Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1273/23.6JAPDL.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ CARRETO
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES AGRAVADO
ESTABELECIMENTO PRISIONAL
TENTATIVA
CONSUMAÇÃO
CO-AUTORIA
Data do Acordão: 10/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIEMNTO
Sumário :
I - Tem sido "entendimento doutrinária e jurisprudencialmente pacífico que o crime de tráfico de estupefacientes é um crime exaurido […], configurando-se o mesmo como um crime em que ocorre "equiparação típica de tentativa e consumação" […], ou seja, por outras palavras, um crime "em que o resultado típico se alcança logo, com aquilo que surge por regra como realização inicial do "iter criminis", tendo em conta o processo normal de actuação (…). O preenchimento do tipo basta-se com a mera actuação do agente, desde que potencialmente criadora de perigo para o bem jurídico protegido pela norma incriminadora.” motivadora da amplitude dos actos/ condutas previstas no artº 21º “cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver”

II - A acção dos intervenientes que agiram no âmbito de um plano concreto de actuação de introdução de estupefaciente no EP, o que veio a ocorrer ( através do arremesso da droga do exterior para o interior do EP), e apenas não chegou  a droga às mãos do destinatário (o arguido) por intervenção da Guarda Prisional que apreendeu o produto quando o arguido se dirigia para dele se apoderar, a conduta do arguido insere-se  numa co-autoria com o terceiro que arremessou a droga para o interior do EP, assim executando cada um a sua parte no plano acordado, ocorrendo a decisão conjunta e a execução conjunta do facto.

III - E sendo co-autor por virtude de ter existido um acordo prévio para a execução integral do crime e a droga haver sido introduzida no EP onde o arguido se encontrava para a apanhar de acordo com o plano traçado, o que procurou fazer, é responsável pela totalidade da conduta criminosa.

IV - Para o preenchimento da qualificativa do artº 24º 1 h) DL 15/93  exige esta norma apenas que a infração (ou seja qualquer um dos actos do artº 21º) tenha sido cometida “em estabelecimento prisional”, e assim a introdução da droga no estabelecimento prisional através do arremesso para o seu interior, preenche tal qualificativa.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência os Juízes Conselheiros na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

No Proc. C.C. n.º 1273/23.6JAPDL.L1.S1 do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores – Juízo Central Criminal de Ponta Delgada – Juiz 3 em que é arguido AA,

Foi por acórdão de 20/2/2024 proferido a seguinte decisão:

“Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Coletivo:

1. Condenar AA pela prática de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes agravado, previsto nos artigos 21º, nº 1 e 24º, alínea h) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-C anexa, na pena agravada de 7 (sete) anos de prisão.

2.Declararam-se perdidas a favor do Estado as substâncias estupefacientes apreendidas e subsequente destruição (artigos 35º, nº1 e 2 e 62º, nº6 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro).

3. Determinar a recolha de amostra de ADN ao arguido e subsequente inserção na base de dados prevista na Lei nº 5/2008, de 12 de fevereiro.

4. Condenar o arguido no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (artigo 8º, nº5 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III Anexa) e honorários nos termos legais.”

Recorreu o arguido, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:

“A. O presente recurso versa sobre o Acórdão que condena o Arguido AA pela prática de um crime de tráfico de substâncias estupefacientes agravado, previsto nos artigos 21º, nº 1 e 24º, alínea h) do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-C anexa, na pena agravada de 7 (sete) anos de prisão.

B. Foram elencadas as condições socioeconómicas e familiares do Arguido, entendendo a defesa que os aspetos aí descritos não terão sido merecedores da devida ponderação por parte do tribunal “a quo”, o que a ter acontecido, importaria numa redução da pena concretamente aplicada.

