Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1141/23.1T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
PROVA DOCUMENTAL
PROVA TESTEMUNHAL
PRINCÍPIO DA ECONOMIA PROCESSUAL
RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL
ADMISSIBILIDADE
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
PRESSUPOSTOS
BANCO
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: - NEGADA A REVISTA NORMAL
- REMESSA À FORMAÇÃO
Sumário :
Nas circunstâncias dos autos não se verifica a alegada violação de normas processuais que disciplinam os poderes da Relação ao rejeitar o conhecimento da impugnação da matéria de facto por alegado incumprimento dos ónus previstos nos arts. 639.º e 640.º do CPC
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – Relatório

1. AA instaurou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra o Banco Comercial Português, S.A. (BCP), pretendendo ser indemnizada por danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência de execução que lhe foi movida pelo banco réu, que veio a ser julgada extinta, sendo que o imóvel de que era comproprietária, (que garantia o contrato de mútuo bancário celebrado com o banco réu), não obstante, foi vendido na execução movida contra ambos os mutuários e/ou no processo de insolvência do outro mutuário e adjudicado ao banco réu, que posteriormente o vendeu a terceiros, o que tudo sucedeu sem a sua intervenção.

Alegou que o banco réu faltou dolosamente ao cumprimento da obrigação de interpelação da autora, no âmbito do contrato de mútuo com hipoteca que esta celebrara com o banco, o que veio a ser demonstrado pela sentença transitada em julgado proferida nos embargos de executado deduzidos no Processo n.º 3077/17.6T8LLE-A, que extinguiu a execução.

Pela prática daquele acto doloso o banco réu constitui-se na obrigação de indemnizar a ora autora pelos danos sofridos, nos termos e para os efeitos dos arts. 483.º e seguintes do Código Civil.

Terminou formulando o seguinte pedido de “[s]er reconhecido o direito da Autora ao pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais em valor nunca inferior a €458.362,94, e por danos não patrimoniais [no] em valor nunca inferior a € 100.000,00, conforme supra discriminado, bem como ao pagamento de juros moratórios, contabilizados à taxa legal em vigor, desde a data da citação do Réu até integral e efetivo pagamento da quantia peticionada.”.

2. O réu contestou, pugnando pela sua absolvição, alegando, em síntese: que nenhum dano sofreu a autora que possa ser imputado ao Banco réu; que se limitou, no exercício do seu direito e perante o incumprimento dos mutuários (a falta de pagamento das prestações mensais do contrato de mútuo) a instaurar a respectiva execução, sendo a autora conhecedora do incumprimento e da pendência da execução (apesar da decisão judicial acima referida), nunca tendo proposto solução para o incumprimento (remetendo-lhe o Banco correspondência para a morada conhecida da documentação contratual); e sendo que o imóvel foi vendido não no processo executivo mas no processo de insolvência do outro mutuário, tendo-o este adquirido, na qualidade de credor da insolvência, por adjudicação e pelo preço que foi colocado à venda (preço que não foi por si, Banco réu, proposto, mas pelo administrador da insolvência), tudo também como melhor consta da sua contestação.

3. Veio a ser proferida sentença, com a seguinte decisão:

“Tudo ponderado, nos termos do supra exposto e das disposições legais acima referidas, julgando improcedente a acção, por não provada, absolvo o réu Banco Comercial Português SA (BCP) dos pedidos contra si formulados nesta ação pela autora AA.”.

4. Inconformada, a autora interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.

5. Por acórdão de 04.05.2025, o Tribunal da Relação rejeitou conhecer da impugnação da decisão de facto e, reapreciando a decisão de direito, julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.

6. Desta decisão veio a autora interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por via excepcional.

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

II - Admissibilidade do recurso

A autora interpôs recurso de revista ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1, al. a) e c) e n.º 2, al. a) e c) e arts. 671.º, n.º 1 e 674.º, n.º 1, als a) e b), todos do CPC, começando por invocar a violação de disposições processuais no exercício dos poderes de reapreciação da decisão de facto, alegando que o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu mal ao rejeitar o conhecimento da impugnação da matéria de facto por alegado incumprimento dos ónus previstos nos arts. 639.º e 640.º do CPC.

No caso, tendo o acórdão recorrido confirmado, com fundamentação essencialmente convergente, a decisão da primeira instância, ocorre dupla conforme impeditiva da admissibilidade do recurso de revista (cfr. n.º 3 do art. 671.º do CPC).

Todavia, de acordo com a orientação reiterada da jurisprudência deste Supremo Tribunal, na hipótese particular em que, em sede de recurso de revista, seja imputada à Relação a violação de normas processuais que regulam o exercício dos seus poderes, deve o recurso ser admitido, com o respetivo objeto circunscrito ao conhecimento da alegada irregularidade que, por ser imputada, em primeira linha, à Relação, não se encontra abrangida pela dupla conforme.

O presente recurso de revista é, pois, admissível, por via normal, na medida em que nele se suscita a alegada violação de normas processuais que disciplinam os poderes da Relação, sendo a admissibilidade circunscrita à apreciação de tal questão, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

III – Fundamentação

1. O acórdão recorrido fundamentou exaustivamente a decisão de rejeição da impugnação da matéria de facto da seguinte forma:

“… relativamente ao recurso em análise, constata-se que a Apelante, dos ónus impostos pelo artº 640º do CPC apenas cumpre com o ónus estabelecido no nº 1 al a) que é o de indicar quais os concretos pontos da matéria de facto que julga incorretamente julgados.

São eles, os seguintes factos provados: 10-14-20-21-22-23-24-30-31-32-33-24-35 e os seguintes factos não provados: «-O valor das obras efetuadas pela autora no imóvel, bem como o valor real e efetivo de mercado do imóvel; -Que todas as notificações efetuadas à autora relativas ao processo de execução, nenhuma tenha sido por si recebida; -Que a autora nenhuns valores receba (recebesse) a título de pensão de alimentos para os seus filhos menores de idade; -Que a sua atual casa de morada de família seja arrendada, bem como o valor da respetiva renda mensal; -O valor das despesas fixas mensais da autora e proveitos mensais; -Que a autora tenha recorrido a apoios sociais para poder sobreviver (sem prejuízo do que resulta do facto de litigar com apoio judiciário); -Que o Banco réu tenha praticado os factos acima elencados como provados, pretendendo consciente e dolosamente causar prejuízos patrimoniais à autora e obter para si um enriquecimento a que não teria direito.»

