Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3788/19.1T8VCT-A.G2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
INAUDIBILIDADE DA PROVA
NULIDADE PROCESSUAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
REPETIÇÃO DO JULGAMENTO
RECURSO DE APELAÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
RECURSO DE REVISTA
Data do Acordão: 10/02/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
Sendo inaudíveis para o Tribunal da Relação as gravações de depoimentos de testemunhas necessários à requerida reapreciação da matéria de facto que as partes ouviram e perceberam, como resulta das suas alegações de apelação, impõe-se determinar oficiosamente a repetição da inquirição dessas testemunhas - art.º 9.º Decreto-Lei n.º 39/95 de 15 de Fevereiro -.
Decisão Texto Integral:

I – Relatório

I.1 –

A.... – Construções, L. dª, embargada, apresentou recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido em 18 de Dezembro de 2024 que julgou improcedente o recurso de apelação e confirmou a decisão recorrida proferida pelo Juiz 1 do Juízo Central Cível de Viana do Castelo do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, no processo de embargos de executado, apresentados em execução para prestação de facto julgando-os improcedentes, e, determinando o prosseguimento da execução.

A recorrente apresentou alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. Vai o presente recurso interposto do Douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo, datado de 18-12-2024, que julgou totalmente improcedente, por não provado, o recurso de apelação interpostopelaRecorrenteeconfirmouadecisãorecorrida,queaquisedáporintegralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.

2. Em síntese, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão recorrendo ao argumento de que depois de ouvir as gravações dos variados depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, constatou que os das testemunhas AA, BB, CC, DD, e EE não eram percetíveis, atendendo ao elevado nível de eco ou distorção existente nas gravações.

3. E, a deficiência de gravação consubstancia de uma nulidade processual que no seu entendimento não foi arguida por qualquer das partes no prazo previsto no art.º 155.º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil, considerando-se, assim, a mesma, sanada.

4. Uma vez sanada tal nulidade processual, o Tribunal a quo considerou que não podia conhecer oficiosamente da mesma e, consequentemente, não poderia apreciar o recurso de apelação interposto pela Recorrente, atendendo a que não poderia reapreciar a prova gravada e o objeto do recurso prendia-se, precisamente, com a reapreciação da prova gravada, e, por isso, julgou totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Recorrente, com base nos fundamentos acima expostos.

5. Salvo o devido respeito, que é muito, não assiste razão ao Tribunal a quo no caso subjudice, e o presente recurso terá de proceder, por provado, como de seguida se demonstrará.

6. O Tribunal a quo ignorou que ao caso é aplicável o regime do , e, concretamente, o seu art.º 9.º, segundo o qual, “Se, em algum momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade” (negrito e sublinhado nossos), e diz-se ignorou porque não há uma única referência, por singela que seja, a esse regime, que continua em vigor e é aplicável in casu.

7. Como decorre do acórdão recorrido, a prova gravada está, em parte, imperceptível, e essa prova é fundamental para o apuramento da verdade, na medida em que a sua gravação deficiente obstou à pronúncia sobre o recurso da matéria de facto e sobre a impugnação de factos que foram decisivos para a prolação da decisão de mérito e para o sentido decisório contido no dispositivo da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

8. Nessa medida, constatando que a prova era parcialmente impercetível, impunha-se ao Tribunal a quo observar o estatuído no art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, ou seja, ordenar a anulação do julgamento e determinar a sua repetição. Se o bom-senso e finalidades de realização de justiça, desde logo, o não impusessem,impunha-o a citada norma legal.

9. Essa formalidade não está na disponibilidade de escolha do Julgador, como sucederia, por exemplo, se essa norma previsse a repetição do julgamento como uma faculdade, designadamente, mediante a utilização da locução “pode ser repetido” ou análoga.

10. Pelo contrário, a referida norma tem um sentido imperativo e perentória, tal como expressa e inequivocamente resulta da locução “proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade” (negrito e sublinhado nosso).

11. Nessa medida, constatando que a prova era parcialmente impercetível, o Tribunal a quo deveria ter aplicado a norma do art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, ou seja, ordenar a anulação do julgamento e determinar a sua repetição, a tal não obstando a circunstância de não ter sido invocada a nulidade prevista no art.º 155.º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil.

12. A inexistência de qualquer referência à citada norma leva a concluir que a mesma foi ignorada pelo Tribunal a quo e que, por lapso, o regime nela previsto não foi tido em conta aquando da prolação do Douto Acórdão recorrido, o que redundou na prolação de uma decisão que violou, de forma clara, o art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro.

13. Com efeito, constatando a deficiência na gravação da prova e sendo a mesma necessária para o apuramento da verdade, o Tribunal a quo não poderia deixar de seguir o regime previsto naquela disposição legal, diligenciando pela anulação do julgamento e sua repetição, a tal não obstando a circunstância de a nulidade decorrente da deficiência das gravações não ter sido tempestivamente arguida (remetendo-se para a fundamentação a este respeito vertida nos Doutos Acórdãos acima indicados).

14. Nessa medida, o Douto Acórdão recorrido, por manifesto lapso, decorrente da circunstância de se ter feito tábua rasa do regime do art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro – em vigor e aplicável na ordem jurídica portuguesa -, violou essa disposição legal.

15. Assim, deve ser revogado o Douto acórdão recorrido e, consequentemente, em sua substituição, ser proferido Douto acórdão que determine a anulação do julgamento e a sua repetição, com vista ao suprimento da nulidade decorrente da deficiência da gravação – o que se requer.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso revogando-se o Douto acórdão recorrido e proferindo-se, em sua substituição, Douto acórdão em conformidade com as conclusões supra formuladas, fazendo-se assim a costumada e sã, Justiça!


