Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2553/22.3T8GMR.G2.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
AMBIGUIDADE
OBSCURIDADE
ININTELIGIBILIDADE
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
FUNDAMENTAÇÃO
INTERPRETAÇÃO
DISPOSITIVO
RECLAMAÇÃO
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDO A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I. A falta de fundamentação só releva como causa de nulidade da decisão desde que seja absoluta.

II. A ambiguidade ou obscuridade previstas na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do Código de Processo Civil só relevam quando tornem ininteligível a parte decisória de uma sentença ou de um acórdão.

III. A ambiguidade ou obscuridade só tornam ininteligível a parte decisória de uma sentença ou de um acórdão quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Reclamante: AA

Reclamado: BB

I. — RELATÓRIO

1. BB propôs acção declarativa contra AA, pedindo que [o Réu] seja condenado a reconhecer que o autor era dono e legítimo proprietário de imóvel identificado nos autos e que, em consequência, seja declarada a nulidade da venda desse imóvel celebrada pelo réu, na qualidade de vendedor, devendo ser-lhe restituída a quantia de € 189.543,20, que este recebeu a título de preço, acrescida de juros vencidos e vincendos contados desde há cinco anos”.

2. O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção totalmente procedente.

3. O dispositivo do acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª instância é do seguinte teor:

Face ao exposto, julga-se procedente a ação proposta por BB e a que aderiu CC e, por via disso, decide-se:

a. declarar que o Autor e a Interveniente eram, à data de 16.04.2003, donos e possuidores da fração AD” do prédio urbano constituído sito na Avenida … n.º ..., freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, descrita sob o número ..83/20070419-AD da freguesia da Póvoa de Varzim, na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim;

b. declarar que, à data de 16.04.2003, o Réu não dispunha de legitimidade substantiva para transmitir a terceiros a fração AD” melhor id. em a.;

e, consequentemente,

c. condenar o Réu a entregar ao Autor e Interveniente a quantia de € 189.543,20, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal prevista para as obrigações de natureza civil, vencidos desde 16.05.2017 e até efetivo e integral pagamento.

Mais se decide condenar o Réu nas custas processuais que sejam devidas, na proporção de 100% face ao seu decaimento na causa (sem prejuízo de isenção ou de dispensa de que possa beneficiar).

4. Inconformado, o Réu AA interpôs recurso de apelação.

5. O Tribunal da Relação julgou o recurso de apelação parcialmente procedente.

6. O dispositivo do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação é do seguinte teor:

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, e, em consequência:

A) confirmam a sentença recorrida relativamente à al. a) do dispositivo;

B) revogam a sentença recorrida relativamente às als. b) e c) do dispositivo, julgam a ação improcedente nesta parte e absolvem o réu dos correspondentes pedidos.

As custas da ação e do recurso serão suportadas por autor e réu, na proporção dos respetivos vencimentos, que se fixam em ¾ para o autor e ¼ para o réu, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que goza o autor.

7. Inconformado, o Autor BB interpôs recurso de revista.

8. O Supremo Tribunal de Justiça julgou o recurso de revista procedente.

9. O dispositivo do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é do seguinte teor:

Face ao exposto, concede-se a revista, revoga-se parcialmente o acórdão recorrido e repristina-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, na parte em que condenou o Réu a entregar ao Autor e à Interveniente a quantia de 189.543,20 euros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal prevista para as obrigações de natureza civil, vencidos desde 16.05.2017 e até efectivo e integral pagamento.

Custas pelo Recorrido AA.

10. Inconformado, o Réu AA vem agora reclamar do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, por falta de fundamentação, por ambiguidade e / ou obscuridade da decisão e por contradição entre os fundamentos e a decisão.

11. Fundamentou a sua reclamação nos seguintes termos:

I – Breve enquadramento:

1. Nos presentes autos estava em causa o direito de propriedade sobra a fracção autónoma identificada pelas letras "AD" do prédio urbano constituído sito na Avenida..., n.° ..., freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, descrita sob o número ..83/20070419-AD da freguesia da Póvoa de Varzim, na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim e o destino a dar ao produto da sua venda através de escritura pública realizada em 16/04/2003.

