Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
22452/23.0T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: RECURSO DE REVISTA
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
NULIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
MATÉRIA DE FACTO
JUIZ
DEVER FUNCIONAL
Data do Acordão: 10/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I - O Supremo Tribunal de Justiça estava perfeitamente ciente de que a Factualidade dada como Provada pelo tribunal da 1.ª instância e eliminada ou alterada pelo Tribunal da Relação de Lisboa resultava do acordo firmado pelos mandatários das partes em sede de Audiência Final.

II – Logo, este tribunal superior, ao decidir como decidiu, teve sempre presente tal particularidade da Decisão da Matéria de Facto, o que significa que a fundamentação de direito pelo mesmo desenvolvida tem de ser necessariamente interpretada no sentido de não ter sido tal forma de fixação da factualidade assente considerada, processual e juridicamente relevante, para efeitos de um julgamento particular e distinto da problemática em questão.

III - O ónus de alegação cabe a autores e réus nos seus respetivos articulados, em termos de factos constitutivos, modificativos, impeditivos e extintivos e correspondente direito invocado, delimitando, uns e outro, objetiva e essencialmente, a causa de pedir e suportando os pedidos formulados e as exceções arguidas na petição inicial, na contestação [com reconvenção ou não] e na réplica/resposta.

IV - Esse conjunto de factos – sem prejuízo do seu aperfeiçoamento ou aditamento superveniente – reconduzem-se à base do litígio e são aqueles que irão ser objeto do acordo parcial ou total das partes em sede de articulados ou no quadro da Audiência de Partes, Audiência Prévia ou Audiência Final, sendo esse acordo tanto mais fáctico, objetivo e produtivo quanto mais rigorosa, técnica e eficaz tiver sido a aludida alegação.

V - O princípio da disponibilidade dos litigantes processuais, conforme se acha previsto em termos gerais nos artigos 3.º e 5.º, número 1, do NCPC, não é, por outro lado, de exercício livre e absoluto, pois não somente se confronta com outros princípios que, de alguma forma, o restringem e limitam, como é o caso dos princípios da cooperação, boa-fé e de recíproca correção [artigos 7.º, número 1, 417.º, 8.º e 9.º do mesmo diploma legal] como ainda com os diversos princípios e normas que regulam a intervenção do juiz no pleito [por exemplo, os dos artigos 27.º, 54.º, número 1, 72.º e 74.º do Código de Processo do Trabalho e 5,º números 2 e 3, 6.º, 7.º, número 2, 417.º, número 2, 547.º e 590.º do Código de Processo Civil de 2013].

VI - Qualquer julgador tem o dever funcional de analisar o acordo das partes quanto à matéria alegada nos articulados, por forma a separar as águas do facto das águas do direito ou, inclusive e apenas dentro das primeiras, de maneira a aí distinguir as que possuem algum significado ou relevância para a apreciação e decisão jurídica do litígio ou que, ao invés, se revelam inúteis, dispiciendas, desnecessárias a esse desiderato essencial do magistrado judicial que é julgar o pleito em função dos pedidos e exceções formulados pelas partes e das causas de pedir que os suportam.

VII - Tal obrigação funcional prende-se mesmo com proibições e regras especiais que os nossos Código Civil [CC], Código de Processo Civil de 2013 [NCPC] e Código de Processo do Trabalho [CPT] fixam relativamente a determinados meios de prova como os documentos autênticos ou particulares [artigos 362.º a 366.º, 370.º a 372.º e 373.º a 376.º do CC], a confissão, o depoimento de parte ou as declarações de parte [artigos 354.º, 357.º e 360.º do CC, 289.º, número 1, 417.º, números 3 e 4, 453.º, número 2, 454.º, 465.º e 466.º do NCPC e 387.º, número 3 do Código do Trabalho de 2009 e 98.º-J, número 1 do CPT], o acordo de partes [na parte aplicável das normas quanto à confissão antes identificadas], o depoimento testemunhal [artigos 392.º a 395.º do CC e 417.º, números 3 e 4 e 495.º a 497.º do NCPC] ou as presunções judiciais [artigo 351.º do CC].

VIII - Logo e nessa medida, defender que o juiz ou juíza do processo estão obrigados a uma aceitação imperativa, cega, ajurídica e imediata do conteúdo dos articulados, quando resultem, designadamente, do acordo das partes, sem fazer passar o mesmo pelo seu crivo de cariz jurisdicional, que o legislador exige que seja ponderado, crítico, seletivo e eficiente, é ignorar por completo o complexo quadro normativo que se deixou exposto e que não apenas consentia como até impunha ao TRL, no Acórdão recorrido, o juízo que este último veio a fazer e que mereceu a discordância da Autora.

Decisão Texto Integral:
RECURSO DE REVISTA N.º 22452/23.0T8LSB.L1.S1 (4.ª Secção)

Recorrente: AA

Recorrida: ALMASCIENCE – INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO EM CELULOSE PARA APLICAÇÕES INTELIGENTES E SUSTENTÁVEIS

(Processo n.º 22452/23.0T8LSB – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo do Trabalho de Lisboa - Juiz 5)

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

I – RELATÓRIO

1. AA intentou, no dia 22/9/2023, ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento com processo especial, contra ALMASCIENCE – INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO EM CELULOSE PARA APLICAÇÕES INTELIGENTES E SUSTENTÁVEIS, tendo, para o efeito, apresentado formulário com o qual juntou a decisão de despedimento com justa causa proferida pela empregadora.


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2. Regularmente notificada, a empregadora motivou o despedimento e apresentou o procedimento disciplinar.

