Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
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| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | CATARINA SERRA | ||
| Descritores: | INSOLVÊNCIA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE CRÉDITO SOBRE A INSOLVÊNCIA CRÉDITO SOBRE A MASSA INSOLVENTE CONTRATO BILATERAL FIADOR RESOLUÇÃO EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES EMBARGOS DE EXECUTADO EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA | ||
| Data do Acordão: | 10/02/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA | ||
| Sumário : | I. Não existindo uma definição legal de créditos sobre a massa insolvente, ela não deve ser retirada, a contrario, da definição legal de créditos sobre a insolvência (cfr. artigo 47.º, n.º 1, do CIRE), concluindo-se que os créditos sobre a massa são os restantes créditos, ou seja, aqueles cujo fundamento é posterior à data de declaração de insolvência. II. Isto é assim porque, desde logo, aquela definição legal de créditos sobre a insolvência não é inteiramente correcta: existem créditos cujo fundamento é anterior à data da declaração de insolvência e que a lei classifica como créditos sobre a massa (cfr. artigos 17.º-E, n.º 12, 17.º-H, n.º 2, e 140.º, n.º 3, do CIRE); depois, existem créditos cujo fundamento é posterior à data da declaração de insolvência e que a lei classifica como créditos sobre a insolvência (cfr. artigos 47.º-A, 102.º, n.º 3, als. c) e d), e 108.º, n.º 5, ex vi do art. 109.º, n.º 2, do CIRE). III. A exoneração do passivo restante não importa, em rigor, a extinção dos créditos, a despeito da lei, que usa o termo “extinção” no artigo 245.º, n.º 1, do CIRE, incutindo a convicção de que os créditos se extinguem. IV. Não obstante o artigo 102.º, n.º 1, do CIRE se referir genericamente a “contrato bilateral”, deve entender-se que estão em causa apenas contratos bilaterais perfeitos ou sinalagmáticos e que a circunstância de não haver “ainda total cumprimento”, que é requisito de aplicação da norma, respeita apenas às obrigações que sejam sinalagmáticas, quer dizer, apenas aos deveres principais de prestação. V. Por esta razão, um contrato em que uma das partes se obriga a adquirir certa quantidade de café e o insolvente intervém apenas como fiador não é, relativamente a ele, um negócio em curso nos termos e para os efeitos do artigo 102.º do CIRE. VI. A referência, no artigo 245.º, n.º 1, do CIRE, aos créditos sobre a insolvência “que ainda subsistam à data em que é concedida [a exoneração]” tem a virtualidade de circunscrever o alcance da exoneração aos créditos que foram ou puderam ser reclamados no processo de insolvência, o que implica, naturalmente, que eles existam e possam ser reclamados no curso do processo de insolvência. VII. O crédito que se constitua depois de encerrado o processo de insolvência, ainda que antes de proferido o despacho final de exoneração do passivo restante, não é abrangido pela exoneração, porque, diversamente dos credores da insolvência, este credor não teve a oportunidade de obter o pagamento (parcial) do crédito durante e por via do processo de insolvência. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO Recorrente: AA Recorrido: Nestlé Portugal, Unipessoal, Lda. 1. Nos presentes embargos deduzidos à execução para pagamento de quantia certa em que é exequente / embargada Nestlé Portugal, Unipessoal, Lda., e executado / embargante AA, foi proferida sentença em que, na parte relevante, pode ler-se: “O embargante alega que a sentença foi proferida no decurso do processo da sua insolvência (decretada em 23-V-17), e que foi concedida exoneraçao do passivo restante em 14-IX-22; respondeu a embargada que, por decisão de 19-V-22 na acção declarativa (transitada em julgado), foi julgado improcedente (por a resolução do contrato ter ocorrido depois do encerramento do processo de insolvência) o pedido de absolvição da instância (por ilegitimidade decorrente da insolvência). Face ao caso julgado supra, resta saber se a exoneração do passivo restante constitui “facto extintivo ou modificativo” da obrigação (CPC 729º/g)) – estabelecendo o nº 1 do artigo 245º do C.I.R.E. que “A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no nº 4 do artigo 217º.” Atenta a definição do artigo 47º/2 do C.I.R.E., e a data de resolução do contrato (provada na sentença), não se pode considerar o crédito exequendo como “crédito sobre a insolvência” - pelo que não tem lugar a aplicação da regra supra citada. Motivo por que se julgam improcedentes as excepções (…) Pelo exposto, julgam-se improcedentes os presentes embargos”. 2. Tendo o executado / embargante apelado, proferiu o Tribunal da Relação de Lisboa um Acórdão em que, por maioria, se decidiu: “Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em julgar totalmente improcedente a apelação apresentada, mantendo-se na íntegra a sentença proferida na primeira instância”. 3. Notificado deste Acórdão, veio o executado / embargante apresentar “RECURSO DE REVISTA a subir imediatamente nos próprios autos com efeito meramente devolutivo, artigos 671º, n.º3, 675º, 676º do Código de Processo Civil, para o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA”. Conclui as suas alegações nos seguintes termos: “I O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa por Acórdão de 19/02/2025, confirmou a Sentença do Tribunal de 1ª instância, julgando improcedente os embargos apresentados pelo ora Recorrente, desconsiderando a exoneração do passivo restante concedida em 14 de Setembro de 2022. II O Tribunal a quo, com voto de vendido da Senhora Desembargadora Dr.ª Vera Antunes, considerou que o crédito exequendo não constituía crédito sobre a insolvência com base na data de resolução do contrato, sem observar que os factos geradores do incumprimento ocorreram durante o processo de insolvência, o que torna o crédito parte do passivo restante e, assim, extinto com a exoneração. III O crédito exequendo foi erroneamente caracterizado, como não estando abrangido pela insolvência. IV O Tribunal “a quo” falhou ao não aplicar a regra do artigo 47º do C.I.R.E., que inclui o referido crédito no passivo a ser exonerado, uma vez que a sentença condenatória apenas reconhece formalmente uma obrigação preexistente, originada antes da insolvência. V A finalidade da exoneração do passivo restante tem o objectivo de permitir ao devedor uma “segunda oportunidade” sem o prejuízo de dívidas antigas. Sendo que, ao negar a aplicação da exoneração ao crédito exequendo, o Tribunal viola o principio fundamental do C.I.R.E., que é assegurar ao devedor um novo começo financeiro. VI Não foi demonstrado que o crédito exequendo incorre em nenhuma das excepções previstas no artigo 245º, n.