Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANA PAULA BOULAROT | ||
Descritores: | ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES INCUMPRIMENTO FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS | ||
Data do Acordão: | 11/13/2014 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / TRANSMISSÃO DE CRÉITOS E DE DÍVIDAS - DIREITO DA FAMÍLIA / ALIMENTOS (DEVIDOS A MENORES). DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / PRINCÍPIOS - PROCESSOS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA. | ||
Doutrina: | - Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, 736/738. - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1987, 176. - Galvão Telles Direito Das Obrigações, 4ª edição, 209. - Gomes Canotilho e Vital Moreira, "Constituição da República Portuguesa", Anotada, 795. - Remédio Marques, Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos A Menores), 2ª edição revista, 234. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 8.º, 9.º, 10.º, N.º3, 589.º, 593.º, N.ºS1 E 2. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 3.º, 986.º A 988.º. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 206.º. D.L. N.º 164/99, DE 13 DE MAIO: - ARTIGOS 4.º, N.º1, 5.º, 6.º. LEI N.º 75/98, DE 19 DE NOVEMBRO. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -VOTO DE VENCIDO AO ACÓRDÃO DE 4 DE JUNHO DE 2009, IN WWW.DGSI.PT; -DE 29 DE MAIO DE 2014, IN WWW.DGSI.PT; -DE 17 DE JUNHO DE 2014, PROC. N.º 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1, IN SASTJ, EM WWW.STJ.PT. * AUJ N.º 12/2009, DE 7 DE JULHO DE 2009, IN DR 150 SÉRIE I, DE 5 DE AGOSTO DE 2009. | ||
Sumário : |
I. A prestação do FGAM, no caso de ser declarado o incumprimento do progenitor obrigado a alimentos não pode ser fixada em montante superior ao que tiver sido fixado pelo Tribunal e objecto do processo incidental, porque a tal se opõem as disposições insertas na Lei 75/98, de 19 de Novembro e do seu Decreto regulamentar, DL 164/99, de 13 de Maio. II. O FGAM intervém a titulo de sub-rogação, ficando investido por via do seu cumprimento, na posição do credor (o menor), adquirindo, assim, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam, não pode, deste modo, exceder a medida da obrigação devida e que é satisfeita em substituição do devedor originário. III. O FGADM foi gizado para prever situações de carência específica, não estando configurado como um mecanismo universal de assistência a menores, circunscrevendo a sua actuação às situações de falta de pagamento das pensões de alimentos pelos progenitores a tal obrigados. IV. A interpretação que é feita pelos Tribunais, vulgo interpretação judicial, está sujeita às regras legais sobre interpretação, não lhe cabendo, por princípio, sob a aparência da simples interpretação, o poder de criar normas, a não ser nos casos especialmente previstos em que essa criação da norma se impõe, por inexistência de caso análogo, nos termos do normativo inserto no artigo 10.º, n.º3 do CCivil, já que o Tribunal não se pode abster de julgar, além do mais, por falta de lei aplicável ao caso concreto. (APB) | ||
Decisão Texto Integral: |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I Nos autos de incumprimento do poder paternal em que é Requerente M e Requerido V, com vista à cobrança coerciva da quantia em dívida referente às prestações de alimentos devidas à menor C, filha de ambos, pelo respectivo progenitor, fixada em 100 € mensais nos autos de regulação das responsabilidades parentais, apurou-se que o Requerido não possui bens e aufere € 178,15 mensais de RSI. Foi promovida pelo Ministério Público a declaração de incumprimento e que a pensão de alimentos fosse suportada pelo Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores (FGADM), em montante nunca inferior a € 150,00.
Proferiu-se sentença, na qual se decidiu: “1 – Julgar verificado o incumprimento do requerido no que concerne ao montante de € 800,00, respeitante ao montante já reconhecido de € 200,00 e aos meses de Abril a Setembro de 2013; 2 – Fixar em € 150,00 (cento e cinquenta euros), ao abrigo do disposto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 75/98, de 19.11, e arts. 2º, 3º e 4º do DL nº 164/99, de 13.05, a prestação de alimentos a cargo do FUNDO DE GARANTIA DOS ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES, sendo tal montante actualizado, anualmente, em 1 de Janeiro, de acordo com o índice dos preços para o consumidor verificado no ano anterior a tais actualizações, publicado pelo I. N. E.”