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3. A trabalhadora contestou e deduziu reconvenção.

Formulou as seguintes pretensões:

«(…) deverá a presente ação de impugnação de despedimento ser julgada provada e procedente e consequentemente ser proferida (…) sentença que:

1. Considere verificada a caducidade do direito de aplicar à Autora a sanção disciplinar de despedimento com justa causa, nos termos do art.º 357.º, n.º 1, do CT e declare a nulidade da deliberação da administração da Ré de 24 de Agosto de 2023;

2. Reconheça que a Ré não teve justa causa para despedir a Autora;

3. Declare que o despedimento da Autora foi ilícito;

4. Reconheça que o contrato de trabalho celebrado entre a Autora e a Ré, em 16 de Julho de 2021, é um contrato sem termo por não conter as menções obrigatórias de justificação do termo, previstas nos arts. 140.º, 141.º e 147.º do CT;

5. Declare que a partir de Junho de 2022, o salário devido à Autora pela Ré, é de 2.591,76 euros;

6. Declare que a Autora é credora da Ré em diferenças salariais, vencidas e não pagas entre 1 de Junho de 2022 e 28 de Agosto de 2023, no valor total de 17.610,12 euros, condenando-a no pagamento desta quantia, acrescida de juros de mora vencidos e vincendo a partir do dia 1 de cada mês até integral pagamento;

7. Declare que a Autora, na sequência do despedimento ilícito, tem direito ao pagamento pela Ré de todas as retribuições e subsídios vencidos a partir de 28 de Agosto até à data do trânsito em julgado da decisão que for proferida na presente ação, acrescidos de juros de mora vencidos a partir do dia 1 de cada mês e até integral pagamento, sendo o valor vencido nesta data de 10.367,04 euros, condenando-se a Ré no pagamento desta quantia e nas que se forem vencendo até final;

8. Declare o direito da Ré à indemnização de antiguidade, caso opte por não ser reintegrada na Ré, condenando-se esta em 45 dias de indemnização por cada ano ou fração de antiguidade, até ao trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida nos presentes autos;

9. Condene a Ré nas custas do processo».


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4. Realizou-se Audiência de Discussão e Julgamento, em sessão realizada em 16 de Abril de 2024, na qual a Autora optou pela reintegração no caso de procedência da ação.

Nela os mandatários acordaram sobre a matéria de facto que devia ser dada como provada. [sublinhado a negrito da nossa autoria]


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5. Em 2 de Maio de 2024, foi proferida sentença que logrou o seguinte dispositivo:

«Por todo o exposto o tribunal julga a presente ação improcedente e absolve a Ré do pedido.

Custas a cargo da Autora.

Registe e Notifique.

Fixo o valor da ação em € 30.000,01».


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6. Por Acórdão de 06/11/2024, o Tribunal da Relação de Lisboa [TRL] julgou parcialmente procedente o recurso de Apelação interposto, no que concerne à impugnação da Decisão sobre a Matéria de Facto, mas confirmou a decisão recorrida no que respeita à sua fundamentação de direito.

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7. A Autora interpôs recurso de revista ordinário, ao abrigo dos números 1 dos artigos 629.º e 671.º do NCPC e subsidiariamente, recurso de revista excecional ao abrigo do disposto no número 3 do artigo 671.º e do número 1, alínea a) do artigo 672.º do mesmo diploma legal.

8. O relator do recurso neste Supremo Tribunal de Justiça considerou, por despacho judicial de 1/2/2025, que esta revista excecional se desdobrava em duas vertentes que não podiam ser decididas no âmbito do mesmo recurso, por não se verificar uma situação de dupla conforme nos termos do número 3 do artigo 671.º do NCPC quanto ao primeiro fundamento de natureza adjetiva, que por tal motivo, teria de ser apreciado no quadro de um recurso de revista ordinário ou comum que, no entanto, só deveria prosseguir os seus normais termos após o julgamento daquela referida segunda problemática ou faceta do dito recurso.


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9. No que concerne a esse segundo fundamento igualmente invocado pela recorrente deveria o mesmo ser julgado no âmbito propriamente dito da revista excecional que, nessa medida, foi redistribuída à formação prevista no número 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil de 2013 e que, tendo seguido a sua normal tramitação, veio a ser objeto de acórdão da tal formação datado de 12/03/2025, que decidiu rejeitar o mesmo por referência a esse fundamento de natureza substantiva.

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10. A Autora AA, quanto ao objeto deste recurso de revista comum, formulou as seguintes conclusões:

«Violação do art.º 662.º, do CPC: alteração da Decisão de Facto:

1. Os factos que justificaram o despedimento, suscetíveis de serem invocados em juízo pela empregadora, são os consignados na decisão final do procedimento disciplinar, comunicada ao trabalhador. O que significa que, relativamente a esses factos, o teor da decisão disciplinar, que consta obrigatoriamente de documento escrito (art.º 357.º, n.º 5, do CT), assume o carácter de prova vinculada.

2. O Tribunal de primeira instância, tendo em consideração o teor da decisão disciplinar comunicada à Autora, o teor dos articulados e o acordo das partes (ata de 16.04.2024), reproduziu nos factos provados 13 a 39 os factos que, de acordo com a decisão do procedimento disciplinar, justificaram o despedimento da Autora.

3. Estes factos não podiam ser alterados nem pelas partes, designadamente, pelo empregador, nem pelo Tribunal a título oficioso. Alterar esses factos seria, no fim de contas, alterar as razões de facto do despedimento invocadas pela empregadora na sua decisão. Tal não é possível face ao disposto no artigo 98.º - J, do CPT.