º2 do C.I.R.E., como coimas, créditos fiscais ou factos ilícitos dolosos, razão pela qual deveria ser incluído na exoneração do passivo restante. VII O Tribunal cometeu um erro de interpretação e aplicação dos artigos 245º e 47º do C.I.R.E. ao qualificar o crédito como excluído da exoneração, desconsiderando o facto de que os eventos que originaram a divida, ocorreram durante o processo de insolvência, devendo, por isso, ser considerados créditos sobre a insolvência”. 4. A exequente / embargada contra-alegou, pugnando pela manutenção do Acórdão recorrido. 5. Foi proferido despacho mandando subir o recurso a este Supremo Tribunal. * Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se os embargos devem proceder. * II. FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS O Tribunal recorrido adoptou como provados os factos dados como provados acção declarativa de condenação, quais sejam: 1. A Autora alterou a sua denominação social para Nestlé Portugal, Unipessoal, Lda. 2. A Autora acordou com os Réus, no exercício da atividade comercial própria da Autora e da 1.ª Ré para o seu estabelecimento comercial o acordo escrito n.º 29281 datado de 25-05-2015 de fornecimento de café, comparticipação publicitária, comodato de equipamento e comodato material ponto de venda, conforme documento n.º 1 nos precisos termos aqui dados por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais. 3. A duração do acordo n.º 29281 foi inicialmente estipulada por um período de 60 meses e com início em 25-05-2015 ( Cláusula 7ª do doc. n.º 1). 4. No âmbito deste acordo, a 1.ª Ré obrigou-se a consumir, em exclusivo, no seu estabelecimento comercial, café de marca BUONDI, Lote PREMIUM, comercializado pela Autora (Considerandos e Cláusulas 1ª e 2ª do doc. 1); 5. Tendo-se obrigado a adquirir 3.900 Kgs deste produto, num mínimo mensal de 65kgs (cláusula 2ª nº 2 do doc. 1). 6. Como contrapartida das obrigações assumidas, a Autora entregou à 1.ª Ré a título de comparticipação publicitária a quantia de 38.868,00€ IVA incluído (cláusula 4ª do doc.1 e documentos 2 e 3). 7. Como contrapartida das obrigações assumidas, a Autora colocou no estabelecimento comercial da 1.ª Ré, em regime de comodato, o seguinte equipamento: a) 1 Moinho Rancilio Md50 At, no valor de 728,30€ + IVA; b) 1 Máquina de café Rancilio Basic 2G, no valor de 4.500,00€ + IVA à taxa em vigor; Tudo no valor global de 6.430,81€ IVA incluído (cláusula 5ª do doc.1); 8. Como contrapartida das obrigações assumidas, a Autora colocou no estabelecimento comercial da 1.ª Ré, em regime de comodato, o seguinte material ponto de venda: a) 2 (dois) Paraventos no valor de 754,00€ + IVA à taxa legal em vigor; b) 1 (um) Reclame Luminoso no valor de 11.927,00€ + IVA à taxa lega em vigor; Tudo no valor global de 15.597,63€ IVA incluído (cláusula 6.ª do doc.1) 9. Em Maio de 2017 a 1.ª Ré realizou a última aquisição de café à Autora e não mais retomou o seu consumo. 10. Tendo apenas comprado à Autora 992 Kgs de café dos 3.900Kgs que se havia obrigado. 11. Nos termos do acordado no n.º 2 da Cláusula 9.ª do doc. 1 é fundamento de resolução do contrato um desvio nos consumos mensais acordados nos termos do nº 2 da Clausula 2ª superior a 20%, por um período de 6 meses consecutivos. 12. Em consequência, a Autora enviou aos Réus carta registada com aviso de receção, datadas de 26-05-2020, interpelando-os para que corrigissem o incumprimento contratual (vide documentos 4, 5 e 6). 13. Não obstante, a carta enviada à 1.ª Ré ter sido devolvida pelos CTT, foi remetida para a morada constante do contrato. 14. As cartas remetidas aos 2.º e 3.º Réus foram recebidas, em 28-05-2020. 15. Face à persistência no incumprimento contratual acima descrito, por cartas registadas com aviso de receção datadas de 31-07-2020 enviadas aos Réus, a Autora procedeu à resolução do contrato e interpelou aqueles para que efetuassem o pagamento dos valores indemnizatórios estabelecidos nos termos dos números 2 e 3 da cláusula 5ª do documento n. º1 (documentos 7, 8 e 9). 16. Não obstante, a carta enviada à 1.ª Ré ter sido devolvida pelos CTT, foi remetida para a morada constante do contrato, não tendo sido comunicada à Autora nova morada. 17. As cartas remetidas aos 2.º e 3.º Réus foram recebidas, em 06-08-2020. 18. Nos termos do n.º 3 da cláusula 5.ª da epígrafe “Comparticipação Publicitária”, terminado o contrato, sem que os Réus adquiram a totalidade dos quilogramas de café contratados, estão obrigados a indemnizar a Autora, no montante de 10,00€ por cada quilograma de café não consumido, dos 3.900 kgs contratados. 19. O valor da indemnização a pagar à Autora nos termos do identificado artigo atinge o montante de 29.080,00€ (3.900Kgs contratados –992Kgs consumidos = 2.908 Kgs em falta x 10,00€). 20. Os 2º e 3.º Réus assinaram o contrato identificado nos autos como doc.1, na qualidade de fiadores, obrigando-se nessa qualidade. 21. Com efeito e de acordo com a cláusula 10ª do doc.1. resulta claramente que os ditos Réus constituíram-se expressamente fiadores e principais pagadores de todas as obrigações assumidas pela segunda outorgante no presente contrato. 22. Os Réus, apesar de interpelados pela Autora pelas cartas datadas 31-07-2020 respetivamente, não realizaram o pagamento de qualquer quantia. Além destes, o Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos: a) Em 16/04/2024, o ora Recorrente apresentou nos autos Embargos de Executado e Oposição à Penhora, nos quais alegou: … “Por sentença de 23/05/2017, proferida no âmbito do processo n.