Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
| Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
| Descritores: | SERVIDÃO DE PASSAGEM SERVIDÃO POR DESTINAÇÃO DE PAI DE FAMÍLIA VIOLAÇÃO DA LEI USUCAPIÃO REQUISITOS DETENÇÃO POSSE DE BOA FÉ POSSE PÚBLICA POSSE TITULADA POSSE PACÍFICA ARRENDAMENTO DIREITO DE PROPRIEDADE DIREITO PESSOAL DE GOZO PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
| Data do Acordão: | 10/14/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
| Sumário : | I - A questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito que cumpre ao Supremo tribunal conhecer. II - Deve ser declarada não escrita a expressão constante do facto provado n.º 10, “convictos que o fazem por direito próprio” por conter conceitos de direito nevrálgicos para a solução do litígio. III - A legitimação dos arrendatários para a prática dos atos possessórios correspondentes a uma servidão de passagem resultou do acordo entre os donos de ambos os imóveis e buscou nele, necessariamente, o seu fundamento, devendo entender-se que os praticaram em representação dos autores e dos anteriores proprietários do prédio dominante. III - A matéria de facto é um todo, que tem de ser lida de forma global, em que cada um dos factos provados está dependente do anterior e assim sucessivamente. IV - O corpus enquanto prática de atos materiais de controlo da coisa traduzido na utilização reiterada da entrada 108, permite presumir o animus (cfr. AUJ de14-04-1996, proc. n.º 085204), ou seja, a intenção de beneficiar do direito correspondente por parte dos sucessivos proprietários do prédio dominante agora dos autores. V - Não se provando que o possuidor apenas pôde praticar os atos por mera tolerância do proprietário do prédio serviente, tem de se considerar preenchido o elemento subjetivo da posse. | ||
| Decisão Texto Integral: |
Acordam na 1.ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça I - Relatório 1. AA e BB instauraram a presente ação declarativa comum contra A... & Filha - Construção, Comercialização e Administração de Imóveis Lda., todos devidamente identificados nos autos, pedindo a condenação desta a: a) reconhecer-lhes o direito de passagem nos termos que alegam na petição inicial, atendendo à existência de servidão constituída por destinação do pai de família, bem como o direito a manter no local [em] que atualmente se encontram as caixas de correio, os contadores de água e luz e o vídeoporteiro, considerando a aquisição de tal direito a servidão por usucapião. b) e a pagar-lhes um valor mensal mínimo de €1.000,00 (mil euros), desde a data de citação até ao reconhecimento e não oposição definitiva ao exercício do seu direito, por estarem impedidos por esta de usar e fruir da sua propriedade e de realizar obras no imóvel que lhes pertence. 2. Alegaram, para tal, a pertinente factualidade integradora do direito de propriedade do imóvel de que se arrogam donos, bem como da aquisição do direito de passagem que reivindicam e do direito indemnizatório que reclamam. 3. A ré, citada, contestou a ação, por exceção e por impugnação, e deduziu reconvenção, tendo concluído pugnando: a) Pela procedência da exceção dilatória da ineptidão da petição inicial invocada. b) Pela improcedência da ação e sua absolvição dos pedidos formulados pelos autores. c) Na hipótese de algum direito lhes competir, que se decida que o exercício desse direito constitui abuso de direito. d) Pela condenação dos autores como litigantes de má fé, em multa adequada e indemnização a seu favor no valor de €5.000,00 (cinco mil euros). e) Pela procedência da reconvenção e consequente condenação dos autores-reconvindos a pagarem-lhe a quantia de €29.000,00 (vinte e nove mil euros), como indemnização pelos danos que sofreu em consequência da utilização do seu prédio pelos arrendatários do 2º, 3º andares e sótão do prédio daqueles. f) Ou, no caso de não ficarem demonstrados os danos alegados, pela condenação dos mesmos, por terem enriquecido ilicitamente à sua custa, com a utilização do prédio da ré por parte dos seus arrendatários, em igual montante. g) Pela condenação daqueles a absterem-se de, por si ou por intermédio de terceiros, designadamente arrendatários ou utilizadores a qualquer título do 2º e 3º andares e sótão do prédio dos mesmos, entrarem no prédio da ré pela entrada nº 108 ou por qualquer outra e servirem-se de qualquer elemento de tal prédio. h) Bem como a removerem deste último prédio todos os elementos que ali foram colocados, designadamente caixas de correio, campainhas, vídeo porteiro ou quaisquer outros. 3. Os autores apresentaram réplica, pugnando pela improcedência da reconvenção. 4. Foi proferido despacho saneador que, além do mais: - Julgou improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial invocada pela ré; - Fixou o objeto do litígio; - Enunciou os temas de prova [que não foram objeto de reclamação]; - E admitiu os meios de prova oferecidos. 5. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, no termo da qual, após produção da prova, foi proferida sentença, que, julgando a ação parcialmente procedente e a reconvenção improcedente, decidiu: «A- Declarar os autores AA e BB, como legítimos donos e proprietários (titulares inscritos) do prédio urbano registado a seu favor sito na Sé, descrito como prédio na Praça 1 n.º 108 e 112 e Rua 1 n.º 92 e 96, descrito como casa de Cave, rés-do-chão, três andares e águas furtadas, com a área total de terreno de 63 m2, correspondente à área de implantação, com a área bruta de construção de 355 m2, sendo a área bruta dependente de 63 m2 e a área bruta privativa de 292 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ...........27 e inscrito na matriz sob o artigo ..83 da União de Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, S. Nicolau e Vitória; B- Declarar a ré, A...