Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6988/23.6T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
AÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA EM BRANCO
INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
PREENCHIMENTO ABUSIVO
AVALISTA
AVAL
OBRIGAÇÃO CAUSAL
INDEFERIMENTO
Apenso:
Data do Acordão: 11/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA
Sumário :
Deve ser indeferida a reclamação do despacho do Relator que, dando por verificado o requisito negativo da dupla conforme, remeteu os autos à Formação para a apreciação da admissibilidade da via excepcional da revista, conforme pedido pelo recorrente.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrida: Caixa Geral de Depósitos, S.A.

1. Em 26.09.2026 proferiu o Supremo Tribunal de Justiça despacho com o seguinte teor (integral):

1. Instaurou a Caixa Geral de Depósitos, S.A., execução contra AA, apresentando como título executivo uma livrança subscrita pela sociedade A..., S.A., e avalizada, além de outro, pelo executado, em que se indica o valor de € 617.156,09 e a data de vencimento de 4.01.2023.

2. Citado, embargou AA, requerendo a suspensão da execução e concluindo pela extinção completa da execução contra si instaurada executado.

3. Depois de algumas vicissitudes, proferiu o Tribunal de 1.ª instância despacho saneador-sentença, com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, em conformidade com as citadas disposições legais, decide o Tribunal julgar totalmente improcedente, por não provada, a oposição à execução deduzida por AA contra Caixa Geral de Depósitos, S.A., devendo os autos da acção executiva prosseguirem os ulteriores termos”.

4. Desta decisão apelou o executado / embargante, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa proferido Acórdão em que se decidiu a final o seguinte:

Face ao exposto, nega-se a apelação, mantendo-se a decisão recorrida”.

5. Ainda inconformado, o executado / embargante vem:

1 - Interpor RECURSO DE REVISTA, com subida nos próprios autos e efeito devolutivos - cfr. art.º 675.º, 676.º e 854.º do CPC.

2 - Por tratar-se de decisão RECORRÍVEL (n.º 3 do art.º 671º “a contrario” e al) a) do n.º1 do art.º 672.º, o aqui Recorrente ter LEGITIMIDADE (art.º 631º, n.º 1 do CPC) e por ser TEMPESTIVO (art.º 638.º, n.º 1 do CPC), requer que seja admitido o recurso ora interposto”.

Conclui as suas alegações nos seguintes moldes:

A) O presente recurso de revista vai limitado a dois temas, primeiro, o preenchimento abusivo da livrança entregue em branco, que se demonstra porque o cálculo utilizado para o efeito não coincide com o cálculo utilizado na relação causal, em sede de reclamação de crédito na insolvência da subscritora;

B) Segundo, prescrição de componente de juros contida na livrança e emergente da relação causal (por terem decorrido mais 5 anos);

C) O recurso tem cabimento processual porque, relativamente, aos dois temas não se verificou dupla conforme (n.º 3 do art.º 671.º do CPC);

D) Acresce que o primeiro dos referidos temas, compreende-se na al) a) do art.º 672.º do CPC (Revista Excecional);

E) O crédito da CAIXA foi reconhecido e verificado no processo de insolvência da subscritora da livrança, nos exactos termos em que foi reclamado, tendo-se consolidado como tal na ordem jurídica, não podendo a Recorrida exigir mais aos avalistas da livrança;

F) A livrança foi abusivamente preenchida e isso decorre do facto de o cálculo de juros que lhe terá estado subjacente não corresponder ao cálculo utilizado na reclamação de créditos;

G) Numa perspectiva puramente aritmética, a livrança deveria ter sido preenchida pela soma dos seguintes valores: 233.955, 39 (capital) + 3.265,25 (juros não prescritos) + 275, 51 (imposto do selo), num total de 237.496,15;

H) Tal significa que a livrança executada foi abusivamente preenchida em 379.659,94 (€ 617.156,09 (valor preenchido) - 237.496,15 (valor apurado) = 379.659,94);