2. Antes de interpor a acção que deu origem aos presentes autos, em 09/10/2018, o autor/ recorrente tinha intentado um outro processo tendo por objecto a identificada fracção autónoma, que correu termos no Juízo Central Cível de Guimarães – J5, com o n.º 5708/18.1T8GMR, no qual alegava o incumprimento de um contrato de promessa de compra e venda por parte do réu/recorrido, na qualidade de promitente vendedor – ou seja, na qualidade de proprietário da identificada fracção autónoma pedindo que se:

"a) Declare resolvido o contrato-promessa celebrado entre Autor e Réu, por culpa imputável exclusivamente ao Réu;

b) Condene o Réu no pagamento ao Autor de cento e vinte e cinco euros, acrescido de juros no valor de € 77.466,00 (setenta e sete mil, quatrocentos e sessenta e seis euros), no valor global de € 202.466,00 (duzentos e dois mil, quatrocentos e sessenta e seis euros) ou,

C) Condene o Réu no pagamento ao Autor de cento e vinte e cinco euros, por enriquecimento sem causa, também acrescido de juros no valor de € 77.466,00 (setenta e sete mil, quatrocentos e sessenta e seis euros), contados desde o dia 16 de Abril de 2003, perfazendo o valor global de € 202.466,00 (duzentos e dois mil, quatrocentos e sessenta e seis euros);

d) Condene o Réu no pagamento de juros vincendos, até efetivo e integral pagamento.”

3. Esta acção foi julgada improcedente, tendo a decisão transitado em julgado.

4. Em 12/05/2022, o autor/recorrente interpôs a presente acção declarativa contra o réu/recorrido, pedindo agora este fosse condenado (…) a reconhecer que o autor era dono e legítimo proprietário de imóvel identificado nos autos e que, em consequência, seja declarada a nulidade da venda desse imóvel celebrada pelo réu, na qualidade de vendedor, devendo ser-lhe restituída a quantia de € 189.543,20, que este recebeu a título de preço, acrescida de juros vencidos e vincendos contados desde há cinco anos”

5. O Tribunal de 1.ª Instância julgou esta acção procedente e, socorrendo-se do regime jurídico da venda de coisa alheia, decidiu:

(..) a. declarar que o Autor e a Interveniente eram, à data de 16.04.2003, donos e possuidores da fração "AD" do prédio urbano constituído sito na Avenida (...) n.° ..., freguesia e concelho da Póvoa de Varzim, descrita sob o ...7 número ..83/20070419-AD da freguesia da Póvoa de Varzim, na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim;

b. declarar que, à data de 16.04.2003, o Réu não dispunha de legitimidade substantiva para transmitir a terceiros a fração "AD" melhor id. em a.; e, consequentemente,

c. condenar o Réu a entregar ao Autor e Interveniente a quantia de € 189.543,20, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal prevista para as obrigações de natureza civil, vencidos desde 16.05.2017 e até efetivo e integral pagamento.

Mais se decide condenar o Réu nas custas processuais que sejam devidas, na proporção de 100% face ao seu decaimento na causa (sem prejuízo de isenção ou de dispensa de que possa beneficiar).”

6. Desta decisão, o réu/recorrido interpôs recurso de apelação, impugnado a matéria de facto considerada provada quanto aos pontos n.ºs 21, 22, 23, 24 e 27 e não provada nas alíneas D), E) e F) e, ainda, no que à matéria de direito respeita, também quanto à aplicação do regime legal da venda de coisa alheia.

7. O Tribunal da Relação de Guimarães julgou o recurso parcialmente procedente.

7.1. No que respeita à matéria de facto (aliás, em conformidade com o caso julgado quanto aos pontos n.ºs 17 e 18 dos factos provados no processo 5708/18.1T8GMR), o Tribunal da Relação de Guimarães acolheu a alteração reclamada quanto ao facto n.º 24, fazendo as seguintes considerações e decidindo:

(…) Das declarações do réu, conjugadas com as da testemunha DD, comprador do imóvel, resulta que toda a negociação referente à venda foi tratada entre este último e o autor, sem qualquer intervenção do réu, o qual apenas compareceu no dia da escritura para proceder à sua outorga, tendo sido nesse dia que conheceu o réu, por lhe ter sido apresentado pelo autor, o qual lhe disse que era o seu filho e que era o proprietário do imóvel. O comprador declarou que nem sequer conhecia o réu e que tratou todo o negócio relativo ao apartamento com o autor o qual se intitulava seu proprietário pois sempre se referia ao seu apartamento”.

Ora, perante estas declarações concordantes e o que foi dado como provado no facto 24, de que foi o Autor quem diligenciou pela venda da fração AD”, procurando os serviços da Sulimar – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., tendo na altura estabelecido os termos e as condições do negócio, inclusive o preço, não é credível que não tenha igualmente acordado a forma de pagamento pois, em negócios desta natureza, é necessário que haja uma prévia determinação dessa matéria a fim de, no dia da escritura, o comprador vir munido dos cheques ou do comprovativo da transferência bancária, consoante o que tenha sido acordado, não sendo normal nem usual que este assunto seja tratado apenas no dia da celebração da escritura. Daí que se nos afigura absolutamente plausível que a concreta matéria da forma de pagamento tenha sido acordada com o autor, tal como o foram as restantes matérias, ou seja, os termos e as condições do negócio e o preço. Diversamente, é inverosímil que tudo tenha sido tratado entre o comprador e o autor e uma matéria tão relevante como a determinação da forma de pagamento não tenha sido abrangida.