& Filha - Construção, Comercialização e Administração de Imóveis Lda., como dona e legítima possuidora do prédio urbano registado a seu favor sito na Sé, nomeadamente na Praça 1 n.º106 a 110, descrito como casa de rés-do-chão, três andares e águas furtadas, com a área total correspondente à área coberta de 95 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º ..........03 e inscrito na matriz sob o artigo ..9 da União de Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, S. Nicolau e Vitória; C- Declarar que sobre o prédio da ré (como prédio serviente) foi constituída por usucapião uma servidão de passagem a favor do prédio dos autores, a exercer através da entrada com o nº 108, mantendo no local em que atualmente se encontram, as caixas de correio, contadores de água e luz e o videoporteiro; D- Absolvendo autores e ré de todos os demais pedidos contra si formulados, tanto em se(de) de ação como em sede de reconvenção. Custas da ação pela ré. Valor da ação: já fixado em sede de despacho saneador. Registe e notifique.». 6. A ré, irresignada com o sentenciado, interpôs recurso de apelação [admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo], tendo o Tribunal da Relação do Porto decidido o seguinte: «Face ao exposto, os Juízes desta secção cível do tribunal da Relação do Porto acordam em: 1º) Julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que, sob a alínea C do dispositivo, declarou «que sobre o prédio da ré (como prédio serviente) foi constituída por usucapião uma servidão de passagem a favor do prédio dos autores, a exercer através da entrada com o nº 108, mantendo no local em que atualmente se encontram, as caixas de correio, contadores de água e luz e o videoporteiro», ficando a recorrente absolvida deste segmento do petitório. 2º) Condenar, pelo decaimento, os recorridos nas custas deste recurso». 7. Inconformados, os autores interpõem recurso de revista no qual formularam as seguintes conclusões: «1. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto alterou a sentença da 1.ª instância sem que estivessem verificados os pressupostos legais exigidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil, ao concluir pela inexistência de servidão de passagem, contrariando a prova produzida e os factos provados. 2. A decisão da Relação assentou numa análise extensiva e isolada da linguagem da sentença de 1.ª instância, desconsiderando o seu contexto probatório e substituindo indevidamente a livre apreciação da prova realizada em audiência pelo julgador de 1.ª instância. 3. A Relação desvalorizou, os factos provados e a prova testemunhal que sustentava a posse continuada e pacífica do uso da entrada n.º 108 pelos Autores e seus arrendatários, bem como quem antecedeu os Autores no direito, há mais de 50 anos, elemento essencial para a verificação da aquisição da servidão por usucapião, sem considerar qualquer prova concreta que impusesse decisão diversa. Antes cuidou, com minúcia, o detalhe mais purista para destruir o que à saciedade resulta provado, não só pela prova produzida como por presunção judicial. Veja-se: 4. Todos os depoimentos das testemunhas, incluindo os apresentados pela Ré, confirmaram que desde há várias décadas e pelo menos há 50 ou 60 anos, a única entrada possível para os pisos superiores do prédio dos Autores é a n.º 108, permanecendo durante todo esse tempo os contadores, caixas de correio e campainhas na entrada 108 e a utilização dos proprietários e dos arrendatários destes desde então. 5. A Relação, não obstante ter acesso à prova gravada e transcrita, não referiu qualquer meio de prova que impusesse uma decisão diversa da adotada pela 1.ª instância, limitando-se a afirmar genericamente que não foi feita prova suficiente, sem nunca demonstrar erro factual de julgamento. 6. Ora, o fim visado pela Lei ao garantir um duplo grau de “apreciação de facto” tem limites e nunca há-de pôr em causa a “imediação”. Para a Relação mudar a matéria de facto não basta a dúvida, ou o entendimento/convicção diversa. Antes se impõe um juízo crítico de segura censura à desrazoabilidade na apreciação da prova produzida e dada como provada (e não provada) na Instância. 7. Entende-se que a Relação, para suprir qualquer eventual omissão ou insuficiência de fundamentação da decisão de 1.ª instância, deveria ter diligenciado nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 2, do CPC, sob pena de incumprimento de uma obrigação processual que se entende lhe está vinculada. Ao decidir pelo mero “não basta”, sempre com todo o respeito, mais parece pautar-se por um non liquet – o pior inimigo da tutela legal efetiva. 8. A qualificação da posse como direta ou indireta não obsta à sua relevância jurídica, uma vez que os Autores sempre usaram e possibilitaram o uso pelo acesso atribuído aos seus arrendatários, mantendo no local as caixas de correio, campainhas contadores de água e luz, intervindo e deslocando-se ali sempre que necessário para a gestão do seu património e das suas obrigações contratuais, o que configura posse contínua, pacífica e pública, que são os elementos constitutivos do direito. 