Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
| Descritores: | DOAÇÃO DIVÓRCIO COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS DIREITO DE PROPRIEDADE CASA DE MORADA DE FAMÍLIA TERRENO BEM PRÓPRIO CONSTRUÇÃO BENFEITORIAS IMOVEL BEM COMUM DO CASAL PARTILHA COMPENSAÇÃO ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA | ||
| Data do Acordão: | 11/25/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | REVISTA PROCEDENTE | ||
| Sumário : | Tendo o ex-casal construído, com bens comuns, uma moradia em terreno que era bem próprio da ré (por doação dos seus pais antes do casamento), essa moradia, após o divórcio, deve ser tratada como bem próprio da ré, tendo o autor um “crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial”, segundo o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2025. | ||
| Decisão Texto Integral: | Processo n.º 599/20.5T8PVZ.P1.S1 Recorrente: AA Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO 1. BB propôs ação declarativa de processo comum contra AA, na qual formulou os seguintes pedidos: «a) se declare que ele e a Ré são comproprietários, na proporção de metade para cada um, do prédio identificado nos artigos 2º e 14º a 19º da petição, condenando-se a Ré a reconhecer essa compropriedade; b) assim não se entendendo, se declare que esse prédio integrava o património comum de ambos, porque adquirido na constância do casamento; c) ordenar-se o cancelamento dos registos que contendam com o direito pedido da alínea anterior; d) declarar-se que é dono e legítimo possuidor dos móveis identificados nos artigos 28 a 38 e 65 desta petição, condenando-se a Ré a restituir-lhos em excelente estado de conservação.» 2. A primeira instância julgou a ação improcedente, absolvendo a ré dos pedidos. 3. O autor interpôs recurso de apelação, no qual teve sucesso, tendo o TRP proferido acórdão com o seguinte dispositivo: «Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta parcialmente procedente, por provada e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida declara-se que o prédio identificado nos artigos 2º e 14º a 19ª da petição inicial por ser um bem comum integra o património de Autor e Ré e ordena-se o cancelamento dos registos que contendam com este direito. No mais mantém-se a decisão recorrida.» 4. A ré interpôs recurso de revista, formulando nas suas alegações as seguintes conclusões: «A) Atenta a matéria dada como provada e não impugnada, os pedidos formulados em A) e B) da P.I. deveriam, como o foram, serem julgados improcedentes. B) Nunca o Tribunal pode ordenar o cancelamento do registo, na medida em que tal afeta interesses de terceiros. C) Não foi colocado em causa a validade e a legalidade da doação, identificada em 9) da matéria de facto dada como provada. D) Foi dado como NÃO PROVADO que as declarações constantes do contrato de doação não correspondem à realidade e que foi adquirida em compropriedade por A. e R. – vide I, II, III, IV V do elenco dos factos NÃO PROVADOS. E) Não existe, assim, fundamento para o cancelamento do registo tal como o fez o Doutro Acórdão. F) O cancelamento do registo padece da inexistência de fundamento para tal, sendo que, no mínimo, o Acórdão em recurso não indica o fundamento. G) Razão pela qual, salvo todo o respeito, ocorre nulidade por falta de fundamentação. Cfr. artigo 615º 1 b) e c) do C.P.C. H) O alegado em sede de recurso de Apelação e o constante no Douto Acórdão difere da causa de pedir e dos pedidos formulados na P.I., representando verdadeiras questões novas – o que salvo o devido respeito não pode acontecer. I) Sempre a obra realizada apenas pode ser classificada como de benfeitoria. J) Não foi feita prova de que o terreno doado era também propriedade do A. K) Sempre em sede de tentativa de conciliação, realizada no processo de divórcio, foi a casa de morada de família (que engloba os móveis) adjudicados à R. L) Fez, assim, o Douto Acórdão uma errada aplicação do direito; violou o disposto nos artigos 1º, 2º, 10º, e 13º do Código de Registo Predial, artigos 265º, 607º 3 e 4 do C.P.C; deve, pois, ser revogado mantendo-se se a Sentença de 1ª Instância, fazendo-se assim justiça.» 