Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7945/24.0T8LSB-D.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
ADMINISTRAÇÃO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
INTERESSADO
IMPUGNAÇÃO
LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS E NÃO RECONHECIDOS
EXTINÇÃO
COMPENSAÇÃO
INTERPRETAÇÃO LITERAL
Data do Acordão: 10/07/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE
Sumário :
I. A transferência dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes na massa insolvente, do insolvente para o administrador da insolvência, imposta pelo artigo 81.º do CIRE tem subjacente a finalidade de proteção dos interesses dos credores e a salvaguarda da satisfação dos seus créditos.

II. Daí que, a indisponibilidade do insolvente só deva operar quanto a atos que, de alguma forma, possam comprometer o património da massa insolvente em prejuízo dos seus credores.

III. Devendo ser reconhecida legitimidade ao insolvente para praticar atos, incluindo atos em juízo, que possam importar o aumento ou valorização da massa insolvente.

IV. Pretendendo a insolvente que determinado crédito reclamado por alegado credor e reconhecido pelo Administrador da Insolvência, se mostra extinto, por declaração compensatória emitida por aquela, em data anterior à declaração da insolvência, tal propósito, serve a finalidade de proteção dos interesses dos credores, salvaguardando a satisfação dos seus créditos por afastamento dos que, tendo reclamado sem direito, possam indevidamente com aqueles concorrer na satisfação dos direitos creditórios sobre a massa insolvente.

V. Nessa medida nenhuma razão há para não reconhecer legitimidade à Insolvente para impugnar aquele crédito da lista de credores reconhecidos, elaborada pelo Administrador da Insolvência.

VI. Essa legitimidade, de resto, encontra amparo no elemento literal da previsão do art. 130º do CIRE (Impugnação da Lista de credores reconhecidos) que estende a legitimidade de impugnação a qualquer interessado.

Decisão Texto Integral:

I. Relatório

1. People Man, Comércio de Vestuário Unipessoal, Ldª apresentou-se à insolvência, a qual veio a ser declarada por sentença de 02/04/2024, publicada em 03/04/2024, tendo sido fixado o prazo para reclamação de créditos em 30 dias.

Em 26/06/2024 o Sr. administrador da insolvência (doravante, AI) remeteu aos autos requerimento para junção das listas dos créditos reconhecidos e dos créditos não reconhecidos, a qual, em 10/07/2024, deu origem à autuação do presente apenso (D) de Reclamação de Créditos (CIRE), tendo de imediato o AI sido notificado para, com a máxima urgência, introduzir no sistema os credores com NIF e respetivos mandatários, o que foi cumprido através de formulário de registo de credores datado de 12/07/2024.

2. Por requerimento de 16/07/2024 a insolvente veio afirmar que apenas no dia 12/07/2024 teve conhecimento da existência da lista definitiva de credores e da criação do apenso D, tendo nessa data requerido o respetivo acesso eletrónico e, com fundamento na ausência de notificação da própria e dos restantes credores no momento da criação do apenso, requereu que a contagem do prazo para impugnação previsto no art. 130º do CIRE (impugnação da lista de credores reconhecidos) se iniciasse apenas a partir da disponibilização à insolvente do acesso eletrónico ao referido apenso.

3. Requerimento que não teve resposta.

4. Em 25/07/2024 a insolvente apresentou impugnação à lista de créditos pedindo o não reconhecimento dos créditos reclamados por AA, SA.

Fundamentou o pedido dizendo-se credora desta credora de uma indemnização por culpa na formação dos contratos (art. 227º do CC), no montante de €450.000,00, correspondente ao valor dos prejuízos que esta lhe causou, com a quebra sem justificação do acordo que havia sido alcançado entre ambas para transmissão do negócio da insolvente para aquela, num momento em que, contando com essa transmissão, executara determinados atos e assumira determinados compromissos com parceiros comerciais, o que, uma vez frustrados, conduziu à subsequente situação de insolvência.

Mais alegou ter reclamado esse crédito à credora através de cartas de 21/02 e 21/03/2024 declarando compensar o seu crédito, parcialmente, com os créditos que esta veio a reclamar nestes autos, razão pela qual não devem os mesmos ser reconhecidos, por extintos por compensação, isto sem prejuízo de o AI diligenciar pelo recebimento do remanescente no montante de €349.483,36.

5. A credora respondeu à impugnação.

Arguiu a extemporaneidade da sua dedução e refutou o crédito a que a insolvente se arroga e respetivos fundamentos, por falsos. Alega que não estavam acordadas as condições necessárias à celebração de eventual negócio e tendo sido feita uma avaliação pelas equipas jurídica e financeira da credora, chegaram as mesmas à conclusão que o mesmo apresentava riscos para a empresa, pelo que foi decidido não avançar nas negociações.

Mais repudiou qualquer contribuição da sua parte, para a situação de insolvência da devedora.

6. A insolvente respondeu à exceção e concluiu pela tempestividade da sua impugnação.

7. Em 22/11/2024 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos que desconsiderou a impugnação, por extemporânea.

8. Inconformada, a insolvente interpôs recurso para o Tribunal da Relação, tendo o mesmo por objeto “a decisão que recusa a apreciação da impugnação do crédito feita pela ora Recorrente/Insolvente relativamente ao credor AA, S.A., a qual, datada de 22.11.2024 decidiu que perante a patente extemporaneidade da impugnação apresentada pela insolvente, esta não será tida em consideração, encontrando-se prejudicada, por conseguinte, a análise dos termos da resposta à impugnação efectivada pela credora AA, S.A.”, requerendo a sua anulação e/ou a sua revogação e, em qualquer caso, a sua substituição por outra que admita a impugnação que deduziu à lista de créditos e determine o seguimento da tramitação processual subsequente.