Desta decisão recorreu o FGADM, tendo a Apelação vindo a ser julgada improcedente.
Inconformado com este Aresto, dele interpôs recurso o Ministério Público, agora de Revista, com fundamento em oposição de Acórdãos, apresentando as seguintes conclusões: – O incidente de intervenção do FGADM tem como pressuposto o não pagamento da prestação judicialmente fixada e a impossibilidade de obter tal pagamento nos termos do artigo 189º da OTM, não podendo destinar-se a fixar uma nova pensão, superior à devida pelo progenitor incumpridor, mas podendo a mesma ser de valor inferior, se tal se justificar face à situação do menor e ao limite máximo fixado no artigo 3°, nº5 do DL 164/99 (se for o caso); – A previsão do artigo 5º, nº1 do DL 164/99 de que " O Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso", traduz a clara intenção do legislador de que o Fundo venha a poder ser ressarcido de tudo aquilo que pagou em substituição do devedor, o que só ocorrerá se não for obrigado a pagar para além do que já se encontrava fixado; – A prestação de alimentos a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores em caso de incumprimento, pelo progenitor, da obrigação, previamente, fixada judicialmente não pode ser estabelecida em montante superior a esta; – Deverá o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro em que seja seguido o entendimento constante do acórdão-fundamento, no sentido de que a prestação a pagar pelo FGADM seja fixada em montante não superior ao que se encontrava fixado para o progenitor devedor – no caso dos autos, a quantia de € 100,00 mensais. – Não tendo assim decidido, violou o douto acórdão recorrido o disposto nos artigos 2º, nº2, 3º, nº5 e 5º, nº1 do DL 164/99, de 13.05, devendo interpretar-se tais normas no sentido de que as prestações atribuídas aos menores que caiba ao FGADM pagar não podem ser superiores às que se encontravam fixadas ao progenitor devedor.
Não foram apresentadas contra alegações.
II O aporema daqui consiste, apenas e tão só, em saber se o Tribunal, perante um incidente de incumprimento da prestação alimentar por banda do progenitor a ela obrigado, concluindo que aquele a não pode satisfazer e por isso atribuindo ao FGADM tal obrigação, poderá concomitantemente alterar o montante devido, aumentando-o, no caso.
As instâncias deram como assente a seguinte factualidade: – Do relatório realizado ao progenitor da criança resulta que o mesmo aufere RSI no valor de 178,15 euros, cuja alimentação é suportada pelo Centro Paroquial de …; – Por decisão proferida, nos autos principais, em 05.02.13, foi o pai da criança, V, condenado a pagar a quantia mensal de € 100,00, a título de alimentos devidos à criança C, nascida em 11.02.05; – O requerido não cumpriu com a prestação de alimentos a que estava obrigado, a partir de Fevereiro de 2013; – A criança vive com a mãe, M, formando com esta o respectivo agregado familiar; – Os rendimentos do agregado familiar são de € 261,60, resultante do RSI; – A capitação do agregado familiar é, assim, de € 154,40.
1. Antes de começarmos a analisar a problemática recursiva, com apelo às divergentes correntes jurisprudenciais em confronto e que deram origem a esta impugnação, façamos um pequeno sobrevoo sobre a legislação aplicável.
Vem consagrado no artigo 69º da CRPortuguesa o direito das crianças à protecção da sociedade e do Estado, visando-se a sua integral protecção, o que implica a se, os correlativos deveres por banda da sociedade e do Estado o que justificará a tomada de medidas especiais, maxime no que tange a prover o seu sustento: «1. As crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições. 2. O Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal. 3. É proibido, nos termos da lei, o trabalho de menores em idade escolar.»
No prosseguimento destas politicas sociais, veio a ser publicada a Lei 75/98 de 19 de Novembro, onde se estabeleceu um regime de garantia da prestação de alimentos devidos a menores, em caso de incumprimento do correspondente dever judicialmente fixado por parte dos obrigados, através da criação para o efeito do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores.
Resulta do artigo 1º daquele diploma o seguinte: «1 - Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de outubro, e o alimentado não tenha rendimento ilíquido superior ao valor do indexante dos apoios sociais (IAS) nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efetivo cumprimento da obrigação. 2 - O pagamento das prestações a que o Estado se encontra obrigado, nos termos da presente lei, cessa no dia em que o menor atinja a idade de 18 anos.»