I) Assim, o que fundamentalmente se alega, no que concerne especificamente ao cálculo do capital e dos juros subjacentes na operação de que resulta o montante aposto na livrança, tem a ver com coerência;

J) A apreciação do tribunal a quo encontra-se restringida ao que anteriormente se decidiu no processo de insolvência da subscritora, A..., S.A., por força do caso julgado material;

K) A declaração da CGD no processo de insolvência, onde afirma qual o capital em dívida e taxa de juros aplicável, consiste num documento particular, com o alcance constante do n.º 2 do art.º 376.º do CC;

L) A desconformidade entre um cálculo e o outro, impediria uma sub-rogação completa do terceiro garante no crédito reclamado no processo de insolvência;

M) A situação em que o crédito é materialmente afectado no processo de insolvência (plano de insolvência), mantendo incólumes as garantias de terceiro, vai expressamente indicada na lei;

N) A prescrição de juros contidos na livrança e que resultam da relação subjacente, foi invocada em sede de recurso para a relação e, de forma incipiente, foi indicada nas conclusões que determinam o objecto do recurso;

O) O Tribunal da Relação de Lisboa, absteve-se de ser pronunciar sobre esta matéria, sendo pelas razões supra expostas, o que consiste numa nulidade (art.º 685.º, 666.º e al) d) do n.º 1 do 615.º);

P) E, efectivamente, prescreveram juros vencidos mais de 5 anos da data do seu vencimento, contidos na livrança (al d) do art.º 310.º do CC);

Q) Por tudo o exposto, afigura-se que o douto Acórdão Recorrido, deve ser revogada e substituído por outra que à luz do supra exposto, julgue procedente a tese do embargante e, em consequência, considere a prescrição e preenchimento abusivo alegado”.

6. A exequente / embargada apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

I. O recurso apresentado pelo Recorrente não é admissível em virtude de se verificar a existência de dupla conforme;

II. O Recorrente poderia ter requerido a reforma do acórdão proferido pelo Douto Tribunal da Relação, o que não sucedeu, pelo que o recurso apresentado não é o meio processual adequado para a pretensão do Recorrente.

III. O título dado à execução, foi a Livrança caução, no valor de 617.156,09 € (seiscentos e dezassete mil cento e cinquenta e seis euros e nove cêntimos), cujo vencimento ocorreu em 04.01.2023 – cfr. original do título executivo junto aos autos a fls. (…)..

IV. A Livrança em causa, foi entregue à Exequente/ Recorrida, como garantia do pontual cumprimento do Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente (de Utilização Simples), contrato esse formalizado, em 24.11.2008, através de documento particular, entre a exequente e a sociedade, A..., S.A. até ao montante de 250.000,00 € (duzentos e cinquenta mil euros), conforme Doc. n.º 1 que se juntou com a contestação.

V. Como plasmado na cláusula 23 do supra citado Contrato de Abertura de Crédito que constitui o acordo de preenchimento, encontram-se claramente expressas as condições mediante as quais a Caixa Geral de Depósitos, S.A., aqui Recorrida, ficou autorizada pela subscritora da Livrança e pelos avalistas, “a preencher a dita Livrança, i.e. “quando tal se mostrasse necessário, a juízo da própria Caixa, tendo em conta nomeadamente, o seguinte:

- a data de vencimento será fixada pela CAIXA quando, em caso de incumprimento pela CLIENTE das obrigações assumidas, a CAIXA decida preencher a livrança;

- a importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança.

- A CAIXA poderá inserir cláusula “sem protesto” e definir o local do pagamento.

- A livrança não constitui novação do crédito, pelo que se mantêm as condições do empréstimo, incluindo as garantias.

- A referida livrança destinava-se a ser preenchida pelo Recorrido, no caso de incumprimento do citado contrato, ao abrigo da autorização de preenchimento, prevista nas cláusulas 13.º e 14.º das condições gerais do contrato.