9. Não foram apresentadas contra-alegações.

10. Conhecendo do recurso, o Tribunal da Relação de Lisboa veio a proferir acórdão que decidiu “julgar e declarar a ilegitimidade da insolvente para a impugnação que deduziu à lista de créditos tendo por objeto o crédito de AA, SA e, consequentemente, manter a decisão recorrida (de desconsideração da dita impugnação em sede de verificação daquele crédito), embora com fundamento distinto do por ela considerado, cuja apreciação resulta prejudicada.

Custas a cargo da insolvente (art. 527º, nº2 do CPC).”

11. De novo inconformada veio a devedora/apelante recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

A. O presente recurso tem por objecto a decisão que declara a ilegitimidade da Recorrente para a impugnação que deduziu à lista de créditos tendo por objecto o crédito do credor AA, S.A..

B. Decisão que mantém a proferida pela primeira instância que tinha recusado a apreciação da aludida impugnação por considerar que a mesma era extemporânea.

C. Assim, e conforme reconhece a Decisão Recorrida, a presente decisão mantém a decisão da primeira instância, “embora com fundamento distinto do por ela apreciado, cuja apreciação resulta prejudicada.”

D. A decisão Recorrida considerou que “o insolvente só tem legitimidade para deduzir impugnação à lista de créditos a que alude o art. 129º do CIRE se tiver e justificar um interesse próprio juridicamente relevante no resultado da apreciação do objeto por ela posto em discussão” e que a Recorrente não o tinha demonstrado.

E. Relativamente à admissibilidade da presente revista, o disposto no n.º 1 do art.º 14 do CIRE deixa de fora a tramitação relativa aos seus incidentes, apensos e recursos do processo de insolvência que não dos embargos – como é o presente caso.

F. A este respeito foi já proferido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência.

G. Verifica-se, inclusivamente, um factor de excepção à restrição geral do acesso ao terceiro grau de jurisdição previsto pela regra da dupla conforme constante do n.º 3 do art.º 671 aplicável a contrariu sensu, ex vi do art.º 17 do CIRE.

H. Excepção que consiste no facto de a decisão da Relação não ser uma mera confirmação da da 1ª instância, mas sim conter fundamentação diferente: ambas consideraram inadmissível a impugnação da lista de créditos feita pela Recorrente, uma por extemporânea, outra por ilegitimidade.

I. Ainda que assim não se entenda, o que por dever de cautela e de patrocínio se equaciona sem conceder, sempre estariam verificados os pressupostos da Revista fixados no artigo 14.º n.º 1 do CIRE, por o Acórdão recorrido estar em contradição com diversos Acórdãos proferidos pelos tribunais superiores, relativamente à legitimidade do Insolvente para a impugnação da lista de créditos, senão vejamos:

J. O Tribunal Constitucional no Acórdão 16/2018 reafirmou que a não notificação do insolvente sobre a lista definitiva de créditos viola o seu direito de impugnação.

K. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no Processo 328/18.3T8FNC-E.L1-1, datado de 03/03/2020, esclareceu que assistia legitimidade ao insolvente enquanto "interessado" no processo de insolvência, e julgou a impugnação por este deduzida.

L. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido no Processo 6905/23.3T8SNT-B.L1-1 de 10/12/2024 e que trata de um caso semelhante ao dos autos em que o Administrador de Insolvência não publica a lista no prazo legalmente previsto, prevê que deve ser notificada a lista a todos os interessados, inclusive ao insolvente, sob pena de ocorrer violação do princípio do contraditório e do direito a um processo equitativo.”

M. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no Processo 2422/20.1T8AVR-A.P1, datado de 28/10/2021, também validou a prática de impugnação pelo insolvente em caso concreto, sublinhando que essa interpretação do artigo 130.º do CIRE é unânime.

N. Submetendo à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça a questão de saber se no Acórdão recorrido existe erro de julgamento quando julga a Recorrente parte ilegítima para a impugnação que esta fez no processo relativamente ao crédito do credor AA – que tinha sido extinto por compensação em momento anterior à insolvência.

O. Relativamente às razões da Recorrente, a Recorrente entende que a Decisão Recorrida não atentou na especificidade da situação in casu.

P. Dessa forma, não teria sido possível à Decisão Recorrida concluir, por um lado, pela ilegitimidade da Recorrente para impugnação do aludido crédito por extinção (por via de compensação já operada) por esta carecer da intervenção do seu Administrador de Insolvência, e, por outro lado, não poderia ter concluído pela ilegitimidade da Recorrente por falta de interesse em agir – atendendo ao seu interesse próprio e que é também o da massa – o da satisfação da universalidade dos seus credores.

Q. A Decisão Recorrida não atentou que a compensação objecto dos presentes autos foi, já, efectuada – muito antes da insolvência e da entrada em administração do Administrador de Insolvência, não podendo tais créditos ser reconhecidos, pois encontram-se extintos.

R. Pelo facto de ter ocorrido antes, ao contrário do que refere a Decisão Recorrida, a compensação, não está na esfera dos poderes de administração do Administrador de Insolvência; essa compensação já ocorreu, bem antes de se ter iniciado o processo de insolvência e ter sido nomeado o Administrador de Insolvência, através de carta de 22 de Fevereiro de 2024.

S. O que a Recorrente pretendia que fosse apreciado em sede de impugnação da lista de créditos definitiva era a extinção desse crédito reclamado pelo credor AA S.A. por via da compensação por si legítima e tempestivamente operada anteriormente à Insolvência.

T. Apreciação que se impunha fosse realizada pelo tribunal onde corriam os autos de insolvência, como requerido no seu Recurso.

U. A Decisão Recorrida parte de um raciocínio que, salvo o devido respeito, labora em erro inquinando o resto da Decisão ancorando-se, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que cita e que não trata de uma situação idêntica ao presente caso: no presente caso, não tinha havido impugnação do crédito activo, o crédito da Recorrente quando a Recorrente impugna a liste definitiva de créditos.