Acrescenta o artigo 3º, nº1, no que à economia da questão concerne, que «Compete ao Ministério Público ou àqueles a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue requerer nos respectivos autos de incumprimento que o tribunal fixe o montante que o Estado, em substituição do devedor, deve prestar.», sendo certo que como decorre do artigo 2º, nº1 e 2 «As prestações atribuídas nos termos da presente lei são fixadas pelo tribunal e não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de 1 IAS, independentemente do número de filhos menores.»; «Para a determinação do montante referido no número anterior, o tribunal atenderá à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos fixada e às necessidades específicas do menor.».
Daqui decorre que o Ministério Público ou o progenitor a quem a prestação de alimentos deveria ser entregue, em caso de incumprimento do progenitor obrigado, pode suscitar a intervenção do Tribunal, através do pertinente procedimento de incumprimento a que alude o normativo inserto no artigo 189º, do DL 314/78, de 27 de Outubro, actualizado pela Lei 31/2003, de 22 de Agosto.
Neste incidente especial de incumprimento, caso se venha a apurar que o obrigado a alimentos não tem meios para satisfazer a prestação a que está adstrito, poderá ser requerido a mesma seja satisfeita pelo Estado, através do FGADM, a que se refere o artigo 6º daquele mesmo diploma, no qual se predispõe o seguinte: «1 - É constituído o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, adiante designado por Fundo, cuja inserção orgânica será definida por diploma regulamentar do Governo. 2 - O Fundo é gerido em conta especial e assegurará o pagamento das prestações fixadas nos termos da presente lei. 3 - O Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores fica sub-rogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso. 4 - As dotações do Fundo são inscritas anualmente no Orçamento do Estado, em rubrica própria.».
Este diploma veio a ser regulamentado pelo DL 164/99, de 13 de Maio em cujo Preâmbulo se pode ler o seguinte: «A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artigo 69.º). Ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24.º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna. A protecção à criança, em particular no que toca ao direito a alimentos, tem merecido também especial atenção no âmbito das organizações internacionais especializadas nesta matéria e de normas vinculativas de direito internacional elaboradas no seio daquelas. Destacam-se, nomeadamente, as Recomendações do Conselho da Europa R(82)2, de 4 de Fevereiro de 1982, relativa à antecipação pelo Estado de prestações de alimentos devidos a menores, e R(89)1, de 18 de Janeiro de 1989, relativa às obrigações do Estado, designadamente em matéria de prestações de alimentos a menores em caso de divórcio dos pais, bem como o estabelecido na Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada pela ONU em 1989 e assinada em 26 de Janeiro de 1990, em que se atribui especial relevância à consecução da prestação de alimentos a crianças e jovens até aos 18 anos de idade. A evolução das condições sócio-económicas, as mudanças de índole cultural e a alteração dos padrões de comportamento têm determinado mutações profundas a nível das estruturas familiares e um enfraquecimento no cumprimento dos deveres inerentes ao poder paternal, nomeadamente no que se refere à prestação de alimentos, circunstância que tem determinado um aumento significativo de acções tendo por objecto a regulação do exercício do poder paternal, a fixação de prestação de alimentos e situações de incumprimento das decisões judiciais, com riscos significativos para os menores. De entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica, seja por motivo de desemprego ou de situação laboral menos estável, doença ou incapacidade, decorrentes, em muitos casos, da toxicodependência, e o crescimento de situações de maternidade ou paternidade na adolescência que inviabilizam, por vezes, a assunção das respectivas responsabilidades parentais. Estas situações justificam que o Estado crie mecanismos que assegurem, na falta de cumprimento daquela obrigação, a satisfação do direito a alimentos. Ao regulamentar a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, que consagrou a garantia de alimentos devidos a menores, cria-se uma nova prestação social, que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado, ao mesmo tempo que se dá cumprimento ao objectivo de reforço da protecção social devida a menores. Institui-se o Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores, gerido pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, a quem cabe assegurar o pagamento das prestações de alimentos em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor, através dos centros regionais de segurança social da área de residência do alimentado, após ordem do tribunal competente e subsequente comunicação da entidade gestora. A intervenção destas entidades no processo em causa resulta justificada, no que concerne ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, pela própria natureza da prestação e, no que respeita aos centros regionais de segurança social, pela proximidade territorial do alimentado, podendo estes assegurar, melhor que outro serviço, a rápida e eficaz satisfação da garantia de alimentos devidos ao menor. Através da articulação de diversas entidades intervenientes, em colaboração com o tribunal, visa-se assegurar a plena eficácia e rapidez do procedimento ora criado, bem como, em obediência ao princípio da segurança, a efectivação regular da prova da subsistência dos pressupostos e requisitos que determinaram a intervenção do Fundo de Garantia e a prestação de alimentos a cargo do Estado.»