VI. O preenchimento da livrança que serve de título à presente execução foi feito no estrito cumprimento dos termos do pacto de preenchimento assinado por todas as partes, assim incluindo o valor das responsabilidades decorrentes da abertura de crédito, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança – v.g. pacto de preenchimento.

VII. O valor aposto na livrança - 617.156,09 € (seiscentos e dezassete mil cento e cinquenta e seis euros e nove cêntimos) - corresponde ao valor em dívida à data de 04 de janeiro de 2023, acrescido das despesas com selagem da livrança.

VIII. Todos os obrigados cambiários foram devidamente interpelados, para o respectivo pagamento, em 05.01.2023, para as moradas constantes, quer nos contratos e na base de dados da exequente, quer da constituição da sociedade subscritora, conforme melhor se alcança das respectivas cópias que que se juntaram com contestação como Docs. n.ºs 2 e 3.

IX. Quanto ao alegado preenchimento abusivo da Livrança, invocado pelo Embargante / Recorrente, este bem sabe que o pacto de preenchimento supra referido, permite à exequente apor na livrança a data de vencimento que entendesse, desde que se verificasse o incumprimento do contrato.

X. O preenchimento abusivo só poderia emergir do desrespeito pelo pacto de preenchimento, o que não se verificou.

XI. Inibir o Recorrido de o fazer, eximindo o Executado da obrigação de satisfação de uma obrigação que está por cumprir, a pretexto de estar ultrapassado um prazo de três anos que manifestamente não é aplicável ao caso sub judice, constituiria, isso sim, uma flagrante violação do princípio pacta sunt servanda (art.º 406.º n.º 1 do Código Civil), basilar no nosso ordenamento jurídico.

XII. A insolvência da sociedade subscritora e a apresentação de reclamação de créditos em nada altera a responsabilidade assumida pelo Recorrente.

XIII. Note-se que estamos perante obrigações diferentes, a da sociedade decorre do contrato assinado e a do Recorrente da livrança avalizada.

XIV. Assim não poderá haver caso julgado.

XV. Atento o que antecede, a exequente não se encontrava obrigada a preencher a livrança em branco na data do vencimento do contrato subjacente à livrança dada à execução, o qual ocorreu nos termos do artigo 91º do CIRE, com a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança.

XVI. Tendo-se ainda que, nos termos do art.º 32º da L.U.L.L., “O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”.

XVII. Decorrendo do art.º 47º, sempre ex vi do art.º 77º, da mesma Lei, que os tomadores, subscritores, endossantes ou avalistas de uma livrança são todos solidariamente responsáveis para com o portador.

XVIII. O avalista assume uma responsabilidade directa respondendo na medida objectiva da obrigação do avalizado, nos termos e quantidade em que este seria responsável.

XIX. E dúvidas não existem que tal garantia pessoal foi dada pela ora embargante mediante a aposição da sua assinatura, como avalista, em livrança em branco, livrança que ficou na posse da exequente, a qual ficou com a faculdade de a preencher pelo valor do em dívida, sendo certo de que se trata de livrança-caução, no âmbito do aval cambiário, isto é, de uma garantia pessoal reportada à dívida cambiária.

XX. A obrigação exequenda é certa, quando a respectiva prestação se encontra determinada ou individualizada, ou seja, é aquela que define os elementos objectivos e subjectivos, isto é, quem é credor, quem é o devedor, o que se deve, quanto se deve e quando se deve.

XXI. A obrigação exigível é aquela que está vencida ou que se vence com a citação do executado e em relação à qual o credor não se encontra em mora na aceitação da prestação ou quanto à realização de uma contraprestação, ou seja, a que não está sujeita a qualquer tipo de condição ou termo.

XXII. Obrigação líquida é aquela quantificada ou, pelo menos, quantificável. Trata-se da possibilidade de verificação do valor da obrigação.