V. A Decisão Recorrida parte, assim, de algo que antecipa e que não se verificou no momento em que a Recorrente impugna e para o que entendeu esta não ter legitimidade.

W. Sucede que o crédito não era nem controvertido nem litigioso - não havia impugnação desse seu crédito, o denominado “crédito activo- com que compensou o do credor e a compensação foi operada muito antes da declaração de insolvência, pelo que se impunha abordar a compensação efectuada como se de um pagamento se tratasse – que também é uma causa de extinção.

X. Mas mais. O caso abordado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra nem sequer trata a mesma situação da dos autos: o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra tratava de um caso em que a compensação, por não ter sido declarada antes (extra-judicialmente), tinha sido feita operar (declarada) em sede de defesa por excepção – a compensação foi declarada extra-judicialmente previamente in casu.

Y. E a conclusão desse Acórdão que, no entender da Recorrente é nula para o caso dos presentes autos, é de que se o crédito activo tiver sido impugnado, então o efeito da compensação apenas se produz com a sentença que a reconheça.

Z. Vem ainda a Decisão Recorrida acusar a Recorrente de não ter impugnado os factos constitutivos do crédito reclamado pela credora – o que não se aceita se a impugnação da Recorrente visava o reconhecimento da extinção desse crédito e não questionar a sua existência.

AA. A relevância atribuída ao facto de entender o crédito como litigioso nem sequer cabe no conceito enunciado no art.º 579 do CC.

BB. Acresce que, em coerência com uma compensação operada e comunicada ao Credor, anteriormente ao processo de insolvência, apenas restava, ao abrigo dos seus deveres de colaboração, à insolvente impugnar o reconhecimento do crédito do Credor por extinção.

CC. Também a transferência de poderes de disposição e administração para o AI não abrange a “intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência” conforme dispõe o n.º 5 do art.º 81 do CIRE.

DD. É que apenas a Insolvente tinha conhecimento desse meio de defesa, atendendo que a extinção era prévia à insolvência, daí estar em posição processual legítima para impugnar o seu reconhecimento.

EE. Pelo que não se aceita que a legitimidade se transmite para o Administrador de Insolvência que não iria, como é bom de ver, impugnar o próprio reconhecimento que havia feito, sindicando um acto por si praticado.

FF. Na tramitação regular do processo, apenas após a impugnação da Recorrente do crédito do credor com base na extinção (por compensação operada antes da insolvência) é que viria, caso assim entendesse, o Credor AA contestar o crédito indemnizatório – e aí, sim, adquiria o crédito o estatuto de crédito litigioso.

GG. Aí, sim, ao Administrador de Insolvência poderia e deverá intentar acção de reconhecimento judicial de crédito, o que constituirá questão prejudicial da da apreciação da impugnação da lista de credores pela Recorrente.

HH. Acção onde o Administrador de Insolvência irá peticionar a totalidade do crédito indemnizatório e não discutir a compensação.

II. Não era óbvio, no momento da impugnação da lista, que o crédito era litigioso e dependia de verificação judicial, o Credor podia aceitar a impugnação. Só depois da resposta do Credor é que surge a necessidade de apreciação judicial do crédito indemnizatório.

JJ. Daí este raciocínio do Acórdão incorre num vício: retira a legitimidade à Recorrente ab initio, com base num acontecimento (resposta do credor AA) ocorrido após o acto após o qual julgou a Recorrente ilegítima.

KK. E nem se aceita o que refere a Decisão Recorrida de que possa vir a ocorrer litispendência com uma futura acção intentada pelo AI: isso não sucederia, não existiria litispendência porque o pedido da Insolvente, na impugnação, não é o reconhecimento do crédito (da Insolvente), esse irá ser o pedido do AI.

LL. Não permitir que a impugnação proceda, ainda que o AI interponha a acção (o que ainda não fez) significa cristalizar na ordem jurídica a inexistência de um acto jurídico que ocorreu antes da insolvência: a declaração de compensação.

MM. Seria fazer tábua rasa desse acto, porque ficaria assente, e transitado em julgado, que o crédito de AA existe (e não foi extinto por compensação).

NN. Cabendo então ao AI reclamar esse crédito (todo, mesmo o que excede o valor do credor AA) em tribunal, o que constituirá questão prejudicial e causará a suspensão do presente processo de impugnação.

OO. Isto consubstancia uma relação de prejudicialidade entre as duas causas, não de concorrência de pedidos.

PP. Além de que é pacífico na doutrina e abundante jurisprudência de que a menção a “qualquer interessado” do art.º 130 visa englobar o Insolvente.

QQ. Através de uma pura aferição do interesse em agir como a falta da impugnação implicar a diminuição das hipóteses de recuperação do crédito do impugnante, como expõe a Decisão recorrida neste ponto, nenhum Insolvente poderia nunca impugnar a Lista.

RR. Neste sentido, L. Carvalho Fernandes, J. Labareda, Ana Prata, Olavo Cunha, Morais Carvalho e também a jurisprudência assim o entende, conforme ponto II. supra.

SS. Por fim, cumpre contrariar a Decisão Recorrida e referir que a Insolvente só deixa de “existir” no final do processo nos termos do disposto no artigo 234.º/3 do CIRE.

TT. E que, se o aludido crédito estava extinto por compensação, até então não contestada judicialmente) o Devedor estava obrigado a cumprir o seu dever – e a impugnação da lista era o meio adequado para o fazer.

UU. Mais. Nenhum sentido teria que o insolvente estivesse habilitado a responder às impugnações à lista de créditos, mas não a deduzi-las – como sugere a Decisão Recorrida.

VV. A sua legitimidade é aferida tanto do lado activo como passivo.

WW. A Recorrente questiona ainda, por absurdo, que sentido faria o Devedor ter conhecimento de um crédito já pago antes da insolvência, incluído pelo AI na Lista e a Devedora não pudesse impugnar?