4. Ao promover a alteração dos factos provados 13, 16, 17, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 35, 36, 37, 38, 39 (eliminado) e 40, o que o Tribunal da Relação de Lisboa na realidade fez foi alterar as razões de facto por que a ré despediu a autora constantes da decisão disciplinar comunicada à autora. Não o podia fazer face ao disposto nos artigos 607.º, n.ºs 4 e 5, co CPC e 98.º-J do CPT.

5. Não cabe à Relação, oficiosamente, corrigir os referidos factos, se, por qualquer razão, os mesmos padecem de vício que afeta a sua validade. A Relação considerou, bem, que aqueles factos se mostravam eivados com conteúdo conclusivo e valorativo. Tinha de os aceitar conforme estavam. Não podia a Relação substituir-se ao empregador e ir corrigi-los, substituindo juízos conclusivos, genéricos e valorativos por factos concretos que não foram imputados à autora, nem lhe foram comunicados na decisão final do procedimento disciplinar. O Anexo 1 permite ver claramente as razões por que a ré despediu a autora (primeira instância) e as razões por que a Relação «despediu» a autora.

6. Ao promover, oficiosamente, a alteração da decisão de facto consignada na sentença da primeira instância, com referência aos factos provados 13, 16, 17, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 35, 36, 37, 38, 39 (eliminado) e 40, o Tribunal da Relação de Lisboa violou o disposto nos artigos 662.º, n.ºs 1 e 2, 663.º, n.º 2, 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, e 98.º J, nº 1, do CPT.

7. Constitui jurisprudência pacífica que os poderes do STJ em matéria de facto cingem-se aos casos de ofensa à prova vinculada, sendo-lhe ainda lícito sindicar o mau uso pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria factual (Ac. do STJ, de 07.05.2015, proc.º 982/11). Caso a Relação exceda os poderes que o art.º 662.º do NCPC lhe confere ou ultrapasse os parâmetros legais, violando por exemplo, normas de direito probatório material ou adjetivo, então já não se estará perante matéria de facto, mas perante matéria de direito, caso em que o STJ pode sindicar a decisão de facto em causa, como sucederá se a Relação não atender à força probatória vinculada de algum meio de prova ou apreciar livremente factos que só se podem provar por determinado meio de prova (Ac. STJ de 19.05.2015, proc.º 944/09) - ambas as decisões citadas em Abílio Neto, Código de Processo Civil Anotado, 5.ª Edição Vol. 1, Junho de 2020, pág. 1227.

[…]

E assim se fará Justiça»


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11. A Recorrida ALMASCIENCE – INVESTIGAÇÃO E DESENVOLVIMENTO EM CELULOSE PARA APLICAÇÕES INTELIGENTES E SUSTENTÁVEIS apresentou contra-alegações de recurso e formulou as correspondentes conclusões.

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12. O ilustre Procurador-Geral Adjunto colocado junto deste Supremo Tribunal de Justiça proferiu Parecer nos autos que concluiu nos seguintes moldes:

«Pelo exposto, e concordando-se com a restante fundamentação do douto acórdão recorrido, somos de parecer que o presente recurso de revista deverá ser considerado improcedente, mantendo-se o mesmo.»


*


13. As partes não se pronunciaram sobre o teor desse Parecer, dentro do prazo legal de 10 dias, apesar de notificadas para esse efeito.

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14. Este Supremo Tribunal de Justiça proferiu Acórdão com data de 25/6/20025, com a seguinte decisão final:

«Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 671.º, 679.º e 663.º do Novo Código de Processo Civil, acorda-se, neste Supremo Tribunal de Justiça, em julgar improcedente o presente recurso de Revista interposto pela Autora AA confirmando-se, nessa medida, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.

Custas do presente recurso a cargo da Autora - artigo 527.º, número 1 do Novo Código de Processo Civil.

Registe e notifique.»


*


15. Tendo as partes sido notificadas de tal Aresto, veio a Autora arguir a nulidade do mesmo por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 615.º, número 1, alínea d), 666.º e 679.º do NCPC, tendo, para o efeito, depois de transcrever parte das suas concçlusões recursórias, alegado o seguinte:

«Como resulta da conclusão 6, a recorrente invocou a violação do disposto nos artigos 662.º, n.ºs 1 e 2, 663.º, n.º 2, 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC e 98.-ºJ, n.º 1, do PT.

Para o efeito, na sua alegação de recurso, na parte respeitante ao acordo das partes sobre os factos provados, disse a recorrente o seguinte nas páginas 11 e 12:

«1.4 Impugnação do Acórdão recorrido

Não oferece qualquer dúvida que a Relação tem o poder/dever de alterar oficiosamente a decisão de facto consignada na sentença da primeira instância, nos termos previstos no artigo 662.º, n.ºs 1e 2, do CPC. Porém, deverá a Relação obedecer ao disposto nos artigos 607.º e 612.º do CPC, conforme se prescreve no artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma.

Por sua vez o artigo 607.º, n.º 4, do CPC determina que «na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documento ou por confissão reduzida a escrito…»

No número 5 do artigo 607.º, do CPC, diz-se:

«O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre convicção não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.»

Face ao disposto naquelas normas, existem situações em que o Tribunal está sujeito a prova vinculada para considerar provado ou não determinados factos. Nestas situações não pode decidir segundo a sua livre convicção.

Como se referiu no douto Acórdão do TRP, de 23.11.2017, proc. 3811/13, disponível em dgsi. Net, «II – Quanto aos factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, o juiz está sujeito a essa prova vinculada.»