º 11520/17.8T8LSB, o qual correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 3, foi o Executado declarado insolvente.” b) Em 14/09/2022, no âmbito do referido processo de insolvência foi proferida Sentença nos seguintes termos: “Decisão final do pedido de Exoneração do Passivo Restante conforme despacho de 22.2.2018 foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante e fixado como rendimento indisponível, o valor correspondente a uma vez e meia a Remuneração Mínima Garantida.” Com base nas peças que compõem os autos e documentos que lhe estão juntos, acrescenta-se como provados os seguintes factos: c) A presente execução para pagamento de quantia certa foi instaurada em 29.02.2024 por Nestlé Portugal, Unipessoal, Lda., contra AA e BB, sendo apresentado como título executivo uma sentença condenatória proferida em 21.12.2023 no Proc. 3740/20.4.T8OER e já transitada em julgado, nos termos da qual o aqui recorrente / executado foi condenado, solidariamente com outro sujeito, “(…) no pagamento à Autora da quantia de 29.080,00€, a título de indemnização por café não consumido, e, dos juros moratórios vencidos, aplicando as taxas de juro legais e sucessivas fixadas para os créditos de que são titulares empresas comerciais, contados desde a data limite fixada pela Autora para os Réus procederem ao pagamento da sua dívida (19-08-2020), os quais até 13-11-2020, ascendem a 479,62€, e juros vincendos até integral e efetivo pagamento.” (cfr. Acórdão recorrido e sentença proferida em 21.12.2023 no Proc. 3740/20.4.T8OER). d) Por decisões de 22.02.2018, publicitadas em 1.03.2018, foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante e declarado encerrado o processo de insolvência do executado / embargante (cfr. despacho proferido em 19.05.2022 no Proc. 3740.20.4/T8OER junto com a contestação os embargos). e) A acção declarativa que correu termos sob o número 3740/20.4.T8OER, referida nos factos provados c) e d), teve início em 13.11.2020 e teve por objecto o reconhecimento de crédito oriundo do incumprimento definitivo de um contrato (cfr. despacho proferido em 19.05.2022 no Proc. 3740/20.4.T8OER e junto com a contestação aos embargos). O DIREITO Como decorre do que se disse antes, o Acórdão recorrido considerou improcedentes as alegações do executado / embargante e confirmou a improcedência dos embargos, não obstante com um voto contra. Este voto impediu a verificação da dupla conforme e permitiu a apreciação do recurso como revista normal. Cabe ver qual é a solução correcta. A situação dos autos é fácil de descrever e – pode já antecipar-se – fácil de resolver. Trata-se dos embargos à execução em que o executado / embargante alega que, tendo sido declarado insolvente e exonerado do passivo restante, o crédito exequendo se extinguiu, pelo que a execução não pode proceder. Está em causa, em suma, saber se a exoneração do passivo restante de que beneficiou o executado / embargante abrangeu ou não esta dívida. Perante isto primeira coisa a fazer é perceber qual é o crédito exequendo. Respeita ele a uma indemnização derivada de incumprimento contratual e, mais especificamente, à indemnização a que se refere a cláusula 5.ª, n.º 3, de certo contrato de fornecimento / aquisição de café (cfr. factos provados 18 e 19). Este contrato foi celebrado entre a exequente / embargada e a sociedade Paladarconvida, Lda. (1.ª ré na acção declarativa que correu termos sob o número 3740/20.4.T8OER), figurando nele, expressamente, o executado / embargante e outro sujeito (2.º e 3.º réus na mesma acção declarativa) como fiadores (cfr. factos provados 20 e 21). A 1.ª ré não cumpriu o contrato e, depois de algum tempo, a autora / exequente / embargada decidiu proceder à resolução do contrato, tendo o 2.º réu / executado / embargante recebido a declaração de resolução em 6.08.2020 (cfr. factos provados 15 e 17). A resolução é uma declaração receptícia (cfr. artigo 436.º, n.º 1, do CC)1, ou seja, necessita de chegar ao conhecimento do destinatário para produzir os seus efeitos devendo o contrato ser considerado eficazmente resolvido em relação ao executado / embargante nesta última data. O executado / embargante convoca, porém, o processo que correu termos sob o número 11520/17.8T8LSB, em que foi declarado insolvente em 23.05.2017 – o que não é contestado – e que foi encerrado em [cfr. factos provados a) e d)] e ainda a exoneração do passivo restante, que lhe foi concedida em 14.09.2022 – o que está comprovado [cfr. facto provado b)]. Os dados coligidos até agora são quanto basta para resolver o litígio. O crédito exequendo constituiu-se em 6.08.2020, logo em data em que o encerramento do processo de insolvência já havia sido judicialmente encerrado (22.02.2018). Ele é, portanto, um crédito absolutamente superveniente ao processo de insolvência. Não pode, por isso, ser classificado como crédito sobre a insolvência nem como crédito sobre a massa porque esta é uma classificação opera por referência ao processo de insolvência – tem como pressuposto lógico o curso de um processo de insolvência –, devendo o crédito estar constituído já quando o processo se inicia ou, pelo menos, constituir-se em algum momento durante o seu curso. Por outras palavras: a declaração de insolvência, que é o facto determinante da classificação dos créditos como créditos sobre a insolvência e créditos sobre a massa insolvente (cfr. artigos 46.º a 51.º do CIRE), não produz efeitos fora do processo de insolvência ou para lá do seu termo. Cai, assim, por terra a possibilidade de se considerar o crédito exequendo abrangido pela exoneração do passivo restante, como pretende o executado / embargante e ora recorrente, uma vez que esta abrange apenas, nos termos do artigo 245.º, n.º 1, do CIRE, os créditos (certos créditos) sobre a insolvência que “ainda subsistam à data em que é concedida”. Dispõe-se, com efeito, no artigo 245.º do CIRE: “1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º 2 - A exoneração não abrange, porém: a) Os créditos por alimentos; b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade; c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações; d) Os créditos tributários e da segurança social”. Chegados aqui, impõe-se, um primeiro esclarecimento sobre a classificação dos créditos dos artigos 46.º a 51.º do CIRE (e ainda que tal classificação não seja, afinal, relevante para o caso). Esta classificação não depende necessariamente da data de constituição dos créditos por referência à data da declaração de insolvência. No entanto, parece ser este o entendimento propugnado pelo Tribunal a quo podendo ler-se no Acórdão recorrido: “Deverão ser tidos como créditos sobre a insolvência aqueles cujo fundamento já existia à data da declaração da insolvência (art. 47.