Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00003064
Parecer: SA00182005
Nº do Documento: PCA30122010001800
Descritores: ACORDO INTERNACIONAL
CONVENÇÃO BILATERAL
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
GLOBALIZAÇÃO
TRÁFICO DE ARMAS
BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
CRIME INFORMÁTICO
PROTECÇÃO DE DADOS
AUXÍLIO JUDICIÁRIO
CONTRAPROPOSTA
Livro: 00
Numero Oficio: 3719
Data Oficio: 06/30/2009
Pedido: 07/02/2009
Data de Distribuição: 07/10/2009
Relator: MANUEL MATOS
Sessões: 00
Data Informação/Parecer: 12/30/2010
Sigla do Departamento 1: MNE
Entidades do Departamento 1: MINISTRO DE ESTADO E DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS
Privacidade: [09]
Indicação 2: ASSESSOR: SUSANA PIRES
Área Temática:DIR INT PUBL*TRATADOS
Ref. Pareceres:I000101997Parecer: I000101997
I001462001Parecer: I001462001
I001112003Parecer: I001112003
I000172005Parecer: I000172005
Legislação:EMP98 ART37 A); RAR N75/2010 DE 22/07; DPR N77/2010 DE 22/07; DPR N19/2004 DE 02/04; L N104/2001 DE 25/08; L 48/2003 DE 22/08; CP82 ART5 ART275 ART368A; L N36/94 DE 29/09 ART1; L N67/98 DE 26/10; RECT N22/98 DE 28/11; CONST76 ART35
Direito Comunitário:CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A CRIMINALIDADE ORGANIZADA TRANSNACIONAL
DIR 95/46/CE PE
Direito Internacional:RES 45/117 DA ASSEMBLEIA DAS NAÇÕES UNIDAS DE 14/12/1990
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões:

Texto Integral:




Senhor Conselheiro
Procurador-Geral da República,
Excelência:




I
No Ministério dos Negócios Estrangeiros foi recebido o texto de uma contraproposta do Uzbequistão do Acordo de cooperação entre Portugal e o Uzbequistão no domínio do combate à criminalidade, terrorismo e outros crimes de perigo elevado.

Por ofício subscrito pelo Chefe do Gabinete de Sua Excelência o Ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros, foi solicitado «parecer da Procuradoria-Geral da República, bem como eventuais propostas de alteração»[1], tendo Vossa Excelência determinado a sua distribuição pelo Conselho Consultivo.

Cumpre referir que oportunamente foi emitida informação-parecer sobre «o interesse e oportunidade» na celebração de um Acordo de cooperação bilateral no domínio do combate à criminalidade organizada, proposto pelo Uzbequistão.

O parecer que agora se solicita terá, por isso, uma feição complementar daquela dita informação-parecer, visando essencialmente, como ali se afirma, determinar a compatibilidade do texto da «contraproposta» apresentada com as normas e princípios da ordem jurídica portuguesa, designadamente os princípios constitucionais, por força das limitações decorrentes do Estatuto do Conselho Consultivo, com competência restrita a matéria de legalidade [artigo 37.º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público[2]].

Neste condicionalismo, cumpre emitir parecer.

II

Intitulado «Acordo entre o Governo da República do Uzbequistão e o Governo da República Portuguesa no domínio do combate ao crime organizado, terrorismo e outros crimes de perigo elevado», o instrumento agora em exame, apresentado em língua inglesa[3], é constituído por uma parte introdutória e por dezasseis artigos.

A introdução contém, como é de estilo em documentos do género, a enunciação dos princípios e compromissos geralmente assumidos na matéria.

«Desejando promover e estreitar as relações de amizade bem como a cooperação bilateral entre os dois países, bem como a cooperação bilateral entre os dois países;
Cientes do facto de que o crime transnacional, em particular na sua forma organizada, representa uma séria ameaça ao desenvolvimento, segurança e integridade física dos cidadãos;
Reconhecendo a importância do reforço e desenvolvimento da cooperação no combate à criminalidade;
Considerando que essa cooperação tem de ser realizada da maneira mais eficaz, no respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, tal como constam dos instrumentos jurídicos internacionais relevantes nesta matéria;
Tomando em consideração os objectivos e princípios das convenções internacionais em que são partes, bem como as resoluções das Nações Unidas e das suas instituições especializadas em matéria de combate à criminalidade;
Tomando em consideração os princípios do respeito pela soberania dos Estados, bem como da igualdade e reciprocidade entre os Estados».