Deste modo, considera-se que os elementos probatórios constantes dos autos impõem que se altere a redação do facto nº 24, nos termos pretendidos pelo recorrente.

Por conseguinte, procede a impugnação quanto ao facto nº 24, o qual passará a ter a seguinte redação:

24. Foi o Autor quem diligenciou pela venda da fração AD”, procurando os serviços da Sulimar – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., tendo na altura estabelecido os termos e as condições do negócio, inclusive o preço e a forma de pagamento.”

7.2. No que respeita à aplicação do direito, Tribunal da Relação de Guimarães afastou a aplicação do regime jurídico da venda de coisa alheia e aplicou ao caso contrato o regime jurídico do mandato sem representação, fazendo as considerações decidindo como se segue:

Com o devido respeito por opinião diversa, consideramos que o enquadramento jurídico da situação em apreço na venda de coisa alheia, prevista nos arts. 892º e ss do CC, não é a mais adequada à situação em apreço em face da factualidade que foi dada como provada. (…)

Ora, no caso em análise, à luz da factualidade provada, verifica-se que existe uma situação de interposição real de pessoas pois o réu, ao outorgar a escritura de venda do imóvel, embora tenha intervindo no negócio em nome próprio - como aliás, não podia deixar de ser, pois, estando o bem registado em seu nome, apesar de não lhe pertencer, sem a sua intervenção não seria possível efetuar a escritura - agiu em nome e no interesse do autor.

Com efeito, foi o autor quem diligenciou pela venda do imóvel procurando os serviços de uma mobiliária, tendo na altura estabelecido os termos e as condições do negócio, inclusive o preço e a forma de pagamento (facto 24) e, de forma consentânea com este comportamento, o autor aceitou que os adquirentes, DD e mulher, passassem a ocupar e utilizar o imóvel a partir de 2003 (facto 28), ou seja, a partir da venda.

O autor, para além de ter angariado o comprador para a fração, foi dando conhecimento ao réu das démarches efetuadas relativamente à venda (facto 3, nºs 17 e 18).

Assim, entendemos que a venda foi feita por interposição real de pessoas, tendo o réu atuado em nome próprio, porque outorgou a escritura na qualidade de vendedor e titular do direito de propriedade que se encontrava registado a seu favor, mas sendo uma atuação por conta e no interesse do autor, o verdeiro proprietário do imóvel, juntamente com a interveniente, sendo de aplicar o regime jurídico do mandato, sem representação, previsto nos arts. 1180º e ss do CC.

Dispõe o art. 1180º, do CC, que o mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos atos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos atos ou sejam destinatários destes.

De acordo com o disposto no art. 1181º, nº 1, do CC, o mandatário é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato.

No caso, o réu efetuou a venda, tendo-se transmitido a propriedade para os compradores e recebeu destes o preço, o qual serviu ao distrate da hipoteca que onerava a fração (facto 17).

Ora, o autor sabia que a fração se encontrava onerada com hipoteca, pois requisitou, em 11.05.1999 e em 22.12.1999, certidões do registo predial da fração e aí constava essa garantia (facto 3, nºs 9 e 22).

Perante este conhecimento, e tendo sido o autor quem tratou de todas as condições negociais, inclusive preço e sua forma de pagamento (facto 24), necessariamente sabia que o preço da venda teria de ser imediatamente afeto ao distrate da hipoteca que onerava a fração pois só assim ela poderia ser vendida, como foi, livre de ónus e encargos.

De onde decorre, que o valor da venda recebido pelo réu não tem que ser entregue ao autor, no âmbito da execução do mandato sem representação, ao abrigo do estatuído no art. 1181º, nº 1, do CC, porquanto o mesmo foi afeto ao distrate da hipoteca que onerava a fração, conforme o autor sabia que tinha que acontecer para que o negócio se concluísse e culminasse numa venda do imóvel sem ónus ou encargos.

Por assim ser, o réu não tem que devolver ao autor a quantia de € 189 543,20 relativa à venda do imóvel.

Nestes termos, procede o recurso nesta parte, o que determina a revogação da sentença quanto às als. b) e c), devendo o réu ser absolvido do correspondente pedido.”

8. Desta decisão, o autor/recorrente interpôs recurso de revista para este Venerando Tribunal, defendendo a aplicação ao caso dos autos do regime jurídico da venda de coisa alheia e pugnado pela reposição da decisão de 1.ª Instância, concluindo como se segue:

1. O acórdão manteve a decisão da Primeira Instância quanto à aquisição da propriedade, a favor do recorrente por força da aquisição prescritiva ou originária.