Acontece que, em lado algum do recurso interposto, (nem nas alegações de recurso, nem nas conclusões, que aliás diga-se, repetem as primeiras), a Apelante indica a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre aquelas questões de facto impugnadas, nem indica os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre cada um daqueles concretos pontos da matéria de facto que impugnou, inobservado assim o disposto nas alíneas b) e c) do nº 1 do citado art. 640º do C.P.C.

Com efeito, lida a impugnação da matéria de facto relativamente aos pontos impugnados, isto é aos factos que a recorrente reputa de erroneamente julgados, ou seja, os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento, fica-se apenas a saber quais os factos impugnados, sem contudo se descortinar qual a decisão que relativamente a cada um deles, a apelante reputa dever ser dada, porque não o diz, e bem assim, porque se limita a mencionar genericamente os meios probatórios - declarações de parte da autora, e depoimentos prestados pelas testemunhas, BB, CC, DD e EE, os quais são parcialmente transcritos no recurso e com indicação das passagens das gravações, mas sem indicação concreta aos pontos da matéria de facto que aqueles meios de prova imporão diversa decisão.

Veja-se por exemplo relativamente ao valor das obras, que a apelante defende ter resultado provado, em lado algum, refere qual o concreto valor que entende ter ficado demonstrado e pretende que seja reconhecido por este tribunal de recurso.

(…)

A Apelante ataca no recurso, de forma genérica e global, a decisão de facto relativamente aos pontos indicados, pedindo, pura e simplesmente, manifestando genérica discordância com o decidido, o que, como vimos, não é admissível em face da lei processual que regula os recursos.

Tal como vem formuladas as conclusões e as alegações do recurso fica-se, na verdade, sem se saber qual a pretensão concreta da Recorrente relativamente a cada um dos factos impugnados, que é dirigida a esta Relação: se pretende que a factualidade dada como provada seja considerada como não provada, na totalidade ou em parte; ou se pretende que seja proferida uma qualquer outra decisão sobre as questões de facto decididas.

(…)

Assim sendo, porque a apelante não fundamenta, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação, não indicando as passagens das gravações, rejeita-se o presente recurso na parte em que a apelante impugna a matéria de facto, por força do que dispõe o nº 1 do art. 640º do CPC.”. [bold nosso]

2. Insurge-se a recorrente contra o juízo do Tribunal da Relação, alegando essencialmente o seguinte:

“X- O Tribunal da Relação do Porto entendeu porém, que a recorrente «em lado algum do recurso interposto, (nem nas alegações de recurso, nem nas conclusões, que aliás diga-se, repetem as primeiras), a Apelante indica a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre aquelas questões de facto impugnadas, nem indica os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre cada um daqueles concretos pontos da matéria de facto que impugnou, inobservado assim o disposto nas alíneas b) e c) do nº 1 do citado art. 640º do C.P.C.», decidindo pela rejeição total do recurso na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto por falta de posição expressa sobre o resultado pretendido a cada segmento da impugnação, que no caso é genérica e falta de indicação dos concretos meios de prova relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnados. (art.° 640.°, n.° 1, alíneas b) e c) do CPC.»

Contradição de Decisões

XI- Também esta parte da decisão está em contradição com o Ac. proferido em 12-07-2018, por este Douto STJ, no proc. 167/11.2TTTVD.L1.S1, (…) podendo este Douto Tribunal conhecer da matéria de facto, ao abrigo do previsto no n.º 3º do Art.º 674º e 682º n.º 3 do C.P.C. , uma vez que existe ofensa de uma disposição expressa de lei, que exige certa espécie de prova para a existência do facto:

«I) Na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. II) O apelante que inclui nas conclusões do seu recurso os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, que insere a decisão que pretende seja proferida sobre esses mesmos factos, que nelas remete para a alegação a indicação dos meios de prova, nomeadamente, dos depoimentos gravados que determinam, segundo o mesmo, uma decisão diversa da impugnada, e fazendo aí a transcrição dos trechos da gravação considerados relevantes para a impugnação, e fazendo a sua delimitação, cumpre todos os ónus estabelecidos no artigo 640º, n.ºs 1, alíneas a) a c), e 2, alínea a), do CPCIII) Os artigos 340º, n.º 1, do Código Civil, e 8º, n.º 1, e 10º, estes da Lei n.º 98/09, de 04 de setembro) As razões pelas quais a apreciação da questão é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito;»

XII - Não podemos pois concordar com a decisão do TRP, desde logo, porque a recorrente deu cumprimento às obrigações constantes das alíneas b) e c) do nº 1 do art. 640º do C.P.C.:

Fê-lo, pelo menos, no ponto 61 das suas conclusões de recurso, onde indica a decisão que no seu entender deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

E também, ao longo do seu recurso, fez a indicação dos concretos meios de prova relativamente aos concretos pontos da matéria de facto impugnados, procedendo à transcrição dos excertos dos depoimentos das testemunhas que considerou relevantes para esse efeito (bem como indicando os exactos tempos e passagens de início e fim tal como se infere, nos pontos V a XXI e XXXI a LIV). Detalhando quais os factos provados em concreto, que deviam ter levado a decisão distinta, impugnando-os. E, contradizendo, com recurso a suporte probatório, os factos dados como provados e constantes nos números 30 a 34 do Acórdão em crise.

XIII- Nesta parte, a decisão recorrida (de rejeição do recurso) deverá ser revogada e substituída por outra que determine a apreciação pelo Tribunal da Relação do Porto, do recurso interposto quanto à matéria de facto impugnada, mediante, nomeadamente um pedido ao aperfeiçoamento, caso, assim se entenda necessário.

XIV- A decisão recorrida (de rejeição do recurso) terá, pois, de ser revogada.”.