No douto Acórdão do STJ objecto de reclamação, nas páginas 58 e 59, consignou-se o seguinte (sublinhado nosso):

«G - SUPRESSÃO OU ALTERAÇÃO DOS PONTOS DE FACTO DOS AUTOS

27 […]»

A posição defendida no douto Acórdão do STJ, atrás transcrita, é clara como aliás é norma nas suas decisões. Resumidamente considera que o tribunal da primeira instância, na decisão sobre a matéria de facto, promoveu uma síntese do texto das mensagens electrónicas, na qual utiliza expressões valorativas ou conclusivas, que no entender dos Exm.ºs Conselheiros não devem constar da factualidade dada como provada. Consequentemente, nada obsta a que tais vícios da factualidade dada como assente pelo tribunal da primeira instância venham a ser corrigidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa dentro dos poderes do 662.º (a referência ao art.º 640.º será certamente um mero lapso material) do CPC.

O problema é que, salvo o devido respeito, aquilo que é referido nada tem a ver com a questão submetida pela recorrente à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça no seu recurso de Revista.

Como resulta da douta sentença proferida em primeira instância, não houve julgamento da matéria de facto. Não houve produção de prova. Não houve apreciação da prova pelo Tribunal. Não houve decisão sobre a matéria de facto nem a respectiva fundamentação. Porque as partes acordaram em todos os factos.

De tal forma assim é que se consignou na douta sentença que «os factos provados resultaram do acordo das partes feito em sede de audiência de julgamento não restando factos controvertidos».

Sendo factos acordados pelas partes, no âmbito de um direito que lhes é conferido por lei, os mesmos são obrigatórios para o Tribunal, com as virtudes e defeitos de que padeçam, salvo se revelarem condutas ilícitas o que manifestamente não é o caso. É o que resulta claramente do art.º 607, n.ºs 4 e 5, do CPC. E foi o que fez a primeira instância que, conforme resulta da sua sentença, se limitou a aplicar o direito aos factos acordados pelas partes.

Não oferece qualquer dúvida que a Relação tem o poder/dever de alterar oficiosamente a decisão de facto consignada na sentença da primeira instância, nos termos previstos no artigo 662.º, n.ºs 1 e 2, do CPC. Porém, deverá a Relação obedecer ao disposto nos artigos 607.º e 612.º, do CPC, conforme se prescreve no artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma.

De acordo com as aquelas normas, se a decisão de facto e respectiva fundamentação resultar da análise e ponderação da prova produzida em audiência de julgamento efectuada pelo Tribunal de primeira instância, no âmbito do seu direito de livre apreciação das provas com recurso ao seu prudente arbítrio, nada obsta a que a segunda instância promova as correções que entender mais ajustadas de acordo com os poderes que lhe são conferidos pelo art.º 662.º, n.º 1, do CPC.

Porém, a situação é substancialmente diferente se os factos forem acordados pelas partes, pois neste caso o art.º 663.º, n.º 2 manda observar o disposto no art. 607.º, ambos do CPC. Consequentemente, factos que são provados por documento que faça prova plena, ou que sejam provados por confissão ou acordo das partes - prova vinculada - não são susceptíveis de alteração pela segunda instância.

São os factos acordados pelas partes. As partes prescindiram inclusivamente da produção de prova e do julgamento sobre a matéria de facto, porque queriam aqueles factos. De tal forma que no recurso de Apelação nenhuma das partes pôs em causa os factos por elas acordados - se assim fosse actuariam de má-fé, na modalidade de venir contra factum proprio. Limitaram-se a defender as suas posições no âmbito do direito, considerando a Autora que esses factos não fundamentavam justa causa de despedimento e a Ré o oposto.

É um direito que a lei lhes confere, de tal forma que, relativamente a esses factos, a lei subtrai ao Tribunal o poder de decisão sobre a matéria de facto. O tribunal tem que os aceitar conforme o que consta do documento, da confissão ou do acordo das partes.

Se esses factos não são perfeitos, designadamente por conterem expressões conclusivas ou valorativas, tal não significa que possam ser alterados livremente pela Relação, como se a vontade das partes não existisse. Se assim fosse as partes seriam «enganadas» pela lei, que lhes permitia serem livres no acordo sobre os factos mas depois admitia que, à sua revelia, a Relação alterasse como bem entendesse aquilo que elas acordaram, desprezando a sua vontade, com prejuízo para uma delas ou para ambas. Certamente que não foi isto que o legislador pretendeu com a norma do art.º 607.º, n.º 5, e do art.º 663.º, n.º 2, do CPC.

Mas foi isto que se passou nos presentes autos. As partes acordaram todos os factos provados. A primeira instância reproduziu na sentença os factos acordados pelas partes e aplicou o direito. A autora recorreu para a segunda instância na matéria de direito, pois não impugnou a decisão de facto. O Tribunal da Relação de Lisboa, por sua exclusiva iniciativa, alterou grande parte dos factos acordados pelas partes incorrendo na violação daquelas normas (entre outras).

Foi esta uma das questões que foi submetida à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça, conforme consignado nas conclusões 2 e 6 e parte das alegações atrás transcritas do recurso de Revista. Que nada tem a ver com o referido nas páginas 58 e 59 do douto Acórdão, que se pronuncia como se os factos provados resultassem de decisão do Tribunal de primeira instância, consignada na sentença, e a Relação se limitasse a exercer os poderes conferidos pelo art.º 662.º, do CPC, corrigindo a referida decisão sobre os factos assentes. De tal forma que nas referidas páginas do douto Acórdão não existe uma única referência ao acordo das partes sobre os factos provados e suas implicações.

