.0T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: JÚLIO GOMES
Descritores: SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
PRESUNÇÃO
CONTRATO DE TRABALHO
PLATAFORMAS DIGITAIS
Data do Acordão: 10/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I. A presunção constante do artigo 12.º-A do Código do Trabalho aplica-se a relações contratuais anteriores à entrada em vigor da norma desde que as características relevantes ocorram após essa entrada em vigor.

II. A aplicação móvel é o principal instrumento de trabalho dos estafetas e é disponibilizada pela plataforma digital.

III. Verificando-se algumas das características do artigo 12.º-A, designadamente que o principal instrumento de trabalho pertence à plataforma e que esta estabelece os limites máximo e mínimo da retribuição presume-se a existência de contrato de trabalho.

IV. Para ilidir a presunção exige-se que a plataforma prove que o estafeta não tem contrato de trabalho, trabalhando com efetiva autonomia.

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 28891/23.0T8LSB.L1.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

Relatório

O Ministério Público intentou ação declarativa de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, com processo especial, contra Glovoapp Portugal, Unipessoal, Lda., peticionando que fosse declarada a existência de um contrato de trabalho por tempo indeterminado entre Glovoapp Portugal, Unipessoal, Lda. e AA.

Citada, a Ré contestou.

O Ministério Público respondeu à matéria de exceção.

Foi proferido despacho saneador e designada data para a realização da audiência de julgamento.

Notificado dos articulados e da data da audiência de julgamento, AA não interveio nos autos.

Foi realizada a audiência de julgamento.

Em 29.10.2024, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, por não provada, e em consequência, absolveu a Ré do pedido.

O Ministério Público interpôs recurso de apelação.

Por Acórdão de 12.02.2025, o Tribunal da Relação negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

O Ministério Público interpôs recurso de revista excecional.

A Ré contra-alegou, alegando a inadmissibilidade da revista excecional.

Notificado, o Ministério Público apresentou requerimento de resposta.

Assegurado o respetivo contraditório o recurso foi convolado pelo Relator neste Supremo Tribunal de Justiça em recurso ao abrigo do artigo 671.º, n.º 1 do CPC, porquanto a 1.ª Instância considerou aplicável à situação o artigo 12.º-A do Código do Trabalho, aplicação que foi rejeitada pelo Tribunal da Relação. Ora e como se pode ler no despacho “esta presunção que se aplica “sem prejuízo do número anterior” (parte inicial do n.º 1 do artigo 12.º-A) contém a referência a indícios muito mais específicos da situação das plataformas e mais adaptados a essa realidade. Ela acaba, também, por dar um contributo importante quanto ao que o empregador terá de provar se pretender ilidir a referida presunção, caso se verifiquem algumas das caraterísticas referidas no artigo 12.º-A n.º 1. O esforço probatório diverge sensivelmente e daí que longe de ser indiferente, deva reputar-se de essencial na fundamentação das decisões das instâncias a opção por aplicar, ou não, o artigo 12.º-A.”

Fundamentação

De Facto

Foram os seguintes os factos dados como provados nas Instâncias

1. A Ré explora uma plataforma digital de intermediação tecnológica que se encontra ligada 24 horas por dia e 365 dias por ano;

2. A R. tem como objecto social desenvolvimento e exploração de uma plataforma tecnológica, comércio a retalho por via electrónica, comércio não especializado de produtos alimentares e não alimentares, bebidas e tabaco e, de um modo geral, de todos os produtos de grande consumo, comercialização de medicamentos não sujeitos a receita médica, produtos de dermocosmética e de alimentos para animais, a importação de quaisquer produtos, o comércio de refeições prontas a levar para casa e a distribuição ao domicílio de produtos alimentares e não alimentares. Exploração, comercialização, prestação e desenvolvimento de todos os tipos de serviços complementares das actividades constantes do seu objecto social. Realização de actividades de formação, consultoria, assistência técnica, especialização e de pesquisa de mercado relacionadas com o objecto social. Qualquer outra actividade que esteja directa ou indirectamente relacionada com as actividades acima identificadas

3. A R. efectua a intermediação de três tipos de utilizadores da plataforma:

- 'Os estabelecimentos comerciais, sejam restaurantes ou outros estabelecimentos aderentes;

- Os estafetas; e

- Os utilizadores clientes'.