3. Compulsado o percurso argumentativo do Tribunal da Relação, constata-se que a mesma recusou a reapreciação da decisão proferida com base em dois fundamentos distintos:

(i) omissão de indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (o que corresponde ao inadimplemento do ónus a que respeita a alínea b) do n.º 1 do art. 640.º do CPC); e

(ii) omissão da indicação da decisão que, no seu entender, devia ter sido proferida sobre as questões de facto impugnadas (o que corresponde à inobservância do ónus a que respeita a alínea c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC).

Perante o que se deixa exposto, está em causa o cumprimento das exigências, de natureza primária, do art. 640.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC, nas quais se dispõe o seguinte:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”.

Em particular, no que respeita à alínea b) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, é entendimento consolidado da jurisprudência deste Supremo Tribunal que “este preceito legal significa que é exigido ao impugnante a indicação dos meios de prova que não foram devidamente valorados pelo tribunal e, para além disso, que justifique, com clareza e rigor, as razões pelas quais tais elementos probatórios, devidamente conectados, directa e objectivamente, com cada um dos factos objecto de impugnação, impõem então resposta diversa da que foi (individualmente) proferida em relação aos mesmos”, não sendo, por isso, suficiente recorrer a uma simples descrição dos meios de prova produzidos em julgamento, que o impugnante considera relevantes e erradamente valorados (acórdão de 16-01-2024, proc. n.º 818/18.8T8STB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt).

Como se salienta no referido aresto, “o ordenamento jurídico processual obriga o recorrente (em matéria de facto) a justificar a razão concreta da sua discordância em sede de análise e valoração da prova produzida perante o juiz a quo, por referência a cada um dos factos impugnados (ou grupo de factos se, e, em casos especiais, existir uma interligação intrínseca e profunda entre eles que dispense essa individualização).”.

Por sua vez, relativamente ao ónus previsto na alínea c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, superada a dissensão outrora existente sobre os parâmetros interpretativos e âmbito desta disposição normativa, foi uniformizada jurisprudência com o seguinte teor:

“Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.” (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 12/2023)

O entendimento assim uniformizado encontra eco nas palavras de Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, págs. 196 e seg.) que já anteriormente deixara explícito o entendimento de que “no atual regime o legislador visou, sanar dúvidas do anterior preceito e reforçar o ónus imposto ao recorrente, na previsão expressa de o recorrente indicar a decisão alternativa, que no seu entender devia ser proferida.”

Sobre a alínea c), o mesmo autor refere que “o recorrente deixará expressa na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzida, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação por forma a obviar à interpretação de recursos de pendor genérico ou inconsequente. (…)”.

Todavia, à luz daquela que é também a orientação consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da interpretação do art. 640.º, n.º 1, do CPC, no sentido de não dever seguir-se uma perspectiva estritamente formalista, de tal modo que sejam violados os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, denegando a apreciação da decisão sobre a matéria de facto, o mesmo autor salienta que “com bastante frequência se verifica que uma leitura concertada das alegações, e não apenas das respetivas conclusões, permite afirmar o preenchimento dos requisitos mínimos a que deve obedecer uma peça processual para a qual não está legalmente prevista uma estrutura rígida nem para a motivação, nem sequer para o segmento conclusivo.”.

Em conclusão, aplicando as considerações acabadas de tecer sobre a problemática que ora nos ocupa, o recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumpre o ónus constante do n.º 1, alínea c), do art. 640.º, se a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, constar das conclusões, mas também da leitura articulada destas últimas com a motivação do vertido na globalidade das alegações, e mesmo na sequência do aludido, apenas do corpo das alegações, desde que do modo realizado, não se suscitem quaisquer dúvidas.

A interpretação assim uniformizada deve valer, por identidade de razão, também para o cumprimento do ónus previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, admitindo-se, por conseguinte, que a exigência aí prevista possa ser cumprida apenas no corpo das alegações. Neste sentido, a título de exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 09-06-2021 (proc. n.º 10300/18.8T8SNT.L1.S1) e de 08-04-2021 (proc. n.º 1544/16.8T8ALM.L1.S1), ambos consultáveis em www.dgsi.pt.

Por sua vez, pese embora subsistam divergências, o entendimento prevalecente no que toca ao aperfeiçoamento das conclusões é o de que “não é legalmente admissível a prolação de convite ao aperfeiçoamento das conclusões” no que toca ao incumprimento dos ónus previstos no n.º 1 do art. 640.º do CPC. Cfr., entre outros, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 25-03-2021 (proc. n.º 756/14.3TBPTM.L1.S1) e de 25-11-2020 (proc. n.º 950/18.8T8VIS.C2.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

4. Tendo em conta as considerações anteriores, e compulsadas as alegações e conclusões do recurso de apelação, cumpre apreciar se a apelante, ora recorrente, deu cabal cumprimento às exigências previstas nas alíneas b) e c) do art. 640.º, n.º 1 do CPC.

Em sede de 1.ª instância, foi proferida a seguinte decisão sobre a matéria de facto:

“Realizada audiência final, com as respectivas formalidades legais, no essencial e com interesse para o objecto do processo, considero provados os seguintes factos, por acordo das partes, documento bastante, ou resultante da audiência de julgamento:

1- Em 18 de Setembro de 2008, o Banco réu (BCP) celebrou com a autora AA e com FF um contrato de mútuo com hipoteca no valor de €162.000,00 (cento e sessenta e dois mil euros) (docs. juntos aos autos);

2- O referido valor destinou-se à aquisição da fracção autónoma designada pela letra “C” que correspondia à habitação composta por cave, rés-do-chão e primeiro andar, tendo na cave, garagem, do prédio urbano denominado por “Lote quatro ponto um ponto cinco barra um B”, sito na Rua 1, Vilamoura, freguesia de Quarteira, concelho de Loulé, à data da escritura descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º ..55 da referida freguesia e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo n.º ...68;

3- Na mesma data, 18.11.2008, foi também celebrado entre as partes outro contrato de mútuo com hipoteca no valor de €168.000,00 (cento e sessenta e oito mil euros) (doc. junto aos autos);

4- Para garantia destes dois contratos de mútuo foram constituídas duas hipotecas a favor do Banco réu sobre a fracção acima identificada (doc. junto aos autos);

5- A referida fracção autónoma foi adquirida pela autora, em regime de compropriedade com FF, detendo a autora 60/100 avos da mesma;