XX. O que sustenta a Decisão recorrida, salvo o devido respeito, atenta contra finalidade do próprio processo de insolvência, in casu, a maximização do património a distribuir pelos seus credores.

YY. Sendo o processo de insolvência um processo de execução universal, mal seria se as acções destinadas a tutelar o produto da mesma fossem inadmissíveis.

ZZ. Tudo o que não se pode aceitar e se pretende seja apreciado com o presente recurso.

A final requer que seja o recurso de revista julgado totalmente procedente e a decisão do Tribunal a quo revogada.

12. Não foram apresentadas contra-alegações.

II. Da admissibilidade e objeto do recurso

Da admissibilidade do recurso

O presente recurso recai sobre decisão proferida no apenso de verificação e graduação de créditos.

Está, por isso, fora do âmbito de previsão do art. 14º nº 1 do CIRE, conforme Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 13/2023 de 21/11/2023 que estabeleceu o entendimento de que «A regra prevista no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência».

Impõe-se, assim, apreciar da admissibilidade da revista à luz das regras gerais do Código de Processo Civil, nomeadamente as do art.º 671º aplicável a contrariu sensu, ex vi do art.º 17 do CIRE.

No caso, não se verifica a existência de dupla conformidade decisória entre o acórdão da Relação e a sentença da 1ª instância porquanto, a confirmação decisória se restringe ao dispositivo, sendo divergente a fundamentação decisória de cada uma das decisões. Logo, não se alcança o impedimento da dupla conformidade decisória previsto no nº 3 do art. 671º CPC.

Por outro lado, mostram-se observados os pressupostos gerais de recorribilidade respeitantes à legitimidade, decaimento e valor da causa, sendo por isso o recurso de revista admissível.

Do objeto do recurso

O objeto do recurso respeita à questão de saber se a insolvente tem legitimidade para impugnar um crédito constante da lista de credores, crédito esse que em momento anterior à insolvência havia declarado extinto por compensação perante o credor (passivo), o qual, o administrador da insolvência fez constar na lista de créditos reconhecidos.

II. Fundamentação de Facto

São elementos factuais relevantes os que constam do relatório antecedente, bem como a seguinte factualidade, elencada pela Relação após consulta do histórico dos autos:

a) O processo de insolvência da Recorrente prosseguiu para liquidação.

b) Em 22/01/2025 o AI requereu autorização ao juiz da insolvência para contratação de advogado para instaurar ação de indemnização contra a credora AA, SA com fundamento nos factos que a insolvente alegou na impugnação à lista de créditos, pedido que foi deferido por despachos de 14 e 27/02/2025.

III- Fundamentação de direito

Coloca-se a questão de saber se o acórdão recorrido fez uma correta aplicação da lei quando, em sede de questão prévia, apreciou e declarou a ilegitimidade da devedora insolvente para a impugnação que esta deduziu à lista de créditos, contestando o crédito reclamado por AA, SA com fundamento na sua extinção por compensação, em momento prévio à declaração de insolvência.

Com tal decisão, ficou prejudicada a questão levada ao conhecimento em recurso de apelação, a qual visava a reapreciação da decisão da 1ª instância de extemporaneidade da impugnação apresentada pela insolvente.

O acórdão recorrido fundamentou a sua decisão com a asserção de que “o insolvente só tem legitimidade para deduzir impugnação à lista de créditos a que alude o art. 129º do CIRE se tiver e justificar um interesse próprio juridicamente relevante no resultado da apreciação do objeto por ela posto em discussão”, o que a Recorrente não teria demonstrado.

E que, estando a admissibilidade da invocação da compensação de créditos prevista apenas para os credores da insolvência no art. 99º nº 1 do CIRE, numa interpretação a contrario, tal invocação mostra-se excluída ao próprio devedor, não podendo ele, por esta via, pretender a extinção de créditos sobre a insolvência. Máxime se o crédito que invoca for controvertido, como é o caso, sendo necessária a intervenção do Administrador de Insolvência para a representação do devedor, neste como em todas as situações que gerem efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.

O acórdão recorrido considerou assim que, a questão suscitada pela insolvente cruza-se com a temática dos efeitos da declaração da insolvência sobre o devedor e o respetivo património e com a questão dos poderes de representação legal e processual do insolvente pelo administrador da insolvência, nos termos previstos pelos arts. 46º e 81º do CIRE.

E, por força do art. 81º do CIRE a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência (nº1), assumindo este a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (nº4), sendo ineficazes os atos realizados pelo insolvente em violação do disposto nos números anteriores (nº6).

Desse modo, declarada a insolvência surge um património autónomo afeto à satisfação dos credores da insolvência (arts. 51º, 172º, nº 1 e 219º do CIRE), sendo a massa insolvente titular de interesses próprios, coincidentes com o interesse do coletivo dos credores, que é o da máxima integração do acervo dos bens e direitos patrimoniais na massa e a otimização do seu valor em benefício do universo dos credores da insolvência, tendo o Administrador de Insolvência como seu representante. O que vale por dizer que, é o Administrador de Insolvência quem, com exclusão do devedor, passa a deter legitimidade para discutir judicialmente o conjunto de direitos patrimoniais, por este detido sobre terceiros.

Transpondo para o caso, conclui o acórdão recorrido, apenas ao administrador de insolvência nomeado nos autos assiste legitimidade ativa para invocar, peticionar e discutir em juízo os fundamentos e o reconhecimento do crédito da insolvente que a Recorrente pretende opor à verificação do crédito reclamado pela credora AA, SA. Assim não sendo, caso ambos agissem, poderia ocorrer uma situação de litispendência ou de caso julgado.

Desse modo, concluiu o acórdão recorrido pela ilegitimidade da Recorrente para a impugnação que deduziu à lista de créditos, “sendo tal impugnação inadmissível, com a consequente repercussão na apreciação do mérito deste recurso, que fica prejudicada.”

Contra esta fundamentação contrapôs a Recorrente que, a decisão recorrida não atentou na especificidade da situação em causa.