Segue-se o articulado proposto.

O artigo 1.º define o seu objecto nos seguintes termos:

«O presente acordo estabelece o regime jurídico aplicável à cooperação entre as Partes no domínio do combate à criminalidade».

O âmbito ou campos da cooperação estão definidos no artigo 2.º, cujo teor Interessa conhecer:
«Artigo 2.º
Âmbito da cooperação
As Partes cooperam, em conformidade com a respectiva legislação interna e com as disposições do presente Acordo, no combate contra:

- o terrorismo internacional, separatismo e extremismo, em todas as formas de expressão;
- o tráfico ilícito de armas, de munições, de substâncias explosivas e tóxicas e de materiais (substâncias) nucleares;
- o tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, bem como dos seus precursores;
- a migração ilegal, tráfico de pessoas, exploração da prostituição e exploração sexual de menores e outras ofensas contra a liberdade sexual;
- o branqueamento de capitais resultantes de actividades criminosas e financiamento ao terrorismo;
- a contrafacção, falsificação de títulos de crédito e de moeda e outros crimes no domínio económico e financeiro;
- os crimes informáticos (computer crimes) e outros crimes no domínio das altas tecnologias;
- os atentados à segurança de transporte por ar, água, caminho de ferro ou rodoviário, falsificação de elementos de identificação de veículos, bem como dos documentos de viagem;
- o contrabando de bens, incluindo os bens culturais e de valor histórico;
- a falsificação de selos, valores selados, marcas e patentes, documentos oficiais, incluindo documentos de identidade;

2. O presente Acordo não abrange a cooperação judiciária em matéria penal e em matéria de extradição».

O artigo 3.º indica as autoridades competentes da República Portuguesa e do Uzbequistão responsáveis pela aplicação deste Acordo.

As «modalidades de cooperação» estão enunciadas no artigo 4.º, com a seguinte redacção:

«1. Ao abrigo do presente Acordo, a cooperação efectiva-se pelas autoridades competentes, através dos canais diplomáticos:

a) Pela troca de informações sobre as formas de criminalidade organizada em função do interesse mútuo, em conformidade com o artigo 2.º deste Acordo;
b) Pela troca de informações sobre as pessoas envolvidas na criminalidade organizada e seus dirigentes (organizers), sobre organizações criminosas, suas estruturas e relações entre membros de grupos criminosos, sobre o tempo, lugar e modo de execução dos crimes, sobre o objectivo dos crimes, características, bem como sobre as violações da lei penal e sobre as medidas adoptadas no sentido de prosseguir a revelação e investigação de crimes de mais elevada ameaça para a segurança pública;
c) Pela troca de informações de carácter operacional sobre a localização e identificação de pessoas ou de objectos, sobre os crimes que estejam a ser planeados ou que tenham sido cometidos, bem como sobre as pessoas e organizações criminosas neles envolvidas;
d) Pela troca de informações analíticas sobre a génese, o desenvolvimento e as previsíveis consequências dos fenómenos criminais;
e) Pela troca de informações sobre a legislação em vigor nos Estados das Partes, de outras leis e regulamentos, de publicações legais e de instruções de carácter genérico, sobre os resultados de pesquisas científicas de mútuo interesse no domínio da ciência forense e da criminologia, bem como de informações sobre a execução da lei pelas autoridades competentes das Partes, incluindo sobre o reforço das normas jurídicas na luta contra o crime;
f) Pela troca de informações sobre a experiência na identificação dos métodos do crime organizado e dos modos e métodos especiais na prática de crimes;
g) Pela troca de informações sobre exemplos de experiências na luta contra actividades criminosas ou usadas na prática de crimes;
h) Pela troca de informações sobre especialistas para orientar o treino, visando melhorar a destreza profissional do pessoal no domínio da luta contra o crime organizado;
i) Pela troca de informações sobre novos exemplos, técnicas e outros equipamentos utilizados na detecção e investigação de crimes.