Concluindo, nas alegações e conclusões do seu recurso de Revista a recorrente, no que respeita à alteração da matéria de facto promovida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, invocou o seguinte:

- Violação do art.º 98.º J do CPT, matéria sobre a qual o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça se pronunciou, cabendo à recorrente respeitar a sua decisão;

- Violação dos arts 662.º, 663.º, n.º 2 e 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC, na parte respeitante aos factos acordados pelas partes na primeira instância, alterados pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Sobre esta questão concreta o douto Acórdão não se pronunciou, como atrás se referiu.

Pelas razões expostas, sem prejuízo do devido respeito e consideração devidos aos Exm.ºs Conselheiros que subscreveram o douto Acórdão, considera a recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça não se pronunciou sobre questão que lhe foi submetida e que deveria apreciar, o que determina a nulidade do mesmo nos termos do art.º 615.º, n.º 1, d) e n.º 4, do CPC, nulidade que vem arguir perante esse Tribunal Superior em virtude de a decisão não admitir recurso ordinário.».


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16. A Recorrida, apesar de notificada de tal Recalmação, não se veio pronunciar sobre o seu teor dentro do prazo legal de 10 dias.

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17. O relator do recurso de Revista admitiu tal Reclamação, tendo, para o efeito, prolatado despacho judicial, com data de 2/9/2025, onde se determinou, designadamente, o seguinte:

«A reclamação deduzida pela Autora é suscetível de vir a ser considerada manifestamente improcedente, caso em que poderá ser-lhe aplicada uma taxa sancionatória excecional, nos termos do art.º 531.º do CPC, e do art.º 10.º do Regulamento das Custas Judiciais.

Assim, em observância do princípio do contraditório, notifique-se a mesma para, querendo, se pronunciar sobre a questão assim suscitada, no prazo de dez dias, nos termos do art.º 3.º, n.º 3, do CPC.»


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18. Notificada a Autora para se pronunciar sobre tal parte do transcrito despacho judicial, veio dizer o seguinte, na parte que entendemos como relevante, em Requerimento oportunamente apresentado nos autos:

«Quem litiga sem ver o direito alegado reconhecido, e o faz convicto de que tem razão substancial, ainda que não a tenha, ou a mesma não lhe seja reconhecida, não comete qualquer ilícito, respondendo apenas objectivamente pelas custas que forem devidas.

Sendo que no caso concreto dos autos, para além do disposto na segunda parte do número 5 do art.º 607.º, do CPC, a posição da reclamante é sustentada na jurisprudência: «… II – Quanto aos factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, o juiz está sujeito a essa prova vinculada – art.º 607.º, n.º 4, do NCPC. Quanto, aos demais factos necessitados de prova, vigora o princípio da livre convicção do juiz face às restantes provas legalmente admissíveis pela forma que foram realizadas...» (Ac. R.P, de 23.11.2017, proc. 3811/13dgsi. Net).

Não oferece assim qualquer dúvida a existência de diferença de regime, no que respeita à possibilidade de intervenção do juiz na decisão de facto e/ou sua alteração, consoante os factos sejam acordados pelas partes ou resultem de decisão do Tribunal em consequência da prova realizada em julgamento.

No caso dos autos, como expressamente se consignou na sentença da primeira instância, os factos provados foram acordados pelas partes. Pelo que estão sujeitos o regime do art.º 607.º, n.º 5, do CPC, que é aplicável por força do disposto no art.º 663.º, nº 2, do mesmo diploma. Não podia a Relação alterar (substancialmente) os factos acordados pelas partes como, objectivamente, o fez. Foi isto que foi suscitado no recurso de Revista.

No douto Acórdão objecto de reclamação, na sua fundamentação, páginas 58 e 59, de forma clara e objectiva o Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se como se os factos provados tivessem sido objecto de decisão da primeira instância face á prova produzida em julgamento, admitindo assim a possibilidade de correcção pela Relação. É isto que resulta claramente do texto do acórdão.

Pode o Supremo Tribunal de Justiça vir a entender que a reclamante não tem razão. Se lamentavelmente assim for, terá a reclamante de respeitar e se conformar com a decisão do órgão de soberania e acatá-la, como é dever de qualquer cidadão.

Mas não aceita ser obrigada, sob a ameaça de penalização pecuniária, mesmo encontrando-se em situação muito difícil subsistindo apenas com subsídio social de desemprego, a desistir dos meios que a lei lhe faculta para reagir contra decisões que considera que ilegais.

Concluindo, a reclamante exerceu um direito legítimo e, nessa medida, não se verifica a previsão do art.º 531,º do CPC.»


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19. Cumpre decidir, depois de o coletivo ter tomado conhecimento dos autos, recebido o projeto de Acórdão elaborado pelo relator e debatido o seu teor.

II. FACTOS

20. Com relevância para o presente Aresto, há a considerar os factos que constam do Acórdão principal e para os quais se remete e que resultam já das alterações introduzidas pelo TRL, a título oficioso [«- determinar a eliminação do facto n.º 39 ; - conferir aos pontos de facto n.ºs 3, 13, 16, 17, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 35, 36, 37, 38 e 40 redação diferente»]


*


III – OS FACTOS E O DIREITO

21. Nesta Reclamação, a recorrente e Autora nesta ação entende que o Supremo Tribunal de Justiça [STJ] não se debruçou verdadeiramente sobre o objeto do seu recurso de Revista e que se traduzia na impossibilidade legal do Tribunal da Relação de Lisboa alterar e eliminar a Factualidade dada como Provada pelo tribunal da 1.ª instância, dado esta última ter resultado do acordo da Autora e da Ré e ser, aparentemente e na perspetiva da recorrente, definitiva e intocável por aquela 2.ª instância.