XXIII. O título executivo deve referir-se a obrigação certa líquida e exigível. Ou seja, não é o próprio título que possui essas características, mas as obrigações nele retratadas.

XXIV. Contrariamente ao que pretende fazer crer o Embargante/ Recorrente o objecto a presente execução assenta na Livrança caução preenchida de acordo com o pacto de preenchimento, na sequência do aval por aquele prestado e não no contrato de abertura de crédito subjacente.

XXV. O avalista não é responsável ou não se obriga ao cumprimento da obrigação constituída pelo avalizado, mas tão só ao pagamento da quantia titulada no título de crédito.

XXVI. A obrigação firmada pelo avalista é perante a obrigação cartular e não perante a relação subjacente.

XXVII. A livrança foi subscrita pela sociedade A..., S.A., e avalizada pelo Embargante / Recorrente e por BB.

XXVIII. Sendo que o aval é o acto pelo qual um terceiro ou um signatário de uma letra garante o seu pagamento por parte de um dos seus subscritores – artº. 30 da LULL, aplicável às livranças por força do seu art.º 77.

XXIX. A função do aval é, pois, uma função de garantia, inserida ao lado da obrigação de um certo subscritor cambiário, a cobri-la e caucioná-la.

XXX. Determina o art. 32 da LULL, que o dador de aval é responsável da mesma forma que a pessoa por ele afiançada.

XXXI. A obrigação do avalista é uma obrigação materialmente autónoma, ainda que formalmente dependente da do avalizado, pois o avalista responsabiliza-se pela pessoa que avaliza, assumindo a responsabilidade, abstrata e objetiva, pelo pagamento do título.

XXXII. Com efeito, a obrigação do avalista vive e subsiste independentemente da obrigação do avalizado, mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida – art. 32 da LULL.

XXXIII. A exequente está a exigir o pagamento de um direito de crédito cambiário que os executados não liquidaram, pelo que o título tem um valor certo, líquido e exigível.

XXXIV. O título executivo, é condição suficiente da acção executiva porque tem a relevância de dispensar a prévia indagação sobre se existe ou não existe o direito de crédito que consubstancia e faz presumir a existência da obrigação exequenda (vide Anselmo de Castro, da Acção Executiva Singular, Comum e Especial, pg, 10).

XXXV. Ainda quanto à prescrição sempre de dirá que a obrigação cartular não se encontra prescrita.

XXXVI. E mesmo que se aplicasse a prescrição emergente do contrato, a prescrição aplicável seria a de 20 anos, pelo que não existe prescrição de qualquer das maneiras.

XXXVII. Face ao exposto, não podemos, senão concluir que, a dívida é certa, exigível e líquida, como exige o art.º 713º do C.P.C.”.

7. No despacho proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa pode ler-se:

Revista interposta – admissibilidade:

Interpôs o embargante recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sustentando-o, face à decisão proferida nesta instância que integralmente manteve o decidido em 1.ª instância, cumulativamente invocando a inexistência de dupla conforme (por sustentação da decisão em fundamentação essencialmente diversa) e, em parte do objeto recursório, por verificação de matéria de especial relevo social e jurídico fundamentador do direito a uma revista excecional do decidido.

Tomando posição sobre o requerido, não deixando de assinalar a falta de uma concordância completa entre os fundamentos do decidido nas duas instâncias, entende-se que não assiste razão ao recorrente na invocação de uma fundamentação diversa.

Entende-se, portanto, que não seria de admitir o recurso com tal sustentação.

Em todo o caso, como vem também suscitada uma reapreciação superior com fundamento excecional, sempre deverá ser o recurso admitido nesta instância, cabendo o Supremo Tribunal de Justiça apreciar in totum da admissibilidade do recurso, com os fundamentos apresentados.

É o que se decide.