6. O recorrido respondeu, sustentando, em síntese, o decidido pelo acórdão recorrido. 7. Os autos estiveram suspensos a aguardar a prolação e trânsito em julgado da decisão respeitante à revista ampliada n.º 985/20.0T8VCD-B.P1.S1, que originou o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2025 (publicado no Diário da República em 10.09.2025). Cabe apreciar. * II. FUNDAMENTOS 1. Admissibilidade e objeto da revista 1.1. Verificando-se os requisitos gerais de recorribilidade (art.º 629.º, n.º 1 do CPC) e tendo o acórdão recorrido revogado a decisão da primeira instância, em sentido desfavorável à recorrente, a revista é admissível nos termos do artigo 671.º, n.º 1 do CPC. 1.2. O objeto central da revista é (tal como o objeto da apelação) o de saber se o imóvel (moradia) construído com recursos comuns, na constância do casamento, em terreno próprio da ré, deve ser considerado, após a dissolução desse casamento por divórcio, bem próprio da ré (agora recorrente) ou bem comum como pretende o autor (agora recorrido). A recorrente, nas conclusões das suas alegações de revista, invoca ainda a nulidade do acórdão recorrido, por entender que a decisão sobre o cancelamento do registo do imóvel em causa não se encontraria devidamente fundamentada. Todavia, essa é uma questão que só terá relevo normativo autónomo em caso de confirmação do acórdão recorrido (porque pressupõe essa confirmação), ficando prejudicada na hipótese contrária. 2. A factualidade assente: As instâncias deram como provada a seguinte factualidade: «1) BB (ora Autor) casou com AA (ora Ré) no dia 15-05-2004, sem convenção antenupcial. 2)- Em 10-12-2018, a ora Ré instaurou processo de divórcio contra o ora Autor, processo que correu termos sob o n.º ............TS. 3)- No âmbito do processo n.º ............TS, por sentença proferida em 11-02-2019, já transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre ora Autor e a ora Ré. 4)- Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...........30, da freguesia de Santo Tirso, um imóvel composto por parcela de terreno para construção, com a área total e descoberta de 602 m2, sito em ..., a confrontar do Norte com caminho público, do Sul com CC, do nascente com DD e do poente com EE, desanexado do ..........86, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..62. 5)- Pela apresentação n.º 27, de 30-08-2001, foi definitivamente inscrita a aquisição, por doação, a favor de AA (ora Ré), solteira, maior, do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...........30. 6) Pela apresentação n.º 36, de 28-06-2002, foi definitivamente inscrita uma hipoteca a favor de Caixa Geral de Depósitos, S. A., quanto ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...........30, para garantia do empréstimo concedido a AA (ora Ré) e BB (ora Autor), pelo montante máximo de 90.395,00 Euros. 7)- Pela apresentação n.º 2, de 09-12-2002, foi definitivamente inscrita uma hipoteca a favor de Caixa Geral de Depósitos, S. A., quanto ao imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ...........30, para garantia do empréstimo concedido a AA (ora Ré) e BB (ora Autor), pelo montante máximo de 18.079,00 Euros. 8)- O imóvel inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..62 encontra-se atualmente inscrito sob o artigo ..03. 9)- No dia 20-08-2001, foi outorgada escritura pública intitulada “DOAÇÃO” – com o teor que consta do documento 5 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido –, pela qual, por DD e FF foi dito, entre o mais o seguinte: “Que, pela presente escritura e por conta das suas quotas disponíveis, doam à Segunda Outorgante [AA], sua filha, o prédio urbano composto por uma parcela de terreno, com a área de seiscentos e dois metros quadrados, a confrontar do norte com caminho público, sul com CC, nascente com DD e poente com EE, sito no lugar de ..., freguesia e concelho de Santo Tirso, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..62, com o valor tributável e atribuído de dois milhões oitocentos e setenta e nove mil novecentos e sessenta e oito escudos;… 10)- Tendo AA [Segunda Outorgante] declarado “que aceita esta doação, nos termos exarados”; 11) O imóvel supra referido situa-se na Rua 1, ..., Santo Tirso. 