2. As Partes devem cooperar também sempre que um crime esteja a ser preparado ou praticado no seu território, se existirem elementos reveladores de que as suas consequências ocorrerão no território da outra Parte.
3. A cooperação nas modalidades previstas neste Artigo podem ser também levadas a cabo através de oficiais de ligação ou através da utilização de comunicação electrónica.»

Os artigos 5.º e 6.º versam, respectivamente, sobre a execução do pedido de cooperação e sobre a sua recusa.
«Artigo 5.º
Execução do pedido
O pedido deve indicar:

a) A autoridade que o formula;
b) A autoridade a quem é dirigido;
c) O objecto e as finalidades;
d) Qualquer outra informação que facilite o cumprimento do pedido;
e) A menção de confidencialidade, quando aplicável, de acordo com o Artigo 8.º.

2. O pedido deve ser feito por escrito e assinados e selados pela autoridade competente, excepto nos casos de urgência, em que pode ser transmitido oralmente desde que confirmados por escrito dentro de vinte e quatro horas;
3. Se a Parte requerida considerar que a informação contida no pedido não é suficiente para lhe dar cumprimento, pode solicitar o fornecimento de informação complementar.»
«Artigo 6.º
Recusa do pedido
1. O pedido pode ser total ou parcialmente recusado se a Parte requerida considerar que o seu cumprimento pode:

a) Prejudicar a sua soberania ou segurança, ou contrário ao seu direito ou outros interesses fundamentais;
b) Violar os direitos humanos;
c) Prejudicar qualquer investigação criminal ou processos pendentes no seu território;
d) Contrariar a legislação em vigor nos seus respectivos territórios.

2. A autoridade requerida notifica, rapidamente e por escrito, a autoridade requerente da recusa total ou parcial do pedido, indicando os respectivos fundamentos.»

O artigo 7.º contempla os aspectos referentes às informações confidenciais, documentos e dados pessoais, dispondo que:
«Artigo 7.º
Informações confidenciais, documentos e dados de natureza pessoal

1. As Partes deverão assegurar a confidencialidade da informação, dos documentos e dos dados de natureza pessoal recebidos, por escrito ou verbalmente, que visem alcançar a finalidade do presente Acordo, com base no disposto no presente Acordo e no direito internacional e no direito interno aplicável.
2. A Parte requerida notificará a Parte requerente sobre o facto de as informações concedidas na base do presente Acordo serem consideradas confidenciais, nos termos do direito internacional e do direito interno aplicável.
3. As informações confidenciais, os documentos e os dados de natureza pessoal recebidos pelas autoridades competentes das Partes, no âmbito do presente Acordo, não deverão ser transferidos a terceiros, a não ser após o prévio consentimento da Parte requerida e desde que sejam oferecidas garantias legais adequadas em matéria de protecção de dados pessoais, nos termos do direito internacional e do direito interno aplicável.

Por seu lado estabelece o artigo 8.º que:
«Artigo 8.º
Utilização e transferência de dados pessoais
1. Nos termos do direito internacional e do direito interno aplicável, os dados utilizados e transferidos no âmbito do presente Acordo devem:

a) Alcançar as finalidades explícitas do presente Acordo, não podendo em caso algum ser tratados de forma incompatível com essas finalidades em momento posterior;
b) Mostrar-se adequados, pertinentes e não excessivos relativamente às finalidades para que são recolhidos, transferidos e posteriormente tratados;
c) Estar exactos e, se necessário, actualizados, devendo ser tomadas todas as medidas razoáveis para assegurar que os dados inexactos ou incompletos, tendo em conta as finalidades para que foram recolhidos ou para que são tratados, posteriormente, sejam apagados ou rectificados;
d) Ser conservados de forma a permitir a identificação das pessoas em causa apenas durante o período necessário para a prossecução das finalidades para que foram recolhidos ou para que são tratados posteriormente, sendo eliminados posteriormente a esse período.