Assim, admite-se a revista interposta, que subirá nos autos, de imediato e com mero efeito devolutivo da decisão ao Supremo Tribunal de Justiça.


*


Cumpre apreciar, nos termos do artigo 652.º, n.º 1, al. b), do CPC.

Lidas as alegações / conclusões do recurso, conclui-se que o recorrente suscita duas questões.

Destaca-se, quanto a isto, as conclusões A) e B) da revista, em que se diz:

O presente recurso de revista vai limitado a dois temas, primeiro, o preenchimento abusivo da livrança entregue em branco, que se demonstra porque o cálculo utilizado para o efeito não coincide com o cálculo utilizado na relação causal, em sede de reclamação de crédito na insolvência da subscritora;

Segundo, prescrição de componente de juros contida na livrança e emergente da relação causal (por terem decorrido mais 5 anos)”.

Sucede, relativamente à primeira questão, o Acórdão recorrido confirmou, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente a decisão proferida na 1.ª instância.

Pode ler-se, designadamente, no saneador-sentença:

Ora, o único reflexo que pode ter nesta execução o processo de insolvência da subscritora da livrança, é obter a sua redução na mesma proporção em que o crédito da credora for satisfeito nessa insolvência, sob pena de um injustificado locupletamento do credor (que assim receberia o seu crédito por duas vias).

Nenhum outro efeito sobre a dívida cambiária assumida pelo embargante terá.

É aqui que a denominada “ autonomia do aval”, expressa no art.º 32º §, 2ºda L.U.L.L. se perspectiva com maior acuidade”.

E pode ler-se, designadamente, no Acórdão recorrido:

Não se vê, de facto, que a autonomia do crédito cambiário, na sua literalidade e abstração, possa ser posta em causa por uma limitação legal do acionamento do crédito causal decorrente do regime imperativo da insolvência”.

Ambas as instâncias decidiram, em síntese, que não se configurava preenchimento abusivo pelo facto de o montante aposto na livrança não coincidir com o do crédito reconhecido no processo de insolvência do subscritor, já que a obrigação do avalista é autónoma da obrigação causal.

Verifica-se, pois, o obstáculo conhecido como “dupla conforme” referido no artigo 671.º, n.º 3, do CPC, o que determina que o presente recurso de revista seja inadmissível por via normal.

No que toca à segunda questão, reconhecendo o recorrente, adiante, que o Tribunal recorrido não a apreciou [cfr. conclusão O)], ela reconduz-se, afinal, à arguição de omissão de pronúncia [artigo 615.º, n.º 1, al. d)], questão esta cuja apreciação está dependente da admissibilidade do recurso.

De facto, a arguição de nulidades da decisão não é susceptível de constituir fundamento autónomo de admissibilidade da revista (cfr. artigo 615.º, n.º 4, do CPC). No entanto, se a revista for admitida, a questão pode ser apreciada.

E a verdade é que, apesar de existir dupla conforme e de não ser possível, por essa razão, admitir o recurso por via normal, foi invocado o artigo 672.º, n.º 2, al. a), do CPC. Deve, pois, aferir-se da eventualidade de admissão do recurso por via excepcional.

Note-se que não se vislumbram, para lá da dupla conforme, outros impedimentos à admissibilidade do recurso, designadamente no que respeita à legitimidade dos recorrentes, à tempestividade da interposição do recurso e à recorribilidade da decisão.


*


Pelo exposto, determina-se a remessa dos autos à Formação, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 672.º do CPC.

Notifique”.

2. Notificado, o recorrente vem, reclamar para a conferência nos termos do artigo 652.º, n.º 3, do CPC, alegando, em síntese, que não existe dupla conforme e, consequentemente, o recurso deve ser admitido (como revista normal).

É o seguinte o teor (integral) da reclamação:

“1º O Reclamante recorreu para este tribunal de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou decisão da 1ª. Que lhe é desfavorável.

