Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00003385
Parecer: I000302016
Nº do Documento: PPA31012017003000
Descritores: PROTECÇÃO DOS BENS CULTURAIS
CONFLITO ARMADO
REGIME DE PROTEÇÃO REFORÇADA
PATRIMÓNIO CULTURAL MUNDIAL
CRIME DE GUERRA
SEGUNDO PROTOCOLO
CONVENÇÃO
UNESCO
Área Temática:DIR INT PUBL / TRATADOS / DIR PENAL INT/ DIR PENAL
Ref. Pareceres:I0001462001
Legislação:CRP76 ART52 ART78 ; CP82 ART109 ART103 ; RAR 26/2000 DE 2000/03/30 ; DPR 13/2000 DE 2000/03/30; RAR 86/2004 DE 2004/12/30; L 13/85 DE 1985/07/06; L 107/2001 DE 2001/09/08; L 31/2004 DE 2004/07/22; L 100/2003 DE 2003/11/15 ART 46; L 30/2016 DE 2016/08/23
Direito Comunitário:REGULAMENTO 3911/92
Direito Internacional:CONV SOBRE PROTEÇÃO DA PROPRIEDADE CULTURAL DE HAIA 1954/05/14; REGUL EXECUÇÃO DA CONV IN AVISO 66/2001 IN DR 16/07/2001; PRIMEIRO PROTOCOLO À CONV PARA PROTEÇÃO DE BENS CULTURAIS EM CASO DE CONFLITO ARMADO;
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Texto Integral:


Senhor Ministro dos Negócios Estrangeiros,
Excelência:




1.


Foi solicitado à Procuradoria-Geral da República parecer sobre a conformidade jurídico-constitucional do Segundo Protocolo à Convenção para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, de acordo com a indicação constante do parecer emitido pelo Ministério da Justiça[1].

Cumpre, pois, emitir informação-parecer, ao abrigo das disposições conjugadas da alínea a) do artigo 37.º do Estatuto do Ministério Público e dos artigos 3.º e 14.º, n.º 2, do Regimento do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República[2].

2.


2.1. O instrumento jurídico em apreço é um Protocolo – o Segundo – relativo à Convenção para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (doravante Convenção), adotada na Haia, em 14 de maio de 1954, e, no que concerne a Portugal, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 26/2000, de 30 de março[3], e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 13/2000, de 30 de março[4], tendo sido depositado o respetivo instrumento de ratificação em 4 de agosto de 2000[5].

E não será despiciendo realçar aqui que a Convenção foi o primeiro diploma internacional no domínio da proteção do património cultural.

Recorde-se, também, que, além da Convenção, na mesma data, foi adotado o Regulamento de Execução da Convenção, cujo texto em português foi tornado público através do Aviso n.º 66/2001, de 16 de julho[6], e bem assim o Primeiro Protocolo à Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, aprovado, para adesão, pela Resolução da Assembleia da República n.º 86/2004, de 30 de dezembro[7] [8].

Já se salientou o papel pioneiro da Convenção, que é, aliás, considerada uma das mais importantes convenções da UNESCO[9].

Com efeito, a Convenção, como se pode ler na sua introdução, visa, «salvaguardar e assegurar o respeito pelos bens móveis ou imóveis que representem uma grande importância para o património cultural dos povos, qualquer que seja a sua origem ou o seu proprietário».

Mais se consignando ali que o respeito pelos bens protegidos se impõe tanto ao Estado onde eles se encontrem como aos seus adversários.

Elaborada no pós-2.ª Guerra Mundial, a Convenção, com o propósito de evitar graves danos nos bens culturais, como os ocorridos durante os últimos conflitos armados, procedeu à arquitetura de um regime de proteção de bens culturais, com a possibilidade de atribuição de proteção especial através da sua inscrição no Registo Internacional dos Bens Culturais sob Proteção Especial (cfr. n.º 6 do artigo 8.º).

A proteção geral dos bens culturais, definidos no artigo 1.º, comporta a sua salvaguarda e respeito nos termos dos artigos 2.º a 5.º

À proteção especial referem-se os artigos n.os 8.º a 11.º ( Capítulo II, com a epígrafe “Da proteção especial”).

E o transporte dos bens culturais é tratado nos artigos 12.º a 14.º

Interessa-nos, agora, recordar também o seu artigo 28.º [10]:
«Artigo 28.º
Sanções

As Altas Partes Contratantes obrigam-se a tomar, no quadro do seu sistema de direito penal, todas as medidas necessárias para que sejam encontradas e aplicadas as sanções penais e disciplinares às pessoas, qualquer que seja a sua nacionalidade, que cometeram ou deram ordem para cometer uma infração à presente Convenção.»

Como decorre da sua formulação, trata-se de uma norma de caráter aberto.

Já se aludiu ao Regulamento de Execução que, nos termos do artigo 20.º da Convenção, determina as modalidades da sua aplicação.

Assim, em matéria de proteção especial[11], releva, particularmente, o artigo 11.º relativo a refúgios improvisados e bem assim o artigo 12.º relativo ao Registo Internacional dos Bens Culturais sob Proteção Especial.