2. Se qualquer pessoa cujos dados são objecto de transferência requerer acesso aos mesmos, a Parte requerida deverá fornecer, directamente, o acesso a esses dados, bem como proceder à sua correcção, excepto quando esse pedido possa ser recusado nos termos do direito internacional e do direito interno aplicável.»

O Artigo 9.º versa sobre as «Despesas», dispondo que:

«1. A Parte requerida suporta as despesas ocasionadas no seu território com o cumprimento do pedido, à excepção das relacionadas com deslocações dos representantes da Parte requerente.
2. Se for manifesto que o cumprimento do pedido irá provocar despesas de carácter extraordinário, as Partes procederão a consultas para determinar os termos e condições ao abrigo dos quais a cooperação deve ser efectuada.
3. A deslocação de representantes das autoridades competentes da Parte requerente depende da prévia autorização da entidade competente da Parte requerida.»

Seguem-se as disposições que, habitualmente, figuram neste tipo de instrumentos: a língua de trabalho (inglesa), as relações com outras convenções internacionais, consultas, solução de controvérsias, alteração, entrada em vigor e denúncia e registo.

III

1. O fenómeno da criminalidade organizada, no quadro da «globalização», foi objecto de exame na Informação de que esta é complementar, onde, então, se retomaram as considerações tecidas, a esse propósito, na Informação-Parecer n.º 111/2003, de 3 de Março[4].

Como refere ANABELA MIRANDA RODRIGUES, aí citada:

«A criminologia destaca hoje “as redes difundidas internacionalmente, trabalhando a grande escala, com uma motivação essencialmente económica, e desenvolvendo relações simbióticas – isto é, identificando-se com a estrutura meio ambiental com a qual fazem corpo – que lhe asseguram uma certa imunidade”. Desta forma, por exemplo, “o mundo do tráfico ilícito de drogas ter-se-ia tornado um underground empire, com uma forte base política multinacional“ [...]»[5].

Os estudos mais recentes, prossegue a mesma Autora, «tendem sobretudo a colocar em evidência a acção de redes trabalhando em mercados criminais, onde grupos e indivíduos mais ou menos interligados oferecem e procuram a realização de acções criminais (-).

«Desta nova criminalidade da globalização, evidenciam-se as características da sua organização e internacionalização e o facto de ser uma criminalidade dos poderosos (-)»[6].

A propósito da característica da internacionalização, pondera a Autora que se vem citando:

«[...] se tradicionalmente as organizações criminosas desenvolviam a sua actividade a nível de um só Estado, a “expansão” e o “florescimento” deste tipo de criminalidade operou-se por via da sua internacionalização. A esta razão não foi alheia, desde logo, a globalização, designadamente, da economia. Esta nova criminalidade utiliza as lógicas e as potencialidades da globalização para a organização do crime, permitindo que grupos criminosos homogéneos “aproveitem as vantagens que oferece o novo espaço mundial, com a criação de zonas de comércio livre em algumas regiões do mundo, nas quais se produz uma permeabilização económica das fronteiras nacionais e se reduzem os controles” (x). Neste “mercado gigantesco” para que evolui a economia mundial, existe uma procura de bens proibidos que, agora por este motivo, o converte em idóneo para a proliferação de organizações criminosas. Para o satisfazer, surge um mercado de bens e serviços ilegais que coexiste com o mercado global. O crime adquiriu uma enorme capacidade de diversificação, organizando-se estrutural e economicamente para explorar campos tão diferentes quanto o jogo, o proxenetismo e a prostituição, o tráfico de pessoas, de droga, de armas ou de veículos ou o furto de obras de arte, aparecendo invariavelmente o branqueamento de capitais como complemento natural dessas actividades»[7].

«Neste quadro – prossegue a Autora – é evidente que os sistemas penais, individualmente considerados, são inoperantes para responder ao desafio da criminalidade. Torna-se cada vez mais imperioso recorrer, no âmbito punitivo, à cooperação internacional».