4. Para a execução das referidas actividades, a Ré explora uma plataforma tecnológica através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitado pelos utilizadores clientes - através de uma aplicação móvel (App) ou através da Internet - actua como intermediária na entrega dos produtos encomendados;

5. A actividade desempenhada pelo estafeta consiste na recolha dos bens nos estabelecimentos aderentes (restaurantes, supermercados, lojas, etc.), transportando esses produtos até ao cliente.

6. A actividade da Ré inclui: - A intermediação dos processos de recolha nos estabelecimentos comerciais e o pagamento dos produtos encomendados através da plataforma; e - A intermediação entre a venda dos produtos e a respectiva recolha, transporte e entrega aos utilizadores que efectuaram as encomendas;

7. A Ré presta serviços de acesso e intermediação a diferentes tipos de utilizador da plataforma - serviços esses pelos quais a Ré recebe os pagamentos das diferentes taxas provenientes desses utilizadores, identificadas em baixo:

- Os estabelecimentos comerciais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada 'Taxa de Parceria');

- Os utilizadores prestadores de serviços pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada 'Taxa de Plataforma');

- Os utilizadores clientes finais pagam uma taxa de acesso e utilização da plataforma (denominada 'Taxa de Serviço').

8. AA, natural da Índia, NIF 1, Titular o Passaporte com o n.º 1, com residência na Rua 1, titular do n.º de telefone 1, assinou um contrato designado 'contrato para a realização de actividade profissional como profissional liberal' com a Glovo no dia 11 de Abril de 2022.

9. AA realiza a referida actividade de estafeta, mediante pagamento, entregando refeições e outros produtos, conforme pedidos que lhe são disponibilizados e por este aceites através da plataforma GLOVOAPP, na qual se encontra registado e à qual acede através da aplicação (App) que tem instalada no seu telemóvel/smartphone;

10. No dia 28.06.2023, pelas 11h00m, AA encontrava-se, junto à sua bicicleta, no lado nascente do Centro Comercial Vasco da Gama, sito no Parque das Nações, em Lisboa, no exercício das referidas funções de estafeta, quando foi identificado por inspectores da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).

11. A GLOVOAPP tem um registo electrónico de adesão aos mesmos com data e hora;

12. O estafeta paga uma taxa quinzenal de €1,85 pela utilização da plataforma da R. como contrapartida do acesso aos outros utilizadores da plataforma, nomeadamente os clientes, estabelecimentos, acesso a cobertura de seguro durante as entregas, aquisição de material, gestão e intermediação no serviço de recolha e pagamentos, bem como o acesso a apoio a serviço de assistência da Glovo para problemas técnicos que possam advir;

13. O pagamento referido apenas será devido se nos últimos quinze dias o estafeta tiver realizado entregas;

14. O estafeta tem de esperar 10 minutos pelo cliente caso este não esteja na morada e caso não pretenda esperar os dez minutos de que o cliente dispõe para chegar pode recusar a entrega e não será pago por isso;

15. Para aceder aos pedidos que existem na plataforma GLOVOAPP, AA teve que se registar e criar uma conta completa naquela plataforma, a qual se comprometeu a manter actualizada e activa sendo que, uma vez activada a conta, é iniciada a actividade como estafeta e o início da sessão na plataforma é feito através das credenciais de identificação do estafeta o email e de uma palavra passe, sendo que, para receber os pedidos, coloca-se em estado de disponibilidade;

16. Para se poder registar e exercer a referida actividade de estafeta através da plataforma da Ré, o estafeta tinha que ter actividade iniciada na Administração Tributária, ter veículo próprio (mota, carro ou trotinete/bicicleta), possuir um telemóvel (smartphone) e uma mochila para transporte dos bens;

17. A manutenção e reparação do veículo, telemóvel e mochila que utiliza são suportados pelo estafeta;

18. Os prestadores de actividade registados na Plataforma decidem livremente o local onde prestam a sua actividade, ou seja, se prestam a sua actividade numa determinada zona da cidade ou até mesmo do país.