Nessa medida, considera que tem justificação para a sua apresentação e conteúdo, não havendo fundamento legal para a aplicação do disposto no artigo 531.º do NCPC.

22. Visitemos o Acórdão deste STJ, no que respeita aos excertos que podem relevar para o julgamento desta Reclamação e que nos parecem ser os seguintes:

«C – SE O TRIBUNAL DA RELAÇÃO PODIA TER ELIMINADO O PONTO 39 E ALTERADO A REDAÇÃO DOS FACTOS N.ºS 3, 13, 16, 17, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 35, 36, 37, 38 e 40 DOS FACTOS ASSENTES

23. Os Pontos 39 [eliminado], 3, 13, 16, 17, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 35, 36, 37, 38 e 40 [alterados] dos Factos Assentes possuem e possuíam a seguinte redação:

[…]

Ora, sendo estes os Pontos de Facto que a Autora entende que não podiam ser eliminados ou modificados pelo TRL, importa referir que nem a trabalhadora, nem a Ré, aliás, impugnaram a Decisão sobre a Matéria de Facto no âmbito do recurso de Apelação que a primeira interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa [antes pelo contrário, dado ter sido declarado expressamente em tal recurso que a Autora aceitava a Factualidade dada como Provada pelo tribunal da 1.ª instância], o que se compreende, pois os factos provados resultaram do acordo das partes feito em sede de audiência de julgamento, não restando factos controvertidos [cf. Relatório deste Aresto, assim como idêntica afirmação constante do Acórdão recorrido].

Interessa recordar aqui que o Supremo Tribunal de Justiça tem poderes muito limitados quanto ao julgamento de questões relacionadas com a factualidade dada como provada e não provada pelas instâncias, com os meios de prova produzidos e valorados pelas mesmas e com a sua relevância para a formação da convicção do julgador.

Os artigos 682.º, 683.º e número 3 do artigo 674.º do NCPC traçam os limites de tal apreciação, importando, para esse efeito, atentar na Motivação da Decisão da Matéria de Facto desenvolvida no Aresto recorrido para justificar as alterações introduzidas nos transcritos Pontos de Facto, de maneira a aferirmos se nos deparamos com qualquer uma das situações excecionais contempladas naqueles dispositivos legais.

D – MOTIVAÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

24. Ora, da leitura dessa Motivação resulta que, tendo tais Pontos de Facto resultado do acordo entre as partes, o TRL entendeu que, ainda assim, os mesmos se acham viciados ou fragilizados por se limitarem a dar como provados documentos – quando estes visam provar factos e não substituí-los - ou conterem expressões conclusivas ou de direito:

[…]

E – JURISPRUDÊNCIA RECENTE DESTE SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

[…]

F - ALTERAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS E PROVA VINCULADA

26. Importa abordar, ainda que sumariamente, uma primeira linha de argumentação desenvolvida pela recorrente e que vai no sentido de estar vedado ao Tribunal da Relação de Lisboa a modificação dos referidos factos provados por força das normas que regulam o despedimento com justa causa dos trabalhadores e o necessário procedimento disciplinar que tem de estar na sua base.

[…]

G - SUPRESSÃO OU ALTERAÇÃO DOS PONTOS DE FACTO DOS AUTOS

27. Há então, depois de chegados aqui, que analisar em termos globais a atuação do Tribunal da Relação de Lisboa no que respeita à eliminação do Ponto 39 assim como a alteração nos demais Pontos antes identificados e transcritos encontrando-se tais modificações assinaladas a negrito. Enfrentando, desde logo, a referida supressão do Ponto 39, diremos que a mesma se justifica plenamente, atento o teor do seu texto que nada afirma em termos factuais, limitando-se a remeter para o conteúdo de um documento junto aos autos, sendo certo que o teor desse documento se acha reproduzido noutro ponto da Factualidade dada como Assente.

Encarando agora as modificações introduzidas nos demais Pontos da Matéria de Facto dada como Provada, diremos que, no geral, tais alterações se compreendem, dado o tribunal da primeira instância, nesses precisos Pontos, proceder, com frequência, a uma síntese do texto das mensagens eletrónicas, na qual utiliza expressões valorativas ou conclusivas que não devem constar da factualidade dada como demonstrada ou não demonstrada, mas antes resultar da interpretação e juízo que o julgador, posteriormente, deverá fazer dos factos objetivos e, na medida do possível, neutros, que constam da respetiva Fundamentação, em conjugação com os documentos que porventura os complementam.

Esses resumos ou súmulas traduzem-se, as mais das vezes, quando incidentes sobre as atitudes ou as palavas da Autora, em perspetivas, desde logo, negativa das mesmas, dessa maneira antecipando e precipitando, no quadro da fundamentação de facto, um juízo de valor sobre os comportamentos infracionais imputados pela empregadora à trabalhadora em sede de procedimento disciplinar, que se pode refletir indevidamente no julgamento de direito de tais condutas em termos de justa causa para o seu despedimento.

Ainda que tal não se verifique, constam, por vezes e igualmente, de tais Pontos de Facto expressões qualificativas ou caracterizadoras das realidades descritas nos mesmos que, não obstante provirem dos correspondentes factos alegados pelas partes nos seus articulados, são igualmente de evitar, por condicionarem de alguma forma o julgador, na fase de aplicação das normas jurídicas relevantes a tal factualidade dada como assente. O Tribunal da Relação de Lisboa optou, quanto a este último cenário adjetivo, por «enxugar» [perdoe-se-nos o uso de tal verbo) o respetivo texto, expurgando-o de tais expressões, tornando-o assim o mais objetivo e imparcial possível, para efeitos do seu futuro cruzamento com o direito aplicável.