6- Posteriormente à aquisição do imóvel, a autora e o outro comproprietário (seu companheiro), realizaram obras na fracção que aumentaram o seu valor;

7- Em 28.09.2017, o BCP (Banco réu) intentou contra a ora autora e contra FF, acção de execução sumária, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Juízo de Execução de Loulé, sob o n.º 3077/17.6T8LLE, mediante a qual requeria o pagamento do montante de € 361.532,58 (trezentos e sessenta e um mil, quinhentos e trinta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos) (doc. junto aos autos);

8- No decurso da supra referida acção executiva, a ré penhorou o direito a 60/100 do imóvel supra identificado (doc. junto aos autos);

9- De igual modo, penhorou o saldo de todas as contas bancárias da autora, inclusive da sua conta clientes, já que a autora exerce a profissão de advogada (doc. junto aos autos);

10- As notificações e com respeito à acção executiva e correspondência da ré para a autora, forma enviadas para a(s) morada(s) que eram do conhecimento do BCP, mediante a documentação que possuía;

11- A autora, em finais de 2013, separou-se do seu companheiro e comproprietário do imóvel, deixando de habitar essa casa e que, até então, constituía a sua habitação própria e permanente;

12- A autora apresentou embargos de executado, contestados pela aqui ré, não tendo sido suspensa a execução (doc. junto aos autos);

13- Posteriormente, em sede de processo de insolvência do comproprietário FF, que correu termos sob o n.º 18794/17.2T8SNT, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo do Comércio de Sintra-Juiz 4, o réu adquiriu o direito a 40/100 do imóvel;

14- Em 04.12.2018 foi a quota-parte do imóvel, propriedade da autora, adjudicada ao Réu pelo montante mínimo de €162.948,48 (doc. junto aos autos);

15- Em 18.06.2019, a autora apresentou oposição às penhoras, alegando, em resumo:

Os valores constantes da verba 1 do auto de penhora não são propriedade da Executada, porquanto constam de uma conta clientes, utilizada pela Executada no exercício da sua profissão;

- Os valores constantes das verbas 2 a 4 do auto de penhora são valores para fazer face ao sustento do agregado familiar da Executada, composto pela própria e dois filhos menores;

- A Executada não recebe quaisquer valores a título de pensão de alimentos para o sustento dos seus filhos menores;

- A Executada não aufere quaisquer outros rendimentos além daqueles que advêm do exercício da sua profissão;

- Tudo contabilizado, as suas despesas fixas ascendem a um montante global mensal médio de 1.600,00 €;

- Assim, resulta que a penhora destes valores atenta contra a subsistência da Executada e do seu agregado familiar, sendo estes valores impenhoráveis;

16- Em 20.11.2019 o Banco réu procedeu à venda do mesmo imóvel pelo valor de €420.000,00 (doc. junto aos autos);

17- Por decisão final, transitada em julgado em 23.11.2021, decidiu o tribunal:

“a) Julgar os embargos de executado totalmente procedentes por provados, e, em consequência, declarar a execução extinta, relativamente à Embargante/executada AA;

b) Condenar o Embargado/exequente «Banco Comercial Português, S. A» no pagamento das custas e demais encargos com o processo. Registe e notifique, sendo também o (a) Senhor (a) Agente de Execução” (doc. junto aos autos);

18- Nessa sequência e por consequência da procedência dos embargos, em 02.03.2022 foi a execução declarada extinta quanto a si (doc. junto aos autos);

19- Em 20.12.2021 viriam as contas da autora a ser desbloqueadas e o respectivo valor restituído;

20- Entretanto, o Banco réu cedeu a terceira entidade o crédito (remanescente) que invoca ter sobre a autora, sendo esta interpelada por telefone para pagamento;

21- Todo o conjunto de situações acima referidas (nomeadamente execução e penhora das suas contas bancárias e profissional), causaram na autora incómodos e insatisfação, por não poder honrar compromissos com terceiros, sentindo-se afectada emocionalmente na sua vida pessoal e profissional;

22- A autora e o outro mutuário, a partir de Dezembro de 2013 deixaram de pagar as prestações mensais a que se referem os contratos de mútuo acima referidos;

23- Nessa sequência, o Banco réu endereçou aos mutuários, por cartas datadas de 14 de Abril de 2014 para as moradas por estes facultadas nos contratos, a sua integração no PERSI – Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, regulado no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro (docs. juntos aos autos);

24- Nenhum dos mutuários contactou o Banco réu no sentido de obter um acordo ou apresentar uma qualquer proposta de restruturação das responsabilidades e, nessa sequência, o PERSI extinguiu-se pelo decurso do respectivo prazo;

25- Aina nessa sequência e continuando a não serem pagas as respectivas prestações mensais, o Banco réu intentou a acção executiva já acima referida, Processo n.º 3077/17.6T8LLE que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Loulé – Juízo de Execução – Juiz 1;

26- A referida acção executiva foi intentada em 28 de Setembro de 2017, peticionando-se a quantia de €361.532,58 (trezentos e sessenta e um mil, quinhentos e trinta e dois euros e cinquenta e oito cêntimos), tendo desde logo indicando-se à penhora a referida fracção autónoma que garantia as responsabilidades peticionadas por hipoteca;

27- Em 8 de Janeiro de 2018, a Agente de Execução procedeu à citação pessoal da autora para a execução (doc. junto aos autos);

28- Aos embargos deduzidos pela autora não foi atribuído efeito suspensivo, prosseguindo a acção executiva os seus ulteriores termos, com as diligências atinentes à venda do bem imóvel penhorado;

29- No entretanto, foi o outro mutuário declarado insolvente, no âmbito do processo n.º 18794/17.2T8SNT que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca

de Sintra – Juiz 4, pelo que, a execução ficou suspensa quanto ao mesmo, apenas prosseguindo contra a autora;

30- Em 27 de Março de 2018 foram as partes notificadas pela Agente de Execução para indicarem a modalidade e valor base para a venda do bem imóvel penhorado (quota parte da autora), sendo a aqui autora notificada para a morada em que havia sido citada (doc. junto aos autos);

31- A Agente de Execução proferiu em 19 de Abril de 2018 decisão de venda na qual consta que:

“O valor patrimonial atual da totalidade do imóvel é de 319.506,84 euros, determinado no ano de 2017, conforme caderneta que se anexa, sendo que se deverá considerar apenas o valor respeitante à quota parte a Executada, na proporção de 60/100.