2. Todavia, considerou a venda efetuada pelo recorrido a Terceiros válida e, em consequência, revogou a sentença que havia condenado o recorrido a entregar ao recorrente o preço recebido de 189.543,20€, acrescido dos juros legais, com o argumento de que tal quantia se destinou ao credor hipotecário.

3. Sucede que a hipoteca foi constituída para garantir responsabilidade do recorrido, tal como ficou provado e, portanto, o recorrido viu-se livre de uma divida, à custa do patrimônio do recorrente.

4. Embora o recorrido não tenha embolsado, na totalidade, o preço da venda, que se destinou à entidade hipotecária, é como se o tivesse embolsado, já que se livrou da divida ao banco, o que equivale a dizer que o recorrido beneficiou exclusivamente da venda de coisa que não lhe pertencia.

5. Acresce que, o preço que o Terceiro/comprador pagou pela Fração AD, era muito superior (189.543,20€) ao indicado na escritura (100.821,66€).

6. E somente esta quantia de 100.821,66e é que se destinou ao credor hipotecário.

7. Dessa forma o a acórdão beneficiou sem motivo legal, o recorrido, que à custa do patrimônio do recorrente, solveu responsabilidades suas.

8. Ao contrário do acórdão, a sentença do Tribunal de Primeira Instância fez uma correta aplicação do direito aos factos e como tal deverá ser mantida.

9. O acórdão ora recorrido violou o regime legal da venda de bens alheios, constante do artigo 892° e seguintes do código civil.

Termos em que deverá a presente revista ser admitida, julgada procedente por provada e por via dela, revogar-se o acórdão da Relação de Guimarães, de forma a manter-se a sentença proferia pelo juízo Central Cível de Guimarães, pois, só assim será reposta a JUSTIÇA!”

9. Em face de tudo o atrás referido, este Venerando Tribunal delimitou a questão a saber e decidir apenas se o Réu, agora Recorrido, AA deve entregar ao Autor, agora Recorrente, BB e à Interveniente CC o preço recebido pela venda da fracção AD do prédio urbano constituído sito na Avenida Localização 1, n.° 76, freguesia e concelho da Póvoa de Varzim”.

10. De seguida, passando à APLICAÇÃO DO DIREITO, dando por assente que o comportamento do autor/recorrente é incompatível com a arguição da ineficácia do contrato de compra e venda, este Venerando Tribunal fez as considerações e decidiu como se segue:

(…) 23. Independentemente de estar em causa a obrigação de restituir aquilo que foi indevidamente recebido ou a obrigação de transferir aquilo que foi (devidamente) recebido [em execução do mandato], o Réu, agora Recorrido, AA não cumpriu — o preço da fracção AD do prédio urbano sito na Avenida Localização 1 n.° 76, não foi recebido pelos seus proprietários (pelo Autor, agora Recorrente, BB, e pela sua ex-mulher, a Interveniente CC).

24. O conhecimento de que o preço foi afectado ao distrate da hipoteca é em absoluto irrelevante: o facto de a fracção ter sido registada em nome do Réu, agora Recorrido 8, não configurava uma doação do imóvel 9 e o facto de o Autor, agora Recorrente, ter diligenciado pela venda da fracção registada em nome do Réu, agora Recorrido 10, consciente de que o preço teria de ser afectado ao distrate da hipoteca, não configurava uma doação do preço do imóvel.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, concede-se a revista, revoga-se parcialmente o acórdão recorrido e repristina-se a sentença proferida pelo Tribunal de l.ª instância, na parte em que condenou o Réu a entregar ao Autor e à Interveniente a quantia de 189.543,20 euros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal prevista para as obrigações de natureza civil, vencidos desde 16.05.2017 e até efectivo e integral pagamento.

Custas pelo Recorrido AA”

11. Ora, dispõem as alíneas b) e c), do artigo 615.º, n.º 1, do CPC, respectivamente, que é nula a sentença quando:

(…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.”

12. Com todo o respeito, entende o réu/recorrido que a decisão deste Venerando Tribunal agora em apreço enferma do vício de nulidade nos termos do citado preceito legal, o qual impediu uma correcta apreciação do mérito da causa, conduzindo a uma decisão que não encontra suporte na factualidade, seja a que foi alegada pelas partes, seja aquela que foi considerada provada pelas Instâncias, e, por isso, injusta, mas que também não permite o controlo jurisdicional, ainda que por via de recurso extraordinário, como a seguir procurará melhor explicar.