19. Podem inclusivamente bloquear comerciantes e/ou clientes com quem não desejam contactar.

20. A Plataforma não dá qualquer tipo de indicação aos prestadores de actividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas, podendo mudar de localidade quando entenderem, desde que previamente efectuem o registo de mudança de área na plataforma e o registo fique efectuado e processado por parte da Glovo;

21. O estafeta recebe os valores das entregas que efectuar, podendo aceitar mais ou menos entregas durante qualquer período de tempo;

22. O estafeta é livre para escolher o seu horário;

23. É livre para decidir quando se liga e desliga da Plataforma;

24. E durante quanto tempo permanece ligado;

25. Sendo ainda livre para rejeitar e aceitar as ofertas de entrega que entender;

26. Mesmo após aceitar a entrega pode cancelá-la sem que exista qualquer consequência para si;

27. O que resulta na impossibilidade de a Ré saber quantos prestadores de actividade estarão com sessão iniciada na Plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as ofertas de entrega disponibilizadas.

28. O Prestador de Actividade pode passar, dias, semanas, meses sem se ligar à Plataforma, sem que daí resulte qualquer consequência para si.

29. E a sua conta continua activa;

30. Só quando o estafeta efectua o login na plataforma é que pode aceder às ofertas de entregas disponíveis;

31. A Ré contratou um seguro de responsabilidade para os estafetas durante os serviços de recolha e entrega, nomeadamente no caso de lesão permanente ou temporária durante e em óbito, com a Chubb European Group SE, sucursal em Espanha.';

32. Nos dados fornecidos pelo estafeta à R. está o início da actividade nas finanças, o ATCUD (código único de documento), regime de IVA e IRS, documento de identificação;

33. A plataforma transmite a encomenda dos artigos ao parceiro, através da sua interface da plataforma e o parceiro aceita ou rejeita a encomenda;

34. Caso seja aceite a encomenda, a plataforma, através da aplicação 'Glovo Couriers' oferece a um utilizador-estafeta o serviço de entrega associado ao referido pedido; caso o utilizador-cliente opte por recolher o pedido directamente junto do parceiro (take away), esta oferta não será efectuada ao estafeta;

35. Pelo menos a partir de Maio de 2023, o utilizador estafeta pode aceitar, não responder ou rejeitar o serviço proposto que, por sua vez, pode ter sido anteriormente rejeitado por outros utilizadores estafeta;

36. Após aceitar um serviço o utilizador estafeta pode ainda rejeitá-lo;

37. A aplicação apresenta aos referidos estafetas aquando da oferta de um serviço o preço do serviço, o mapa com os pontos de recolha e entrega assinalados e a rua da morada do ponto de recolha, sem o número da porta;

38. Quando os estafetas pretendem aceitar o serviço, após aceitação dos serviço na aplicação, esta apresenta ao estafeta o preço do serviço, um mapa com os pontos de recolha (morada do parceiro) e entrega (morada do utilizador cliente) assinalados, o nome e morada do parceiro (ponto de recolha), informações de contacto do parceiro (quando existam), estimativa do tempo de espera no parceiro, o nome e morada do utilizador-cliente (ponto de entrega), a distância estimada, os detalhes do pagamento, a lista dos artigos do pedido e o valor do mesmo;

39. Os estafetas escolhem o itinerário que vão utilizar para a realização do serviço, tanto desde o ponto onde efectuam a aceitação do serviço até ao ponto de recolha, como desde o ponto de recolha até ao ponto de entrega, pois a aplicação da R. exibe um mapa com ambos os pontos assinalados e morada de cada ponto, sem apresentar qualquer itinerário ou rota proposto;