C. Nas aludidas condições socioeconómicas do Arguido, entendendo a defesa que certos aspetos aí descritos não terão sido merecedores da devida ponderação por parte do coletivo de senhores juízes, o que a ter acontecido, importaria em uma redução da pena por estes aplicada, como sejam os de que o recorrente é, pelo menos desde os seus 15 anos de idade, toxicodependente, é pessoa de muito modesta condição, tem apenas 25 anos de idade, que os cometimentos dos crimes tiveram todos como sua causa a toxicodependência de que padece, sendo de há muito a esta parte os toxicodependentes considerados doentes, que se encontra a cumprir uma pena efetiva.

D. O facto de não se ter considerado a forma tentada no processo, faz com que a tão desejada ressocialização do Arguido se veja seriamente comprometida, restando somente a punição, a qual tendo lugar em meio prisional acarreta consigo sérios riscos.

E. A pena, para além de fazer face às exigências de prevenção geral de revalidação contra fáctica da norma violada, terá que ter em conta as exigências individuais e concretas de socialização do agente, sendo certo que na sua determinação ter-se-á que entrar em linha de conta com a necessidade de evitar a dessocialização do agente, sendo que a aplicação de uma pena de prisão efetiva se mostra, claramente, desajustada em ordem ao desiderato em apreço.

F. A determinação da medida da pena faz-se com recurso ao critério geral estabelecido no artigo 71.º, do Código Penal, tendo em vista as finalidades próprias das respostas punitivas em sede de Direito Penal, quais sejam a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (artigo 40.º, nº 1 do Código Penal), sem esquecer, obviamente, que a culpa constitui um limite inultrapassável da medida da pena (artigo 40.º, nº 2 do Código Penal).

G. Todas as testemunhas afirmaram perante o Tribunal “a quo”, o Arguido não chegou a alcançar qualquer embalagem; não existe prova concreta que permita concluir que a embalagem se destinava ao Arguido; o Arguido explicou perante o Tribunal porque foi intercetado naquele local.

H. Se dúvidas existissem quanto à atuação do Arguido, a mesma poderia, no limite, ser integrada enquanto tentativa. Uma equiparação entre a tentativa e a efetiva consumação são amplamente valoradas contra o Arguido.

I.Pugna a defesa por que se opere uma redução da pena aplicada ao Arguido aqui recorrente, para o mínimo legal previsto, não se dificultando ou mesmo impedindo, quiçá de modo irreversível, a tão desejada reintegração a breve trecho do Arguido na sociedade a que pertence, logrando-sedesse modo não só responder a razões de prevenção geral que ao caso se colocam, como igualmente ás de prevenção geral, repondo-se assim a tão desejada confiança dos concidadãos

J. Todos estes aspetos não foram, contudo, merecedores da quanto a nós, devida atenção porparte doColetivo dos senhores Juízes, violando dessemodo o douto acórdão o vertido nos artigos 40º n.º 1, 50º, 70º nºs 1 e 2, e 71º, todos do Código Penal, bem como o artigo 18.º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, revogar-se a decisão recorrida, reduzindo Vossas excelências a pena de prisão de 7 anos aplicada ao Arguido para o seu mínimo legal.”

Respondeu o Mº Pº pugnando pela sua improcedência

A Relação de Lisboa, para onde foi dirigido o recurso interposto, por decisão sumária de 18/6/2025 foi declarada incompetente.

Neste Supremo Tribunal o ilustre PGA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso

Foi cumprido o disposto no artº 417º2 CPP

Não foi apresentada resposta

Colhidos os vistos procedeu-se à conferência com observância do formalismo legal.

Cumpre apreciar.

Consta do acórdão recorrido (transcrição):

“II. Fundamentação de Facto

1. Factos Provados

Com interesse para a causa, provaram-se os seguintes factos:

1. No dia 23 de novembro de 2023, o arguido, que estava recluso no Estabelecimento Prisional Regional de Ponta Delgada, solicitou, de forma não apurada, a indivíduo não identificado, que estava no exterior do estabelecimento, que fosse atirado para o interior da prisão, para a zona do recreio dos reclusos, uma embalagem com canabis-resina, vulgo haxixe.