º do CIRE), sendo que serão já créditos sobre a massa insolvente os que se constituam na pendência do processo (art. 51.º do CIRE); enquadram-se nestes últimos, entre outros, as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente, bem como as dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções – artigo 51.º, n.º 1, als. c) e d) do CIRE. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-04-2024, proferido no proc. 20730/15.1T8SNT-B.L1-1). No caso sob sindicância, o crédito exequendo emerge da extinção do contrato existente entre as partes, extinção essa operada por resolução por cartas registadas com aviso de recepção datadas de 31-07-2020 enviadas aos réus e recepcionadas em em 06-08-2020. De tais factos, decorre que o crédito exequendo existe na esfera jurídica da exequente desde 06-08-2020 e, não emergindo dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente, nem das dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência, dada a sua natureza, nunca estaríamos perante crédito sobre a massa insolvente nos termos do art. 51º do CIRE, mas sim, hipotecticamente, perante crédito sobre a insolvência, na classificação do art. 47º do CIRE. Porém, e contrariamente ao sustentado pelo recorrente, não pode o crédito exequendo ser considerado como crédito sobre a insolvência, porquanto foi constituído em data largamente posterior à declaração de insolvência - o crédito foi constituído em 06-08-2020 e a insolvência foi declarada em 23-05-2017- logo, falha o requisito temporal previsto no art. 47º nº 1 do CIRE para ser classificado com crédito sobre a insolvência: ter fundamento em data anterior à data da declaração de insolvência. Perante tal conclusão, e atendendo a que a declaração judicial exoneração do passivo restante, de que beneficia a recorrente/executada, só abrange os créditos sobre a insolvência -o que não sucede com o crédito exequendo-, bem andou o Tribunal a quo, ao considerar que aquele não se encontra extinto por força do art. 245º do CIRE”2. Porém, e com o devido respeito, não é inteiramente correcto definirem-se os créditos sobre a insolvência como os créditos que se constituem antes daquela declaração e os créditos sobre a massa como os créditos que se constituem depois. Compreender-se-á que não se procure fórmulas novas e se aproveitem aqui as palavras usadas noutra ocasião para justificar esta afirmação: “Os créditos sobre a insolvência são definidos no art. 47.º, n.º 1, como os créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente cujo fundamento seja anterior à data da declaração de insolvência, qualquer que seja a nacionalidade ou o domicílio dos seus titulares. Quanto aos créditos sobre a massa não existe propriamente uma definição. E por mais que seja tentador, ela não deve ser retirada, a contrario, da definição legal de créditos sobre a insolvência, concluindo-se que os créditos sobre a massa são os restantes créditos, ou seja, aqueles cujo fundamento é posterior à data de declaração de insolvência. Isto, desde logo, porque a definição legal de créditos sobre a insolvência como os créditos cujo fundamento é anterior à data da declaração de insolvência não é hoje inteiramente correcta: existem créditos cujo fundamento é anterior à data da declaração de insolvência que a lei classifica como créditos sobre a massa. Veja-se os casos dos créditos resultantes do não pagamento do preço dos bens ou serviços essenciais à actividade da empresa prestados durante o período de suspensão do PER (cfr. art. 17.º-E, n.º 12) e dos créditos (em parte) resultantes do financiamento para a reestruturação disponibilizado à empresa que se apresenta a PER (cfr. art. 17.º-H, n.º 2)3. Depois, existem créditos cujo fundamento é posterior à data da declaração de insolvência que a lei classifica como créditos sobre a insolvência. São bons exemplos os créditos compensatórios resultantes da cessação de contrato de trabalho pelo administrador da insolvência após a declaração de insolvência do devedor (cfr. art. 47.º-A), os créditos resultantes, em geral, da recusa de cumprimento dos contratos em curso pelo administrador da insolvência [cfr. art. 102.º, n.º 3, als. c) e d)] e os créditos do locatário respeitantes à restituição das prestações eventualmente efectuadas (adiantamentos a título de caução, renda ou aluguer) na hipótese de resolução do contrato de locação por iniciativa de qualquer das partes (cfr. art. 108.º, n.º 5, ex vi do art. 109.º, n.º 2). Para compreender o que são créditos sobre a massa resta, então, atender ao disposto no art. 51.º, n.º 1, preceito que apresenta uma enumeração não taxativa de dívidas da massa (“além de outras como tal qualificadas neste Código”), e aos casos dispersos regulados na lei. São dívidas da massa, salvo preceito expresso em contrário: as custas do processo de insolvência [cfr. art. 51.º, n.º 1, al. a)]; as remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e da comissão de credores [cfr. art. 51.º, n.º 1, al. b)]; as dívidas emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente [cfr. art. 51.º, n.º 1, al. c)]; as dívidas resultantes da actuação do administrador da insolvência no exercício das suas funções [cfr. art. 51.º, n.º 1, al. d)]; qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida em que se reporte a período anterior à declaração de insolvência [cfr. art. 51.º, n.º 1, al. e)]; qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não seja recusado pelo administrador da insolvência, salvo na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte anteriormente à declaração de insolvência ou em que se reporte a período anterior a essa declaração [cfr. art. 51.º, n.º 1, al. f)]; qualquer dívida resultante de contrato que tenha por objecto uma prestação duradoura, na medida correspondente à contraprestação já realizada pela outra parte e cujo cumprimento tenha sido exigido pelo administrador judicial provisório [cfr. art. 51.º, n.º 1, al. g)]; as dívidas constituídas por actos praticados pelo administrador judicial provisório no exercício dos seus poderes [cfr. art. 51.º, n.º 1, al. h)]; as dívidas que tenham por fonte o enriquecimento sem causa da massa insolvente [cfr. art. 51.º, n.º 1, al. i)]; e a obrigação de prestar alimentos relativa a período posterior à data da declaração de insolvência, nas condições do art. 93.