2.º O Reclamante entendeu ter cabimento o recurso de revista previsto no art.º 671.º do CPC por não existir, na sua perspectiva, dupla conforme.

3.º Este tribunal, entendeu, no entanto – cfr. douta decisão de que se reclama – que efectivamente se verificava a existência de dupla conforme e que, por isso, o recurso não pode ser admitido.

4.º O recorrente, simultaneamente à interposição de recurso de revista, interpôs recurso de revista excepcional (672.º do CPC), sendo que, no que se refere a essa matéria, o douto despacho de que se reclama determinou a remessa dos auto à Formação – cfr. nº3 do art.º 672.º do CPC.

5.º Em síntese, a decisão de que se reclama considerou verificada a situação de dupla conforme, nos termos do artigo 671.º, n.º 3 do CPC, entendendo, por isso, inadmissível o recurso de revista (mantendo em aberto, como revista excecional).

6.º Como, nos termos do n.º 4 do art.º 672.º do CPC, da decisão da formação constituída por três juízes, não cabe reclamação ou recurso, por exclusão e partes, o caminho processualmente agora seguido, reclamação, é o único que resta ao Reclamante.

7.º Como decorre da douta decisão de que se reclama, o recurso cuja admissão se encontra em crise, estava reduzido a dois temas – cfr. douta decisão de que se reclama pág. 8:

“Lidas as alegações / conclusões do recurso, conclui-se que o recorrente suscita duas questões:

Destaca-se, quanto a isto, as conclusões A) e B) da revista, em que se diz:

“O presente recurso de revista vai limitado a dois temas, primeiro, o preenchimento da abusivo da livrança entregue em branco, que se demonstra porque o cálculo utilizado para o efeito não coincide com o cálculo utilizado na relação causal, em sede de reclamação de crédito na insolvência da subscritora;

Segundo a prescrição de componente de juros contida na livrança emergente da relação causal (por terem decorrido 5 anos).”

8.º Ao contrário do afirmado na douta decisão de que se reclama, não existe identidade de fundamentos decisórios entre as instâncias no que concerne ao tema, que agora interessa, do preenchimento abusivo da livrança.

9.º O Tribunal da Relação de Lisboa, em boa parte, afastou-se dos fundamentos da decisão recorrida proferida em primeira instância, que assentou na ideia da autonomia do aval para, igualmente, julgar improcedentes os embargos, na medida em que negou a apelação e manteve a decisão recorrida.

10.º Em primeira instância, foi entendido que a autonomia do aval (pág. 34 da douta sentença), impedia que o Recorrente invocasse a relação causal e afirmasse existir preenchimento abusivo da livrança, por os valores aí apostos conflituarem, com os reclamados pela portadora da livrança em sede de insolvência.

11.º A primeira instância propugnou uma visão radical da autonomia do aval, desconsiderando, em especial, o facto de o Recorrente ter tido intervenção no pacto de preenchimento da livrança.

12.º A segunda instância, entendeu, contrariamente à primeira instância (que assentou a sua decisão nas limitações que resultariam para uma defesa da autonomia do aval), existir a possibilidade ampla de o avalista excecionar meios de defesa relativos à obrigação causal. O que vai afirmado nas conclusões:

“II – Deve admitir-se, em tese, que o avalista que tenha intervindo no contrato invoque preenchimento abusivo de livrança em branco e excecione junto do portador meios de defesa relativos aos contrato causal ao desrespeito pelo pacto de preenchimento.”