2. Pelas 11:20 horas daquele dia, o arguido terá sido avisado do arremesso do produto estupefaciente, e saltou a rede que vedava o acesso às traseiras do ginásio, e começou a saltar uma segunda rede de segurança, que vedava o acesso à parte de trás do ginásio, mas não o conseguiu, por ser visto pelo guarda da torre.

3. O guarda foi ver o local, e deparou com um embrulho retangular, que continha dois pedaços de haxixe, um com 20.458 gramas e outro com 21.069 gramas, e ainda mortalhas de papel.

4. O produto apreendido era bastante para 237 doses individuais para consumo, e o arguido pelo menos em parte destinava-o à venda a outros reclusos, e iria deter o haxixe, não fosse a intervenção dos guardas prisionais; o arguido conhecia as qualidades estupefacientes da substância encomendada, e bem sabia que se encontrava recluso, também pela prática de crime da mesma natureza.

5. O arguido tinha conhecimento que o produto que tinha encomendado e foi apreendido era estupefaciente, que se encontrava recluso em estabelecimento prisional, e que a posse e venda daquela substância naquele estabelecimento lhe estava vedada, porque proibida por lei penal, e ainda prejudicava o processo de integração dos reclusos.

6. Atuou voluntária, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei penal.

7. O arguido foi condenado, por sentença proferida no processo CC 572/20.3 PARGR, na pena de 5 anos de prisão, pela prática de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p.p. no art. 204.º, n.º 2, al. e), do Código Penal, e de um crime de tráfico de estupefacientes, pp no art. 21.º, n. 1, do DL 15/93, de 22 de Janeiro; mas tal pena, que cumpria à data dos factos, não o impediu de praticar um crime mais grave, um crime de tráfico estupefacientes, agravado, previsto e punido no art. 21.º, n. 1, e 24.º, al. h), do DL 15/93, de 22 de Janeiro, dentro do Estabelecimento Prisional onde então estava recluso, o que é de censurar.


*


Das condições pessoais do arguido:

8. AA encontra-se preso pela primeira vez desde 19.12.2022, inicialmente como preventivo, tendo posteriormente iniciado o cumprimento de uma pena de 5 anos por crimes de furto qualificado e tráfico, à ordem do processo 572/20.3PARGR, J3, do Juízo Central Criminal de Ponta Delgada. Aguarda ainda trânsito de uma pena de 7 anos, por crimes de ofensas à integridade física simples, furto e furto qualificado, no âmbito do processo 1099/22.4PARGR, J1, do mesmo Tribunal, à ordem do qual esteve preventivo.

9. No período que antecedeu a sua prisão o arguido residia com a progenitora e duas irmãs, atualmente com 18 e 16 anos de idades respetivamente, encontrando-se o pai em cumprimento de uma pena de prisão, no EP ..., já em fase de benefício de medidas de flexibilização da pena, e com quem o recluso tem tido contactos por meio de videoconferência, através do sistema webex, disponível nos EPs.

10. AA não exercia qualquer atividade profissional ou ocupacional, estando o seu quotidiano centrado na dependência aditiva, privilegiando o convívio com pares com idêntica problemática, não promovendo diligências no sentido de alterar as suas condições de vida.

11. O arguido referencia consumos intensivos de heroína e drogas sintéticas, tendo em duas ocasiões iniciado tratamento, tendo, pelo menos no caso de um deles, abandonado o mesmo poucos dias depois.

12. A progenitora refere que o desajuste comportamental do arguido (consumo de estupefacientes, inatividade laboral, desrespeito pelas regras e orientações da figura parental), teve um impacto acentuado na dinâmica e estabilidade familiar e na perda de emprego por parte da mesma, face às exigências constantes de dinheiro do descendente para aquisição de estupefacientes.

13. AA dependia integralmente do suporte económico familiar, sendo o rendimento da família dependente do trabalho, em part-time, da progenitora e de apoios da segurança social.