9. É injustificada e infundamentada a eventual dúvida quanto à natureza do acordo inicial de passagem — se mera tolerância ou pacto com eficácia inter partes — não tendo qualquer sustentação face à prova testemunhal e à ausência de qualquer prova que impusesse decisão diversa, uma vez que não existe nem foi provada a existência de qualquer possibilidade de acesso alternativo durante todas estas décadas, 10. E certamente que uma situação temporária como a que foi sugerida não permitiria a remoção completa e definitiva de qualquer forma de acesso aos pisos superiores do prédio dos Autores, 11. O que se entende ser um facto absolutamente notório, já que ninguém no seu juízo comum o faria, deixando à sorte ou ao capricho de terceiro ter acesso ao que é seu. 12. Para a Relação ter concluído como fez teria de haver prova segura do tal “acordo” e dos seus moldes. Mas, não só não há essa segurança como não há sequer prova que não seja fruto do muito imaginar. 13. Ao reinterpretar os factos provados e retirar conclusões distintas sem base em novos elementos ou erro manifesto, a Relação substituiu indevidamente a convicção do juiz da 1.ª instância, violando os princípios da imediação e da livre apreciação da prova. 14. A decisão da Relação incorre ainda no que se considera um erro de julgamento ao presumir ausência de posse por parte dos Autores e sem considerar que o exercício da posse pelos arrendatários, por conta e com autorização dos proprietários, é suficiente para efeitos de usucapião (artigos 1251.º, 1252º, 1256.º e 1263.º do Código Civil), 15. E se os arrendatários usam aquela passagem, fazem-no porque isso lhes é permitido pelos Autores, que na titularidade do direito que têm, lhes permitem essa utilização. Rectius, os arrendatários exercem o direito (obrigacional) que emerge do contrato no qual os Autores., no Corpus do seu direito (real) de posse da passagem como (único) acesso à sua propriedade, dispuseram, necessariamente. 16. Além disso, a não consideração dos elementos físicos instalados (campainhas, contadores, caixas de correio) como manifestações objetivas de posse direta contribui para a desvalorização indevida de indícios materiais e contínuos da servidão, em prejuízo da segurança jurídica e da tutela dos direitos reais. TERMOS EM QUE, DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DISSO, DEVE SER REVOGADO O ACÓRDÃO EXARADO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO, COM TODAS AS NECESSÁRIAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS EM PREITO À JUSTIÇA». 8. A... & FILHA – CONSTRUÇÃO, COMERCIALIZAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO DE IMÓVEIS, LDA., Ré/Recorrente, apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção do acórdão recorrido. 9. Sabido que é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes: I – Da violação do artigo 662.º do CPC pelo Tribunal da Relação; II – Dos requisitos da constituição da servidão de passagem por usucapião. Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação A – Os Factos As instâncias deram como provados os seguintes factos: 1- Os autores, AA e BB, são donos e legítimos possuidores do prédio urbano registado a seu favor sito na Sé, descrito como prédio na Praça 1 n.º108 e 112 e Rua 1 n.º 92 e 96, descrito como casa de Cave, rés-do-chão, três andares e águas furtadas, com a área total de terreno de 63 m2, correspondente à área de implantação, com a área bruta de construção de 355 m2, sendo a área bruta dependente de 63 m2 e a área bruta privativa de 292 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º...........27 e inscrito na matriz sob o artigo ..83 da União de Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, S. Nicolau e Vitória (docs. nº 1 e 2 juntos com a petição inicial); 2- A ré A... & Filha - Construção, Comercialização e Administração de Imóveis Lda., é dona e legítima possuidora do prédio urbano registado a seu favor sito na Sé, nomeadamente na Praça 1 n.º106 a 110, descrito como casa de rés-do-chão, três andares e águas furtadas, com a área total correspondente à área coberta de 95 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º..........03 e inscrito na matriz sob o artigo .79 da União de Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, S. Nicolau e Vitória (docs. nº 3 e 4 juntos com a petição inicial); 3- Apesar da sobreposição relativamente à entrada nº 108, os autores não são proprietários da referida entrada pelo nº 108, que se integra no prédio da ré; 4- Há mais de 50 e 60 anos, os imóveis acima identificados, tiveram como proprietários pessoas que eram familiares entre si; 5- Nomeadamente, pelo menos em 1869, CC, era dono de ambos os imóveis, por si adquiridos em momentos diferentes (docs. 8º e 9º juntos com a petição inicial); 6- Posteriormente, pelas boas relações e familiaridade havidas entre os donos de ambos os imóveis, acordaram em que o proprietário do imóvel, agora dos autores, destinasse todo o rés-do-chão do imóvel ao exercício do comércio, acedendo os respetivos inquilinos do restante imóvel às suas habitações, através da entrada nº 108, que integra o imóvel, agora pertença da ré; 7- Assim, desde então, o acesso aos 2º e 3º andares bem como às águas furtadas do prédio dos autores vem sendo efetuado pela entrada com o nº 108, do prédio da propriedade da ré; 8- Nessa entrada, instalaram as caixas de correio dos 2º e 3º andares e águas furtadas do prédio dos autores, bem como os contadores de água, luz e campainhas de chamada; 9- Também desde então, os inquilinos do prédio dos autores, para acederem às suas habitações, têm de usar aquela entrada pelo nº 108, subindo escadaria e atravessando corredores destinados às habitações do prédio da ré; 10- O que vêm fazendo, desde então, convictos de que o fazem por direito próprio, à vista de todos, sem oposição ou necessidade de autorização dos anteriores proprietários do prédio agora