No que respeita à outra situação exposta, o tribunal da segunda instância decidiu substituir os ditos resumos ou classificações dos conteúdos das referidas mensagens eletrónicas pela transcrição integral ou parcial, na parte que entendeu como relevante para o litígio dos autos, do seu correspondente texto, evitando dessa forma qualquer formulação conclusiva de direito ou de cariz avaliativo em sede na matéria de facto dada como assente ou como não assente que pudesse vir a restringir ou direcionar de alguma forma, em sede de fundamentação jurídica, o julgamento de direito a fazer quanto a tais factos e a decisão final a adotar, quando confrontado com a causa ou causas de pedir alegadas pelas partes e com os pedidos ou exceções por elas mesmo invocadas nos seus articulados.

No que concerne a estes reais «vícios» da factualidade dada como assente pelo tribunal da primeira instância que vieram a ser corrigidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nada há a censurar a este último no que se refere aos procedimentos de natureza processual que deixámos antes identificados e analisados.

Tal atuação do Tribunal da Relação de Lisboa, que, frise-se, não modificou na sua essência, o conteúdo, alcance e sentido factual de tais Pontos, continha-se dentro dos poderes que lhe são legalmente conferidos, designadamente pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil de 2013, por referência aos artigos 5.º e 6O7.º no mesmo diploma legal.

A competência do Supremo Tribunal de Justiça, por outro lado, em sede de valoração na Decisão sobre a Matéria de Facto queda-se por aqui, já saindo fora dos seus poderes de apreciação, questões ligadas às técnicas diferentes que, desde que respeitadoras da regra básica de que documentos não são nem substituem os factos neles contidos, podem ser legitimamente utilizadas pelos tribunais quanto à enunciação do conteúdo de tais documentos em sede de fundamentação de facto.

28. Não será despiciendo chamar aqui parte do parecer preferido pelo ilustre Procurador-Geral Adjunto colocado junto deste Supremo Tribunal de Justiça quando sustenta o seguinte, a respeito do que acima deixamos defendido: […]»

23. Há que começar por frisar aqui uma evidência, que resulta com nitidez e clareza, não apenas do Relatório desse Aresto [cf. sublinhado a negrito], como ainda de diversas partes da argumentação jurídica acima reproduzida: este Supremo Tribunal de Justiça estava, ao contrário do que parece afirmar a Autora Reclamante, perfeitamente ciente de que a Factualidade dada como Provada pelo tribunal da 1.ª instância e eliminada ou alterada pelo Tribunal da Relação de Lisboa resultava do acordo firmado pelos ilustres mandatários das partes em sede de Audiência Final.

Logo, este tribunal superior, ao decidir como decidiu, teve sempre presente tal particularidade da Decisão da Matéria de Facto, o que significa que a fundamentação de direito pelo mesmo desenvolvida tem de ser necessariamente interpretada no sentido de não ter sido tal forma de fixação da factualidade assente considerada, processual e juridicamente relevante para efeitos de um julgamento particular e distinto da problemática em questão [1].

Dir-se-á, por outro lado, que as conclusões recursórias, no que toca à questão da prova vinculada e do impedimento legal que gera relativamente aos tribunais no que concerne à consignação da factualidade dada como provada radicou-se, fundamentalmente, no teor da Nota de Culpa e da Decisão de Despedimento com invocação de Justa Causa e na tese de que tais documentos impunham a sua mera reprodução e obstavam, nessa medida, à consideração pelos julgadores das instãncias de factos diferentes daqueles ali exarados.

Se era propósito da recorrente situar também a sua oposição à conduta adjetiva do TRL na circunstância da factualidade demonstrada nos autos ter resultado do aludido acordo, parece-nos que tal intenção não ressalta com autonomia, impressividade e nitidez das alegações e conclusões do seu recurso.

Sendo assim, afigura-se-nos excessivo, se não mesmo abusivo, afirmar que este Supremo Tribunal de Justiça julgou fora ou ao lado do objeto do recurso de revista, nos moldes em que ele foi deduzido pela trabalhadora.

Diremos, ainda assim e abordando tal questão, que melhor seria que as partes pudessem fixar a seu belo prazer os factos dados como provados, independentemente de o fazerem em consonância com o regime legal aplicável ou à revelia deste último.

Importa realçar aqui e em primeiro lugar, o ónus de alegação que cabe a autores e réus nos seus respetivos articulados, em termos de factos constitutivos, modificativos, impeditivos e extintivos e correspondente direito invocado que delimitam, objetiva e essencialmente, a causa de pedir e suportam os pedidos formulados e as exceções arguidas na petição inicial, na contestação [com reconvenção ou não] e réplica/resposta.

Esse conjunto de factos – sem prejuízo do seu aperfeiçoamento ou aditamento superveniente – reconduzem-se à base do litígio e são aqueles que irão ser objeto do acordo parcial ou total das partes em sede de articulados ou no quadro da Audiência de Partes, Audiência Prévia ou Audiência Final, sendo esse acordo tanto mais fáctico, objetivo e produtivo quanto mais rigorosa, técnica e eficaz tiver sido a aludida alegação.