40. No decurso do serviço de entrega a aplicação, quando ligada, solicita aos estafetas que os mesmos assinalem a conclusão das seguintes actividades: chegada à morada do parceiro ponto de recolha), recolha dos artigos no parceiro, chegada à morada do utilizador cliente ponto de entrega); entrega dos artigos ao utilizador-cliente e conclusão do serviço, mas quando os estafetas não assinalam na aplicação a conclusão dessas actividades, não comprometem a execução do serviço, apenas recebendo o preço do serviço e ficando disponíveis para aceitar novos serviços quando comunicam a última das actividades que é a conclusão do serviço;

41. A aplicação indica a necessidade de ter acesso à geolocalização dos estafetas enquanto estes se encontram on-line a aguardar por uma oferta de serviço, a partir da aceitação do serviço os estafetas podem permitir ou não que a plataforma tenha acesso á sua localização sem que isso tenha impacto na realização do serviço ou leve a alguma penalização;

42. Os estafetas após aceitarem o serviço na aplicação podem escolher o meio de transporte utilizado, definir o percurso a seguir e podem desligar a geolocalização do telemóvel;

43. Após entregar as encomendas e caso os clientes tenham optado pelo pagamento em dinheiro, os estafetas têm de receber destes o pagamento do pedido em dinheiro, ficando com a obrigação de proceder ao depósito da quantia cobrada na conta determinada pela plataforma, a favor da R.;

44. Os estafetas podem aceitar ou recusar qualquer serviço através da aplicação, mesmo depois de terem inicialmente aceitado esse serviço, sem que tal afecte o estatuto da sua conta na aplicação, a apresentação de futuros serviços e o preço de tais serviços futuros.

45. Quando os estafetas rejeitam o serviço proposto, após a rejeição desse serviço na aplicação é apresentada uma interface de confirmação da rejeição para evitar rejeições acidentais, não havendo qualquer penalização pela rejeição de serviços propostos.

46. O preço base do serviço que é apresentado aos estafetas é calculado pela plataforma de acordo com um valor base, compensação pela distância e compensação pelo tempo de espera consumido na realização desse serviço; sobre o preço base podem incidir promoções da aplicação.

47. Os estafetas podem seleccionar e alterar um 'multiplicador', uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço;

48. Adicionalmente, os estafetas podem receber gratificações dos clientes.

49. Os estafetas são remunerados por cada serviço e depois de os terem realizado, independentemente do tempo que tenham estado previamente on-line na aplicação, nem recebem qualquer valor pela espera entre a conclusão de uma entrega e a aceitação de novo pedido;

50. A ré paga, quinzenalmente, através de transferência bancária, directamente aos estafetas os valores correspondentes às entregas efectuadas e processa os pagamentos a efectuar, mediante a emissão de uma factura em nome da ré e que tem por emissor os prestadores de actividade (estafetas).

51. Por autorização dos estafetas, mediante adesão no Portal das Finanças, os recibos emitidos são registados no Portal das Finanças pela R.;

52. Nos Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas', estão previstas várias situações que podem determinar a desactivação temporária ou permanente da conta do prestador de actividade, designadamente as enumeradas no ponto 5.2., de onde se destacam as possibilidades de tal acontecer se o estafeta: utilizar a Plataforma para insultar, ofender, ameaçar e/ou agredir Terceiros, nomeadamente, Utilizadores Cliente, Estabelecimentos Comerciais, outros Estafetas e pessoal da GLOVO; violar a lei ou quaisquer outras disposições dos Termos e Condições Gerais ou outras políticas da GLOVO; participar em actos ou conduta violentos; e violar os seus direitos na aplicação da GLOVO, causando danos materiais e/ou imateriais a outro Utilizador da plataforma (Estafetas, Utilizadores Cliente e/ou Estabelecimentos Comerciais).