da ré; 11- Para o efeito referido em 5, supra, foi retirada ou tapada uma escada do interior do prédio dos autores, que era através da qual se acedia aos pisos superiores do prédio dos autores, com vista a aumentar a área comercial do rés-do-chão do prédio dos autores; 12- A ré, após a aquisição do imóvel e desde há mais de 10 anos, por intermédio dos seus representantes legais, vem contactando o autor, no sentido de se abster, ele ou quaisquer pessoas com a sua autorização ou sob a sua alçada, de utilizarem a entrada que é pertença da ré, isto é, a entrada pelo nº 108; 13- Anteriormente ao acima referido (em 10), cada um dos imóveis, agora de autores e ré, tinha a sua própria entrada e escadaria de acesso aos respetivos andares; 14- Em outubro de 2018, a ré remeteu ao autor, que a recebeu, a carta junta com a contestação sob o documento nº 1º [cujo teor é o seguinte: «Exmo Sr. A... & Filha Construção, Comercialização e Administração de Imóveis, Lda., sociedade comercial por quotas, com sede na Rua 2, n.º 36 - 50 - C.P. 4000-... Porto, com o número único de matricula e identificação fiscal nº .......00, representada pelo seu sócio gerente, DD, vem comunicar e interpelar V. Exa., nos termos e para os efeitos seguintes: A interpelante é proprietária do prédio sito na Praça 1, n.º 106 a 110, no Porto. Por sua vez V.Exa. é proprietário do prédio sito na Praça 1, n.º 112, que confina com o prédio identificado, a Norte. Veio ao conhecimento desta sociedade que V.Exa. terá procedido a obras no rés-do-chão do prédio de que é proprietário e eliminado as escadas que davam acesso aos andares superiores e, sem conhecimento desta sociedade e contra a sua vontade e interesses, procedeu a uma abertura na parede do prédio desta sociedade ao nível do 20 andar passando os arrendatários do prédio de V. Exa. a aceder aos andares onde habitam, através da escadaria do prédio propriedade desta sociedade. Tal comportamento de V. Exa. constitui ilícito civil e no modesto entendimento do sócio gerente desta sociedade criminal. Acresce que, em proveito de V.Exa., que recebeu as rendas dos arrendatários, tem sido utilizado o prédio da subscritora designadamente portas, hall, escadaria, etc, com os consequentes danos em tais elementos. Sem prejuízo de ser exigido a V. Exa. a indemnização por todos os danos causados, fica V. Exa. interpelado para se abster de utilizar o prédio propriedade desta sociedade, por qualquer forma, designadamente para passagem dos inquilinos do seu prédio, criando acesso para os seus arrendatários pelo seu próprio prédio e comunicando-lhes no sentido de se absterem de, por qualquer forma, utilizarem o prédio propriedade desta sociedade. No caso de tal não acontecer, no prazo de 10 dias, impedindo a utilização da entrada da escadaria do prédio desta sociedade aos arrendatários do seu prédio, serão comunicados os factos às autoridades competentes e promovidos os procedimentos judiciais adequados a tal objetivo e ao pedido de indemnização dos danos sofridos. Para esclarecimento de qualquer assunto roga e agradece o contacto do gerente, DD, telf: .. .....56 - T.M: .......95. Desde já se adianta que se admite a hipótese de negociar a aquisição do prédio para tentar evitar guerras que vão causar muitas despesas e incómodos. Sem outro assunto de momento»]; 15- Carta a que o autor respondeu, por intermédio de advogado (doc. nº 2 junto com a contestação) [esta tem o seguinte teor: «Exmos. Senhores: O meu constituinte, AA, incumbiu-me de responder à carta de V. Exas. datada de 26 de Outubro de 2018. Face ao exposto, o meu constituinte refuta por completo todos os factos que lhe são imputados por V. Exas na mesma missiva, sendo os mesmos absolutamente falsos e difamatórios. O meu constituinte reserva-se o direito de agir judicialmente contra V. Exas, caso insistam em alegar factos falsos que denigrem a sua Imagem. Mais informa que não tem interesse em vender o prédio de que é proprietário. Com os melhores cumprimentos, subscreve-se»]; 16- A ré realizou obras de reabilitação do seu imóvel, nomeadamente na escadaria e chão do corredor que vem sendo usada pelos inquilinos dos autores, contribuindo estes para o seu gasto de utilização e degradação. E consideraram não provado: - Que nunca tenha existido, desde que há memória, qualquer outro acesso ao interior, andares e águas furtadas do imóvel dos autores, que não aquela entrada pelo nº 108; - Que os anteriores e atuais proprietários do imóvel dos autores, se tenham sempre disposto perante os anteriores e atuais proprietários do imóvel da ré a suportar quaisquer custos com a manutenção das áreas que dizem comuns; - Que a ré impeça os autores de efetuarem obras no seu imóvel, impedindo-os, em consequência, de obter um rendimento mensal a título de renda nunca inferior a €1.000,00 (mil euros); - Que os autores, ou alguém em seu nome, tenha solicitado à gerência da ré que não franqueasse a porta ou entrada aos arrendatários que mantinham no seu prédio e/ou tapassem a passagem, por forma a também conseguir fazer findar os contratos de arrendamento, por pretenderem o seu prédio devoluto para obras, prometendo que, nessa altura, reporia a escadaria de acesso a essas partes do prédio no Rés-do-chão e 1º andar do seu prédio como anteriormente existira; - Que a ré tenha gasto a quantia de € 150.000,00 em obras de reparação relativas ao seu imóvel, bem como que, em consequência do uso do interior do imóvel pelos inquilinos dos autores, estes tenham contribuído em 40% desse valor para a sua deterioração; - Que a ré, para reparações e consumíveis ao longo dos últimos 12 anos, tenha gasto a quantia de €10.000,00. B – O Direito I – Da violação do artigo 662.