Ainda segundo a Autora que vimos acompanhando:

«A criação de grandes mercados económicos e a construção de espaços abertos entre Estados, com a livre circulação de mercadorias, de capitais e de serviços e, naturalmente, também de pessoas, são, sem mais, condições “óptimas” de desenvolvimento e expansão de uma criminalidade cujas características principais são exactamente a organização, o poder económico e a internacionalização.
Depois da criação de grandes mercados, a criminalidade já não pode ser tratada exclusivamente ao nível nacional. O terrorismo, o tráfico de seres humanos e os crimes contra as crianças, o tráfico ilícito de droga e o tráfico ilícito de armas, a corrupção e a fraude são problemas que afectam todos os Estados
É contra esta criminalidade que os Estados não estão em condições de lutar isoladamente, devendo conjugar esforços para a controlar (-)»[8].

Daí que a matéria de cooperação entre os Estados no combate à grande criminalidade organizada assuma hoje em dia a primeira linha das preocupações dos Estados democráticos[9].

Efectivamente, aquele tipo de crime deixou de estar confinado às fronteiras de cada um dos Estados, não só pela permeabilidade que em geral elas apresentam – mesmo quando a sua eliminação em relação à mobilidade das pessoas não é uma realidade –, mas sobretudo pela capacidade organizativa e o poder económico de que se revestem os que se dedicam a tal actividade criminosa.

Por isso, diversos instrumentos internacionais de carácter multilateral a nível mundial e regional vieram consagrar a cooperação internacional no combate à grande criminalidade.

Na verdade, «dadas as dimensões internacionais do crime organizado, é preciso elaborar urgentemente novos e eficazes acordos de cooperação, de âmbito mais global. A troca de informação entre os serviços competentes dos Estados membros é igualmente uma actividade importante que é preciso reforçar e desenvolver»[10].

A mesma preocupação presidiu à aprovação, pela Resolução nº 45/117 da Assembleia Geral das Nações Unidas, na 68ª Sessão Plenária, em 14 de Dezembro de 1990, do designado “Tratado Tipo de Auxílio Mútuo em Matéria Penal” destinado a servir de referência para os Estados interessados em negociar e celebrar acordos bilaterais que melhorem a cooperação em matéria de prevenção do crime e de justiça penal[11].

2. Portugal tem partilhado das preocupações da comunidade internacional, encontrando-se vinculado nesta matéria a diversos instrumentos de direito internacional, de carácter multilateral (firmados, sobretudo, no âmbito das Nações Unidas, do Conselho da Europa e da União Europeia), e de natureza bilateral[12].

Muito recentemente, foi publicado o Acordo entre a República Portuguesa e a Ucrânia no Domínio do Combate à Criminalidade, aprovado pela Resolução da assembleia da República n.º 75/2010 e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 77/2010, de 22 de Julho, que contém um conjunto de disposições de teor muito idêntico ao de algumas das que agora o Uzbequistão propõe.

De entre os instrumentos multilaterais ratificados pelo Estado Português, cumpre destacar, pela sua relevância perante o texto da Proposta de Acordo em exame, a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 5 de Novembro de 2003, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 19/2004, de 2 de Abril. Retenha-se a circunstância de a República do Uzbequistão ser também parte na mesma Convenção, desde 9 de Dezembro de 2003[13].

Nos termos do seu artigo 3.º, esta Convenção aplica-se às seguintes infracções criminais, sempre que sejam de natureza transnacional e envolvam um grupo criminoso organizado:

– Participação em grupo criminoso organizado;
– Branqueamento do produto do crime;
– Corrupção;
– Obstrução à justiça;
– Infracções graves, sendo como tal consideradas, aquelas a que corresponda uma pena privativa de liberdade não inferior a 4 anos, ou pena superior.

Por outro lado, para efeito de aplicação da Convenção, entende-se por grupo criminoso organizado «um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existindo durante um período de tempo e actuando concertadamente com a finalidade de cometer um ou mais crimes graves ou infracções estabelecidas na presente Convenção, com a intenção de obter, directa ou indirectamente, um benefício económico ou outro benefício material» [artigo 2.º, alínea a)].