53. Tal como resulta do ponto 5.4.2. dos referidos 'Termos e condições de utilização da plataforma GLOVO para estafetas', 'A GLOVO pode, mas não é obrigada, a monitorizar, rever e/ou editar a sua Conta. A GLOVO reserva-se o direito de, em qualquer caso, eliminar ou desactivar o acesso a qualquer Conta por qualquer motivo ou sem motivo, até mesmo se considerar, a seu critério exclusivo, que a sua Conta viola os direitos de terceiros ou direitos protegidos pelos Termos e Condições'.

54. A ré pode, igualmente, desactivar a conta de comerciantes e de clientes em caso de violação de lei ou de fraude.

55. Desde Maio de 2023 os utilizadores clientes finais são convidados a avaliar a forma como o estafeta realizou o seu trabalho e a plataforma toma-a visível apenas para o estafeta, da mesma forma que os clientes são convidados a avaliar os comerciantes que vendem os seus produtos, sem que tal seja usado para avaliar a qualidade da actividade ou a forma como é executada e sem influenciar a oferta de novos pedidos o que é designado de sistema de reputação;

56. Os estafetas escolhem os dias e horas em que pretendem ligar-se à aplicação da ré.;

57. Os estafetas podem subcontratar noutro prestador de serviços de entrega

58. Antes de iniciar a sua ligação à aplicação da ré e caso pretendam usar veículos a motor, os estafetas devem declarar dispor de carta de condução e seguro de responsabilidade civil do veículo usado.

59. Os estafetas podem receber e aceitar ofertas de serviços de entrega em diferentes localizações dentro da zona geográfica que escolhem.

60. Os estafetas são responsáveis pela perda ou danificação dos produtos que transportam.

61. Os estafetas não são obrigados a utilizar uniforme identificativo da Ré, podendo, como qualquer outra pessoa, comprar merchandising da Ré (incluindo a mochila isotérmica para transporte de comida) na loja on-line desta.

62. A ré não controla nem limita que os estafetas prestem a mesma actividade para plataformas concorrentes nem controla nem limita que os mesmos prestem outras actividades.

63. Quando o estafeta chega ao local e o cliente não se encontra no mesmo entra em contacto com o cliente e depois informa a Glovo desse facto enquanto aguarda dez minutos;

64. Se volvidos os dez minutos o cliente não chega o estafeta é pago pelo serviço efectuado excepto se o mesmo fosse pago em dinheiro pelo cliente, circunstância em que não recebem pelo serviço por o cliente não ter atendido".