12)- Entre 2001 e data ulterior a 15-05-2004, BB (ora Autor) e AA (ora Ré) edificaram no imóvel supra referido uma casa destinada a sua habitação. 13)- O projeto de arquitetura dessa casa foi da responsabilidade de GG, irmão do ora Autor. 14)- O projeto e as responsabilidades inerentes da obra tinham o valor de € 6.000,00. 15)- O valor acabado de referir não foi cobrado por GG, irmão do ora Autor. 16)- Após a conclusão da obra, a casa de habitação ficou com uma área de 248,42 m2 e anexos com uma área de 14,79 m2. 17)- A casa edificada é constituída por rés-do-chão com 1 suite (com quarto de banho), 3 quartos, 1 sala de estar e 1 sala de jantar, cozinha, copa, lavandaria e garagem, e um desvão, a nível superior, com 18,40 m2, destinado a escritório. 18)- A área descoberta é constituída por um deck em madeira, entradas pavimentadas e escadas em granito e jardim. 19)- Os portões de entrada são em ferro. 20)- Os portões de entrada foram colocados por volta do ano de 2008. 21)- Esses portões foram fabricados e colocados por HH & Filhos, Lda., pelo preço de € 6.000,00. 22)- A execução das artes – com exceção da arte de carpinteiro – que integram as obras realizadas foram pagas com dinheiro do Autor e da Ré, tendo estes despendido a quantia global de € 110.000,00 € 23) Sendo € 35.000,00 provenientes de uma conta bancária conjunta que ambos possuíam; € 62.500,00 obtidos através de um empréstimo bancário concedido a ambos pela Caixa Geral de Depósitos, S. A.; e € 12.500,00 obtidos através de um outro empréstimo bancário concedido a ambos pela Caixa Geral de Depósitos, S. A.. 24)- A arte de carpintaria executada na casa de habitação compreende todas as estruturas em madeira, nas portas, janelas, soalhos, móveis embutidos, rodapés e lambrins, e respetivos materiais acessórios, que foram aplicados nos quartos, casas de banho, no hall, nas salas de estar e de jantar, no escritório e zonas exteriores. 25)- Esta obra de carpintaria foi executada com trabalho do Autor, ajudado por seu pai e pelos irmãos II e JJ. 26)- A sociedade BB, Lda. fabricou móveis que foram utilizados para mobilar a casa edificada pelo Autor e pela Ré. 27)- BB (ora Autor) e AA (ora Ré) edificaram a casa supra referida e lá habitaram desde o seu casamento até ao seu divórcio; 28)- Sem qualquer oposição; 29)-Perante toda a gente; 30)- Sem qualquer hiato temporal; 31)- E com exclusão de outrem. 32)- O terreno supra referido tem o valor de € 70.000,00; 33)- E a casa edificada pelo Autor e pela Ré nesse terreno tem o valor de € 220.000,00.» 3. O direito aplicável: 3.1. Como consta da factualidade provada, o autor e a ré foram casados em comunhão de adquiridos, tendo construído uma moradia, na constância do casamento, em terreno próprio da ré. Após a dissolução do casamento por divórcio, e para efeitos de partilha, o autor entende que essa construção deveria ser tratada como bem comum; e a ré entende que deveria ser considerada como bem próprio dela (por dela ser o terreno onde a moradia foi construída). A primeira instância deu razão à ré. Diversamente, o acórdão recorrido entendeu que a construção não devia ser considerada bem próprio da ré, mas sim bem comum, por, em síntese, ter valor superior ao valor do terreno. As decisões das instâncias espelham diferentes correntes jurisprudenciais e doutrinais que, ao longo do tempo, se formaram sobre casos semelhantes ao que está em causa nos presentes autos. A questão foi, entretanto, alvo de uniformização de jurisprudência pelo STJ, através do AUJ n.º 9/2025, pelo que, sem necessidade de reproduzir essas diferentes orientações, se remete para a fundamentação dessa decisão, a qual aqui se subscreve. 3.2. O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2025, publicado no Diário da República em 10.09.2025 (correspondente à revista ampliada n.