II – Quanto à não especificação dos fundamentos de facto e de direito (alínea b), do n.º 1, do art.º 615.º, do CPC):

13. Com se viu atrás, a 1.ª Instância decidiu a factualidade dos autos com recurso ao regime jurídico da venda de coisa alheia.

13.1. O Tribunal da Relação de Guimarães afastou aquele regime e decidiu a factualidade dos autos com recurso ao regime jurídico do mandato sem representação.

13.2. Ora, a decisão deste Venerando Tribunal agora em apreço não refere, nem explicita de forma clara e coerente qual o regime jurídico que utilizou para enquadrar a factualidade dos autos.

13.3. Foi o regime do mandato sem representação? Então quais os fundamentos de facto que, em concreto, fundamentam e justificam uma errada aplicação do mesmo por parte do Tribunal da Relação e, por isso, justificam a alteração da decisão proferida?

13.4. E, nesse caso, quais são os factos que, em concreto e tendo em conta a factualidade alegada pelas partes e considerada pelas Instâncias, permitem imputar ao réu/recorrido uma infracção àquele regime jurídico que justifique a alteração da decisão proferida?

13.5. Foi outro regime jurídico que não aquele? Qual em concrecto? Onde falhou o percurso lógico-jurídico da decisão do Tribunal da Relação?

13.6. E, também nesse caso, quais são os fundamentos de facto que permitem imputar ao réu/recorrido uma infracção que justifique a alteração da decisão proferida?

14. A apontada falta de fundamentação de facto e de direito da decisão é apreço, além de geradora do vício de nulidade, que aqui se vem arguir, constitui também uma violação ao dever de fundamentação consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, na exacta medida em que impede o seu controlo jurisdicional, ainda que, no caso concrecto, por via de recurso extraordinário,

15. resultando, ainda, numa decisão que não é clara, nem perceptível pelos destinatários e, em especial, pelo aqui réu/recorrido, directamente afectado por ela, para quem, com todo o respeito o percurso lógico-jurídico prosseguido se encontra eivado de ambiguidade e obscuridade, não conseguindo vislumbrar respaldo na matéria de facto alegada pelas partes (nos dois processos instaurados pelo autor/recorrente tendo como objecto a fracção autónoma em causa), nem naquela que resultou apurada pelas Instâncias, originando uma solução injusta como a seguir melhor procurará explicar.

III – Quanto à oposição entre fundamentos, obscuridade e ambiguidade da decisão (alínea c), do n.º 1, do art.º 615.º, do CPC):

16. No seguimento de tudo o atrás referido nos anteriores pontos 1 a 15 – e que, por brevidade, aqui se dá por integralmente reproduzido -, importa salientar que as sentenças devem aplicar o DIREITO à factualidade trazida ao processo pelas partes e apurada pelas Instâncias, sob pena de as decisões, além de se poderem tornar injustas, correspondam exercícios lógico-jurídicos incapazes de reflectir a riqueza da realidade dos factos.

17. No que respeita à factualidade carreada para os autos pelas partes, tal como já se referiu anteriormente, quanto à propriedade da fracção autónoma aqui em causa, verifica-se que, em duas acções distintas e sucessivamente por si interpostas, o autor/recorrente, alegou coisas diferentes.

17.1. No processo 5708/18.1T8GMR, considerou o réu/recorrido como proprietário da fracção, para nos presentes autos vir assumir-se ele como proprietário da mesma (não ele e a mulher com que era casado à data dos factos e que apenas fez intervir em ambos os processos em resultado da excepção de legitimidade com que foi confrontado em ambas as acções).

17.2. No que respeita à venda da fracção, em ambas as acções, o autor/recorrido afirmou que a mesma ocorreu à sua revelia, sem o seu conhecimento e/ou consentimento.

17.3. Por sua vez, o réu/recorrido, nas contestações que apresentou às duas acções, relatou sempre, em síntese, os seguintes factos:

- embora nunca a tenha registado em seu nome, foi autor/recorrente quem adquiriu inicialmente a fracção autónoma em causa;

- que desde que iniciou a sua actividade profissional de forma autónoma, a título pessoal e através da sua empresa, passou a auxiliar financeiramente o réu/recorrente e as empresas de que este era detentor – ver Ponto 3 dos Factos Provados no Processo n.º 5708/18.1T8GMR;

- no início do ano de 1999, o autor/recorrente e as suas empresas, eram devedores ao réu/recorrido e sua empresa de uma quantia que, no global, nunca seria inferior a 20.000.000$00 (vinte milhões de escudos), quantia essa que foi aumentando e, no ano de 2003, já nunca seria inferior a 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) – ver Ponto 4 dos Factos Provados no Processo n.º 5708/18.1T8GMR, embora o Tribunal tenha apenas considerado quantia não inferior a esc.: 4.300.000$00 (quatro milhões e trezentos mil escudos)”, por referência a Janeiro de 2002;