º do CPC e da constituição da servidão de passagem por usucapião 1. A questão de facto e direito destes autos consiste em saber se estão ou não verificados os requisitos da constituição da servidão de passagem por usucapião em relação à entrada n.º 108 do prédio da ré. A servidão discutida no caso dos autos representa um encargo predial não qualificável como servidão legal, mas antes como uma servidão voluntária, iniciada por acordo (contrato, ainda que meramente verbal) e que se consolida pelo decurso do tempo. A sentença do tribunal de 1.ª instância entendeu que, em virtude de um acordo inicial entre os donos do prédio dominante e do prédio serviente, constituiu-se a servidão de passagem por usucapião, sendo o prédio dos autores o dominante (beneficiário da servidão) e o prédio da ré o serviente (prédio onerado com a servidão), decidindo pela procedência parcial da ação e declarando que «sobre o prédio da ré (como prédio serviente) foi constituída por usucapião uma servidão de passagem a favor do prédio dos autores, a exercer através da entrada com o nº 108, mantendo no local em que atualmente se encontram, as caixas de correio, contadores de água e luz e o videoporteiro». Já o acórdão recorrido, perante os mesmos factos provados e não provados, que interpretou de modo distinto, entendeu que os únicos atos suscetíveis de integrar a posse conducente à constituição, por usucapião, do direito de servidão, vêm sendo praticados, em nome próprio, pelos inquilinos dos andares e águas furtadas do prédio que pertence aos autores (facto provado n.º 10). Classificando a posição dos arrendatários como de mera detenção (e não de posse em representação dos autores), o acórdão recorrido entendeu que os atos praticados por aqueles não eram suscetíveis de permitir a aquisição por usucapião. Os arrendatários, enquanto titulares de um direito que a doutrina maioritária tem considerado um direito obrigacional de gozo, não podem exercer atos de posse em nome próprio, nem adquirir para si qualquer direito real por usucapião, salvo na hipótese de inversão do título da posse, aqui excluída pelo acórdão recorrido. Concluiu, pois, o acórdão da Relação que «(…) a utilização da dita passagem [englobando a entrada/porta, as escadas e os corredores mencionados] pelos inquilinos não pode ser invocada pelos autores como fonte do direito de servidão que reivindicam», revogando, em consequência, a sentença, e considerando a ação proposta pelos autores improcedente. 2. Entendem os recorrentes que a decisão da Relação assentou numa reinterpretação da matéria de facto fixada pelo tribunal de 1.ª instância, desconsiderando o seu contexto probatório e violando o princípio da imediação, já que substituiu a livre apreciação da prova pelo julgador de 1.ª instância, pela sua própria convicção, sem analisar os meios de prova e sem considerar qualquer prova concreta que impusesse decisão diversa, assim violando a norma do artigo 662.º, n.ºs 1 e 2, do CPC. 3. Analisada a fundamentação aduzida pela Relação constata-se que este tribunal se baseou na interpretação dos factos provados, desacompanhada do exercício do poder modificativo da matéria de facto, que, por isso, se manteve idêntica à fixada pelo tribunal de 1.ª instância. Desta interpretação decorreu, nos termos expostos pelo acórdão recorrido, uma dupla convicção: 1) Não está provada a data do acordo referido no ponto 6. da matéria de facto, nem o início da prática dos atos de posse, recaindo sobre o autor o ónus da insuficiência probatória; 2) Da matéria de facto provada apenas resulta que foram os inquilinos que praticaram os atos possessórios, em nome próprio, mas não em representação dos autores. 4. Constituirão estas conclusões uma violação das orientações consagradas no artigo 662.º do CPC? Dispõe o artigo 662.º, n.º 1, do CPC, que «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa». Tem sido entendimento dominante, expressamente refletido nos textos legais, que a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no tocante à decisão sobre a matéria de facto é meramente residual. Assim, conforme estipulado no n.º 1 do artigo 674.º do CPC, “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais não pode ser objecto de recurso de revista”, não estando ao alcance do Supremo imiscuir-se na atividade probatória das instâncias quando está em causa a apreciação de testemunhos, de documentos particulares, de prova pericial ou de presunções judiciais, só podendo alterar a decisão proferida pelo tribunal recorrido no respeitante à matéria de facto quando, nessa fixação, tenha havido “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”. A função cognitiva do Supremo, no que se reporta à fixação da matéria de facto, destina-se, no essencial, a garantir a observância das regras de direito probatório material (artigo 674.º, n.º 3, do CPC), ou a mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto, quando os factos provados são insuficientes para julgar a causa ou quando entre eles se verificam contradições insanáveis (artigo 682.º, n.º 3, do CPC). Mas o Supremo não pode julgar se a prova foi bem ou mal avaliada e se o facto foi bem ou mal dado como provado. Todavia, tem-se entendido que é admissível julgar o modo de exercício dos poderes de reapreciação da matéria de facto que são confiados à Relação pelo artigo 662.º do CPC, dado que esta previsão constitui “lei de processo” para os efeitos do artigo 674.º, n.