14. O processo de socialização do arguido decorreu num contexto familiar marcado pela precariedade económica, tendo 6 irmãos, sendo essencialmente a mãe a manter uma atividade laboral, revelando o pai uma postura por vezes agressiva para com os restantes elementos do agregado.

15. Habilitado com o 6º ano de escolaridade, AA efetuou algumas tentativas de realizar um percurso profissional, no setor da construção civil, com registo de viagens para a Alemanha, Bélgica e Portugal Continental, entre 2018 e 2019, trabalhando como ... e em trabalhos agrícolas, contudo apenas pelo período de alguns meses.

16. O consumo de canábis terá sido iniciado com cerca de 15 anos, em contexto de grupo, quando ainda frequentava a escola. Tais consumos intensificaram-se com o avançar da adolescência, tendo passado a consumir heroína por volta dos 19 anos de idade, e posteriormente drogas sintéticas.

17. O percurso institucional de AA foi inicialmente adaptado, tendo participado em atividades ocupacionais e de manutenção do EP, ..., chegando a iniciar a frequência do 3º ciclo de escolaridade, tendo, todavia, sido excluído por falta de assiduidade às aulas.

18. Foi transferido para o EP ... a 1.05.2024, onde manteve um período inicial de observação, normalmente de 4 meses, durante o qual permaneceu inativo, tendo requerido colocação laboral. Todavia regista incidentes disciplinares, datados de agosto, por apreensão de haxixe (para duas doses)e de outros objetos ilícitos na cela (um rádio e um cartão de utente rasurado de outro recluso e uma prata queimada com uma substância branca que se presume ser estupefaciente). Estes incidentes disciplinares encontram-se ainda pendentes, a aguardar despacho, pelo que o recluso permanece inativo, não reunindo condições para passar a ativo senão quando se passarem 4 meses da data do último incidente disciplinar.

19. AA afirma encontrar-se abstinente desde que foi preso, em dezembro de 2022. Contudo os factos descritos, bem como as circunstâncias em que alegadamente ocorreram os factos de que está indiciado, apontam para uma atualização dos consumos ou pelo menos para uma postura de vida que se moverá em torno desta problemática.

20. Neste EP ainda não foi submetido a testes de despiste de consumos.

21. Já foi julgado e condenado:

a) a 25/01/2022 pela prática de um crime de furto qualificado tentado a 24/01/2022, na pena de 14 meses de prisão, substituída por 420 horas de trabalho;

b) a 15/07/2022 pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes a 08/2020 e de um crime de furto qualificado a 31/01/2022, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa com regime de prova, entretanto revogada;

c) a 04/10/2022 pela prática de um crime de furto simples a 17/01/2022 na pena de 60 dias de multa;

d) a 04/04/2024 pela prática de um crime de furto qualificado tentado a 08/10/2022, de um crime de furto qualificado a 26/09/2022, de um crime de furto qualificado a 12/12/2022, de um crime de furto qualificado a 20/10/2022, de um crime de violência depois da subtração a 12/11/2022, de um crime de furto qualificado a 15/11/2022, de um crime de furto qualificado tentado a 08/10/2022, de um crime de furto qualificado tentado a 10/10/12022, de um crime de furto simples a 12/09/2022 e de um crime de furto qualificado a 07/01/2022, na pena de 7 anos de prisão.


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2. Factos Não Provados

Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que:

a) O embrulho continha o nome do arguido manuscrito.


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3. Motivação

O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum, conforme dispõe o artigo 127º do Código de Processo Penal.

Foram assim valoradas as declarações prestadas pelo próprio arguido, conjugadas com o depoimento prestado pelas testemunhas BB, CC, DD, EE (guardas prisionais), FF (inspetor da Polícia Judiciária) e com a prova documental, a saber, comunicação de notícia de crime (fls.1-6), auto de apreensão (fls. 42), auto de pesagem e despistagem (fls. 43), documento manuscrito que envolvia o produto estupefaciente (fls. 45), auto de exame (fls. 46/52), comunicação de notícia de crime (fls. 32/3), relatório de notícia (fls. 37/41), certidão da decisão transitada a 15-12-2022, do processo 572/20.3 PARGR, que determinou o cumprimento efetivo da pena de prisão (fls. 118-120) e relatório de análises laboratoriais efetuados ao arguido em estabelecimento prisional.