13.º Assim e no que se refere a esta matéria, o fundamento para negar provimento à tese do Recorrente é manifestamente diferente do fundamento em primeira instância (autonomia do aval) e, logo, cfr. n.º 3 do art.º 671.º do CPC, trata-se de decisão suscetível de recurso de revisão:

“A alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar discrepâncias secundárias, que não representam efetivamente um percurso jurídico diverso, ou as situações em que se verifique a não aceitação pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, quando a Relação, confirmando a fundamentação, adite outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido.“ – Abrantes Geraldes, comentário ao art.º 671.º do CPC,

14.º Assim, uma vez que a primeira instância fundamentou a sua decisão na autonomia do aval e a primeira instância, entendeu exatamente o oposto, que na hipótese em causa o avalista pode socorrer-se dos meios de defesa emergentes do contrato causal (como aliás se extrai do próprio sumário do acórdão), o recurso é processualmente viável. Trata-se, em suma de fundamentação essencialmente diferente, não existindo dupla conforme.

15.º O acórdão recorrido decidiu do seguinte modo esta questão (que consta do sumário):

“Não constitui, todavia, uma defesa relevante a invocação de que a obrigação causal foi liquidada pelo credor, em processo de insolvência, num valor inferior ao exigido cambiariamente do avalista não se tratando de uma alteração do crédito que aproveite aos garantes.”

Cabe, pois, a esta Conferência pronunciar-se sobre a matéria (da admissibilidade do recurso).


***


II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Os factos relevantes para a presente decisão são os apresentados no Relatório que antecede e que se dão aqui por reproduzidos.

O DIREITO

Pode antecipar-se desde já que a principal razão pela qual se reproduz na íntegra o despacho reclamado é a de que se entende que a respectiva decisão (fundamentação incluída) deve ser aqui confirmada (e subscrita).

Explica-se nesse despacho, abundantemente e de forma clara, as razões pelas quais deve dar-se por verificado, in casu, o impedimento ou requisito negativo da dupla conforme e, em particular, o (sub-)requisito da fundamentação essencialmente diferente.

Numa palavra e para não repetir inutilmente argumentos: porque a ratio decidendi exposta nas decisões das duas instâncias é a mesma.

Isto é quanto basta para se concluir que a fundamentação não é essencialmente diferente, sendo irrelevantes eventuais argumentos secundários, laterais, incidentais ou feitos a título de obter dictum – que, in casu, nem é seguro que se verifiquem.

A final, deixam-se duas ou três observações adicionais.

Em primeiro lugar, ao contrário do que alega o reclamante, o despacho reclamado não procedeu à não admissão da revista. O despacho reclamado limitou-se a não admitir a via normal (com o fundamento já indicado) e a cumprir o que lhe impõe a lei para que a Formação verifique se é admissível a via excepcional (cfr. artigo 672.º, n.º 3, do CPC), conforme pedido, aliás, pelo recorrente. É a Formação quem tem, nestes casos, o poder de decidir, em definitivo, a sorte da revista, ou seja, admiti-la ou não.

Em segundo lugar, não deixa de ser estranho que o reclamante venha reclamar de uma decisão que, na verdade, acolhe um pedido seu [cfr. alegação 20.ª e conclusão D) da revista].

Assinala-se ainda que o reclamante diz, a certo passo:

Como, nos termos do n.º 4 do art.º 672.º do CPC, da decisão da formação constituída por três juízes, não cabe reclamação ou recurso, por exclusão e partes, o caminho processualmente agora seguido, reclamação, é o único que resta ao Reclamante” (cfr. alegação 6.ª da reclamação).

Perpassa disto a impressão de que o recorrente “reclama por reclamar”, e até antecipadamente, com o mero fito de esgotar todos os meios de impugnação previstos na lei processual. Ora, se assim for, tem de dizer-se que não é a melhor conduta – não é, designadamente, a conduta mais conforme aos princípios da cooperação e da boa fé processual (cfr. artigos 7.º e 8.º do CPC).

Para o que interessa por ora, no entanto, resta confirmar o despacho reclamado que remeteu os autos à Formação.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, confirma-se o despacho reclamado e mantém-se a decisão de remessa dos autos à Formação, nos termos e para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 672.º do CPC.


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Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

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Catarina Serra (relatora)

Emídio Santos

Maria da Graça Trigo