Este DL explicita, em consonância com a Lei 75/98, maxime em concretização dos princípios que já decorriam dos artigos 1º, 2º e 3º, as situações de facto e os respectivos pressupostos relativos à fixação da obrigação a cargo do Fundo, sendo certo que, do artigo 5º, nº1, resulta inequivocamente que «O Fundo fica sub-rogado em todos os direitos do menor a quem sejam atribuídas prestações, com vista à garantia do respectivo reembolso.», ali se concretizando o que já se encontrava estabelecido no artigo 6º, nº3 daquela mesma Lei, no que ao instituto da sub- rogação concerne.
E, aqui chegados, não podemos deixar de fazer apelo aos normativos civis referentes a este instituto, cfr artigos 589º e 593º, nº1, dos quais deflui inequivocamente que a sub-rogação é uma forma de transmissão das obrigações, de onde o terceiro, no caso o Estado através do FGADM, fica investido por via do seu cumprimento, na posição do credor (o menor), adquirindo, assim, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os poderes que a este competiam.
A sub-rogação não pode, deste modo, exceder a medida da obrigação devida e que é satisfeita em substituição do devedor originário, cfr Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, 736/738; Galvão Telles Direito Das Obrigações, 4ª edição, 209.
Daqui resulta a seguinte asserção: se por hipótese o Estado fosse compelido a pagar mais do que o montante que era devido pelo obrigado, nunca poderia exigir do devedor originário mais do que o montante por este devido, sendo que o excesso assim satisfeito deveria ser assumido como obrigação própria e não em substituição do terceiro responsável.
Ora, como decorre da Lei 75/98 e do DL 164/99, que a regulamentou, nenhum dos seus passos normativos nos conduz à conclusão que o Estado, através deste seu organismo, o FGADM, possa vir a ser satisfazer quaisquer quantias a fundo perdido, mas antes que todos os montantes que venham a ser despendidos deverem ser objecto de reembolso, nos termos consignados nos artigos 5º e 6º daquele Decreto, sem embargo de tal obrigação só nascer «com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo quaisquer prestações anteriores.», cfr AUJ 12/2009 de 7 de Julho de 2009 (Relator Azevedo Ramos), in DR 150 SÉRIE I de 5 de Agosto de 2009.
E, a prestação a satisfazer pelo FGADM tem como limite máximo, por cada devedor, o montante de 1 IAS (indexante de apoio social), como estipula o nº5 do DL 164/99
Enunciado que ficou o pensamento legislativo e as traves mestras conducentes à solução jurídica do pleito, fixemo-nos então no argumentário recursivo
2.Da oposição de Acórdãos consubstanciadora da Revista.
O Ministério Público impugnou a decisão de segundo grau que declarou o incumprimento da obrigação de alimentos por parte do progenitor da menor e procedeu ao aumento da mesma para a quantia de € 150,00, a satisfazer pelo FGADM, por a mesma estar em oposição com a proferida no Acórdão fundamento (RC de 19 de Fevereiro de 2013), na qual se considerou que a prestação a satisfazer por este organismo não pode ser fixada em montante superior ao anteriormente fixado pelo Tribunal e incumprido pelo respectivo progenitor devedor.
Não podemos deixar de consignar, prima facie, que o pedido que foi formulado ao Tribunal foi um pedido de declaração de incumprimento dos alimentos devidos a menor e não um pedido de alteração daqueles.
É que, sem embargo de nesta sede o Tribunal não estar sujeito a critérios de legalidade estrita, como deflui dos normativos insertos nos artigos 986º a 988º do NCPCivil, está limitado pelo principio da necessidade do pedido e da contradição do mesmo, nos termos do artigo 3º do mesmo diploma, sendo certo que na especie o pedido se ficou pelo incumprimento, como decorre do requerimento inicial apresentado pela mãe da menor, não se podendo transmutar o que é pedido no que se não pediu, procedendo-se a uma alteração não consentida, à partida negada pelas leis procedimentais aplicáveis.