Mais se atendeu ao relatório de exame toxicológico (fls. 77).

Concretizando, o arguido negou a prática dos factos, dizendo que apenas se deslocou àquele local para ir buscar a bola de futebol e enfatizando que ninguém, com exceção da sua mãe, conhece o seu nome completo, pelo que o nome foi ali colocado depois.

Efetivamente, o guarda CC, num depoimento marcadamente isento, explicou-nos que foi ao local a que o arguido estava a tentar aceder, tendo encontrando um embrulho retangular, sem qualquer identificação, encontrando-se envolto com uma fita cola amarelada. Assim, e tendo surgido dúvida sobre o documento manuscrito junto a fls. 45, o Tribunal chamou oficiosamente o inspetor FF, que procedeu à abertura da embalagem, o qual nos explicou que o embrulho se encontrava, efetivamente, envolto com fita-cola e que, a protegê-lo, estava o manuscrito com o nome do arguido, pelo que supõe que tal foi escrito na prisão, o que vai de encontro ao que nos disse CC: o embrulho não continha qualquer identificação.

Pese embora a embalagem não tivesse o nome do arguido manuscrito, conforme mencionava a acusação, não temos qualquer dúvida em como a mesma era dirigida àquele, atento o depoimento prestado, de forma manifestamente isenta, objetiva e espontânea, pelos guardas BB, CC e DD, os quais nunca tiveram qualquer problema com o arguido (como este confirmou). Disse-nos DD que viu o arguido a saltar para um local de acesso interdito aos reclusos, e onde foram colocadas duas redes (pois para ali são frequentes os arremessos de objetos vindo do exterior), motivo pelo qual avisou logo o seu colega BB. Por seu turno, BB acrescentou que ainda viu o arguido a saltar a primeira rede e, por esse motivo, foram revistá-lo por desnudamento, nada tendo encontrado. Contudo, indo um guarda inspecionar o local em causa (CC) foi encontrado o embrulho em causa. Mais acrescentaram os guardas BB e DD de que a bola esteve sempre no campo de futebol e nunca naquele local (o que se recordam por o arguido lhes ter dito, aquando da revista, que ia apenas buscar a bola), tendo CC acrescentando que “apenas existe uma bola e estava a ser usada no campo”. Pelo exposto, e tendo o arguido tentado aceder a um local de acesso vedado aos reclusos, para onde são constantemente arremessados embrulhos vindos do exterior, e tendo sido encontrado, logo a seguir à sua tentativa de acesso, o embrulho em causa, não temos quaisquer dúvidas em como o arguido pretendia deitar a mão àquele pacote e utilizar a respetiva substância para venda e/ou cedência no estabelecimento prisional, tanto mais que nos declarou que já não é consumidor (conforme, aliás, atesta o relatório de análises).

Relativamente ao elemento subjetivo estando demonstrados os factos supra descritos, valorou igualmente o Tribunal as regras da normalidade e da experiência comum, conjugadamente com todos os meios de prova produzidos, ficando assim convencido que o arguido, enquanto “Homem médio” (nenhuma prova foi feita no sentido de que o mesmo não se insere nesta categoria de homens – tal como decorre do relatório social, acrescendo que compreendeu bem todas as perguntas que lhe foram feitas), sabe perfeitamente que não pode adquirir, deter, guardar, transportar, vender, ceder produto estupefaciente, e que fazendo-o está a praticar um crime (tanto mais que já foi condenado pela prática de tal crime). Mais sabe que, ao adotar o comportamento descrito, com a sua atuação perturbava o processo de ressocialização dos reclusos, uma vez que facilitava o acesso a substâncias estupefacientes e contribuía para o transtorno da ordem e organização do Estabelecimento Prisional de Ponta Delgada, o que quis. E sabendo disso o Homem médio, disso sabe o arguido. Por conseguinte, se o Homem médio decide, sabendo do exposto, adquirir, deter, guardar, transportar, ceder e vender produto estupefaciente, fá-lo porque quer, o que ocorreu também com o arguido, que não demonstrou não estar incluído na categoria da generalidade dos homens. Acresce que em situações como a dos autos, dizem-nos as regras da experiência comum e da normalidade, que o agente age de forma livre, voluntária e consciente, sendo certo que nenhuma prova se fez no sentido de que o arguido não agiu, nos termos descritos, livre, deliberada e voluntariamente.