Em face do supra exposto, determina-se que o bem imóvel penhorado em 29/09/2017 abaixo identificado, irá à venda na modalidade de Leilão Eletrónico, pelo Valor Base de 191.704,10 Euros, em cumprimento do disposto no artigo 812º nº3 al. a) do C.P.Civil, valor correspondente a 60% do valor patrimonial.”;

32- As partes foram notificadas dessa decisão da Agente de Execução, sendo a autora para a morada em que havia sido citada (doc. junto aos autos);

33- No entanto, foi posteriormente designada data para abertura de propostas em carta fechada, o que ocorreu em 04.12.2018, requerendo o Banco réu a adjudicação da quota parte da autora pelo valor de €162.948,48 (cento e sessenta e dois mil novecentos e quarenta e oito euros e quarenta e oito cêntimos) (doc. junto aos autos, “auto de abertura e aceitação de propostas”, estando a autora representada por patrona);

34- Após a adjudicação, subsistindo valores em dívida na execução, esta prosseguiu os seus termos, com a penhora de outros bens da ora executada, sendo nessa sequência que foi efectuada a penhora das contas bancárias da autora;

25- A quota-parte do imóvel que era propriedade do outro mutuário (40/100) foi vendida no processo de insolvência deste.


*


Também apenas no essencial e com interesse para o objecto da acção, considero não provados os seguintes factos:

- O valor das obras efectuadas pela autora no imóvel, bem como o valor real e efectivo de mercado do imóvel;

- Que todas as notificações efectuadas à autora relativas ao processo de execução, nenhuma tenha sido por si recebida;

- Que a autora nenhuns valores receba (recebesse) a título de pensão de alimentos para os seus filhos menores de idade;

- Que a sua actual casa de morada de família seja arrendada, bem como o valor da respectiva renda mensal;

- O valor das despesas fixas mensais da autora e proveitos mensais;

- Que a autora tenha recorrido a apoios sociais para poder sobreviver (sem prejuízo do que resulta do facto de litigar com apoio judiciário);

- Que o Banco ré tenha praticado os factos acima elencados como provados, pretendendo consciente e dolosamente causar prejuízos patrimoniais à autora e obter para si um enriquecimento a que não teria direito.”.

Vejamos, agora, o que a ora recorrente alega e conclui no recurso de apelação no tocante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto:

“V. Em relação aos pontos 10, 14, 23, 25 e 30 a 34 (em negrito), note-se em primeiro lugar que, os factos atinentes à correspondência enviada pelo banco, foram minuciosamente julgados em sede de embargos, tendo ficado provado que, «em virtude da falta de interpelação da Embargante/executada é inexigível a obrigação exequenda por não ter sido emitida qualquer declaração resolutória do contrato, sendo também inexequível o título executivo quanto às despesas extrajudiciais já que a Embargante/executada nunca foi notificada da sua existência nem interpelada para o seu pagamento e caso tivesse conhecimento do incumprimento poderia ter reagido, fosse colocando termo à mora (...)» (Ver sentença junta aos autos com a p.i.).

VI. No âmbito desta decisão final e transitada em julgado em 23.11.2021, os embargos foram julgados totalmente procedentes por provados (entre outros, dada a falta de interpelação e de resolução do contrato de mútuo) e em consequência, declarada a execução extinta, relativamente à Embargante/executada AA. (Sublinhado nosso).

VII. Esta é a única decisão definitiva proferida no processo de embargos de executado, não tendo havido nenhuma decisão com trânsito em julgado, que julgasse os embargos improcedentes e que adjudicasse a parte do imóvel da Autora ao banco, porquanto a Decisão de que a Ré/recorrida se arrogou e que serve de sustentação à decisão em crise, foi considerada NULA, pelo Tribunal da Relação de Évora, em sede do recurso apresentado pela embargante, em oposição a esta mesma venda, (Ver Doc. 1 que se junta, reitera-se, face ao elemento de novidade introduzido na sentença a quo).

VIII. Cometeu assim o Tribunal a quo um erro, ao dar como provados os factos supra expostos (principalmente no que à adjudicação do bem ao banco se refere), sustentados numa decisão que julgou os embargos improcedentes e que como se disse, foi anulada pelo Tribunal Superior pelo que não transitou em julgado, em contradição com a Decisão transitada em julgado e junta aos autos com a p.i., onde consta terem sido julgados procedentes.

(…)

XVII. O Tribunal recorrido deveria ter decidido de forma contrária, considerando em primeiro lugar que o valor em dívida à data da execução, não correspondia ao valor integral do empréstimo porquanto os pagamentos foram cumpridos ao longo de seis anos, i.e., até janeiro de 2014 (Ver doc. 1 da p.i. com os valores em dívida com o decurso do prazo) e que, não obstante ter sido anulada a adjudicação do bem ao banco pelo Tribunal Superior em 07.11.2019, vendeu a Ré recorrida o imóvel da recorrente, sem ter dado cumprimento ao direito de preferência e, sem comunicar essa venda aos autos de execução, de embargos ou de oposiçao à penhora e sem prestar ou apresentar quaisquer contas do produto da mesma.

XVIII. E bem assim, que a recorrida deixou de ter legitimidade para prosseguir com a execução após à venda do imóvel e não obstante, continuou a ordenar e diligenciar pelas penhoras das contas bancárias de que a recorrente era titular, i.e., a sua conta pessoal e a sua conta clientes e mais, cedendo o crédito a uma terceira entidade, para a qual a Servbdebt passou a promover constantes e insistentes diligências de cobrança junto da recorrente, de um valor que já não existia.

(…)

XXX. Nunca podendo ter considerado assente os factos 30 a 35, sustentados na adjudicação ao banco/recorrida do imóvel da recorrente e que, «a após a adjudicação subsistindo valores em dívida na execução, esta prosseguiu os seus termos, com a penhora de outros bens da ora executada, sendo nessa sequência que foi efectuada a penhora das contas bancárias da autora».