De outra banda, não se diga que tal alteração sempre seria permitida pelo preceituado no artigo 4º, nº1 do DL 164/99 onde se predispõe que «A decisão de fixação das prestações a pagar pelo Fundo é precedida da realização das diligências de prova que o tribunal considere indispensáveis e de inquérito sobre as necessidades do menor, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público.».
Se não.
A decisão que julga o incidente de incumprimento e fixa o montante a ser prestado pelo FGADM, está balizada no seu montante máximo por dois vectores: i) não pode a mesma ser fixada em montante superior àquele que o Tribunal estipulou ao obrigado a alimentos faltoso; ii) tal montante não poderá exceder 1 IAS, por cada devedor, isto é por cada obrigado a alimentos, independentemente do número de alimentandos a cargo do mesmo, cfr a este propósito o voto de vencido de Salvador da Costa ao Ac STJ de 4 de Junho de 2009 (Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt; ex adverso Remédio Marques, in Algumas Notas Sobre Alimentos (Devidos A Menores), 2ª edição revista, 234, embora sem quaisquer argumentos explicativos, onde se lê «(…) o referido Fundo de Garantia não visa substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida a menor, nem visa, conquanto acessória e subsidiariamente do ponto de vista do direito das obrigações, garantir um crédito (não autónomo) emergente de uma relação familiar, mas antes propiciar uma prestação autónoma de segurança social, uma prestação a forfait de um montante por regra equivalente ao que fora fixado judicialmente – mas que pode ser maior ou menor, sendo certo que as prestações atribuídas não podem exceder, mensalmente, por cada devedor, o montante de quatro unidades de conta de custas (art. 2º/1 da Lei 75/98 e art. 3º/3 do Decreto-Lei nº164/99, de 13 de Maio), (…)».
Por outro lado, se a fixação do montante a suportar pelo FGADM pode ser igual ou inferior ao montante fixado pelo Tribunal, neste último caso por se verificar, vg, após as diligências de prova, que o obrigado a alimentos, embora não podendo suportar totalmente aquela quantia, poderá suportá-la em parte, ficando neste caso o excedente a cargo daquele organismo, nunca tal montante poderá ser superior, pois como supra se deixou referido, se tal fosse admitido ter-se-ia de chegar à conclusão que os montantes despendidos pelo FGADM poderiam não ser reembolsáveis em parte, quando a Lei impõe o seu reembolso, bem como não se poderia concluir, como conclui a própria Lei que tal reembolso é exigido a titulo de sub-rogação nos termos do artigo 5º, nº1 do DL 164/99 de 13 de Maio, podendo esta ser parcial, cfr artigo 593º, nº2 do CCivil.
Acrescenta-se ainda, como argumento coadjuvante objecto de reflexão no Acórdão fundamento (Ac RC de 19 de Fevereiro de 2013 (Relator Alberto Ruço), cuja cópia se encontra junta aos autos, mas disponível em www.dgsi.pt) do seguinte teor: «(…) No artigo 1.º da Lei 75/98, de 19 de Novembro, na redacção em vigor à data da instauração da acção, referia-se o seguinte: «Quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a menor residente em território nacional não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, e o alimentado não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, o Estado assegura as prestações previstas na presente lei até ao início do efectivo cumprimento da obrigação». E, nos termos do n.º 1, do artigo 10.º, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, «Se o representante legal ou a pessoa a cuja guarda o menor se encontre receberem indevidamente prestações do Fundo, designadamente porque o devedor iniciou o cumprimento da obrigação de prestações de alimentos, deverão aqueles proceder de imediato à sua restituição». Sendo assim, servindo de exemplo a hipótese factual colocada no recurso, seria deveras incoerente a verificação de uma situação como esta: O Fundo estava a pagar ao menor uma prestação mensal de €170,00 euros, por ter havido um aumento da prestação a cargo do Fundo, que inicialmente era igual à do devedor, no montante de €125,00 euros, a qual em relação a este último não sofreu qualquer alteração. Como o devedor iniciou o pagamento dos €125,00 euros, e a mais não estava obrigado, cessava a prestação do Fundo e o menor passava a