Os factos da reincidência resultam não só da prova documental, como das regras da normalidade e da experiência comum, conjugadas com o relatório da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, donde se infere que a condenação anterior não serviu de suficiente advertência ao arguido, que, em pleno cumprimento de pena, repete os mesmos atos, sendo de censurar a sua conduta.

Para a situação pessoal e económica do arguido, o Tribunal relevou o relatório elaborado pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais e, por fim, atendeu-se ao certificado de registo criminal juntos aos autos.

Já o facto não provado resulta do já supra exposto. “


+


O recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), sem prejuízo de ponderar os vícios da decisão e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/12 e 7/95 de 19/10/ 95 este do seguinte teor: “ é oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº2 do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) e do conhecimento dos mesmos vícios em face do artº 432º1 a) e c) CPP (redação da Lei 94/2021 de 21/12) mas que, terão de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo”, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100, constituindo a “revista alargada”, pelo que são as seguintes as questões a conhecer:

Competência deste Supremo Tribunal

Qualificação jurídica do facto

Medida da pena


+


Porque prejudicial ao conhecimento das questões recursivas, importa solucionar a questão da competência deste Supremo Tribunal face à declaração de incompetência do Tribunal da Relação para conhecer do recurso.

Apreciando.

O nosso entendimento é o de que efectivamente é competente o Supremo Tribunal para conhecer do recurso interposto.

Na verdade dispõe o artº 432º 1 c) CPP que: “1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça: (…)

c) De acórdãos finais proferidos … pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;”

Ora tendo sido proferido acórdão pelo tribunal colectivo e o arguido condenado na pena de 7 anos de prisão e estando apenas em causa matéria de direito (a medida da pena aplicada), é o Supremo Tribunal o competente para apreciar o presente recurso, e o mesmo entendimento seria se o arguido no seu recurso alegasse como fundamento os vícios da decisão e nulidades não sanadas, do artº 410º 2 e 3 CPP1

Pelo que há que considerar competente este Supremo Tribunal

Apesar de fazer referência a erradas valorações de prova, invoca o arguido na motivação o erro notório na apreciação da prova, o que se enquadraria nos poderes de conhecimento deste Tribunal. Todavia o que alega na motivação não insere nas conclusões, onde não consta como questão de recurso e de conhecimento o indicado vicio, o que implica que o mesmo está fora do âmbito do recurso uma vez que são estas que o delimitam2. Como expressa o ilustre PGA no seu parecer: “não vemos nas conclusões apresentadas pelo recorrente nem a invocação de um erro–vício previsto pelo artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nem, muito menos, uma impugnação da matéria de facto,” e acrescenta “Que assim é parece–nos decorrer com evidência da indicação pelo recorrente dos normativos violados, que se atêm todos à determinação da medida da pena aplicada.”

Mesmo sendo assim, em face do conhecimento oficioso de tais vícios da decisão, importa ponderar a sua existência.

Vista a alegação do recorrente e o acórdão recorrido, não vislumbramos nele o apontado vicio por parte do recorrente que ressalte, como impõe o artº 410º 2 CPP “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regra das experiencia comum” quer se refira ao vicio em si mesmo considerado quer como violação do principio in dubio pro reo para cuja análise e expressão reveladora se segue o mesmo método cognitivo pois como erro-vicio deve ser analisado.