- perante a impossibilidade de pagar de outra forma, em 24.06.1999, o autor/recorrente entregou ao réu/recorrido a fracção autónoma AD”, tendo este passado a dispor da mesma com o ânimo de verdadeiro proprietário até à data da sua venda;

- foi o autor/recorrente quem, com a colaboração da imobiliária por si escolhida, angariou comprador para a fracção em causa, com o qual estabeleceu os termos e as condições do negócio, inclusivamente o preço e a forma de pagamento – ver Pontos 16, 17 e 18 dos Factos Provados no Processo n.º 5708/18.1T8GMR e Facto n.º 24 dos presentes autos.

18. Colocado perante a factualidade trazida aos autos pelas partes, o Tribunal de 1.ª Instância definiu as questões a apreciar:

(…) - saber se o Autor era dono do imóvel descrito na CRP sob o n.º 21.096, ao tempo do negócio de compra e venda de 26.04.2003;

- Em caso afirmativo, aferir se a venda do id. feita pelo Réu ao terceiro (DD) é/está inválida;

- Em caso afirmativo, apurar as consequências jurídicas de tal invalidade na relação entre Autor e Réu.

Ainda, da responsabilidade das partes quanto a custas processuais.”

19. E foi em ordem a dar-lhes resposta que aquele Tribunal conduziu a actividade probatória das partes e, no que respeita à decisão deste Venerando Tribunal agora em apreço, considerou provados os factos que aqui se destacam (com a alteração introduzida ao Facto n.º 24 pelo Tribunal da Relação de Guimarães):

(…) 3. Na ação identificada em a), foi considerado provado o seguinte: (…)

3. Desde que iniciou a sua actividade profissional de forma autónoma, com a constituição, em 14.04.1993, da sociedade R..., Lda.”, o Réu por intermédio da sua identificada empresa e a título pessoal, em sucessivas ocasiões, passou a auxiliar o Autor e as empresas que este detinha e geria, face às dificuldades financeiras que tanto o Autor como aquelas suas empresas atravessavam, através de pagamentos por cheque de despesas e de contas a fornecedores, aceite e apresentação a desconto de letras de câmbio, desconto de remessas de exportação endossadas e fornecimentos de calçado e materiais para fabrico de calçado (artigos 27º a 34º);

4. Em Janeiro de 2002, o Autor e as suas empresas, eram devedores à empresa R..., Lda.” de quantia não inferior a esc.: 4.300.000$00 (quatro milhões e trezentos mil escudos) (artigos 27º a 34º da contestação);

16. O Autor socorreu-se da sociedade denominada Sulimar – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda.” para a procura e a angariação de interessados na compra (artigo 83º da contestação);

17. Com a colaboração da imobiliária referida no número anterior o Autor angariou o comprador para a fracção em causa, com o qual estabeleceu os termos e as condições do negócio, inclusivamente o preço e a forma de pagamento (artigo 84º da contestação e 29º da p.i.).

18. O Autor foi dando conhecimento ao Réu das démarches aludidas nos números anteriores (artigo 25º da p.i.); (…)

24. Foi o Autor quem diligenciou pela venda da fração AD”, procurando os serviços da Sulimar – Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda., tendo na altura estabelecido os termos e as condições do negócio, inclusive o preço e a forma de pagamento.”

20. É perante toda a descrita diversidade de factos trazida aos autos pelas partes, condicionado pela forma como a Instâncias delimitaram as questões a discutir e fixaram os factos provados e aos mesmos aplicaram o Direito, que este Venerando Tribunal foi chamado a intervir, cabendo-lhe a complexa e difícil tarefa de apreciar as razões do recurso apresentado e de, a final, decidir de forma clara, imparcial e, principalmente, JUSTA.

21. Diga-se que, é ciente da responsabilidade que representam todas estas dificuldades para este Venerando Tribunal e com todo o respeito, que o réu/recorrido aqui expressa as críticas de que entende ser merecedora a decisão em apreço, as quais não faz de ânimo leve, mas sim, insiste-se, com total respeito e confiança na imparcialidade e capacidade de decisão que o mesmo lhe merece, sendo sua convicção que esclarecerá as questões e, a final, decidirá em conformidade

22. Não tendo o autor/recorrente colocado em causa a matéria de facto considerada provada em 1.ª Instância, posto perante a decisão do Tribunal da Relação que afastou a aplicação ao caso dos autos do regime jurídico da venda de coisa alheia, aplicando em seu lugar o regime jurídico do mandato sem representação, veio agora pelo presente recurso de revista defender a invalidade de venda e a aplicação do regime jurídico da venda de coisa alheia.