(…)

XLIX. Discorda a recorrente também quanto à matéria de facto não provada, conforme teve oportunidade de esclarecer ao tribunal nas suas declarações de parte, confirmadas pelas testemunhas arroladas (BB e DD), que foram coincidentes.”. [bold nosso]

Verifica-se que, ao longo das suas alegações de recurso, a apelante transcreve partes de depoimentos de testemunhas e declarações de parte a propósito dos factos a que alude nos pontos antecedentemente transcritos.

Em sede de conclusões, a apelante escreve, com relevância para a impugnação da matéria de facto, o seguinte:

“6. Errando na apreciação da prova, ao considerar não provados: «- O valor das obras efectuadas pela autora no imóvel, bem como o valor real e efectivo de mercado do imóvel; - Que todas as notificações efectuadas à autora relativas ao processo de execução, nenhuma tenha sido por si recebida; - Que a autora nenhuns valores receba (recebesse) a título de pensão de alimentos para os seus filhos menores de idade; - Que a sua actual casa de morada de família seja arrendada, bem como o valor da respectiva renda mensal; - O valor das despesas fixas mensais da autora e proveitos mensais; - Que a autora tenha recorrido a apoios sociais para poder sobreviver (sem prejuízo do que resulta do facto de litigar com apoio judiciário); - Que o Banco ré tenha praticado os factos acima elencados como provados, pretendendo consciente e dolosamente causar prejuízos patrimoniais à autora e obter para si um enriquecimento a que não teria direito.»

7. E bem assim, errando ao considerar provados os factos 10, 14, 20 a 24 e 30 a 35, senão veja-se:

8. No decurso da supra referida acção executiva, a ré penhorou o direito a 60/100 do imóvel supra identificado (doc. junto aos autos); (O que é certo)

9. De igual modo, penhorou o saldo de todas as contas bancárias da autora, inclusive da sua conta clientes, já que a autora exerce a profissão de advogada. (igualmente certo)

10- As notificações e com respeito à acção executiva e correspondência da ré para a autora, forma enviadas para a(s) morada(s) que eram do conhecimento do BCP, mediante a documentação que possuía.

14- Em 04.12.2018 foi a quota-parte do imóvel, propriedade da autora, adjudicada ao Réu pelo montante mínimo de €162.948,48 (doc. junto aos autos).

20- Entretanto, o Banco réu cedeu a terceira entidade o crédito (remanescente) que invoca ter sobre a autora, sendo esta interpelada por telefone para pagamento;

23- Nessa sequência, o Banco réu endereçou aos mutuários, por cartas datadas de 14 de Abril de 2014 para as moradas por estes facultadas nos contratos, a sua integração no PERSI – Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento, regulado no Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de Outubro (docs. juntos aos autos);

24- Nenhum dos mutuários contactou o Banco réu no sentido de obter um acordo ou apresentar uma qualquer proposta de restruturação das responsabilidades e, nessa sequência, o PERSI extinguiu-se pelo decurso do respectivo prazo;

30- Em 27 de Março de 2018 foram as partes notificadas pela Agente de Execução para indicarem a modalidade e valor base para a venda do bem imóvel penhorado (quota parte da autora), sendo a aqui autora notificada para a morada em que havia sido citada (doc. junto aos autos);

31- A Agente de Execução proferiu em 19 de Abril de 2018 decisão de venda na qual consta que: “O valor patrimonial atual da totalidade do imóvel é de 319.506,84 euros, determinado no ano de 2017, conforme caderneta que se anexa, sendo que se deverá considerar apenas o valor respeitante à quota parte a Executada, na proporção de 60/100. Em face do supra exposto, determina-se que o bem imóvel penhorado em 29/09/2017 abaixo identificado, irá à venda na modalidade de Leilão Eletrónico, pelo Valor Base de 191.704,10 Euros, em cumprimento do disposto no artigo 812º nº3 al. a) do C.P.Civil, valor correspondente a 60% do valor patrimonial.”;

32- As partes foram notificadas dessa decisão da Agente de Execução, sendo a autora para a morada em que havia sido citada (doc. junto aos autos);

33- No entanto, foi posteriormente designada data para abertura de propostas em carta fechada, o que ocorreu em 04.12.2018, requerendo o Banco réu a adjudicação da quota parte da autora pelo valor de €162.948,48 (cento e sessenta e dois mil novecentos e quarenta e oito euros e quarenta e oito cêntimos) (doc. junto aos autos, “auto de abertura e aceitação de propostas”, estando a autora representada por patrona);

34- Após a adjudicação, subsistindo valores em dívida na execução, est prosseguiu os seus termos, com a penhora de outros bens da ora executada, sendo nessa sequência que foi efectuada a penhora das contas bancárias da autora;

25 (35)- A quota-parte do imóvel que era propriedade do outro mutuário (40/100) foi vendida no processo de insolvência deste.

8. Em relação aos pontos 10, 14, 20 a 24, 30 a 34 (em negrito), note-se em primeiro lugar que, os factos atinentes à correspondência enviada pelo banco e mais concretamente, à interpelação e resolução do contrato de mútuo celebrado, indispensáveis à instauração da execução, foram minuciosamente julgados em sede de embargos, tendo ficado provado que, «em virtude da falta de interpelação da Embargante/executada é inexigível a obrigação exequenda por não ter sido emitida qualquer declaração resolutória do contrato, sendo também inexequível o título executivo quanto às despesas extrajudiciais já que a Embargante/executada nunca foi notificada da sua existência nem interpelada para o seu pagamento e caso tivesse

conhecimento do incumprimento poderia ter reagido, fosse colocando termo à mora (...)» (Ver sentença junta aos autos com a p.i.).

9. Conforme decisão final e transitada em julgado 23.11.2021 foram os embargos Julgados totalmente procedentes por provados, e, em consequência, declarada extinta a execução, relativamente à Embargante/executada AA. (Sublinhado nosso).