Improcede assim esta questão.

No que respeita à medida da pena, invocando as exigências de prevenção e a finalidade de ressocialização alega o recorrente que não foram devidamente valoradas a seu favor as circunstâncias de ser “pelo menos desde os seus 15 anos de idade, toxicodependente, é pessoa de muito modesta condição, tem apenas 25 anos de idade, que os cometimentos dos crimes tiveram todos como sua causa a toxicodependência de que padece, sendo de há muito a esta parte os toxicodependentes considerados doentes” e que estaríamos perante uma tentativa do ilícito em causa, porque não chegou a alcançar qualquer embalagem e em seu entender não existir prova de que a droga se destinasse a si. Pede a fixação da pena no limite mínimo.

Questionando deste modo a qualificação do ilícito em causa como tentativa ou consumação, importa proceder à sua consideração. É questão que o tribunal recorrido não tratou e que surge por esta via em recurso. O arguido socorre-se do acórdão do STJ de 24/2/2022 proc. 42/16.4GDCTX.L1-A.S1 que visava a fixação de jurisprudência3 e em que o “ Acórdão-Fundamento se propôs responder foi a figuração da tentativa do crime de tráfico agravado pela al.ª h) do art.º 24º do Decreto-Lei n.º 15/93 quando os actos efectivamente executados já representam condutas típicas consumadas da previsão do tipo-base do art.º 21º n.º 1” em que no entender deste estaríamos perante uma tentativa do crime agravado em consumação impura com o crime base do artº 21º, quando o acto final visado (a venda do estupefaciente na cadeia) não chega a ocorrer.

Sobre a existência ou não de tentativa neste tipo de ilícito “tem sido "entendimento doutrinária e jurisprudencialmente pacífico que o crime de tráfico de estupefacientes é um crime exaurido […], configurando-se o mesmo como um crime em que ocorre "equiparação típica de tentativa e consumação" […], ou seja, por outras palavras, um crime "em que o resultado típico se alcança logo, com aquilo que surge por regra como realização inicial do "iter criminis", tendo em conta o processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente a consumo (…) e “ a razão de ser de tal natureza intrínseca do ilícito resulta da circunstância de o bem jurídico tutelado no crime de tráfico de estupefacientes ser a saúde pública, no sentido amplo do termo, pelo que os actos abrangidos na previsão normativa configuram-no como um crime de perigo abstracto, o que significa que não é pressuposto da sua existência, nem a verificação de um dano, nem de um efectivo resultado. O preenchimento do tipo basta-se com a mera actuação do agente, desde que potencialmente criadora de perigo para o bem jurídico protegido pela norma incriminadora.”4 e daí a amplitude actos/ condutas previstas no artº 21º “cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver”

Todavia esta questão é no contexto dos autos, quer-nos parecer, deslocada, porquanto temos a actuação dos intervenientes que agiram no âmbito de um plano concreto de acção de introdução de estupefaciente no EP, o que veio a ocorrer, e apenas não chegou este estupefaciente às mãos do destinatário (o arguido) por intervenção da Guarda Prisional que apreendeu o produto quando o arguido se dirigia para dele se apoderar, pelo que a conduta do arguido se insere numa co-autoria com o terceiro que arremessou a droga para o interior do EP, assim executando cada um a sua parte no plano acordado, donde ocorre a decisão conjunta e a execução conjunta do facto ( artº 26º CP).

Isso mesmo ressalta dos factos provados, em que o elemento (co-autor) exterior ao EP arremessou para o interior do EP a droga e este (co autor- arguido) ao saber do facto dirige-se ao local para onde a droga fora arremessada para a apanhar.

Assim o arguido deteve, através do co-autor, que arremessou a droga para o EP.