º 985/20.0T8VCD-B.P1.S1), fixou a seguinte jurisprudência: «A obra edificada (casa de morada de família) por dois cônjuges, casados no regime da comunhão de bens adquiridos, com dinheiro ou bens comuns, em terreno próprio de um deles, constitui coisa nova que é bem próprio do cônjuge titular do terreno e dá lugar a um crédito de compensação do património comum sobre o património do dono da coisa nova, com vista à reposição do equilíbrio patrimonial.» Esta uniformização de jurisprudência não veio, assim, a acolher a corrente interpretativa que havia sido seguida pelo acórdão recorrido. 3.3. O acórdão recorrido, depois de expor as diferentes correntes doutrinais e jurisprudenciais sobre o problema em causa, fez a sua opção decisória nos termos que, em síntese, se extratam: «Passando ao caso concreto, o que se verifica é que após a conclusão da obra, a casa de habitação implantado no terreno em questão ficou com uma área de 248,42 m2 e anexos com uma área de 14,79 m2, sendo constituída por rés-do-chão com 1 suite (com quarto de banho), 3 quartos, 1 sala de estar e 1 sala de jantar, cozinha, copa, lavandaria e garagem, e um desvão, a nível superior, com 18,40 m2, destinado a escritório, 18) sendo a área descoberta constituída por um deck em madeira, entradas pavimentadas e escadas em granito e jardim, tem o valor de € 220.000,00 (duzentos e vinte mil euros) e o terreno tem o valor de € 70.000,00 setenta mil euros) [cfr. pontos 16), 17), 18), 329 e 33) da resenha dos factos provados]. Resulta também dos factos provados que a execução das artes – com exceção da arte de carpinteiro – que integram as obras realizadas foram pagas com dinheiro do Autor e da Ré, tendo estes despendido a quantia global de € 110.000,00 €, sendo € 35.000,00 provenientes de uma conta bancária conjunta que ambos possuíam; € 62.500,00 obtidos através de um empréstimo bancário concedido a ambos pela Caixa Geral de Depósitos, S.A.; e € 12.500,00 obtidos através de um outro empréstimo bancário concedido a ambos pela Caixa Geral de Depósitos, S. A. [cfr. pontos 22) e 23) dos factos provados]. Diante do exposto temos, assim, que considerar que a mencionada casa foi adquirida e construída em parte com dinheiro ou bens próprios da Ré mulher e em parte com dinheiro ou bens comuns. Ora, face aos elementos factuais que constam do processo, o que se verifica é que a prestação dos bens comuns é significativamente superior à prestação dos bens próprios na contribuição para a aquisição/construção dessa casa. Por conseguinte, tendo em atenção a regra do referido artigo 1726.º do CCivil, há que considerar o imóvel dos autos como bem comum. Contudo, no n.º 2 deste mesmo preceito estabelece-se que “fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão”. Normativo este que, à semelhança de outros, representa um afloramento do princípio geral que obriga à compensação das deslocações patrimoniais ocorridas entre os patrimónios próprios dos cônjuges e entre estes e os patrimónios comuns, gerando um verdadeiro direito de crédito de compensação a favor do titular do património empobrecido. Há como que um acerto de contas entre as (diversas) esferas patrimoniais no momento da partilha (cfr. artigo 1689.º do CCivil). Procedem, assim, em parte as conclusões 1.ª a 46.ª formuladas pelo apelante e, com elas, o respectivo recurso.» 3.4. O acórdão recorrido solucionou o caso sub judice, essencialmente, por aplicação do disposto no artigo 1726.º do Código Civil. Diversamente, o referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência afastou a aplicação da solução constante do artigo 1726.º do CC a casos como o dos presentes autos, o que foi justificado, em síntese, nos seguintes termos: «(…) julga-se que é de rejeitar a aplicação, às situações como a descrita nos autos, do disposto no artigo 1726.º do Código Civil. Esta norma tem em vista a aquisição onerosa de bens pelo casal, na pendência do matrimónio. Isto é, está em causa a aquisição de bens a terceiros, mediante o pagamento, pelos cônjuges, com bens ou dinheiro próprio de um dos cônjuges e bens ou dinheiro comum do casal. O artigo 1726.