10. Esta é a única decisão definitiva proferida no processo de embargos, não tendo havido nenhuma decisão com trânsito em julgado, que julgasse os embargos improcedentes e que adjudicasse a parte do imóvel da Autora ao banco, porquanto a Decisão de que a Ré recorrida se arrogou no âmbito dos presentes autos e que serviu de sustentação à decisão em crise, foi considerada NULA, pelo Tribunal da Relação de Évora, em sede do recurso da embargante, conforme Doc. 1 junto, face ao elemento de novidade introduzido na sentença a quo e o erro de julgamento constatado, por não verificação do trânsito em julgado.

11. A A. teve oportunidade de explicar o facto da adjudicação ao banco ter sido anulada, em sede de declarações prestadas sob juramento, na audiência que teve lugar no dia 05.02.2024, conforme consta do depoimento que ficou gravado em 00:29:15 a 00:31:24.

(…)

31. Tendo o imóvel à data da venda, um valor comercial de 800.000euros.

32. Factos que ficaram demonstrados nas declarações das testemunhas arroladas que trabalham na área da construção e de gestão de imóveis, na zona de Vilamoura, bem como nas declarações de parte da Autora/recorrente, gravadas de 00:01:25 a 00:33:12, cuja transcrição ao abrigo do previsto no art.º 40º do C.P.C., se faz de novo.”

(…)

36. Dado o amplo conhecimento do mercado imobiliário da testemunha no âmbito da sua actividade e as declarações que foram prestadas sob juramento, de forma desinteressada e espontânea, nada obstava a que as mesmas não fossem consideradas pelo Tribunal a quo.

37. Pelo que, errou o Tribunal de primeira Instância ao decidir: «Referiu um mínimo de 180 mil euros de obras (“benfeitorias”) que teria efectuado na casa, que lhe acrescentaram um enorme valor de marcado, mas obras concretas e valores que não se conseguiram apurar por uma forma/valor que pudesse servir a este tribunal como um mínimo de referência;»

38. E bem assim por dar como não provado «- O valor das obras efectuadas pela autora no imóvel, bem como o valor real e efectivo de mercado do imóvel.»

39. A testemunha BB, engenheiro e empresário na Construção civil, explicou ter sido amigo do pai, mas não da A. embora a conheça há bastante tempo e, sem ter qualquer interesse na causa, prestou as declarações sob juramento gravadas de 00:02:21 a 00:05:30, de forma espontânea:

«00:02:21 Patrona: O Sr. negoceia em imobiliária, tem uma empresa? BB: Correto

00:03:27 Patrona: Relativamente ao imóvel que a Dra. AA comprou com o marido, conhecia a casa? BB: Conhecia

00:03:50 Patrona: O Sr. sabe se foram feitas obras de remodelação no imóvel?

00:04:00 LC: Foram feitas obras importantes no imóvel de melhora, melhorou muito o imóvel. Melhorou quase todos os quartos, e a cozinha e a sala, enfim, fez obras importantes no imóvel.

00:04:18 P: Fez obras importantes no imóvel. Consegue quantificar o valor que terá gasto?

LC: Com exactidão não, mas mais de 100.000euros de certeza absoluta. Nunca menos de 100.000euros, e podem ter chegado aos 200.000 ou 300.000 euros, ela fez obras significativas na casa.

00:04:55 P: Teve conhecimento que em 2019 esse imóvel foi vendido pelo banco? LC: Sim

00:05:22 P: Uma vez que está ligado à imobiliária, consegue quantificar o valor de uma casa naquela zona nessa altura, em 2019.

00:05:30 LC: Nessa altura em 2019, posso dizer que essa zona de Vilamoura, ao dia de hoje é provável que ultrapasse Um Milhão 200mil Euros, naquela altura, iria para os 800.000euros, algo mais, porque estava numa zona mesmo muito boa de Vilamoura.»

40. Esta mesma testemunha declarou ter tido conhecimento dos problemas gravíssimos da recorrente, uma vez que «ficou sem dinheiro, passou problemas e dificuldades muito muito muito graves para poder-se manter e aos filhos» (Gravação 00:03:08).

41. Note-se que a moradia da recorrente sitava no Rua 1, frente ao campo de Golfe Old course em direcção ao Hotel Hilton em Vilamoura (Ver caderneta predial urbana junta como Doc. 9 da contestação e 2 da p.i.), tratando-se de uma moradia com uma área total do terreno de 3.007,0000 m², composta por três andares, em condomínio fechado num conjunto de apenas quatro moradias, com jardim e duas piscinas, (Ver Docs. 2, 11, e 13 da p.i.).

42. De igual forma, a testemunha CC, residente a muito curta distância do imóvel em causa nos autos, se bem que não prestou declarações quanto ao valor das obras realizadas, confirmou que foram feitas várias obras, quer na parte interior, quer no exterior, designadamente, como a colocação de um portão automático, acrescentando que tirou várias ideias, uma vez que também estava a fazer obras na sua casa, (gravação de 00:02:14 a 00:02:42):

(…)

44. A recorrente requereu a produção da prova testemunhal, porquanto toda a prova documental com respeito ao imóvel e as suas benfeitorias, tais como facturas dos materiais e das obras, se encontravam junto com os seus bens no imóvel na data da apropriação ilegítima por parte do banco. (…)”. [bold nosso]

5. Percorridas as alegações e conclusões recursórias, surge como manifesto que, em relação aos pontos 10, 14, 20 a 24, 30 a 34 da matéria de facto provada, a recorrente não cumpre minimamente os ónus previstos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC.

Com efeito, em relação a tais factos, a recorrente não indica a decisão que, no seu entender, deve ser proferida, nem indica o concreto meio probatório que impõe uma decisão diversa sobre cada um daqueles pontos de facto. Veja-se que, nesta sede, a recorrente refere apenas a sentença proferida em sede de embargos onde foi declarada extinta a execução instaurada contra si (factualidade que se mostra vertida nos pontos 12. e 17.) e, adiante, a propósito do tema respeitante à adjudicação do imóvel, as declarações prestadas pela própria em sede de julgamento.

De igual modo, não satisfaz tal exigência a invocação como suporte probatório da divergência quanto à decisão de facto um conjunto diversificado de elementos de prova sem o mínimo de concretização por reporte a cada um dos factos objecto de impugnação, como é feito no requerimento de recurso apresentado.