Nomeadamente, não atentou o facto de a compensação objeto da impugnação ter sido efetuada muito antes da insolvência e da entrada em funções do Administrador de Insolvência.

O que a Recorrente pretendia que fosse apreciado em sede de impugnação da lista de créditos definitiva era a extinção desse crédito reclamado pela credora AA S.A., por via da compensação por si operada, sem oposição desta, anteriormente à Insolvência.

Essa compensação, dado o momento em que ocorre, não está na esfera dos poderes de administração do Administrador de Insolvência.

Quando a Recorrente impugnou a lista definitiva de créditos não tinha havido contestação do crédito ativo, o crédito da Recorrente. Logo, em tal momento, o crédito da Recorrente, não era nem controvertido nem litigioso, pelo que se impunha abordar a compensação como tendo extinguido o crédito reclamado.

Realça ainda a Recorrente que, a transferência de poderes de disposição e administração para o AI não abrange a “intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência” conforme o nº 5 do artº 81 do CIRE.

No caso, apenas a Insolvente tinha conhecimento daquele meio de defesa, daí estar em posição processual legítima para impugnar o seu reconhecimento pelo AI.

Na tramitação regular do processo, só após a impugnação da Recorrente do crédito do credor com base na extinção (por compensação operada antes da insolvência) é que viria, caso assim entendesse, a credora AA, S.A., contestar o crédito indemnizatório – e aí, sim, adquiria o crédito o estatuto de crédito litigioso.

E, só então, o Administrador de Insolvência poderia/deveria intentar ação de reconhecimento judicial de crédito, o que constituiria questão prejudicial da apreciação da impugnação da lista de credores pela Recorrente. Só depois da resposta da Credora é que surge a necessidade de apreciação judicial do crédito indemnizatório.

Desse modo, diz, o acórdão recorrido incorre num vício de raciocínio: retira a legitimidade à Recorrente ab initio, com base num acontecimento (resposta do credor AA à impugnação) ocorrido posteriormente à sua intervenção.

A Recorrente rejeita igualmente a possibilidade de ocorrer litispendência com uma futura ação intentada pelo AI, porquanto o pedido da Insolvente, na impugnação, não é o reconhecimento do crédito da Insolvente sobre aquele credor, esse deverá ser o pedido do AI, o que em relação à sua impugnação com fundamento em extinção do crédito reclamado, constituirá questão prejudicial e causará a suspensão do presente processo de impugnação.

Afirma ainda ser pacífico na doutrina e jurisprudência de que a menção a “qualquer interessado” no art.º 130 do CIRE “pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos” engloba o Insolvente.

Finaliza afirmando que era seu dever impugnar o referido crédito, face à sua anterior extinção por compensação. Concedendo-lhe a lei o direito a responder às impugnações, não faria sentido não lhe conceder o direito a deduzi-las, devendo a sua legitimidade ser aferida tanto do lado ativo como passivo.

O que sustenta a decisão recorrida, conclui, atenta contra finalidade do próprio processo de insolvência, in casu, a maximização do património a distribuir pelos seus credores.

Apreciando.

Dispõe o artigo 81º nº 1 do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (doravante CIRE) que:

Sem prejuízo do disposto no título X1, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.”

Os bens cuja administração e disposição passa a competir ao administrador da insolvência, são os que integram o conceito de massa insolvente, estabelecida no artigo 46º nº 1 do CIRE, afeta a uma finalidade:

A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.”

Com a declaração da insolvência, “o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência” (art. 81º nº 4 do CIRE), representação que, contudo, “não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário.” (art. 81º nº 5).

O que explica a substituição automática do insolvente pelo administrador da insolvência, em todas as ações pendentes em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o insolvente ou contra terceiros mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa e, em todas as ações de natureza exclusivamente patrimonial que hajam sido intentadas pelo insolvente (art. 85º, nºs 1 e 3 do CIRE).

A indisponibilidade do insolvente não é, contudo, absoluta.

A sua disponibilidade mantém-se em relação a determinados bens ou em função de determinados efeitos.

Assim:

O artigo 81º, nº 1 do CIRE ao referir-se aos “bens compreendidos na massa insolvente”, permite, numa interpretação a contrario, ou seja, que o insolvente continue a administrar e a dispor, sem qualquer limitação, de bens não compreendidos na massa insolvente.

O nº 4 do mesmo preceito, ao referir-se aos “efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência”, coloca de fora da limitação aos poderes do insolvente as matérias de natureza pessoal em geral, bem como as matérias patrimoniais que não interessem à insolvência.

Por sua vez, por força do nº 5 do mesmo artigo, a representação pelo administrador da insolvência não se estende, em princípio (“salvo expressa disposição em contrário”), à intervenção do insolvente no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos.

Assim, quanto a tais bens, matérias e natureza da intervenção, o insolvente conservará os seus poderes de administração e de disposição, sem necessidade de representação ou de substituição em juízo pelo administrador da insolvência.

Apoiada na razão de ser e na finalidade subjacente à transferência dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes na massa insolvente, do insolvente para o AI, imposta pelo artigo 81.º do CIRE ― a proteção dos interesses dos credores e a salvaguarda da satisfação dos respetivos créditos ― alguma jurisprudência tem defendido que tal limitação só deverá operar quanto a atos do insolvente que, de alguma forma, possam comprometer o património da massa insolvente em prejuízo dos seus credores.

E que, ao insolvente deverá ser reconhecida legitimidade para praticar atos, incluindo atos em juízo, que possam importar o aumento ou valorização da massa insolvente.