23. Ora, se por um lado, a decisão agora em apreço afastou inequivocamente a invalidade da venda da fracção em causa, a verdade é que, ao contrário do Tribunal da Relação, condenou o réu/ recorrido a entregar ao autor/recorrente e à Interveniente a quantia correspondente ao valor da mesma.

23.1. Fê-lo, desde logo, como atrás se referiu, sem referir de forma explícita qual o regime jurídico de que se socorreu, em que medida a actuação do réu/recorrente o violou e qual foi o erro de aplicação do Direito aos Factos em que incorreu o Tribunal da Relação na sua decisão e que justificou a sua alteração.

23.2. Como compreender que a decisão em apreço tenha considerado a venda válida – tendo esta decorrido da execução de um mandato sem representação – e, sem fazer referência aos concretos fundamentos de facto que o justificaram, afirmar que o réu/recorrente não cumpriu”, não identificando o normativo jurídico que este desrespeitou e que sustentou a obrigação de entregar um valor que não recebeu

23.3. Como compatibilizar a afirmação de que o conhecimento de que o preço foi afectado ao distrate é um absoluto irrelevante” com a matéria de facto provada constante dos pontos 3 e 4 do Facto n.º 3, referidos no anterior número 19, nomeadamente, estar provado que:

- a partir do momento em que iniciou a sua actividade profissional, em 1993, o réu/recorrido, por intermédio da sua empresa e a título pessoal, em sucessiva ocasiões, passou a auxiliar financeiramente o autor/recorrente e as suas empresas;

- em Janeiro de 2002, o autor/recorrente e as suas empresas eram devedores á empresa do réu/recorrido de uma quantia não inferior a 4.300.000$00 (quatro milhões e trezentos mil escudos) – embora, como se viu e consta das contestações por si apresentadas, o réu/recorrido tivesse alegado que, no ano de 2003, tal valor nunca seria inferior a 30.000.000$00 (trinta milhões de escudos) ?

23.4. Como compatibilizar, ainda, tal afirmação com o facto de em nenhum dos processos ter sido considerado provado que o réu/recorrido era devedor de qualquer quantia ao autor/recorrente?

23.5. Como justificar uma decisão cuja solução final não parece ter tido em conta o atrás referido e, se teve, não o explicou?

23.6. Fruto de tudo o exposto, não se torna possível percorrer o percurso fundamentador e pensamento lógico-jurídico justificador da decisão em apreço, a qual, insiste-se, se traduziu numa solução que está em contradição com a factualidade em causa nos autos e, por isso, manifestamente injusta.

24. É, pois, forçoso concluir que a decisão deste Venerando Tribunal agora em apreço também enferma do vício de nulidade nos termos do citado preceito legal, causado pelas apontadas faltas de fundamentação, obscuridade, contradições e ambiguidades que, todas juntas, impedem que os fundamentos invocados sustentem a condenação do réu/recorrido a entregar ao autor/recorrido uma quantia que não recebeu, não obstante ter agido com total respeito pelos termos do mandato sem representação e dentro todo o circunstancialismo de facto subjacente nos autos, seja o que foi carreado pelas partes, seja aquele que foi considerado provado pelas Instâncias, assim se revelando uma decisão injusta e que também não permite o controlo jurisdicional, ainda que por via de recurso extraordinário.

Em face de tudo o exposto, com todo o respeito, deve ser declarada a nulidade da decisão em apreço, com todas as legais consequências, nomeadamente, a da prolação de nova decisão que conduza a uma solução final diferente, assim se fazendo JUSTIÇA.

12. O Autor BB respondeu à reclamação, alegando a sua extemporaneidade e, subsidiariamente, pugnando pelo seu indeferimento.

13. O Réu AA respondeu à alegação de que a reclamação seria extemporânea.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

14. O n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça por remissão dos artigos 666.º e 585.º, é do seguinte teor:

É nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;

b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

15. O Réu, agora Reclamante, começa por imputar ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2025 o vício de falta de fundamentação.

16. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado constantemente que a falta de fundamentação só releva desde que seja absoluta: o respectivo vício, como é jurisprudência uniforme, apenas ocorre na falta absoluta de fundamentação”.

17. Em consequência,

“uma fundamentação insuficiente, errada ou medíocre não constitui causa da nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil” 1.

18. O Réu, agora Reclamante, admite que que a fundamentação não falta, em absoluto 2.

19. Em vez de sustentar que a fundamentação falta, em absoluto, o Réu, agora Reclamante, sugere, tão-só, que a fundamentação era insuficiente 3.