º visa afastar o resultado paradoxal a que se chegaria se se aplicasse a regra da sub-rogação aos casos em que um bem fosse adquirido pelo casal com recurso simultâneo a bens próprios e bens comuns: o bem seria parcialmente comum e parcialmente próprio — o que repugnaria ao princípio da especialização ou individualização dos direitos reais. Essa é uma realidade diversa da construção de um edifício num terreno próprio de um dos cônjuges. Não se descortina, na letra e na teleologia do preceito, o intuito e a vocação para a definição do estatuto jurídico da realidade constituída pela adjunção/incorporação, na pendência do matrimónio, pelos cônjuges, de coisas ou materiais, provenientes do exterior da esfera matrimonial, a coisas já nela integradas, nomeadamente a título de bens próprios. A aplicação, ao caso em espécie, do artigo 1726.º, poderia acarretar a alteração da natureza do terreno, que de bem próprio passaria a integrar a massa dos bens comuns — colidindo com o princípio da imutabilidade do regime de bens (artigo 1714.º do Código Civil). Dito de outro modo, o cônjuge deve estar livre da possibilidade de, na sequência das vicissitudes próprias da vivência familiar, um bem que integrava o seu património exclusivo (in casu, o terreno que lhe foi doado), mudar de estatuto, podendo, no final da liquidação do património matrimonial, acabar no seio do património do outro ex-cônjuge, na sequência de licitações admissíveis sobre bens supervenientemente qualificados de comuns. Tal risco é tanto mais relevante quanto o matrimónio é, cada vez mais, uma relação jurídica perene. A aplicação do artigo 1726.º operaria como uma forma encapotada de acessão industrial (in casu, na modalidade, porventura, de acessão industrial imobiliária invertida, prevista no artigo 1340.º n.º 1 do Código Civil) figura que não deve atuar no seio da instituição matrimonial, entre os cônjuges. (…) Afirma-se ainda no referido AUJ 9/2025: «(…) crê-se que a edificação de uma moradia, com bens ou dinheiro comuns, por um casal unido em regime de comunhão de adquiridos, num terreno que é bem próprio de um dos cônjuges, não constitui uma benfeitoria: mais do que constituir a melhoria de uma coisa, consubstancia a criação de uma coisa nova (…)» E acrescenta (no caminho da solução adotada) que: «Não sendo a edificação uma benfeitoria, nem sendo aplicável a regra da acessão prevista no artigo 1340.º do Código Civil, prevalecerá, isto é, atuará diretamente o princípio dos direitos reais, maxime no que concerne ao direito da propriedade, da especialização ou individualização. O direito real incide sobre coisas únicas e individualizadas (José Alberto Vieira, Direitos Reais, ob. citada, páginas 216 a 225). Em princípio, o direito real não incide apenas sobre partes de uma coisa, mas sobre a totalidade desta, dotada de autonomia (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direitos Reais, 2022, 10.ª edição, Almedina, páginas 24 a 26 – aqui mencionando este autor o subprincípio da autonomização ou da totalidade). É o que decorre de norma como a contida no artigo 408.º n.º 2, parte final, do Código Civil (“Se a transferência [de direito real sobre coisa determinada] respeitar a coisa futura ou indeterminada, o direito transfere-se quando a coisa for adquirida pelo alienante ou determinada com conhecimento de ambas as partes, sem prejuízo do disposto em matéria de obrigações genéricas e do contrato de empreitada; se, porém, respeitar a frutos naturais ou a partes componentes ou integrantes, a transferência só se verifica no momento da colheita ou separação”). E também nesse sentido operam a acessão e o regime das benfeitorias. É sabido que em certos casos se podem constituir direitos reais autónomos sobre partes de coisa, como na propriedade horizontal, que incide sobre frações autónomas de um prédio (artigo 1414.º do Código Civil) ou no direito de superfície, em que alguém é titular de um implante em prédio alheio (artigo 1524.º do Código Civil). Pode igualmente constituir-se hipotecas separadas das partes do prédio suscetíveis de propriedade autónoma (artigo 688.º, n.