º [cfr. art. 51.º, n.º 1, al. j)]. Não há dúvida de que esta é a norma central para compreender que tipo de dívidas merecem, aos olhos do legislador, a classificação de dívidas da massa. Mas para a noção ficar completa é conveniente, como se disse, passar em vista também os casos dispersos. Entre estes destacam-se o direito da contraparte do insolvente à contraprestação (só) no que exceda o valor do que seria apurado no caso de o administrador da insolvência ter recusado o cumprimento do contrato (cfr. art. 103.º, n.º 3), o direito da contraparte do insolvente à contraprestação em dívida (só) no caso de o cumprimento da prestação ser imposto ao insolvente por contrato e não recusando o administrador esse cumprimento (cfr. art. 103.º, n.º 5), a remuneração e o reembolso das despesas do mandatário (só) quando estas resultem da realização, por este, de actos necessários para evitar prejuízos previsíveis para a massa insolvente e até que o administrador da insolvência tome as devidas precauções (cfr. art. 110.º, n.º 3), a obrigação de restituição pela massa do valor correspondente ao objecto prestado por terceiro (só) na medida do respectivo enriquecimento à data da declaração de insolvência (cfr. art. 126.º, n.º 5) e ainda os casos, anteriormente referidos, das dívidas resultantes do não pagamento do preço dos bens ou serviços essenciais à actividade da empresa prestados durante o período de suspensão do PER (cfr. art. 17.º-E, n.º 12) e das dívidas resultantes do financiamento novo e intercalar disponibilizado à empresa que se apresente a PER (cfr. art. 17.º-H, n.º 2)4. Agrupando os casos em função do seu denominador comum, é possível concluir, em primeiro lugar, que a classificação como dívidas da massa assenta, predominantemente, na existência de um nexo causal (ou nexo de derivação) com o processo de insolvência. As dívidas da massa são, na sua esmagadora maioria, previsíveis e naturais ao processo de insolvência, sejam elas absolutamente necessárias para a abertura e o curso do processo de insolvência (como os resultantes das custas), sejam elas meramente eventuais (como as que derivam da actividade dos órgãos e, em particular, do exercício, pelo administrador da insolvência, das suas funções) – são dívidas da massa por natureza. As dívidas resultantes do não pagamento do preço dos bens ou serviços essenciais à actividade da empresa prestados durante o período de suspensão do PER (cfr. art. 17.º-E, n.º 12) e do financiamento novo e intercalar disponibilizado à empresa que se apresente a PER (cfr. art. 17.º-H, n.º 2) são casos à parte, em que a classificação como dívidas da massa não tem relação com o processo de insolvência, visa, sim, premiar (e, com isso, estimular) a disponibilização de suporte financeiro para a reestruturação preventiva – são dívidas da massa por especial determinação da lei”5. Atentando, depois, no último parágrafo do Acórdão recorrido, torna-se conveniente um segundo esclarecimento. A despeito da lei, que usa o termo “extinção”, incutindo a convicção de que os créditos se extinguem, a exoneração não importa, em rigor, a extinção dos créditos. As obrigações do devedor perante os credores não cessam completamente de existir, embora já não como obrigações civis e sim como obrigações naturais (cfr. art. 402.º do CC)6. O mesmo se afirmou, recentemente, em Acórdão desta 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça de 3.07.2025 (Proc. 773/23.2T8SLV-A.E2). Voltando ao caso dos autos, esclareça-se ainda que o facto de o crédito exequendo se ter constituído entre a data do despacho inicial de exoneração (22.02.2018) e a data do despacho final de exoneração (14.09.2022) [cfr. factos provados b) e d)], quer dizer, quando ainda estava em curso o procedimento de exoneração ou, mais precisamente, quando ainda decorria o período de cessão do rendimento disponível não invalida a conclusão de que a classificação dos crédito como da insolvência ou da massa não é aplicável aqui. Desde logo, não obstante a exoneração se qualificar como um incidente do processo de insolvência, ela pressupõe sempre o encerramento do processo de insolvência [cfr. artigo 230.º, n.º 1, al. e), do CIRE]. Mas o mais importante – repete-se – é que a exoneração só abrange os créditos (certos créditos) sobre a insolvência que ainda subsistam e o crédito exequendo não é, pelas razão já expostas, um crédito sobre a insolvência nem, muito menos, um crédito sobre a insolvência que ainda subsista. A referência aos créditos sobre a insolvência ainda subsistentes tem a virtualidade de circunscrever o alcance da exoneração aos créditos que foram ou puderam ser reclamados no processo de insolvência, o que implica, naturalmente, que eles existam durante o processo de insolvência. E bem se compreende que assim seja: o devedor apenas deve ser exonerado dos créditos que, na sequência de reclamação e / ou de reconhecimento, foram ou puderam ser (parcialmente) pagos no curso do processo de insolvência. A exoneração corresponde a um sacrifício para os credores e é compreensível que envolva a tentativa – uma última tentativa – para pagar os créditos que deram origem ao processo de insolvência e não puderam aí ser pagos / integralmente pagos. O artigo 245.º do CIRE deixa claro que não importa que o crédito não tenha sido reclamado, mas é preciso que tenha sido dada ao credor uma oportunidade razoável para reclamar o seu crédito e obter o seu pagamento durante o processo de insolvência. No caso contrário, o crédito será alheio ao processo de insolvência dado este corre termos do princípio ao fim sem que o crédito chegue a constituir-se, pelo que não é possível aí reclamá-lo. Na declaração de voto da Exma. Desembargadora que votou contra o Acórdão o crédito exequendo vem classificado como crédito sobre a insolvência, chamando-se, a certa altura, à colação o artigo 102.º do CIRE. O contrato em causa seria, em última análise, um negócio em curso à data da declaração de insolvência e, por isso, do seu incumprimento derivaria um crédito sobre a insolvência, susceptível de ser abrangido pela exoneração. Pode ler-se, mais precisamente, na declaração de voto: “Exequente e executados celebraram em 25/5/2015 o contrato de fornecimento de café, comparticipação publicitária, comodato de equipamento e comodato de material de ponto de venda, com a duração de 60 meses, ou seja, cinco anos. Entre outras, o executado obrigou-se a adquirir 3.900 Kgs deste produto, num mínimo mensal de 65kgs, o que se traduz em 780 kg. anuais. Em Maio de 2017 a 1.