º 1, al. b), do CPC. Isto significa que este Supremo Tribunal está autorizado a apreciar o modo como o tribunal recorrido exerceu estes poderes e, designadamente, a censurar esse exercício se concluir que a Relação não usou esses poderes ou fez um “mau uso” (uso indevido, insuficiente ou excessivo) destes poderes. No caso vertente, foi a apelante, aqui recorrida, que suscitou à Relação a modificação da matéria de facto, pedido que o acórdão recorrido não atendeu por considerar tal atividade inútil, decidindo alterar a decisão do tribunal de 1.ª instância com recurso a uma interpretação distinta dos factos provados, atingindo uma convicção oposta ao 1.º grau, sem a análise crítica dos meios de prova. Estamos perante uma situação de não uso dos poderes quanto à matéria de facto, que podia ter sido invocada pela apelante junto do Supremo, em sede de recurso subordinado, e que seria também suscetível de configurar uma nulidade por omissão de pronúncia caso a apelante a tivesse invocado se nisso tivesse interesse, o que não fez, porque desde logo a decisão lhe foi favorável. Assim, a perspetiva do Supremo quanto ao uso que a Relação fez dos seus poderes quanto à matéria de facto será uma perspetiva dependente do objeto da revista, tendo por referência os poderes oficiosos de que goza este Supremo Tribunal e que lhe permitem reenviar o processo ao tribunal recorrido para ampliar a decisão sobre a matéria de facto, quando os factos provados são insuficientes para julgar a causa ou quando entre eles se verificam contradições insanáveis (artigo 682.º, n.º 3, do CPC), ou, ainda, eliminar da matéria de facto conceitos de direito nevrálgicos para a decisão do caso. 5. Em primeiro lugar, cabe ao Supremo apreciar se a metodologia adotada pelo Tribunal da Relação – verificada no âmbito da interpretação da matéria de facto – é lícita. Sem desprimor de entendermos que, perante ambiguidades ou lacunas da matéria de facto, a melhor decisão seria a Relação reapreciar a prova ou ordenar o reenvio do processo ao tribunal de 1.ª instância, a fim de ser ampliado o julgamento, se os temas de prova não abarcaram matéria controvertida relevante (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8.ª edição Atualizada, Almedina, Coimbra, 2024, p. 574), julgamos ainda assim que a Relação tem poderes para fazer deduções ou tirar conclusões de facto a partir dos factos provados e não provados. O Supremo não tem em princípio competência para controlar o acerto ou desacerto das deduções, conclusões de facto ou presunções judiciais, a não ser que estas sejam manifestamente ilógicas, violem uma norma legal ou partam de factos não provados. 6. Importa referir desde já, que, uma das questões decididas pelo tribunal recorrido – a questão de saber se os arrendatários praticam os atos possessórias, em nome próprio ou em nome dos autores, senhorios (proprietários do prédio dominante) – é uma questão de direito cujo conhecimento compete a este Supremo Tribunal e não uma questão de facto. Em primeiro lugar, o facto provado n.º 10 que se reporta aos atos possessórios praticados pelos arrendatários, afirma que estes o fazem, por direito próprio. Ora, esta expressão por “direito próprio” tem que se entender ser uma expressão jurídica de teor conclusivo, integradora da questão principal objeto do processo – a questão de saber se estão verificados os requisitos da aquisição de uma servidão de passagem por usucapião – não podendo, por isso, constar da matéria de facto. Deve assim ser eliminada, por conter a resposta à questão de direito que o processo visa solucionar. Apesar da revogação do artigo 646.º, n.º 4 do anterior CPC, que expressamente permitia ao Supremo que considerasse não escritos os factos conclusivos que contêm conceitos jurídicos ou matéria de direito, a jurisprudência deste Supremo tem adotado o entendimento que admite que este poder continue a ser exercido, desde logo porque a distinção entre matéria de facto e de direito é decisiva para todo o processo, inclusive para definir o âmbito de intervenção do Supremo em sede de recurso de revista. É o caso do Acórdão deste Supremo, datado de (proc. n.º 1070/16.5T8VRL.G2.S1), onde foram citados vários acórdãos nesse sentido: - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-03-2017 (Processo n.º 301/14.0T8STR.E1.S1, não publicado na “dgsi.”) onde se afirmou que “a falta de previsão no actual CPC de disposição semelhante à do art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC – em que se estabelecia que eram tidas como não escritas as respostas sobre questões de direito – não pode significar que agora essas respostas possam ser consideradas como matéria de facto.” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-09-2014 (proc. n.º 5146/10.4TBCSC.L1.S1), que entendeu que“(…) constituindo a possibilidade de eliminação de factos conclusivos equiparados a questões de direito uma prerrogativa dos tribunais superiores de longa tradição doutrinal e jurisprudencial, esta pode ser exercida mesmo que não esteja prevista expressamente na lei processual.” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-09-2017 (Proc. n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1) que, para além de realçar que “a questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado”, fez notar que o conceito de questão de direito, que se deve expurgar da matéria de facto, engloba, “como vem sendo pacificamente aceite (…) por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.” Assim sendo, no exercício deste poder, o Supremo Tribunal declara não escrita a expressão constante do facto provado n.