O princípio da disponibilidade dos litigantes processuais, conforme se acha previsto em termos gerais nos artigos 3.º e 5.º, número 1, do NCPC, não é, por outro lado, de exercício livre e absoluto, pois não somente se confronta com outros princípios que, de alguma forma, o restringem e limitam, como é o caso dos princípios da cooperação, boa-fé e de recíproca correção [artigos 7.º, número 1, 417.º, 8.º e 9.º do mesmo diploma legal] como ainda com os diversos princípios e normas que regulam a intervenção do juiz no pleito [por exemplo, os dos artigos 27.º, 54.º, número 1, 72.º e 74.º do Código de Processo do Trabalho e 5,º números 2 e 3, 6.º, 7.º, número 2, 417.º, número 2, 547.º e 590.º do Código de Processo Civil de 2013].

Importa também realçar que, independentemente da abertura que se tem assistido nos nossos tribunais acerca da distinção entre matéria de facto e matéria de direito, os números 3 a 5 do artigo 607.º do NCPC referem-se a factos e não a opiniões, comentários, impressões, classificações ou afirmações ofensivas, bem como de direito ou traduzidas em conclusões insubstanciais, o que implica que mesmo a prova vinculada como a documental, confessional ou por acordo das partes tem de se referir e expressar factos e não outras realidades de cariz não factual, que estejam ali também contidas.

Logo, se um juiz se defrontar com uma confissão ou um acordo de partes das quais emerjam factos e outras afirmações que não tenham uma natureza factual, é óbvio que terá de intervir e interpretar devida e objetivamente todo o teor desses meios probatórios, de maneira a separar, como se usa dizer popularmente , o trigo do joio ou seja, a matéria de facto daquela outra que com ela não se confunde e partilha de idênticas qualidade e natureza.

Trata-se de um dever funcional de qualquer julgador, por forma a separar as águas do facto das águas do direito ou, inclusive e apenas dentro das primeiras, de maneira a aí distinguir as que possuem algum significado ou relevância para a apreciação e decisão jurídica do litígio ou que, ao invés, se revelam inúteis, dispiciendas, desnecessárias a esse desiderato essencial do magistrado judicial que é julgar o pleito em função dos pedidos e exceções formulados pelas partes e das causas de pedir que os suportam.

Tal obrigação funcional prende-se mesmo com proibições e regras especiais que os nossos Código Civil [CC], Código de Processo Civil de 2013 [NCPC] e Código de Processo do Trabalho [CPT] fixam relativamente a determinados meios de prova como os documentos autênticos ou particulares [artigos 362.º a 366.º, 370.º a 372.º e 373.º a 376.º do CC], a confissão, o depoimento de parte ou as declarações de parte [artigos 354.º, 357.º e 360.º do CC, 289.º, número 1, 417.º, números 3 e 4, 453.º, número 2, 454.º, 465.º e 466.º do NCPC e 387.º, número 3 do Código do Trabalho de 2009 e 98.º-J, número 1 do CPT], o acordo de partes [na parte aplicável das normas quanto à confissão antes identificadas], o depoimento testemunhal [artigos 392.º a 395.º do CC e 417.º, números 3 e 4 e 495.º a 497.º do NCPC] ou as presunções judiciais [artigo 351.º do CC].

Não se pode confundir prova vinculada com o que a mesma procurou demonstrar e que pode, desde logo, ter ou não importância para a discussão da causa ou uma índole factual ou não ou ser restringida ou proibida por lei ou não.

Logo e nessa medida, pretender defender, como o faz a Reclamante, que o juiz ou juíza do processo estejam obrigados a uma aceitação imperativa, cega, ajurídica e imediata do conteúdo dos articulados, quando resultem, designadamente, do acordo das partes, como terá ocorrido nos autos, sem fazer passar o mesmo pelo seu crivo de cariz jurisdicional, que o legislador exige que seja ponderado, crítico, seletivo e eficiente, é ignorar por completo o complexo quadro normativo que se deixou exposto e que não apenas consentia como até impunha ao TRL, no Acórdão recorrido, o juízo que este último veio a fazer e que mereceu a discordância da Autora.

24. Chegados aqui e face ao que se deixou dito no Aresto reclamado, assim como na fundamentação deste Acórdão, consideramos que a arguida nulidade de omissão de pronúncia não se verificou, muito embora entendamos que, em face da argumentação agora desenvolvida quanto à questão suscitada, este Supremo Tribunal de Justiça não vislumbra um motivo legal suficiente para aplicar o disposto no artigo 531.º do NCPC à presente Reclamação.

IV – DECISÃO

25. Por todo o exposto, nos termos dos artigos 87.º, número 1, do Código do Processo do Trabalho e 615.º, 666.º e 679.º do Novo Código de Processo Civil, acorda-se, neste Supremo Tribunal de Justiça, em indeferir a presente reclamação, por se entender que o nosso Acórdão de 25 de junho de 2025 não padece da arguida nulidade de omissão de pronúncia.


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Custas da presente reclamação a cargo da Recorrente - artigo 527.º, número 1 do Novo Código de Processo Civil.

Registe e notifique.

Lisboa 3 de outubro de 2025

José Eduardo Sapateiro [Juiz-Conselheiro Relator]

Júlio Gomes [Juiz-Conselheiro Adjunto]

Mário Belo Morgado [Juiz-Conselheiro Adjunto]

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1. Sendo certo que tal fundamentação se desdobra não apenas na posição nele especificamente assumida, como ainda na mais recente jurisprudência emitida a respeito da natureza conclusiva ou jurídica dos factos provados por este STJ, bem como no que consta da Motivação do TRL transcrita e do conteúdo do Parecer do ilustre Magistrado do Ministério Público colocado neste tribunal superior.↩︎