ª Ré realizou a última aquisição de café à Autora e não mais retomou o seu consumo, sendo que nessa data, ou seja, passados dois anos do início do contrato, o executado apenas havia comprado à exequente 992 Kgs de café dos 3.900Kgs que se havia obrigado, i. é; nessa data devia ter adquirido 1560 kg. Nos termos do acordado no n.º 2 da Cláusula 9.ª do doc. 1 é fundamento de resolução do contrato um desvio nos consumos mensais acordados nos termos do nº 2 da Clausula 2ª superior a 20%, por um período de 6 meses consecutivos. É certo que não constam dos autos os consumos mensais efectuados, mas 20% de consumos mensais equivale a 13 kg., que no cômputo anual ascende a 156 kg; em dois anos 312 kg e o executado em dois anos deixou de consumir 568 kg, o que dá uma média de 23 kg por mês, pelo que se afigura altamente provável que o incumprimento do contrato susceptível de fundamentar a resolução já se havia verificado. Mas ainda que tal não sucedesse, a verdade é que em 23/05/2017 (facto que não foi posto em causa) o Executado foi declarado insolvente, no processo n.º 11520/17.8T8LSB, o qual correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa, Juiz 3. Não há qualquer dúvida que nessa data estava em vigor entre as partes o contrato em causa (…).. Volvendo ao caso concreto, declarada a insolvência do executado, a exequente viu a execução do contrato suspensa por força do art.º 102º do CIRE e até que houvesse uma declaração do AI, nos termos do n.º 1 dessa norma, podendo este optar por continuar a execução do contrato ou recusar o seu cumprimento. Desconhece-se se houve essa declaração (embora seja considerado pela Jurisprudência a possibilidade de declaração tácita, do que é um exemplo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no proc. 727/14.0TBLGS.E1.S1); partindo do pressuposto que não houve declaração, devia o exequente ter lançado mão do que dispõe o n.º 2 do art.º 102º, que se entende constituir um verdadeiro ónus para o credor, que é o de exigir que o AI se pronuncie em prazo razoável. Não fixando a lei por sua vez um prazo para o credor exija tal declaração, tem de entender-se que esta deverá ser feita pelo menos até ao prazo para a reclamação ulterior de créditos, previsto pelo art.º 146º, n.º 2, b) do CIRE: “b) Só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente (…). Do que se vem expondo resulta que não era lícito à exequente proceder à resolução extra-judicial do contrato, nos termos em que o fez, por carta de 31/7/2020, uma vez que esta situação pode constituir um verdadeiro desvio aos princípios da insolvência acima enunciados. Note-se que as normas que se vêm citando são de carácter imperativo. Não pode o credor estar a resolver um contrato mais de três anos após a data da insolvência para desta forma diligenciar obter o pagamento integral do seu crédito (ou as indemnizações correspondentes ao decurso desse prazo) sem estar em confronto com os demais credores no processo de insolvência, tendo o seu crédito origem num contrato que se iniciou e estava em vigor à data da insolvência. No caso, não se olvida que a resolução foi decretada por Sentença transitada em julgado; no entanto esta decisão, como se referiu, ofende o princípio do par conditio creditorum, de carácter imperativo. No entanto, quer se entenda que se deve considerar a resolução do contrato operada por sentença proferida com trânsito em julgado; quer se considerasse que esta afinal não podia produzir os seus efeitos por força da violação de normas imperativas legais e, assim, o contrato estava apenas com a execução suspensa por falta de tomada de posição do AI, a verdade é que o crédito do exequente - que se deve entender, nos termos supra expostos, como um crédito sobre a insolvência nos termos do art.º 47º do CIRE - se tem de julgar extinto com a decisão final do pedido de Exoneração do Passivo Restante, proferida em 22/2/2018, pela qual foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante e fixado como rendimento indisponível, o valor correspondente a uma vez e meia a Remuneração Mínima Garantida. De facto, a declaração de exoneração do Passivo restante tem como efeitos os previstos no art.º 245.º, n.º 1 do CIRE (não sendo o caso de aplicação do n.º 2 desta norma): “A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º” Pelo exposto, julgava procedente o Recurso, com revogação da decisão proferida em 1ª Instância e procedentes os Embargos”. Mas, também com o devido respeito, nenhuma das linhas de raciocínio se apresenta como plenamente adequada ao presente caso. Em primeiro lugar, não é possível dizer que o crédito se constituiu por força do mero incumprimento, qualquer que seja a sua data, como resulta da primeira linha de raciocínio. Nos termos Cláusula 9.ª, n.º 2, do contrato dos autos, o incumprimento (um determinado desvio nos consumos mensais acordados) era fundamento de resolução do contrato (cfr. facto provado 11), mas, nos termos do n.º 3 da cláusula 5.ª, a indemnização correspondente ao crédito exequendo pressupunha a cessação / resolução do contrato (cfr. facto provado 18). Quer dizer: o incumprimento era fundamento da resolução mas a resolução era fundamento do direito de indemnização, logo, do crédito exequendo. Não pode, pois, equacionar-se a hipótese de o crédito preexistir à declaração de insolvência e ser classificado, por esta via, como um crédito sobre a insolvência. Depois, no que toca à linha de raciocínio subsidiária, o contrato em causa nunca se qualificaria relativamente ao executado / embargante como um negócio em curso nos termos e para os efeitos do artigo 102.º do CIRE. Figurando este sujeito como fiador (cfr. factos provados 20 e 21), ele é um mero garante pessoal do cumprimento dos deveres a que ficou sujeita, por força do contrato, a 2.ª outorgante, ou seja, a sociedade Paladarconvida, Lda., e não, definitivamente, o sujeito passivo dos deveres principais de prestação, nomeadamente a obrigação de aquisição de café (cfr. factos provados 4 e 5). Por si só, este facto exclui a aplicabilidade ao caso da disciplina dos artigos 102.º e s. a 119.