receber apenas do devedor de alimentos os €125,00 euros e não os €170,00 euros que estava a receber do Fundo. Pergunta-se, então: Por que razão o obrigado a prestar alimentos não há-de pagar €170,00 euros? Responder-se-á que tal não é possível porque o devedor só está obrigado por sentença a pagar €125,00 euros. Mas, se é assim, na tese do recorrente, por que razão o Fundo não continua a pagar a diferença entre €125,00 euros e €170,00 euros, isto é, €45,00 euros, uma vez que o menor necessita desta quantia? Responder-se-á que a lei impede esta solução, pois se o obrigado retoma o pagamento dos alimentos, cessa a obrigação do Fundo. Mas, se é assim, como efectivamente é, então este impedimento no sentido do Fundo pagar aquela diferença, também mostra que o Fundo não deve pagar em caso algum quantia superior àquela que o obrigado está condenado a pagar. É que, se a prestação a suportar pelo Fundo pudesse ser superior à prestação do devedor dos alimentos, então a lei devia prever a hipótese, mas não prevê, que, tendo o devedor retomando o pagamento da prestação de alimentos, se porventura esta prestação fosse inferior à que vinha sendo paga pelo Fundo, esta entidade continuaria vinculada a pagar alimentos ao menor, agora no montante equivalente à diferença entre a prestação que o Fundo estava a pagar e aquela que o devedor recomeçou a pagar, ao invés de prever simplesmente, nesta hipótese, a cessação da obrigação a cargo do Fundo. Esta incoerência mostra, com clareza, espera-se, que a solução jurídica proposta pelo recorrente não está de acordo com o regime legal em questão.(…)».
3. Sobre a interpretação e aplicação da Lei.
Incumbe aos Tribunais no exercício das suas funções, a interpretação e aplicação da Lei, residindo a sua independência, precisamente, na autonomia da interpretação legislativa, o que afasta desde logo a sua vinculação a interpretações heterónomas quando dotadas de força geral e abstracta. (veja-se a questão da inconstitucionalidade dos assentos e a não obrigatoriedade de se seguir a jurisprudência uniformizada, ibidem Gomes Canotilho e Vital Moreira, 795).
Tal interpretação, porque a independência jurisdicional apenas «esbarra», soit disant, nas limitações impostas pela própria lei, nos termos do preceituado no artigo 206º do CRPortuguesa com reflexo no artigo 8º do CCivil, terá de ser efectuada de harmonia com os preceitos legais que a regem, ou seja, seguindo o que a propósito impõe o normativo inserto no artigo 9º, igualmente do CCivil.
E, este normativo predispõe: «1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.».
Queremos nós dizer que a interpretação que é feita pelos Tribunais, vulgo interpretação judicial, está sujeita às regras legais sobre interpretação, não lhe cabendo, por princípio, sob a aparência da simples interpretação, o poder de criar normas, a não ser nos casos especialmente previstos em que essa criação da norma se impõe, por inexistência de caso análogo, nos termos do normativo inserto no artigo 10º, nº3 do CCivil, já que o Tribunal não se pode abster de julgar, além do mais, por falta de lei aplicável ao caso concreto, cfr artigo 8º, nº1, do mesmo diploma legal.
Se é certo que o brocardo «in claris non fit interpretatio», não contém em si uma verdade insofismável, porque por muito clara que seja a lei, é sempre necessária alguma interpretação, uma vez que a clareza pode ser enganadora, por outra banda, dizer-se que a lei clara não carece de interpretação significa, essencialmente, que um texto legislativo escorreito facilita muito a interpretação do seu sentido e alcance, embora não encerre a questão interpretativa.
A nossa actividade, enquanto julgadores, passa por fixar o sentido e o alcance que o texto legislativo deverá ter, sendo que não poderá ser um qualquer sentido de entre os possíveis (caso haja mais do que um), mas antes procurar extrair-se da lei, enquanto instrumento de conformação e ordenação da vida em sociedade, dirigida à generalidade das pessoas e abarcando uma miríade de casos, um sentido decisivo que garanta um mínimo de uniformidade de soluções, por forma a evitar-se o casuísmo e o arbítrio de cada julgador, incompatíveis com a necessária segurança jurídica, cfr Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1987, 176.
Concluindo.