º 10, “convictos que o fazem por direito próprio”, passando este facto a ter a seguinte redação: «O que vêm fazendo, desde então, à vista de todos, sem oposição ou necessidade de autorização dos anteriores proprietários do prédio agora da ré». 7. Vejamos agora se os atos possessórios praticados pelos arrendatários são exercidos em representação dos autores (e de todos os anteriores proprietários do prédio agora dos autores), ou se estamos perante uma situação de mera detenção insuscetível de produzir um efeito aquisitivo de um direito real pelo decurso do tempo, como entendeu a Relação. Atentemos no facto provado n.º 6: «Posteriormente, pelas boas relações e familiaridade havidas entre os donos de ambos os imóveis, acordaram em que o proprietário do imóvel, agora dos autores, destinasse todo o rés-do-chão do imóvel ao exercício do comércio, acedendo os respetivos inquilinos do restante imóvel às suas habitações, através da entrada nº 108, que integra o imóvel, agora pertença da ré». Não é concebível, num plano estritamente jurídico – que é o que importa para a nossa análise – que os arrendatários tenham praticado os atos possessórios, sem ser em representação do antigo senhorio, proprietário do imóvel agora pertença dos autores. A legitimação dos arrendatários para tal conduta resultou do acordo entre os donos de ambos os imóveis (facto n.º 6 dos factos provados), e buscou nele, necessariamente, o seu fundamento. À questão colocada pela Relação de saber se este acordo é uma atitude de mera tolerância, insuscetível de gerar posse, ou se é um contrato juridicamente vinculante, responde este Supremo, afirmando que o acordo referido no ponto 6 da matéria de facto consiste num acordo vinculativo, que gerou uma situação possessória há mais de 50 ou 60 anos (facto provado n.º 4), mantendo-se ao longo do tempo, como um ónus real, independentemente das mudanças operadas na titularidade do direito de propriedade dos dois imóveis. A circunstância de os arrendatários utilizarem a entrada n.º 108, aí colocando as suas caixas de correio e contadores da água e da luz desde há 50 ou 60 anos, permite concluir que sempre que havia uma mudança de titularidade dos imóveis, os novos proprietários consideravam vinculativo o referido acordo entre os proprietários dos prédios que eram familiares (facto provado n.º 6) e que o cumpriram durante décadas, respeitando a servidão. É precisamente neste aspeto que reside a natureza real da servidão – a de estar em causa não uma relação jurídica oponível entre duas pessoas, mas uma relação entre prédios (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-10-2011, proc. n.º Proc. n.º 277/07.0TCGMR.G1.S1), no sentido em que o encargo recai sobre um prédio e aproveita exclusivamente a outro prédio, dizendo-se que a servidão implica, por isso, uma relação imobiliária e o direito real acompanha a coisa sobre a qual incide, ao longo de todas as suas vicissitudes jurídicas, independentemente de quem seja o proprietário do bem onerado num determinado momento. Verificam-se, assim, os requisitos de uma posse correspondente a uma servidão de passagem exercida pelos arrendatários, em representação dos autores e dos anteriores proprietários do prédio: o corpus enquanto prática de atos materiais de controlo da coisa traduzido na utilização reiterada da entrada 108, permite presumir o animus (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, de14-04-1996, proc. n.º 085204), ou seja, a intenção de beneficiar do direito correspondente por parte dos sucessivos proprietários do prédio dominante agora dos autores. Permitindo a factualidade dos autos provar o elemento objetivo de uma posse correspondente a um direito de servidão de passagem e não se provando que o possuidor apenas pôde praticar os atos por mera tolerância do proprietário do prédio serviente, tem de se considerar preenchido o elemento subjetivo da posse (cfr. Acórdão de 15-12-2022 (proc. n.º 65/18.9T8PVZ.P2.S1). 8. Quanto à questão da aparente lacuna da matéria de facto sobre a data desse acordo e sobre o momento inicial da prática dos atos possessórios pelos arrendatários, tem de se ter em conta que a matéria de facto é um todo, que tem de ser lida de forma global, em que cada um dos factos está dependente do anterior e assim sucessivamente. Em consequência, as expressões dos factos provados n.º 6, 7, 9 e 10, reportadas aos momentos da celebração do acordo e ao início da prática dos atos possessórios pelos arrendatários, têm de ser lidas à luz dos factos provados 4 e 5, que referem respetivamente que «Há mais de 50 e 60 anos, os imóveis acima identificados, tiveram como proprietários pessoas que eram familiares entre si» e que pelo menos em 1869, CC, era dono de ambos os imóveis, por si adquiridos em momentos diferentes. Ou seja, embora a matéria de facto não descreva a cadeia de proprietários dos imóveis, desde 1869 até aos dias de hoje, nem a identidade dos proprietários que fizeram o acordo referido no facto n.º 6, tem de se entender que, quer o acordo entre os donos de ambos os prédios, quer a atuação dos arrendatários de usar a entrada n.º 108, tiveram lugar há mais de 50 e 60 anos. O facto provado n.º 4, que antecede todos estes, ao definir um momento temporal situado há mais de 50 e 60 anos, está subjacente a todos os outros factos elencados de seguida e que situam temporalmente os atos com a expressão “desde então”. A expressão posteriormente constante do facto n.º 6 tem de ser entendida em relação ao facto imediatamente anterior que se reporta a 1869, o que significa que o acordo teria sido celebrado após esta data e há mais de 50 ou 60 anos. A esta interpretação não se opõe o facto provado n.