º do CIRE. Veja-se o que é um negócio em curso naqueles termos e para aqueles efeitos: “Os “negócios em curso” (adoptando a expressão do título do Capítulo em que a norma do art. 102.º se integra) ou “negócios ainda não cumpridos” (adoptando a expressão a epígrafe da norma) são os contratos bilaterais em que, à data da declaração de insolvência, não haja ainda total cumprimento por qualquer das partes. A aplicabilidade da norma (e do regime subsequente) depende, então, da verificação de um requisito positivo e de um requisito negativo. O requisito positivo é a existência de um contrato bilateral celebrado entre o insolvente e um terceiro. O requisito negativo é o de, à data da declaração de insolvência, não ter ainda havido cumprimento total por parte de nenhum dos contraentes. Há, todavia, lugar a duas precisões. Em primeiro lugar, não obstante a epígrafe da norma (a sua referência genérica a “negócios”), deve entender-se, em conformidade com o seu texto, que estão em causa exclusivamente negócios jurídicos bilaterais (ou seja, contratos) e que estão em causa, dentro deles, exclusivamente contratos bilaterais. Em segundo lugar, não obstante o texto da norma (a sua referência genérica a “contratos bilaterais”), deve entender-se que estão em causa apenas os contratos bilaterais perfeitos ou sinalagmáticos e que a circunstância de não haver “ainda total cumprimento”, que é requisito de aplicação da norma, respeita apenas às obrigações que sejam sinalagmáticas7. O sinalagma liga entre si, tornando interdependentes ou recíprocos, não todos os deveres de prestação nascidos do contrato bilateral, mas apenas os deveres principais de prestação8”9. Seria equacionável um desenlace diferente se estivesse em causa a insolvência da sociedade Paladarconvida, Lda. (1.ª ré na acção declarativa que correu termos sob o número 3740/20.4.T8OER). Em relação a ela, sim, existiria um negócio em curso nos termos e para os efeitos do artigo 102.º do CIRE, pois era sobre ela que, como se disse, recaíam os deveres principais de prestação derivados do contrato (cfr. factos provados 4 e 5) (com a ressalva de que não se poderia equacionar a hipótese de dado não se tratar de uma pessoa singular). E isto – acrescenta-se – ainda que, porventura, não houvesse recusa expressa de cumprimento por parte do administrador. Olhando para a disciplina dos artigos 102.º e s. do CIRE, talvez seja possível identificar uma tendência ou induzir uma regra – a regra que, por força da declaração de insolvência, os contratos em curso não irão ser cumpridos. Nesta linha de entendimento, a declaração do administrador optando pelo cumprimento ou pela execução do contrato teria um valor constitutivo enquanto a declaração do administrador optando pelo não cumprimento ou pela não execução do contrato teria um valor (meramente) declarativo 10. Isto permitiria dizer, a despeito da letra da lei (que se refere à suspensão do cumprimento dos negócios em curso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou pela recusa de cumprimento), que não se produz exactamente uma suspensão dos contratos em curso. Apontariam no sentido da existência de uma tal regra, entre outros, o facto de o artigo 102.º do CIRE ser a norma / princípio geral e pressupor, no seu n.º 3, o incumprimento do contrato bem como o de aí se prever que, fixando a contraparte do insolvente ao administrador da insolvência um prazo razoável para exercer o seu direito de opção pelo cumprimento ou pela recusa de cumprimento, dever considerar-se, findo este prazo, que há recusa de cumprimento. Retirando todas as consequências, pode pressupor-se que, quando o administrador não recuse expressamente o cumprimento do contrato em curso nem haja uma situação de recusa tácita, o contrato não será cumprido e emerge um crédito que deve ser classificado como crédito sobre a insolvência, porque sujeito, da mesma forma que no caso de recusa expressa ou tácita, às regras do artigo 102.º do CIRE, nomeadamente ao disposto no seu n.º 3, als. c) e d)11. A verdade, todavia, é que o presente exercício é inútil porquanto não existe um contrato em curso no que respeita ao aqui insolvente (executado / embargante). A terminar, deixa-se uma última observação quanto à oportunidade de propositura da acção declarativa de condenação no pagamento do crédito exequendo e da respectiva execução de que os presentes embargos constituem apenso. Sendo a primeira uma acção declarativa e tendo a segunda sido proposta em 29.02.2024 [cfr. facto provado c)], logo, já depois da prolação da decisão final da exoneração em 14.09.2022, [cfr. facto provado b)], não há contrariedade ao artigo 242.º, n.º 1, do CIRE, que proíbe apenas as execuções e as execuções destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência durante o período de cessão do rendimento disponível. Atendendo a tudo o que se expôs, impõe-se a manutenção da decisão recorrida, ainda que com uma fundamentação diferente, no sentido da improcedência dos embargos. * III. DECISÃO Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido. * Custas pelo recorrente. * Lisboa, 18 de Setembro de 2025 Catarina Serra (relatora) Ana Paula Lobo Maria da Graça Trigo ________
1. Observa a propósito Nuno Manuel Pinto Oliveira (Princípios de Direito dos contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, p. 880): “O sentido aparente do art. 436.º do Código Civil é o de que a resolução do contrato há-de fazer-se extrajudicialmente: o credor resolveria extrajudicialmente o contrato sinalagmático através de uma declaração negocial receptícia dirigida ao devedor”. 3. “Assinale-se ainda o disposto no art. 140.º, n.º 3, 2.ª parte, segundo o qual as custas pagas pelo autor ou exequente na acção em que se tenha atribuído a este uma preferência resultante de hipoteca judicial ou de penhora sobre bens do insolvente constituem dívidas da massa insolvente. A classificação funciona aqui como uma compensação pela opção legislativa de desatender esta preferência para o efeito da graduação de créditos”. 4. “Relembre-se ainda o disposto no art. 140.º, n.º 3, 2.ª parte, que classifica as custas pagas pelo autor ou exequente na acção que se tenha atribuído a este uma preferência resultante de hipoteca judicial ou de penhora sobre bens do insolvente como dívidas da massa, para o compensar do facto de esta preferência não valer para o efeito da graduação de créditos”. 5. Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da insolvência, Coimbra, Almedina, 2025 (3.ª edição), pp. 69-71 (sublinhados nossos). 6. Cfr., em sentido próximo, José Gonçalves Ferreira, A exoneração do passivo restante, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, pp. 119-127, e Paulo Mota Pinto, “Exoneração do passivo restante: fundamento e constitucionalidade”, in: Catarina Serra (coord.), III Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2015, p. 195. Sustenta este último autor que as obrigações continuam a existir, não como obrigações civis, susceptíveis de execução judicial, mas como obrigações naturais (o seu cumprimento não é judicialmente exigível mas corresponde a um dever de justiça). Em concordância com os autores cfr. Catarina Serra, “Exoneração do passivo restante 20 anos depois”, in: AAVV, 20 Anos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Congresso Comemorativo, Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho – Colóquios, n.º 7, Coimbra, Almedina, p. 18. 7. “Cfr., neste sentido, Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso: em busca dos princípios perdidos”, cit., pp. 201 e s. Não pode, de facto, perder-se de vista que, apesar de a lei e alguma doutrina usarem indiscriminadamente as expressões “bilateral” e “sinalagmático”, como advertem Maria de Lurdes Pereira e Pedro Múrias [“Sobre o conceito e a extensão do sinalagma”, p. 2 (http://muriasjuridico.no.sapo.pt/wSinalagmaFinal.pdf)], elas não sinónimas. Por um lado, nem todos os contratos bilaterais são perfeitos ou sinalagmáticos. Por outro lado, nem todas as obrigações decorrentes dos contratos sinalagmáticos são obrigações sinalagmáticas. Em rigor, como, há muito tempo, esclareceu Mário Júlio de Almeida Costa [Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 2006 (10.ª edição), p. 361], “o sinalagmatismo concerne mais propriamente às obrigações com essa característica de reciprocidade do que aos contratos de onde derivam”. Só são sinalagmáticas as obrigações que estiverem ligadas pelo sinalagma genético (na génese ou raiz do contrato, a obrigação assumida por cada um dos contraentes constitui a razão de ser da obrigação contraída pelo outro) ou funcional (as obrigações têm de ser exercidas em paralelo e qualquer vicissitude ocorrida relativamente a uma delas se repercute necessariamente na outra). Sobre os contratos bilaterais perfeitos ou sinalagmáticos e os contratos bilaterais imperfeitos (não sinalagmáticos) cfr., por todos, Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 125 e s., e, mais resumidamente, a propósito da compra e venda, Contrato de compra e venda – Noções fundamentais, Coimbra, Almedina, 2007, p. 15”. 8. “Um dos traços fundamentais do regime das obrigações sinalagmáticas, que constitui um simples corolário do pensamento básico do sinalagma funcional, consiste na excepção de não cumprimento do contrato (exceptio non adimpleti contratus). Desde que não haja prazos diferentes para o cumprimento das prestações, qualquer dos contraentes pode recusar a sua prestação (invocando a excepção do não cumprimento do contrato), enquanto o outro não efectuar a que lhe compete ou não o oferecer o seu cumprimento simultâneo (cfr. art. 428.º do CC). As obrigações compreendidas no sinalagma devem, em princípio, ser cumpridas simultaneamente”. 9. Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da insolvência, cit., pp. 269-270 (sublinhados nossos). 10. Sobre o paradigma adoptado na lei portuguesa no que toca aos efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso e concluindo que “há uma discrepância entre a aparência e a realidade: a aparência dada pelo art. 102.º do CIRE é a de que se acolhe um princípio da conservação do contrato, ou da continuidade das relações contratuais; – a realidade é, ou pelo menos, parece[ ] ser a de que acolhe um princípio de não conservação (de extinção do contrato, ou de descontinuidade das relações contratuais ou, pelo menos, uma combinação dos dois princípios” cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, pp. 201-208 (e esp. p. 208] (sublinhados do A.). 11. Prevê-se, é certo, que o cumprimento de alguns contratos não possa ser recusado (cfr., só para um exemplo, o caso do artigo 106.º, n.º 1, do CIRE) e ainda que possa haver uma declaração do administrador no sentido do cumprimento, caso em que o crédito será classificado como crédito sobre a massa [cfr. artigo 51.º, n.º 1, als. e) e f), do CIRE]. Mas esta é a excepção, sendo a classificação como dívida da massa, também ela, necessariamente excepcional, sob pena de se comprometer a realização dos fins do processo de insolvência (se todas ou a maioria das dívidas fossem dívidas da massa, seria impossível pagar as dívidas que estão na origem do processo de insolvência). Veja-se, aliás, que no artigo 51.º do CIRE, apesar de constarem as dívidas “além de outras como tal qualificadas neste Código”, se estabelece um elenco taxativo, tornando-se necessário, para classificar uma dívida como dívida da massa, identificar a norma a que ela se subsume. A propósito pode dizer-se: “Olhando para as restrições inerentes à classificação como dívidas da massa, em particular, no âmbito dos casos dispersos é possível concluir, em segundo lugar, que esta classificação assume um carácter marcadamente excepcional. Bem se compreende que assim seja, uma vez que as dívidas da massa desfrutam de um tratamento especial (privilegiado). Nos termos do art. 46.º, n.º 1, o pagamento destas dívidas tem prioridade sobre o pagamento das dívidas da insolvência. Como se verá, antes do pagamento dos créditos sobre a insolvência, deduz-se da massa insolvente os bens ou direitos necessários, efectiva ou previsivelmente, ao pagamento dos créditos sobre a massa (cfr. art. 172.º, n.º 1). Estes são imputados aos rendimentos da massa e, quanto ao excedente, na devida proporção, ao produto de cada bem, móvel ou imóvel, mas a imputação não pode exceder 10% do produto de bens objecto de garantias reais, salvo na medida do indispensável à satisfação integral dos créditos sobre a massa ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos (cfr. art. 172.º, n.º 2). O pagamento tem lugar nas datas dos respectivos vencimentos, independentemente do estado do processo (cfr. art. 172.º, n.º 3)” (cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da insolvência, cit., pp. 71-72). |