º 2, do Código Civil). Nesses casos, no entanto, o legislador autonomiza essas partes como objeto autónomo do direito real, o que não afeta a solução geral de o direito real ter de abranger a totalidade (Luís Menezes Leitão, obra citada, nota 33, pág. 24). Isto é, estas situações particulares, especialmente admitidas pelo legislador, não obnubilam que a regra da totalidade é uma característica tendencial, natural, quanto ao âmbito objetivo dos direitos reais (cf. Luís A. Carvalho Fernandes, Lições de direitos reais, 5.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2007, 5.ª edição revista e remodelada, páginas 57 a 59). Por força deste princípio, na falta de norma legal que a tal obsta ou que determine solução contrária, no caso sub judice o direito de propriedade sobre o terreno passa também a incidir sobre a obra nele edificada, ou seja, o direito de propriedade (do cônjuge titular do terreno) abrange a totalidade da coisa nova criada. Tal solução harmoniza-se com o disposto na parte final da alínea b) do artigo 1724.º e no artigo 1728.º n.º 1 e n.º 2 alínea a) do Código Civil. A incorporação de uma edificação (casa de morada de família), operada pelo esforço conjunto dos cônjuges, num terreno pertencente (bem próprio) a um dos cônjuges, não podendo dar origem à acessão invertida prevista no artigo 1340.º do Código Civil, desde logo por falta dos necessários elementos de estraneidade e de boa fé, reveste a natureza do terreno alvo da união/incorporação, isto é, o todo constituirá bem próprio do cônjuge dono do terreno, sem prejuízo da compensação devida ao património comum. Com efeito, dissolvido o matrimónio, aquando da partilha torna-se exigível o crédito do património comum sobre o património do cônjuge titular do imóvel sub judice, a título de compensação pelo valor que a construção representa no imóvel constituído. Conforme nota Luís Menezes de Leitão, “no âmbito do regime da comunhão de adquiridos, o legislador veio expressamente considerar que a existência de transferências entre os patrimónios pessoais dos cônjuges e o património comum implicam o surgimento de deveres de “compensação” (art. 1726.º, n.º 2, 1727.º e 1728.º), apontando a lei como momento para o seu surgimento o da dissolução e partilha da comunhão (artigo 1726.º, n.º 2). É possível configurar estes deveres como tendo por objeto a restituição de algo que foi adquirido sem causa jurídica pelo património pessoal ou pelo património comum, e assim estabelecer a sua fundamentação no enriquecimento sem causa (art. 473.º, n.º 1). A existência de um regime específico para a dissolução e partilha da comunhão conjugal torna, porém, desnecessária a aplicação do seu regime” (O enriquecimento sem causa no direito civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal n.º 176, Lisboa, 1996, páginas 513 e 514). De normas como as contidas nos artigos 1726.º, n.º 2, 1697.º, 1722.º n.º 2, 1728.º n.º 1 e 1689.º do Código Civil é possível deduzir, como refere Rita Lobo Xavier, “um princípio geral que obriga às compensações entre os patrimónios próprios dos cônjuges e entre estes e o património comum, sempre que um deles, no final do regime, se encontre enriquecido em detrimento de outro” (Limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges, Coimbra, Almedina, 2000, pág. 395). O mecanismo das compensações visa a reintegração do equilíbrio patrimonial quebrado pelo fluxo de valores entre as massas patrimoniais existentes nos regimes de comunhão. É uma manifestação do princípio de equidade que rege as relações patrimoniais entre os cônjuges (…)» 3.5. Assim, estando em discussão no presente recurso apenas a questão de saber se o imóvel supra referido deve ser considerado bem comum do autor e da ré ou bem próprio da ré (não havendo que decidir sobre compensação de valores entre os ex-cônjuges), conclui-se que tal imóvel é bem próprio da ré, adotando os fundamentos legais constantes do do AUJ n.º 9/2025, pelo que se impõe, em consequência, a revogação do acórdão recorrido. * Decisão: Pelo exposto, seguindo o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2025, julga-se a revista procedente, revogando-se o acórdão recorrido, decidindo-se que o imóvel em causa não é bem comum do autor e da ré. Custas pelo recorrido. Lisboa, 25.11.2025 Maria Olinda Garcia (Relatora) Anabela Luna de Carvalho Graça Amaral |