º 13 que, ao situar no tempo o momento em que cada um dos imóveis tinha a sua própria entrada e escadaria de acesso com a expressão «anteriormente», reporta-se, por razões de lógica, ao momento anterior ao da celebração do acordo entre proprietários que deu lugar aos atos possessórios, não ficando afetada, pois, a natureza ininterrupta dos atos de posse praticados pelos arrendatários em representação dos autores. 9. Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (serviente o prédio sujeito à servidão, dominante o que dela beneficia), podendo ser objeto da servidão quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, suscetíveis de serem gozadas por intermédio do prédio dominante, mesmo que não aumentem o seu valor (artigos 1543.º e 1544.º do Código Civil). A servidão constitui-se desde que exista uma relação de serventia entre dois prédios, sendo indiferente o título inicial em que assenta a utilização dos prédios. No presente caso está em causa um contrato verbal entre dois proprietários, tratando-se de uma servidão voluntária que nada tem a ver com a servidão legal a favor do prédio encravado, sem acesso à via pública. Na base desta figura – uma servidão de passagem voluntária – encontra-se uma presunção de acordo tácito, uma presunção de intenções imputáveis tanto ao dono do prédio serviente como ao dono do prédio dominante. Para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício de que são exemplos um caminho ou uma porta de comunicação entre dois prédios, em benefício de um deles e onerando o outro. Nos termos do Acórdão de 09-06-2021 (Proc. n.º 426/18.3T8ORM.E1.S1), «A existência de sinais visíveis e permanentes significa que a concreta configuração do caminho há-de revelar caraterísticas inerentes a um uso sedimentado ou efetivo desse caminho; caraterísticas que permitam a qualquer pessoa apreender que aquele é um local de passagem habitual». A permanência dos sinais não exige a continuação dos mesmos no tempo, admitindo-se a sua substituição ou transformação. Também não é necessário que todos os sinais estejam à vista, bastando “que esteja visível uma parte apenas da obra ou do sinal, desde que suficiente para revelar aos olhos do observador o exercício da servidão” (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, pp. 630-631). Nos termos do facto n.º 8, na entrada 108, estão instaladas caixas de correio dos 2º e 3º andares e águas furtadas do prédio dos autores, bem como os contadores de água, luz e campainhas de chamada, o que deve ser considerado como um conjunto de sinais visíveis integradores de uma servidão aparente, suscetível de ser constituída por usucapião. Os arrendatários vêm praticando atos possessórios, em representação dos autores, desde há mais de 50 ou 60 anos, estando verificado o prazo para aquisição do direito real de gozo de servidão de passagem por usucapião (factos provados 4 a 10): os autores, por acessão na posse dos anteriores proprietários (artigo 1256º, nº 1, do Código Civil), adquiram a mesma posse exercida pelos arrendatários em representação dos sucessivos proprietários. A prática reiterada dos atos materiais de utilização da passagem prolongou-se pelo tempo necessário à aquisição daquele direito por usucapião, 15 anos de posse de boa fé, que seria aqui o caso, em virtude de a posse ter resultado de um acordo entre dois proprietários de prédios distintos e de não haver assim qualquer consciência de se lesar direito alheio – artigos 1260.º, n. º 1 e 1296.º, 1ª parte, ambos do Código Civil. Está, pois, provada a posse pública, pacífica, na convicção do exercício do direito correspondente e sem consciência de lesar os direitos de outrem, ininterruptamente, durante um lapso de tempo não inferior a vinte anos (“há mais de 50 ou 60 anos”). Em conclusão estão verificados os requisitos da aquisição de uma servidão de passagem por usucapião (artigos 1287.º e 1288.º do Código Civil), concedendo-se a revista. 7. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC: I – A questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito que cumpre ao Supremo Tribunal conhecer. II – Deve ser declarada não escrita a expressão constante do facto provado n.º 10, “convictos que o fazem por direito próprio” por conter conceitos de direito nevrálgicos para a solução do litígio. III - A legitimação dos arrendatários para a prática dos atos possessórios correspondentes a uma servidão de passagem resultou do acordo entre os donos de ambos os imóveis e buscou nele, necessariamente, o seu fundamento, devendo entender-se que os praticaram em representação dos autores e dos anteriores proprietários do prédio dominante. III – A matéria de facto é um todo, que tem de ser lida de forma global, em que cada um dos factos provados está dependente do anterior e assim sucessivamente. IV – O corpus enquanto prática de atos materiais de controlo da coisa traduzido na utilização reiterada da entrada 108, permite presumir o animus (cfr. Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, de14-04-1996, proc. n.º 085204), ou seja, a intenção de beneficiar do direito correspondente por parte dos sucessivos proprietários do prédio dominante agora dos autores. V – Não se provando que o possuidor apenas pôde praticar os atos por mera tolerância do proprietário do prédio serviente, tem de se considerar preenchido o elemento subjetivo da posse. III - Decisão Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça conceder a revista e repristinar a sentença do tribunal de 1.ª instância Custas pela recorrida. Lisboa, 14 de outubro de 2025 Maria Clara Sottomayor (Relatora) Jorge Leal (1.º Adjunto) Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta) |