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso de revista é admissível nos termos do disposto no art.º 671.º do Código de Processo Civil.

I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. Consequências processuais da inaudibilidade das gravações no Tribunal de apelação.


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I.4 - Os factos

Com relevância para a decisão do recurso são relevantes os seguintes factos constantes do acórdão recorrido:

1. A aqui recorrente, exequente e embargada apresentou 23/09/2024 – ref.ª Citius [... .. 09] recurso de apelação que tinha por objecto a decisão proferida sobre a matéria de facto e de direito e “pressupõe a reapreciação da prova gravada”.

2. Nomeadamente a reapreciação dos depoimentos das testemunhas FF, no excerto de minutos 31:57 a 44:00, 03:00 a 06:00, 31:57 a 44:00, o depoimento prestado por GG, no excerto de minutos 07:15 a 12:40, 01:30 a 06:00, 07:15 a 12:40, o depoimento prestado por CC, nos excertos de minutos 05:00 a 06:20 e 12:20 a 13:20.

3. O acórdão recorrido considerou que:

recorrente indica de forma clara quais os pontos de facto que considera mal julgados e quais as respostas que entende que o Tribunal deveria ter dado aos mesmos, e indica em concreto os meios de prova que em seu entender deveriam ter levado a decisão diversa.

Ocorre, porém, uma situação que vai inviabilizar a reapreciação da prova gravada.

Depois de ouvir as gravações dos variados depoimentos prestados na audiência de julgamento, esta Relação constatou que os depoimentos das testemunhas AA, BB, CC, DD, e EE não são perceptíveis. É certo que o seu depoimento está gravado do princípio ao fim, mas o som tem tão elevado nível de eco, ou distorção, que torna totalmente imperceptível o que está a ser dito, apenas se conseguindo entender palavras soltas.

E sucede que essa deficiência da gravação, que constitui nulidade, não foi arguida dentro do prazo previsto no art. 155º,4 CPC (cf. Abrantes Geraldes, in Recursos no NCPC, 5ª edição, p. 178), pelo que tal vício ficou sanado, não podendo agora esta Relação conhecer oficiosamente do mesmo”.


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II – Fundamentação

1. Consequência da inaudibilidade da gravação no tribunal de apelação

Como resulta da leitura das alegações e contra-alegações do recurso de apelação ambas as partes tiveram inteiro acesso à gravação da prova tendo analisado detalhadamente os depoimentos invocados como carecidos de reapreciação, inclusive com condições para os transcreverem.

O Tribunal recorrido dá conta que os depoimentos em causa estão gravados do início ao fim, mas são imperceptíveis devido ao elevado volume de eco.

Pode acontecer que a gravação se haja danificado no sistema Citius, ou que o Tribunal da Relação disponha de um menos eficiente sistema de audição que não permita reduzir ou anular o eco. Porém, nenhuma das partes pode antever que assim seja.

Se, como está demonstrado ter acontecido, as partes tiveram acesso a gravações audíveis, não podiam reclamar a inaudibilidade das gravações que bem perceberam. Trata-se de uma questão de lógica elementar.

Não há dúvida de que se as gravações são inaudíveis para o Tribunal de apelação, não pode este reapreciar a decisão da matéria de facto proferida pela primeira instância, ainda que apenas restrita aos exactos pontos da matéria de facto que dependem da reapreciação da prova testemunhal e não, também quanto aos pontos da matéria de facto que dependam exclusivamente de valoração de prova documental, e, ou, pericial.

Porém as consequências legais da inaudibilidade da prova gravada nos recursos em que esteja requerida a sua reapreciação pela 2.ª instância tem consagração legal.

O Tribunal recorrido considerou estar perante um vício que ficou sanado por as partes não terem atempadamente reclamado contra a não audibilidade das gravações, nos termos do disposto no art.º 154.º do Código de Processo Civil. Não se vê como o poderiam ter feito, confessamos, dado o desconhecimento que demonstram ter sobre uma deficiência detectada pelo Tribunal da Relação muito depois de terem sido apresentadas as alegações de recurso. Diversas são as situações, com relato na jurisprudência, em que são as próprias partes que não conseguem ouvir os depoimentos gravados em audiência, único caso em que deverão reclamar dessa dificuldade que as impede de elaborar as suas alegações de recurso.

Como referido pela recorrente, o art.º 9.º Decreto-Lei n.º 39/95 de 15 de Fevereiro determina que:

Se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade.”.

Mesmo que esta norma não existisse, sempre teríamos que chegar a uma solução similar dado que o que aconteceu foi que o Tribunal a quem incumbe a gravação da prova não o conseguiu efectuar em condições técnicas adequadas que permitissem que tal gravação cumprisse a sua finalidade de garantir às partes o direito de reapreciação, em sede de recurso, da matéria de facto. As deficiências técnicas da execução das tarefas acometidas ao sistema de justiça, em caso algum poderão amputar as partes de qualquer direito, entre eles o direito ao recurso.

Assim, a gravação deficiente dos referidos depoimentos determina nos termos do disposto no art.º 195.º do Código de Processo Civil a nulidade dessas gravações, e dos actos subsequentes praticados nos autos deles dependentes, como a sentença e demais termos, por tal deficiência poder ter influência decisiva na decisão final da causa.

Procede, pois, a revista, devendo o Tribunal recorrido determinar a repetição do julgamento indicando, com precisão, os depoimentos a repetir.


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III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em conceder a revista e revogar o acórdão e anular os termos processuais a partir dos depoimentos cuja gravação é inaudível, mantendo-se válidos os demais.

Custas pelo vencido a final.


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Lisboa, 2 de Outubro de 2025

Ana Paula Lobo (relatora)

Isabel Salgado

Carlos Portela