De Direito

A questão essencial que se discute no presente recurso é a da qualificação jurídica do contrato entre um estafeta e uma empresa que gere uma plataforma. Diga-se, antes de mais, que as plataformas podem ser muito distintas e algumas podem ser apenas intermediários entre a oferta e a procura, mas neste caso como no de motoristas estamos, como o Tribunal de Justiça já teve ocasião de afirmar face à Uber1, perante empresas que não se limitam a pôr em contacto oferta e procura, mas que realizam uma atividade de transporte (de pessoas ou, como no caso os autos, de bens), e criam elas próprias a oferta, nas palavras do Advogado-Geral SZPUNAR2. Como recentemente sublinhou um autor francês trata-se de uma questão nova, mas com laivos de antiguidade, já que “por detrás da genuína novidade, escondem-se velhas profissões, como o transporte de pessoas e de bens, e mesmo velhas organizações do trabalho”3. Como o autor acrescenta, “[a]ntes da fábrica taylorista e depois fordista, havia já trabalhadores pagos à tarefa, por vezes muito especializados, autónomos na organização dos seus horários, proprietários dos seus instrumentos de trabalho, mas numa situação de sujeição e de grande debilidade”. Em todo o caso, é exato que como o Supremo Tribunal espanhol referiu num seu famoso Acórdão4, há que adaptar a subordinação jurídica à nova realidade social. A subordinação jurídica revelou-se, desde sempre, um conceito dúctil e flexível, capaz de se adaptar a novas realidades tanto do ponto de vista tecnológico, como organizacional. O paradigma de que terá nascido o conceito com a I.ª Revolução Industrial seria o trabalho na fábrica, numa linha de montagem. É óbvio que neste contexto o tempo e o local físico assumiam grande relevo – o trabalhador, o operário, estava sujeito a trabalhar num local e num ambiente controlados por outrem (o empregador) e com tempos de trabalho em grande medida rígidos. As linhas de montagem não desapareceram, embora algumas estejam hoje a robotizar-se, mas esta realidade coexiste com outras muito diversas. A subordinação jurídica é hoje muito flexível – é compatível com a autonomia técnica e deontológica e conhece grandes variações de intensidade. Pode revelar-se mais intensa ou com cambiantes em certos contratos de trabalho especiais (por exemplo, o contrato de trabalho a bordo, o contrato de trabalho desportivo e o contrato de trabalho doméstico), ou em função das atividades – artistas, investigadores, cargos de direção podem ser todos eles trabalhadores subordinados. E aceita-se que para que haja subordinação é suficiente que o empregador tenha a possibilidade de exercer o que se designa por poder de direção, mesmo que não o faça efetivamente. Hoje neste tipo de empresas verifica-se o que se designa por vezes por subordinação tecnológica5, possibilitada pelos meios de comunicação à distância, pela aplicação informática, pela geolocalização e pela utilização do algoritmo. Refira-se, desde já, que em certas atividades perde relevância o espaço físico a favor do espaço virtual6 e alguns indícios tradicionais da subordinação perdem peso em favor de novas realidades e modalidades de controlo. Assume, sobretudo, um novo e mais relevante sentido a inserção do trabalhador no âmbito de organização de outra ou outras pessoas como diz agora o artigo 11.º do Código de Trabalho de 2009 (uma das principais inovações deste preceito relativamente ao seu antecessor, o artigo 10.º do Código do Trabalho de 2003).

O reconhecimento da especificidade desta subordinação no âmbito de plataformas digitais materializou-se, entre nós, com o artigo 12.º-A do Código do Trabalho, introduzido pela Lei n.º 13/2023 de 3 de abril. Ainda que nela se faça referência a que tal presunção será aplicada “sem prejuízo do disposto no artigo anterior”, as características de que depende a aplicação desta presunção – e basta que se verifiquem algumas, e, por conseguinte, duas – são mais ajustadas a esta nova realidade. Como destaca VALÉRIE LABATUT, uma presunção de trabalho subordinado para os trabalhadores das plataformas deve representar uma “adaptação necessária da noção de subordinação jurídica às evoluções tecnológicas que permitem hoje em dia graças à gestão algorítmica e à geolocalização a implementação de sistemas de controlo digital dos trabalhadores”7. E como este Supremo Tribunal de Justiça teve ocasião de decidir em Acórdão recente – Acórdão de 15.05.2025 desta Secção Social do STJ, Proc. n.º 1980/23.3T8CTB.C2.S1 (Relator Conselheiro Mário Belo Morgado)8 – esta presunção deve considerar-se aplicável mesmo a relações laborais constituídas anteriormente à entrada em vigor da lei, mas desde que a factos ocorridos posteriormente à sua entrada em vigor.

Ora embora a relação contratual se tenha iniciado a 11 de abril de 2022, o trabalhador foi identificado por ação inspetiva da ACT como estando ao serviço da plataforma no dia 28-06-2023 (facto 10) e, por conseguinte, já depois da entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, a qual, como decorre do seu artigo 38.º, entrou em vigor sessenta dias após a sua publicação.