Para os mesmos efeitos, a infracção terá caracter transnacional, nos termos do artigo 3.º, n.º 2, se:

a) For cometida em mais de um Estado;
b) For cometida num só Estado, mas uma parte substancial da sua preparação, planeamento, direcção, ou controlo tenha lugar noutro Estado;
c) For cometida num só Estado, mas envolva a participação de um grupo criminoso organizado que pratique actividades criminosas em mais de um Estado; ou
d) For cometida num só Estado, mas produza efeitos substanciais noutro Estado.

No artigo 18.º, sobre Auxílio judiciário, estabelece-se que «Os Estados Partes deverão prestar reciprocamente todo o auxílio judiciário possível no âmbito das investigações, processos e procedimentos judiciais relativos às infracções previstas pela presente Convenção...», prevendo-se no n.º 3:

«3 – O auxílio judiciário prestado em aplicação do presente artigo pode ser solicitado para os seguintes efeitos:

a) Recolha de testemunhos ou de depoimentos;
b) Notificação de actos judiciais;
c) Realização de buscas, apreensões e congelamentos;
d) Exame de objectos e de locais;
e) Fornecimento de informações, de elementos de prova e de pareceres de peritos;
f) Fornecimento de originais ou de cópias certificadas de documentos e de processos pertinentes, incluindo documentos administrativos, bancários, financeiros ou comerciais e documentos de empresas;
g) Identificação ou localização dos produtos do crime, bens, instrumentos ou outros elementos para fins probatórios;
h) Facilitação da comparência voluntária de pessoas no Estado Parte requerente;
i) Prestação de qualquer outro tipo de assistência compatível com o direito interno do Estado Parte requerido.»

O n.º 17 deste preceito estabelece o princípio de que «[q]ualquer pedido deverá ser executado em conformidade com o direito interno do Estado Parte requerido e, na medida em que não contrarie este direito e seja possível, em conformidade com os procedimentos naquele especificados».

O n.º 21 do mesmo preceito prevê os casos em que o auxílio judiciário pode ser recusado:

a) Se o pedido não for feito em conformidade com o disposto no presente artigo;
b) Se o Estado Parte requerido considerar que a execução do pedido é susceptível de pôr em causa a sua soberania, a sua segurança, a sua ordem pública ou outros interesses essenciais;
c) Se o direito interno do Estado Parte requerido proibir as suas autoridades de executarem as providências solicitadas numa infracção análoga que fosse objecto de uma investigação ou de um procedimento judicial no âmbito da sua própria competência;
d) Se a aceitação do pedido contrariar o sistema jurídico do Estado Parte requerido no que se refere ao auxílio judiciário.

Os preceitos seguintes dispõem sobre investigações conjuntas, técnicas especiais de investigação, transferência de processos penais, estabelecimento de antecedentes penais, protecção das testemunhas, assistência e protecção às vítimas, cooperação entre autoridades competentes para a aplicação da lei, recolha, intercâmbio e análise de informações sobre a natureza da criminalidade organizada, formação e assistência técnica, prevenção, etc.

Muito embora esta Convenção tenha um âmbito de aplicação delimitado, visto que se restringe a determinados tipos de crimes, e desde que assumam natureza transnacional e envolvam um grupo criminoso organizado[14], as disposições normativas que contempla devem ser consideradas na análise do articulado do Acordo que é proposto pela República do Uzbequistão, na parte que respeitar às infracções e situações que possam por ela ser abrangidas.

3. No direito interno, o regime da cooperação judiciária internacional em matéria penal encontra-se consagrado na Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto[15], vigorando os princípios da reciprocidade e da subordinação à protecção dos interesses da soberania, da segurança, da ordem pública e de outros interesses da República Portuguesa constitucionalmente definidos[16].

São contempladas as seguintes formas de cooperação: extradição, transmissão de processos penais, execução de sentenças penais, transferência de pessoas condenadas a penas e medidas de segurança privativas da liberdade, vigilância de pessoas condenadas ou libertadas condicionalmente, auxílio judiciário mútuo em matéria penal.