Para o preenchimento da qualificativa do artº 24º 1 h) DL 15/93 exige esta norma apenas que a infração (ou seja qualquer um dos actos do artº 21º) tenha sido cometida “em estabelecimento prisional”, e assim a introdução da droga no estabelecimento prisional através do arremesso para o seu interior, onde foi apreendida, preenche tal qualificativa.

E sendo co-autor por virtude de ter existido um acordo prévio para a execução integral do crime e a droga haver sido introduzida no EP onde o arguido se encontrava para a apanhar de acordo com o plano traçado, o que procurou fazer, é este responsável pela totalidade da conduta criminosa, estabelecendo o art.º 26º do C. Penal que “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.”

Está assim em causa o crime p.p. pelo artº 24º a1. h) DL 15/93 consumado que comina tal conduta com a pena de 5 a 15 anos de prisão.

Como circunstância agravante ocorre ainda no contexto dos autos a agravante da reincidência pelo que sobre a moldura penal citada, acresce um terço ao limite mínimo pelo que a moldura penal é de 6 anos e 8 meses a 15 anos (mantendo-se o limite máximo inalterado – artº 76º 1 CP).

Vejamos então se a pena deve ser reduzida por ser excessiva.

Como decorre do acórdão recorrido, o tribunal ponderou as exigências de prevenção geral (que considera extremamente elevadas face à ocorrência frequente deste tipo de ilícitos, sendo preocupante o seu nível na ilha açoriana) e de prevenção especial, e a culpa do arguido (elevada) agindo com dolo directo e sem “ignorar, ainda, o seu rol de antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza. A favor do arguido, temos a sua juventude, mas não podemos ignorar que aquele já beneficiou de medidas probatórias que não surtiram qualquer efeito, tendo o regime de prova sido revogado.”

Do transcrito se vê não apenas que os fatores elencados pelo recorrente se mostram ponderados, bem como a observância das regras e princípios sobre a determinação da medida da pena e ainda que foram observadas as circunstâncias provadas do artº 71º CP, tal como não se mostra que tenham sido ponderadas circunstâncias que não o devessem ser, ou deixadas de ponderar circunstâncias que o devessem ser a favor do arguido. Na verdade se o arguido foi consumidor de droga, não parece que ora o seja ainda e tratado a tal adição por duas vezes, este tratamento não apenas não surtiu efeito como foi pelo mesmo abandonado, sendo que um doente apenas pode ser tratado se ele o quiser, pelo que sendo factores da sua personalidade, têm interferido negativamente na sua conduta e logo na apreciação do seu comportamento, o que lhe seria desfavorável e, depois o seu modo de vida e conduta prisional inculcam toda uma ausência de vontade de mudar de rumo e de tudo fazer para a sua recuperação e reinserção social. Daqui decorre que os factos positivos que poderiam beneficiar o arguido foram ponderados a seu favor, e tendo em conta a moldura penal em que incorre o arguido em que o mínimo legal é de 6 anos e 8 meses, não se pode deixar de concluir que a pena de 7 anos de prisão ( 4 meses apenas a cima daquele limite mínimo) não ofende os princípios da adequação e proporcionalidade que devem reger a aplicação das penas privativas da liberdade (artº 18º1 CRP) dentro das medidas legalmente fixadas.

Improcede assim também esta questão e com ela o recurso.


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Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça decide:

Julgar improcedente o recurso do arguido AA, e em consequência mantém a decisão recorrida.

Condenar o arguido na taxa de justiça que fixa em 6 UC, e nas demais custas (artº 513º CPP e Tabela III RCJ).

Notifique e DN


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Lisboa e STJ, 15/10/2025

José A.V. Carreto (relator)

Carlos Campos Lobo

J.L. Lopes da Mota

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1. “2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

  a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

  b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

  c) Erro notório na apreciação da prova.

  3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”

2. GMarques da Silva, Curso de Proc Penal III, Verbo 2009, pág 347

3. Que foi rejeitado por não existir “identidade substancial da factualidade subjacente aos acórdãos em confronto”

4. No ac. para fixação de jurisprudência citado.