20. Ora, a insuficiência da fundamentação não preenche a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

21. Em todo o caso, ainda a insuficiência da fundamentação preenchesse a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º, nunca o Ré, agora Reclamante teria qualquer razão para arguir a nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2025.

22. O Réu, agora Reclamante, admite que a fundamentação do acórdão reclamado diz, expressamente, que o Réu é devedor de uma de duas obrigações — da obrigação de restituir aquilo que foi indevidamente recebido ou da obrigação de transferir aquilo que foi (devidamente) recebido em execução do mandato — e que não cumpriu a sua obrigação 4.

23. Ora, daquilo que o Réu, agora Reclamante, admite que a fundamentação do acórdão reclamado diz resultaria, para qualquer parte razoável, uma fundamentação suficiente.

24. Esclarecido que não está preenchida a previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, deverá averiguar-se se está preenchida alguma das previsões da alínea c).

25. O Réu, agora Reclamante, imputa ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2025 o vício de contradição entre os fundamentos e a decisão.

26. A contradição entre entre os fundamentos e a decisão é um vício lógico — se, na fundamentação da sentença [ou do acórdão], o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença [ou do acórdão] 5.

27. Ora, não há nada que, na fundamentação do acórdão aponte para uma decisão divergente daquela que foi tomada.

28. O Réu, agora Reclamante, reconhece-o, ainda que só implicitamente, ao só imputar ao acórdão reclamado não ter tido em conta as circunstâncias que considera relevantes 6 ou, em todo o caso, não ter explicado como teve em conta as circunstâncias que considera relevantes 7.

29. Esclarecido que não está preenchida a previsão da primeira parte da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, deverá averiguar-se se está preenchida a previsão da segunda parte — “ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.

30. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado constantemente que a ambiguidade ou obscuridade previstas na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º só releva quando torne a parte decisória ininteligível 8 e que a ambiguidade ou obscuridade só torna a parte decisória ininteligível “quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do Código Civil, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar” 9.

31. Ora a parte decisória do acórdão reclamado é do seguinte teor:

Face ao exposto, concede-se a revista, revoga-se parcialmente o acórdão recorrido e repristina-se a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, na parte em que condenou o Réu a entregar ao Autor e à Interveniente a quantia de 189.543,20 euros, acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal prevista para as obrigações de natureza civil, vencidos desde 16.05.2017 e até efectivo e integral pagamento.

Custas pelo Recorrido AA.

e não há, na parte decisória do acórdão reclamado, nenhuma ambiguidade ou obscuridade.

32. O Réu, agora Reclamante, reconhece-o, ainda que só implicitamente, alegando tão-só que a decisão, que compreendeu, é “manifestamente injusta”.

Simplesmente, a alegada injustiça não é causa de nulidade do acórdão 10.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, indefere-se a presente reclamação.

Custas pelo Reclamante AA, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.

Lisboa, 2 de Outubro de 2025

Nuno Manuel Pinto Oliveira (Relator)

José Maria Ferreira Lopes

Maria de Deus Correia

_____________________




1. Cf.acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Abril de 2019 — processo n.º 132/13.5TBPTL.G1.S1.↩︎

2. Cf. parágrafo n.º 10 da reclamação apresentada pelo Réu.↩︎

3. Cf. parágrafos n.ºs 13-15 da reclamação apresentada pelo Réu.↩︎

4. Cf. parágrafo n.º 10 da reclamação apresentada pelo Réu.↩︎

5. Cf. designadamente os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Outubro de 2020 — processo n.º 361/14.4T8VLG.P1.S1 — e de 17 de Novembro de 2020 — processo n.º 6471/17.9T8BRG.G1.S1.↩︎

6. Cf. parágrafo n.º 23.5 da Reclamação apresentada pelo Réu.↩︎

7. Cf. parágrafos n.ºs 23.5 e 23.6 da Reclamação apresentada pelo Réu.↩︎

8. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 615.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, 3.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2018 (reimpressão), págs. 733-740 (735).↩︎

9. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, anotação ao art. 615.º, in: Código de Processo Civil anotado, vol. II — Artigos 362.º a 626.º, cit., pág. 735.↩︎

10. Vide, p. ex., os acórdãos do STJ de 2 de Junho de 2016 — processo n.º 781/11.6TBMTJ.L1.S1 —, de 9 de Abril de 2019 — processo n.º 4148/16.1T8BRG.G1.S1 —, de 10 de Setembro de 2019 — processo n.º 800/10.3TBOLH-8.E1.S2 —, de 7 de Novembro de 2019 — processo n.º 30202/16.1YIPRT.L1.S1 — ou de 17 de Dezembro de 2019 — processo n.º 1386/15.8T8PVZ.P1.S1.↩︎