Como exemplo desta corrente jurisprudencial, vejam-se as seguintes decisões dos tribunais superiores2:

A) No âmbito do CPEREF:

Considerando as limitações impostas ao falido pelo CPEREF no artigo 147º, nºs 1 e 23 (em termos equivalentes aos do art. 81º do CIRE), o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-05-2005, P. 906/2005-6 (Fernanda Isabel Pereira), expressou:

“I - A inibição do falido deve julgar-se estabelecida e sancionada em correspondência com o motivo que a inspirou, isto é, consoante o exigir a proteção que se quis dispensar aos interesses dos credores. “Nada menos do que isso, mas também nada mais do que isso.”

II - Os interesses dos credores mostram-se acautelados pela proteção que lhes é conferida pela lei ao privar o falido da administração e do poder de disposição dos seus bens, presentes ou futuros, atribuindo a sua administração e o poder de disposição sobre os mesmos ao liquidatário judicial, não sendo necessária para o efeito uma incapacidade absoluta do falido que o impeça de realizar atos que valorizem ou aumentem o seu património.

III - As limitações resultantes da declaração de falência não retiram ao falido a capacidade de exercício de direitos como quando o falido propõe ação, que tem por objeto a anulação de uma procuração e de um contrato, que só a dita procuração possibilitou, com a consequente reintegração de uma fração autónoma no seu património. Esta atividade só pode trazer vantagens para os seus credores, os quais, caso a ação proceda, terão mais possibilidades de satisfação dos seus créditos, não envolvendo qualquer diminuição do património dos falidos.”

B) No âmbito do CIRE:

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-11-2017, P. 497/14.1TBVLG.S1 (José Rainho), que sumariou:

“I - A razão de ser da privação dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, a que alude o art. 81º do CIRE, funda-se no interesse dos credores, isto é, tem em vista a salvaguarda da satisfação dos créditos.

II - Esta privação não deve ser vista como sendo uma manifestação de qualquer incapacidade ou de ilegitimidade, mas sim como de indisponibilidade relativa.

III - Se os efeitos visados com uma ação judicial não são de molde a colocar em causa a salvaguarda do património do insolvente, então inexiste razão para a aplicação do art. 81º do CIRE.

IV - Nesta hipótese nem o devedor está privado ou inibido de agir, nem se põe a necessidade de representação (substituição) por parte do administrador da insolvência.”

A mesma fundamentação no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2019, P.5324/07.3TVLSB-A.L1.S1 (Graça Amaral), que expressa no seu sumário:

“I - A declaração de insolvência priva o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.

II - Tal privação não consubstancia uma incapacidade judiciária do insolvente pois que a declaração da insolvência não implica uma perda da sua capacidade judiciária, mas uma substituição na sua representação processual (substituição legal automática do insolvente pelo administrador da insolvência) traduzida numa indisponibilidade relativa daquele delimitada: pelos bens que integram a massa insolvente; pela proteção do interesse dos credores.

III - A extensão dessa substituição processual encontra-se confinada à finalidade da realidade que serve: proteção do património do insolvente em função do interesse dos credores por forma a salvaguardar a satisfação dos respetivos créditos. Nessa medida, não é extensível às matérias de natureza pessoal, às patrimoniais estranhas à massa insolvente, bem como às relacionadas com o património insolvente que visem a valorização ou o aumento do mesmo.”

No mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/07/2020, P. 1110/13.0TVLSB.L1.S1.S2 (Fátima Gomes), constando do sumário:

“I - Não estando o crédito reclamado na presente ação incluído na massa insolvente para os efeitos do art. 81.º do CIRE, a insolvente deve poder prosseguir com a ação, sem que o administrador da insolvência a substitua.

II - Tal solução resulta do facto de: i) na presente ação se visar a obtenção do reconhecimento e pagamento de um alegado crédito do insolvente (considerando os vários pedidos formulados), havendo a possibilidade de, em caso de sucesso, aumentar o respetivo património; ii) não estando em causa qualquer atividade do devedor (insolvente) que possa colocar em causa a salvaguarda do seu património em detrimento dos credores (não se reconhece procedente o argumento da recorrida no sentido que do prosseguimento da ação pode resultar um aumento do passivo da insolvente), inexiste razão para uma interpretação do art. 81.º do CIRE correspondente à que foi efetuada pelo tribunal recorrido, nem para considerar aplicável, nos termos em que o foi, o art. 85.º, n.º 3, do CIRE, com a latitude interpretativa que o foi.

Tendo esta ação pontos de semelhança com o presente litígio.

Nela, a autora, sociedade comercial, peticionava que fosse julgada verificada uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes haviam fundado a decisão de celebrar os contratos de mútuo e de abertura de crédito dos autos e que, em consequência, fosse determinada a sua modificação, mediante, inter alia, a transmissão ao réu do direito de propriedade sobre um imóvel hipotecado e o pagamento pelo réu, à autora e aos seus credores, de diversas quantias.

Durante a pendência da ação a autora foi declarada insolvente, tendo o imóvel em questão sido apreendido para a massa insolvente. Substituída nos autos pelo administrador da insolvência, as partes ― réu e administrador da insolvência ― viriam a celebrar transação, nos termos da qual, o administrador da insolvência desistiu do pedido inicialmente formulado.

A demandante requereu que fosse determinado o prosseguimento dos autos, o que foi indeferido, quer pela 1ª instância, quer pela Relação que entenderam que, no essencial, a representação do insolvente, para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessam à insolvência, passa a caber ao administrador de insolvência, sendo por este substituído por força da lei em todas as ações de tal natureza. Pelo que, decretada a insolvência na pendência daquela ação e desistindo o administrador do pedido, não podia o insolvente prosseguir os autos.

Diferentemente entendeu o Supremo Tribunal de Justiça.

Na sequência dos recursos interpostos pela autora da decisão homologatória da transação celebrada, veio o STJ fundamentar que, os termos da atuação do administrador da insolvência ― ao celebrar uma transação judicial nos termos da qual desistiu do pedido ― foram de molde a concluir que o mesmo manifestou desinteresse pela ação (não obstante se ter feito substituir à insolvente), não pretendendo prosseguir com a mesma, o que equivalia a considerar que o bem ― o eventual crédito que pudesse resultar do provimento da ação ― não integrava a massa insolvente (embora no futuro a pudesse vir a integrar) para o efeito de a ação poder prosseguir com a autora, nos termos do artigo 81.º do CIRE.