Ora decorre dos factos provados que “o preço base do serviço que é apresentado aos estafetas é calculado pela plataforma de acordo com um valor base, compensação pela distância e compensação pelo tempo de espera consumido na realização desse serviço; sobre o preço base podem incidir promoções da aplicação” (facto 46), ainda que o estafeta possa em certos casos “selecionar e alterar um 'multiplicador', uma vez por dia, para valores iguais ou superiores a 1.0, o que permite aumentar o valor total recebido por cada serviço” (facto 47). Está, assim, preenchida a alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A, porquanto a plataforma digital deste modo estabelece o limite mínimo e máximo para a retribuição. Está também preenchida a alínea e) já que a desativação da conta como sanção está igualmente prevista (factos 52 e 53). Tanto bastaria para a aplicação da presunção que se reporta a algumas características (pelo que duas são suficientes), mas sublinhe-se que também o principal instrumento de trabalho (a aplicação) pertence ou é disponibilizada pela plataforma (alínea f).

Esta presunção é, no entanto, ilidível.

Relativamente ao artigo 12.º-A, o seu n.º 4 prevê expressamente que “a presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata”.

O controlo em casos como o dos presentes autos ocorre, designadamente, através da geolocalização e do controlo do acesso à aplicação. Ainda que a geolocalização seja também útil face ao modelo de negócio adotado ela permite o controlo da prestação. A existência de bónus e, sobretudo, de sanções que no limite podem consistir em desconectar um estafeta da aplicação correspondem, no fundo, nos seus resultados ao exercício de um poder disciplinar. Mas importa ainda considerar a inserção do estafeta na organização empresarial da plataforma. Como já observou o Advogado-Geral SZPUNAR9, os estafetas que operam no quadro da plataforma Uber (TakeEatEasy) não exercem uma atividade própria que pudesse existir independentemente da mesma. Pelo contrário, a sua atividade só pode existir graças á plataforma, sem a qual ficaria desprovida de sentido.

Se fossem considerados trabalhadores autónomos (ou até empresários) poderia questionar-se, como refere AGATHE GENTILHOMME, em que é que consistiria verdadeiramente a sua pretensa autonomia quando o estafeta não fixa o preço que cobra pelos seus serviços e não pode pretender constituir uma clientela própria á medida que vai realizando tais serviços?10 O estafeta não acede autonomamente ao mercado, mas integra o serviço proporcionado pela plataforma11.

Face a esta inserção indícios de aparente autonomia perdem boa parte do seu alcance: assim, a plataforma permite que o estafeta trabalhe para outras plataformas, mas para além das dificuldades práticas em que tal ocorra sem prejudicar a classificação do estafeta no âmbito de cada plataforma12, o direito do trabalho português, à semelhança de muitos, não proíbe o pluriemprego e o contrato de trabalho não exige exclusividade; o estafeta pode ser proprietário de alguns instrumentos de trabalho, mas o principal em toda a operação, a aplicação informática, pertence à plataforma. O estafeta pode recusar algum serviço e conectar-se quando quiser, mas tal é possibilitado pelo modelo empresarial com um grande número de estafetas “concorrendo” entre si. Essa liberdade na escolha do tempo vem acompanhada de um controlo apertado na geolocalização13 e de aspetos económicos como a fixação da contrapartida no essencial pela plataforma e a circunstância de que a mesma emite os recibos.

Há, pois, que concluir que a plataforma não logrou provar que o trabalhador trabalhava com efetiva autonomia, devendo o contrato ser requalificado em contrato de trabalho.

Decisão: Acorda-se em conceder a revista, reconhecendo-se a existência de contrato de trabalho entre a Ré e AA desde 11-04-22.