Por seu turno, o auxílio judiciário mútuo compreende a comunicação de informações, de actos processuais e de outros actos públicos admitidos pelo direito português, quando se afigurarem necessários à realização das finalidades do processo, bem como os actos necessários à apreensão ou à recuperação de instrumentos, objectos ou produtos da infracção» e compreende, nomeadamente:

a) A notificação de actos e entrega de documentos;
b) A obtenção de meios de prova;
c) As revistas, buscas, apreensões e perícias;
d) A notificação e audição de suspeitos, arguidos, testemunhas ou peritos;
e) O trânsito de pessoas;
f) As informações sobre o direito português ou estrangeiro e as relativas aos antecedentes penais de suspeitos, arguidos e condenados.

O Título IV deste diploma, referente ao «Auxílio judiciário mútuo em matéria penal» dispõe sobre o modo como deve ser solicitado e satisfeito o pedido de auxílio, o direito aplicável, a proibição de utilizar as informações obtidas, a confidencialidade, a tramitação processual, contendo normas específicas para as diversas modalidades de auxílio previstas.

IV

1. A parte introdutória da proposta de acordo – os considerandos – contém, como é de estilo em documentos do género, a enunciação dos princípios e compromissos geralmente assumidos na matéria.

Saliente-se que a cooperação a desenvolver ao abrigo da contraproposta do Acordo, agora em exame, deve ser realizada em conformidade com a lei interna das Partes, operando no combate a um conjunto de crimes elencados no artigo 2.º.

As actividades criminosas que constam dessa lista encontram correspondência no ordenamento jurídico-criminal português, embora, em alguns casos, sob diversa terminologia.

Elas já figuravam, aliás, na anterior proposta de Acordo, sendo de sublinhar que a presente contraproposta é muito mais rigorosa na enunciação e identificação dos crimes que se pretendem abranger por este instrumento de cooperação.

Eliminaram-se algumas das fórmulas demasiadamente genéricas e difusas que se assinalaram na anterior Informação.

Uma vez que o presente acordo visa estabelecer o regime jurídico aplicável à cooperação entre as Partes no domínio do combate à criminalidade (artigo 1.º), a sua denominação oficial poderia, numa fórmula mais simples, reflectir esse mesmo objectivo: o combate à criminalidade.

2. Uma observação que deve ser formulada tem que ver com a referência ao «separatismo» e ao «extremismo» contida no primeiro item do artigo 2.º. Trata-se de termos ambíguos, fortemente tributários de aspectos de natureza política, muitas vezes de carácter conjuntural, sem correspondência imediata em conceitos jurídicos sedimentados. Julga-se mais adequado que esse parágrafo referencie o terrorismo (para além do «terrorismo internacional»), bem como as organizações ou associações terroristas como tal definidas nos artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto (Lei de combate ao terrorismo).

Uma outra observação que se formula diz respeito à não inclusão das infracções tributárias e da corrupção, que, pela sua gravidade e frequência, bem poderiam ser abrangidas por este instrumento jurídico de cooperação, à semelhança do que sucede com outros instrumentos análogos[17].

Quanto às modalidades ou formas de cooperação (artigo 4.º), não se suscitam reparos, a não ser a utilidade na clarificação de certos segmentos do seu texto.

As demais disposições também não suscitam reparos, sendo que não ofendem princípios ou normas do ordenamento jurídico português.

A presente contraproposta revela um clausulado muito mais conciso e preciso do que a anterior proposta de Acordo, objecto de análise na informação-parecer n.º 18/2005. Está, além disso, muito mais próxima das disposições constantes em outros acordos bilaterais de cooperação no combate à criminalidade que vinculam Portugal, de que são exemplos os celebrados com a Federação da Rússia e com a Ucrânia, já referenciados.
V

Pelo exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1.ª - A contraproposta uzbeque do «Acordo de cooperação entre o Governo da República do Uzbequistão e o Governo da República Portuguesa no domínio do combate ao crime organizado, terrorismo e outros crimes de perigo elevado» não se apresenta em geral desconforme com o ordenamento jurídico português nos planos constitucional e infraconstitucional;

2.ª - O instrumento referido na conclusão anterior merece as considerações e observações constantes no ponto IV desta informação.