Concluiu, então, que “Não estando o crédito reclamado na presente ação incluído na massa insolvente para os efeitos do art. 81.º do CIRE, a insolvente deve poder prosseguir com a ação, sem que o administrador da insolvência a substitua.” e que “Tal solução resulta do facto de: i) na presente ação se visar a obtenção do reconhecimento e pagamento de um alegado crédito do insolvente (considerando os vários pedidos formulados), havendo a possibilidade de, em caso de sucesso, aumentar o respetivo património; ii) não estando em causa qualquer atividade do devedor (insolvente) que possa colocar em causa a salvaguarda do seu património em detrimento dos credores (não se reconhece procedente o argumento da recorrida no sentido que do prosseguimento da ação pode resultar um aumento do passivo da insolvente), inexiste razão para uma interpretação do art. 81.º do CIRE correspondente à que foi efetuada pelo tribunal recorrido, nem para considerar aplicável, nos termos em que o foi, o art. 85.º, n.º 3, do CIRE, com a latitude interpretativa que o foi.”

Deste acervo jurisprudencial resulta o entendimento de que a privação do insolvente quanto aos poderes de administrar e de dispor dos seus bens, está limitada à finalidade que serve: ― a proteção dos interesses dos credores e a salvaguarda da satisfação dos respetivos créditos - não sendo extensível ou aplicável a atos que possam valorizar ou aumentar o seu património e, nessa medida, potenciar a satisfação dos credores no âmbito da liquidação.

Na doutrina, Lebre de Freitas4 defendendo a mesma posição define, a este propósito, como decisivo um “critério do benefício da massa insolvente”, considerando haver uma ideia geral orientadora no sentido de que o exercício pelo insolvente dos seus direitos se encontra limitado na estrita medida em que dele possa resultar prejuízo para a massa insolvente (por diminuição do seu ativo ou acréscimo do seu passivo), pelo que, tal limitação deixará de funcionar quanto a atos que, longe de agravarem a situação da massa insolvente, a possam valorizar.

Defende este autor a necessidade de articular o regime do art. 81 do CIRE que transfere para o administrador da insolvência dos bens integrantes da massa insolvente, com o disposto no art. 149º, 1, CIRE, sobre a apreensão dos bens para a massa insolvente, tendo ambos os preceitos como razão de ser a garantia da realização do fim da insolvência, a liquidação da massa em benefício dos credores e, por isso, os poderes conferidos ao administrador e a correspondente limitação dos direitos do insolvente sobre os seus bens, hão-de ser entendidos, na medida indispensável à realização desse fim.

Só assim se explica que a declaração da insolvência não importe a incapacidade do insolvente.

Perante a norma do art. 81 nº 4 do CIRE (o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência), nem sempre a concessão ao administrador do poder de representação implica, a perda, pelo insolvente, da possibilidade de, por modo eficaz perante a massa insolvente, exercer os seus direitos.

Havendo ações pendentes, em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as ações de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo. O administrador da insolvência substitui o insolvente em todas essas ações (art. 85 nºs 1 e 3 CIRE).

Trata-se, defende este autor, de uma decorrência da atribuição ao administrador do poder de representação geral do insolvente, em consequência da declaração de insolvência, e por isso, há que o entender subordinadamente ao interesse para a insolvência (art. 81º nº 4 CIRE) do resultado patrimonial da ação quando procedente.

Acrescentando:

Se porém, o administrador da insolvência não se substituir ao insolvente em ação proposta, designadamente por entender que esta não tem interesse para a massa insolvente ou que a substituição irá, com grave possibilidade para ela, acarretar prejuízos, em vez de benefícios (…), o insolvente é livre de se manter como autor, sem prejuízo da limitação do efeito (inoponibilidade do efeito à massa falida) do caso julgado desfavorável que se produza.

(…)

Para as ações posteriores à declaração de insolvência que a esta interessem (por o seu resultado poder afetar o ativo ou o passivo da massa insolvente) só tem, em princípio legitimidade o administrador da insolvência. No entanto devem ser feitas distinções semelhantes às que acabam de ser referidas quanto à opção a tomar pelo administrador perante as ações pendentes. Tratando-se de fazer valer direitos do insolvente, este será em princípio, representado pelo administrador; mas tal não impede a sua iniciativa em propô-las nem afasta a possibilidade de, não querendo o administrador prosseguir, com elas prosseguir o insolvente.”

O critério do benefício para a massa insolvente assenta, assim, na ideia geral de que, não sendo o insolvente um incapaz e sendo o exercício dos seus direitos limitado na estrita medida em que, exercendo-os, daí poderá resultar prejuízo para a massa insolvente, por diminuição do seu ativo ou acréscimo do seu passivo, tida em conta a oposição entre os interesses do insolvente e o dos credores no âmbito das relações de obrigação existentes, essa limitação deixa de funcionar quanto a atos que, longe de agravarem a situação patrimonial da massa insolvente, a possam valorizar.

Posição que subscrevemos.

Retomando o caso concreto.

Pretendendo a insolvente que determinado crédito reclamado pelo alegado credor e considerado reconhecido pelo Administrador da Insolvência se mostra extinto, por declaração compensatória emitida por aquela, em data anterior à declaração da insolvência, tal propósito, serve a finalidade de proteção dos interesses dos credores, dos efetivos credores, salvaguardando a satisfação dos seus créditos por afastamento dos que, tendo reclamado sem direito, possam indevidamente concorrer com aqueles na satisfação dos direitos creditórios sobre a massa insolvente.

Nessa medida nenhuma razão há para não reconhecer legitimidade à Insolvente para impugnar a lista de credores reconhecidos, elaborada pelo AI.