Custas pelo Recorrido

Lisboa, 15 de outubro de 2025

Júlio Gomes (Relator)

Domingos José de Morais

Mário Belo Morgado

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1. No seu Acórdão de 20 de dezembro de 2017, C-434/15, Elite Taxi c. Uber, o Tribunal de Justiça decidiu que a plataforma eletrónica gerida pela Uber não é um simples intermediário e que esta empresa organiza um serviço de transporte no qual os trabalhadores estão integrados.↩︎

2. No n.º 45 das suas Conclusões no referido processo C-434/15.↩︎

3. EMMANUEL DOCKÈS, Le salariat des plateformes, à propos de l’arrêt TakeEatEasy, Droit Ouvrier n.º 846, 2019, pp. 8 e ss., p. 9. Na doutrina portuguesa cfr., por todos, JOÃO LEAL AMADO e TERESA COELHO MOREIRA, Plataformas digitais, qualificação do contrato e substituição de estafetas: a “bala de prata”?, in Revista Internacional de Direito do Trabalho, ano IV, junho 2024, n.º 6, pp. 135 e ss. e TERESA COELHO MOREIRA, Luzes e sombras: algumas questões sobre a presunção de contrato de trabalho no âmbito da plataforma digital, in Questões Laborais, n.º 63, 2023, pp. 17 e ss.↩︎

4. Tribunal Supremo (Sala de lo Social) 25 de setembro de 2020, STS 2924/2020 (Glovo), ECLJ: ES:TS:2020:2924.↩︎

5. ESPERANZA MACARENA SIERRA BENÍTEZ, Los conductores de UberPop y UberX: trabajadores assalariados, autónomos, empreendedores, cooperativistas o qué?, Los actuales câmbios sociales y laborales: nuevos retos para el mundo del trabajo, dir. por Loudes Mella Méndez e Lavínia Serrani, Peter Lang, Bern, 2017, vol. I, pp. 229 e ss., p. 243: “a dependência tecnológica refere-se à substituição da presença física do trabalhador e do empregador pela presença virtual, graças à utilização da tecnologia digital na prestação dos serviços (neste caso o algoritmo) que se apresenta como uma manifestação mais do poder de controlo do empregador”.↩︎

6. EVA KOCHER, Digital Work Platforms at the Interface of Labour Law, Regulating Market Organisers, Hart, Oxford, New York, Dublin, 2022, p. 88: a digitalização tornou o espaço e o tempo físicos menos importantes para a qualificação de uma relação como sendo de trabalho subordinado.↩︎

7. VALÉRIE LABATUT, Lutter contre l’ubérisation? Vers une présomption de salariat des travailleurs des plates-formes numériques?, Droit Ouvrier 2022, n.º 890, pp. 401 e ss., p. 404.↩︎

8. No mesmo sentido cfr., igualmente, Acórdão do STJ de 17-09-2025, proferido no processo n.º 1914/23.5T8TMR.E2.S1 (Relator Conselheiro Mário Belo Morgado).↩︎

9. No n.º 56 das suas Conclusões no processo C-434/15. Note-se, no entanto, que para o Advogado-Geral (n.º 54 das Conclusões) “a polémica relativa ao estatuto dos condutores face à Uber, que já conduziu a decisões jurisdicionais em alguns Estados‑Membros, é inteiramente alheia às questões jurídicas que estão em causa no presente processo”.↩︎

10. AGATHE GENTILHOMME, Note à Cour de cassation 12 janvier 2022, Le Droit Ouvrier 2022, n.º 890, pp. 410 e ss., p. 412.↩︎

11. EVA KOCHER, ob. cit., p. 90, observa que só a plataforma tem a informação necessária sobre a identidade dos clientes e as suas necessidades; o trabalhador não tem quaisquer oportunidades como empresário sendo que o principal instrumento de trabalho (a aplicação) está nas mãos da empresa.↩︎

12. EVA KOCHER, ob. cit., p. 90.↩︎

13. Também a Cour de cassation francesa, Acórdão de 28 novembro 2018, caso 1737, recurso 17-20.079, ECLI:FR:CCASS:2018:SO01737) e Acórdão de 4 de março de 2020, caso 374, recurso 19-13.316, ECLI:FR:CCASS:2020:SO00374, sublinhou a primazia dos factos e atendeu à geolocalização como mecanismo de controlo da prestação e a existência de um sistema de bónus e, sobretudo, de sanções que equivaliam ao exercício do poder disciplinar.↩︎