De resto, considerando que os factos que a apelante impugna decorrem, na sua globalidade, da análise da prova documental junta aos autos, fica-se sem compreender o objecto e motivação desta parte da impugnação, sendo certo que a prova da decisão proferida em sede de embargos de executado não é contrária à demonstração daqueles outros factos.

Secundamos, assim, o entendimento da Relação quando concluiu existir, nesta parte, uma verdadeira omissão, nas alegações e conclusões de recurso, da identificação da decisão que deve ser proferida sobre os concretos pontos de facto que, no entender da recorrente, foram incorretamente julgados, e da indicação dos meios probatórios que, para cada facto, impõem decisão diversa, o que, na senda daquele que tem vindo a ser o entendimento prevalecente da jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, implica a imediata rejeição do recurso nessa parte, não havendo lugar à prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento.

Mudando o prisma de análise para a impugnação da matéria de facto não provada, constata-se que apenas em relação aos pontos de facto relativos ao valor das obras efectuadas pela autora no imóvel, bem como ao valor de mercado do imóvel, se podem ter como cumpridos, ainda que de forma não irrepreensível, os ónus a que aludem as alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC. No que aos demais respeita, há uma evidente omissão nas alegações e conclusões de recurso, da identificação da decisão que no entender da apelante deve ser proferida sobre aqueles pontos de facto e da indicação dos meios probatórios que impõem decisão diversa.

Lidas as alegações de recurso na sua globalidade e em confronto com o teor das conclusões, é possível concluir que a recorrente entende que deveria ter sido dado como provado que o imóvel tinha o valor de € 800.000,00 e, bem assim, que o valor das obras por si efectuadas deveria ser fixado em valor não inferior a € 180.000,00 (cfr. pontos 31. e 61., iv) das conclusões.

A recorrente indica ainda os meios de prova testemunhal que, na sua perspectiva, permitem dar como provada a referida factualidade, indicando as passagens da gravação em que se baseia, transcrevendo a parte dos depoimentos que se debruça justamente sobre aqueles concretos factos.

Constata-se, assim, que, nesta específica parte relativa ao valor das obras e do valor real do imóvel, as conclusões (e corpo das alegações) do recurso permitem alcançar, com razoável esforço interpretativo e com mínima segurança, uma adequada intelecção do fim e do objecto do recurso.

Nesta conformidade, mal andou o Tribunal da Relação ao rejeitar conhecer da impugnação da matéria de facto quanto à matéria de facto vertida no ponto 1. do elenco dos factos não provados.

Sucede, porém, não se justificar remeter novamente o processo ao Tribunal recorrido para apreciação da impugnação quanto a estes concretos pontos de facto, uma vez que, ainda que os mesmos fossem dados como provados nos termos pretendidos pela recorrente, nunca o desfecho decisório da acção seria diferente.

Com efeito, como se salienta no acórdão recorrido, fundando-se a presente acção na responsabilidade extracontratual por factos ilícitos (imputados pela autora ao réu), a obrigação de indemnizar os prejuízos sofridos pela autora sempre dependeria da prova dos pressupostos cumulativos dessa mesma responsabilidade civil extracontratual, designadamente a existência de um facto ilícito praticado pelo réu, a culpa, o facto e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Ora, os demais factos dados como provados, em relação aos quais não se afigura admissível o conhecimento da impugnação da matéria de facto deduzida na apelação, são manifestamente insuficientes para, desde logo, permitir imputar ao banco réu qualquer comportamento ilícito culposo.

Nesta medida, o aditamento dos factos relativos ao valor do imóvel e das obras nele efectuadas como pretende a recorrente não assume manifestamente pertinência, nem relevância para a decisão da causa, pelo que a apreciação da impugnação da matéria de facto nesta parte se nos afigura absolutamente inútil.

Conforme entendimento consolidado na jurisprudência deste Supremo Tribunal, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto assume um carácter instrumental face à decisão de mérito a proferir, só se justificando o exercício de poderes de controlo da Relação sobre a decisão de facto da 1.ª instância se estivermos perante factos com indiscutível relevância para a decisão da causa, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual manifestamente inconsequente.

Concluindo-se, pois, in casu, pela inutilidade da reapreciação pretendida (uma vez que, ainda que procedesse a impugnação da matéria de facto nos termos correctamente requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesma), tal reapreciação não deve ser determinada por constituir um acto absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais (cfr. arts. 2.º, n.º 1, e 130.º, ambos do CPC).

Conforme se escreve no sumário do acórdão deste Supremo Tribunal de 28-09-2023 (proc. n.º 2509/16.5T8PRT.P1.S1):

“Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto se entender que os concretos factos objecto da impugnação, atentas as circunstâncias do caso e as várias soluções plausíveis de direito, não têm relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual puramente gratuita ou diletante.”.

No mesmo sentido, a título de exemplo, ver os acórdãos do STJ de 17-05-2017 (proc. n.º 4111/13.4TBBRG.S1), de 14-03-2019 (proc. n.º 8765/16.1T8LSB.L1.S2), de 28-01-2020 (proc. n.º 287/11.3TYVNG-G.P1.S1, de 09-02-2021 (proc. n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1) e de 17-01-2023 (proc. n.º 1202/18.9T8CBR.C2.S1), consultáveis em www.dgsi.pt.

Nesta conformidade, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito e, uma vez que os concretos pontos de facto em causa, não assumem utilidade nem relevância para a decisão dos autos, resulta prejudicada a reapreciação da impugnação da matéria de facto, impondo-se consequentemente a confirmação do acórdão recorrido, ainda que, nesta parte, sob diferente fundamentação.

IV – Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a. Admitir o recurso, por via normal, circunscrito à apreciação da alegada violação de normas processuais que disciplinam os poderes da Relação ao rejeitar o conhecimento da impugnação da matéria de facto por alegado incumprimento dos ónus previstos nos arts. 639.º e 640.º do CPC, julgando-o improcedente;

b. Após trânsito, determinar a remessa dos autos à Formação de juízes prevista no n.º 3 do art. 672.º do CPC, para a apreciação da admissibilidade do recurso, por via excepcional, quanto às demais questões recursórias.

Custas a final.

Lisboa, 27 de Novembro de 2025

Maria da Graça Trigo (relatora)

Teles Pereira

Ana Paula Lobo