Lisboa, 30 de Dezembro de 2010

O Procurador-Geral Adjunto


(Manuel Pereira Augusto de Matos)






[1] Ofício n.º 3719, de 30 de Junho de 2009, e ofício n.º 6800, de 2 de Dezembro de 2010, remetido em aditamento àquele.
[2] Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, alterada pelas Leis n.os 2/90, de 20 de Janeiro, 23/92, de 20 de Agosto, 10/94, de 5 de Maio, 33-A/96, de 26 de Agosto, 60/98, de 27 de Agosto, que lhe introduziu a designação de Estatuto do Ministério Público, 42/2005, de 29 de Agosto, 67/2007, de 31 de Dezembro, 52/2008, de 28 de Agosto, e 37/2009, de 20 de Julho. A Lei n.º 60/98 foi rectificada pela Declaração de Rectificação n.º 20/98, de 2 de Novembro.
[3] A tradução dos trechos e disposições adiante registadas foi efectuada, unicamente para efeitos da análise jurídica deste instrumento, pelo próprio relator.
[4] Elaborada sobre a «Proposta de Acordo Bilateral entre Portugal e a Bulgária em matéria de Cooperação Policial».
[5] Globalização e Direito, “Criminalidade Organizada – Que Política Criminal?”, Studia Ivridica 73, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 196.
[6] Ibidem.
x Assim, I. BLANCO CORDERO e I. S. GARCIA DE PAZ, “ Principales instrumentos internacionales (de Naciones Unidas e la Unión Europea) relativos al crimen organizado: la definición de la participación en una organización criminal y los problemas de aplicación de la ley penal en el espacio”, Revista Penal, Universidad de Castilha – La Mancha, nº 6, p. 4.
[7] Ob. cit., p. 198.
[8] Ob. cit., p. 199.
[9] Como se sublinha na Informação-Parecer deste Conselho Consultivo n.º 10/97, de 17 de Julho de 1997, que, por momentos, se acompanha, elaborada sobre um «Projecto de Acordo de Cooperação em matéria de segurança entre o Governo da República Árabe do Egipto e o Governo da República Portuguesa».
[10] Trata-se de um dos “Princípios Orientadores” para a prevenção e repressão do crime organizado, sobre cooperação internacional, adoptados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, constantes da Compilação das Normas e Princípios das Nações Unidas em Matéria de Prevenção do Crime e de Justiça Penal, separata autónoma do Boletim Documentação e Direito Comparado, edição do Gabinete de Documentação e Direito Comparado – Procuradoria-Geral da República, Lisboa, 1995, pp. 63 a 69.
[11] Na convicção, lê-se num dos considerandos deste documento, «de que a celebração de acordos bilaterais e multilaterais de auxílio mútuo em matéria penal pode contribuir consideravelmente para o estabelecimento de uma cooperação internacional mais eficaz na luta contra na delinquência». Esta Resolução está incluída na Compilação das Normas e Princípios das Nações em Matéria de Prevenção do Crime e de Justiça Penal, referida na nota anterior, p. 95.
[12] Alguns desses instrumentos jurídicos estão referenciados na citada Informação-Parecer n.º 111/2003.
[13] V. http://www.unodc.org/unodc/en/crime_cicp_signatures_convention.html.
[14] Como se assinala no Parecer-Informação n.º 17/2005, de 24 de Outubro de 2005, elaborada sobre o Projecto de Acordo entre o Governo da Roménia e o Governo da República Portuguesa, com vista à cooperação no combate ao crime organizado, ao tráfico ilícito de droga e de substâncias psicotrópicas e precursores, ao terrorismo e a outros crimes graves.
[15] Alterada pelas Leis n.os 104/2001, de 25 de Agosto, 48/2003, de 22 de Agosto, 48/2007, de 29 de Agosto, e 115/2009, de 12 de Outubro.
[16] Acompanha-se, neste segmento da exposição, a citada Informação-Parecer n.º 17/2005.
[17] V. o citado Acordo de Cooperação entre Portugal e a Ucrânia (artigo 2.º). V. também o artigo 1.º do Acordo de Cooperação entre o Governo da República Portuguesa e o Governo da Federação da Rússia no Domínio do Combate à Criminalidade, assinado em Moscovo em 29 de Maio de 2000, aprovado pelo Decreto n.º 36/2001, de 14 de Setembro.