Essa legitimidade, de resto, encontra amparo no elemento literal da previsão do art. 130º do CIRE (Impugnação da Lista de credores reconhecidos) que estende a legitimidade de impugnação a qualquer interessado.

Dispõe o seu nº 1 que “Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.”

O artigo 192.º do CPEREF5 atribuía expressamente a legitimidade para contestar os créditos reclamados, aos credores e ao falido.

O CIRE, no artigo 130 nº 1, limitou-se a usar a fórmula “qualquer interessado”, para definir quem pode impugnar a lista de credores reconhecidos. Sem excluir dessa qualidade o insolvente.

“Assim ‘interessados’ devem considerar-se, além do insolvente, os credores em relação aos quais exista possibilidade de conflito com o titular do crédito reconhecido, segundo os termos concretos em que o reconhecimento se verificou”6 .

Neste sentido se pronunciou, entre outros, o Tribunal da Relação de Coimbra, em Acórdão proferido em 10/05/2011, no P. nº 124/06.0TBFAG-J.C1 (Isaías Pádua), tendo determinado o seguinte:

“I – Conforme dispõe o artigo 130.º do CIRE, dentro do prazo nele referido qualquer interessado pode impugnar a lista de credores reconhecidos, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.

II – É entendimento da doutrina que no conceito de interessados devem considerar-se, além do insolvente, os credores em relação aos quais exista a possibilidade de conflito com o titular do crédito reconhecido, segundo os termos concretos em que o reconhecimento se verificou.”

A jurisprudência tem reafirmado que, pode o insolvente ter interesse na impugnação e nessa medida se insere na categoria de qualquer interessado.

No caso, com a impugnação deduzida visa a Recorrente dar o crédito da credora AA, SA. como extinto por compensação, por factos ocorridos anteriormente à declaração de insolvência.

Só a devedora está em condições de impugnar tal crédito com tal fundamento e, a sua impugnação valoriza a massa insolvente, destinada esta à satisfação dos credores da insolvência (art. 46 CIRE).

Perante o critério do benefício para a massa insolvente, que adotamos, tem, a Insolvente legitimidade processual e substantiva para o fazer.

Devendo essa impugnação (se tempestiva) ser apreciada pelo Administrador da Insolvência.

Os termos subsequentes, derivados da resposta da credora AA, SA., nomeadamente a necessidade de uma via litigiosa, serão definidos em razão do entendimento que da impugnação-resposta venha a ter o Administrador da Insolvência, não cabendo no âmbito deste recurso, a sua antecipação.

Assim, deve o recurso proceder, baixando os autos à Relação para conhecimento da questão recursiva que ficara prejudicada, em razão da decisão de ilegitimidade que ora se reverte: da (in)tempestividade da impugnação deduzida pela Insolvente.

Em suma:

1. A transferência dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes na massa insolvente, do insolvente para o administrador da insolvência, imposta pelo artigo 81.º do CIRE tem subjacente a finalidade de proteção dos interesses dos credores e a salvaguarda da satisfação dos seus créditos.

2. Daí que, a indisponibilidade do insolvente só deva operar quanto a atos que, de alguma forma, possam comprometer o património da massa insolvente em prejuízo dos seus credores.

3. Devendo ser reconhecida legitimidade ao insolvente para praticar atos, incluindo atos em juízo, que possam importar o aumento ou valorização da massa insolvente.

4. Pretendendo a insolvente que determinado crédito reclamado por alegado credor e reconhecido pelo Administrador da Insolvência, se mostra extinto, por declaração compensatória emitida por aquela, em data anterior à declaração da insolvência, tal propósito, serve a finalidade de proteção dos interesses dos credores, salvaguardando a satisfação dos seus créditos por afastamento dos que, tendo reclamado sem direito, possam indevidamente com aqueles concorrer na satisfação dos direitos creditórios sobre a massa insolvente.

5. Nessa medida nenhuma razão há para não reconhecer legitimidade à Insolvente para impugnar aquele crédito da lista de credores reconhecidos, elaborada pelo Administrador da Insolvência.

6. Essa legitimidade, de resto, encontra amparo no elemento literal da previsão do art. 130º do CIRE (Impugnação da Lista de credores reconhecidos) que estende a legitimidade de impugnação a qualquer interessado.

V- Decisão

Em face do exposto, acorda-se em julgar a revista procedente e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, declarando ter a Insolvente legitimidade para a impugnação deduzida à lista de credores reconhecidos, devendo os autos descer à Relação para conhecimento da questão que fora levada a recurso de apelação (da (in)tempestividade da impugnação deduzida pela Insolvente)

Custas a cargo da massa insolvente.

Lisboa, 07 de outubro de 2025

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

Maria Olinda Garcia (1ª Adjunta)

Ricardo Costa (2º Adjunto)

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1. O qual prevê a possibilidade de administração da insolvência pelo devedor em situações em que na massa insolvente esteja compreendida uma empresa.↩︎

2. Com realces nossos. Todas disponíveis no site da dgsi.pt↩︎

3. Artigo 147.º do CPEREF - Limitações resultantes da declaração de falência

  1 - A declaração de falência priva imediatamente o falido, por si, ou, no caso de sociedade ou pessoa coletiva, pelos órgãos que o representem, da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes ou futuros, os quais passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário judicial.

  2 - O liquidatário judicial assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência.↩︎

4. Lebre de Freitas, in“Legitimidade do Insolvente para fazer valer direitos de crédito não apreendidos para a massa”, Estudos em homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, Vol. III, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 620-629,↩︎

5. Art. 192º do CPEREF:

  “Contestação dos créditos

  Nos sete dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 2 do artigo anterior, podem os credores ou o falido contestar a existência ou o montante dos créditos reclamados, sem exceção dos que já houverem sido reconhecidos em outro processo.”↩︎

6. Em anotação 5 ao art. 130º do CIRE, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª edição.↩︎