Se o Tribunal fixasse uma prestação a cargo do FGADM, por via do incumprimento do obrigado à mesma, superior à estabelecida pelo Tribunal, aquele terceiro assumiria uma obrigação não exigível, não operando a sub-rogação e, por inerência, o direito ao reembolso, o que violaria, expressamente, as disposições legais decorrentes da lei 75/98, de 19 de Novembro e do DL 164/99, de 13 de Maio, o que aliás já foi decidido recentemente por este Supremo Tribunal, cfr Ac STJ de 29 de Maio de 2014 (Relator Bettencourt de Faria), in www.dgsi.pt (porém em sentido contrário o Ac de 17 de Junho de 2014 (Relator Mário Mendes, proferido no proc 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1, in SASTJ, site do STJ).
O FGADM foi gizado para prever situações de carência específica, não estando configurado como um mecanismo universal de assistência a menores, circunscrevendo a sua actuação às situações de falta de pagamento das pensões de alimentos pelos progenitores a tal obrigados.
III Destarte, concede-se a Revista, revogando-se parcialmente a decisão ínsita no Aresto recorrido, fixando-se a prestação a satisfazer pelo FGADM no montante fixado pelo Tribunal nos autos principais, isto é, € 100,00, mantendo-se no mais o decidido.
Sem custas.
Lisboa, 13 de Novembro de 2014
(Ana Paula Boularot, Relatora por vencimento)
(Pinto de Almeida)
(Fernandes do Vale, Relator vencido nos termos da declaração que junta)
----------------
Declaração de voto:
Como inicial relator e sem quebra do respeito – máximo – devido aos subscritores da tese que fez vencimento, teria negado a revista, conforme projecto elaborado e de que, atento o preceituado nos arts. 663º, nº1 e 679º, ambos do CPC (Cfr. “NOTAS ao CPC”, Vol. III, 3ª Ed., pags. 269, do Cons. Rodrigues Bastos), me limitarei a destacar os principais e sucintos fundamentos: 1 – Têm diferente natureza a prestação alimentícia prevista nos arts. 2003º e segs. do CC e a que fique a cargo do FGADM (Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a Menores): enquanto aquela é de índole ou raiz familiar, esta tem um cariz social/assistencial, na prossecução de uma das programáticas metas humanas e constitucionais de que o Estado Português não pode demitir-se, atenta a imposição constitucional da salvaguarda do mínimo de dignidade humana, sobretudo da criança; 2 – Esta última – como sustenta, designadamente, o Prof. João Paulo F. Remédio Marques, em anotação concordante ao AUJ nº12/2009, de 07.07.09 (in “CDP” nº34, pags. 26 e segs) – pode ser de montante superior ao daquela, desde que não excedido o respectivo tecto legal (de 1 IAS – Indexante de Apoio Social, correspondente, nos anos de 2012, 2013 e 2014, a € 419,22, nos termos do art. 114º da Lei nº66-B/2012, de 31.12 – por cada devedor e independentemente do número de filhos menores); 3 – O montante da prestação de alimentos fixada – evento passado – constitui apenas um dos três factores a que o tribunal deve atender para a fixação – evento futuro que tem em vista e com o qual se vai confrontar – da prestação a cargo do FGADM, não podendo o resultado ou soma dos três factores ser, necessariamente, equiparado ou assimilado ao que se obteria com a consideração de um só deles; 4 – A tese perfilhada não se afasta da órbita do art. 9º do CC, mormente se tida em consideração a inspiração socialista da Assembleia da República e do Governo coevos, em plena época de estabilidade ou, mesmo, expansão económica e em véspera do preenchimento dos requisitos para a “entrada no euro”, além de que a vinculação do Fundo ao pagamento de prestação fixada em montante superior a 1 IAS, para além de difícil concretização prática face aos correspondentes pressupostos condicionantes, já se encontra obviada com o estabelecimento dum tal limite máximo; 5 – O sustentado em 2) não põe em causa o direito de sub-rogação legal conferido ao Fundo; 6 – Em tal hipótese, o mencionado direito de sub-rogação só poderá ter por objecto o montante da prestação alimentícia, por ao mesmo se restringirem os poderes que competiam ao menor-credor perante o originário familiar-devedor (art. 593º, nº1, do CC), com o que o Estado deverá conformar-se, na prossecução da sua mencionada função social/assistencial.
Fernandes do Vale |