Por sua vez, o Primeiro Protocolo à Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado proíbe aos Estados Contratantes a exportação de bens culturais dos territórios por si ocupados[12] e obriga à restituição dos bens, que tenham sido exportados, às autoridades competentes do território ocupado no fim das hostilidades[13], devendo, nos termos da alínea a) do § 11, os Estados Partes no Protocolo tomar todas as medidas requeridas para a sua aplicação efetiva num prazo de seis meses.

E tendo sido reconhecida a necessidade de melhorar a proteção dos bens culturais em caso de conflito armado e de complementar a Convenção mediante medidas que reforcem a sua aplicação[14], veio a ser adotado, em 26 de março, de 1999, o Segundo Protocolo à Convenção para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, que deve ser objeto da nossa apreciação.


2.2. O Segundo Protocolo à Convenção para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (doravante Segundo Protocolo) apresenta-se, assim, como o instrumento mais aprofundado e inovatório no domínio da proteção jurídica dos bens culturais em caso de conflito armado.

Introduziu o estatuto de proteção reforçada e estabeleceu um regime de sanções mais aperfeiçoado, como veremos adiante.

O Segundo Protocolo encontra-se estruturado em nove capítulos, a saber:

● Capítulo I – Introdução (artigos 1.º a 4.º);
● Capítulo II – Disposições gerais respeitantes à proteção (artigos 5.º a 9.º);
● Capítulo III – Da proteção reforçada (artigos 10.º a 14.º);
● Capítulo IV – Da responsabilidade criminal e jurisdição (artigos 15.º a 21.º);
● Capítulo V – Da proteção dos bens culturais em conflitos armados de caráter não internacional (artigo 22.º);
● Capítulo VI – Das questões institucionais (artigos 23.º a 29.º);
● Capítulo VII – Da difusão de informação e auxílio internacional (artigos 30.º a 33.º);
● Capítulo VIII - Da execução do presente Protocolo (artigos 34.º a 38.º);
●Capítulo IX – Cláusulas finais (artigos 39.º a 47.º).

Nos termos do seu artigo 2.º, o Segundo Protocolo complementa a Convenção nas relações entre as Partes.

E, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 3.º[15], para além das disposições que serão aplicadas em tempo de paz, o Segundo Protocolo será aplicado:

– Em caso de guerra declarada ou de qualquer outro conflito armado que surja entre as duas ou mais das Altas Partes Contratantes, mesmo se o estado de guerra não for reconhecido por uma ou mais Partes;
– Em todos os casos de ocupação total ou parcial do território de uma Alta Parte Contratante, mesmo se essa ocupação não encontrar nenhuma resistência militar;
– Em caso de conflito armado que não apresente um caráter internacional e que deflagre no território de uma das Partes.

Esta última situação foi, precisamente introduzida pelo Segundo Protocolo (cfr. n.º 1 do artigo 22.º).

3.


3.1. A apreciação da conformidade constitucional e legal de qualquer convenção tem como pressuposto a resolução do problema da posição relativa do direito internacional público recebido na ordem interna em face das normas constitucionais e da lei ordinária[16].

3.1.1. No que tange à relação com o ordenamento constitucional, são conhecidas diferentes opiniões sobre a questão na doutrina portuguesa.

A posição de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, que se pode já considerar clássica na matéria, vai no sentido da primazia da Constituição, quer quanto ao direito internacional geral ou comum, quer quanto ao direito internacional convencional[17].

Por sua vez, Jorge Miranda, no seu Manual de Direito Constitucional[18], veio considerar terem valor constitucional os princípios, considerados de direito internacional geral ou comum, enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, por via da receção formal operada pelo artigo 16.º, n.º 2, da Constituição. Posteriormente, o autor passa a sustentar o valor supraconstitucional do jus cogens, no qual inclui determinados princípios consagrados na referida Declaração Universal (sem prejuízo de continuar a atribuir valor constitucional aos demais princípios dessa Declaração não pertencentes ao jus cogens), ao mesmo tempo que admite hesitar quanto a reconhecer grau constitucional ou infraconstitucional aos restantes princípios de direito internacional geral ou comum. Em todo o caso, confere caráter infraconstitucional ao direito internacional convencional[19].

Na doutrina jusinternacionatista, posicionam-se em sentido algo diverso André Gonçalves Pereira e Fausto de Quadros[20], atribuindo grau supraconstitucional, quer ao direito internacional geral ou comum (i.e., costumeiro), quer ao direito internacional convencional particular relativo à matéria de direitos humanos, pelo que apenas terá caráter infraconstitucional o restante direito internacional convencional particular.

Também Eduardo Correia Batista[21] sustenta o valor supraconstitucional do direito internacional costumeiro, mas apenas quanto ao seu segmento imperativo (ou jus cogens), considerando ser já infraconstitucional o direito internacional costumeiro dispositivo.

3.1.2. Quanto à relação com a lei ordinária, tem prevalecido na nossa doutrina o entendimento de que o direito internacional (quer o comum, quer o de fonte convencional) se situa num plano superior ao do direito de fonte interna[22].


3.2. Nesta conformidade, uma apreciação de legalidade lato sensu de uma convenção internacional defronta-se necessariamente com uma posição de superioridade da Constituição da República Portuguesa, que faz prevalecer esta sobre a fonte convencional, pelo que a existência de uma incompatibilidade é impeditiva da receção daquela convenção na ordem interna.

Por outro lado, a primazia do direito internacional convencional sobre o direito ordinário interno impõe, em caso de desconformidade normativa entre esses dois planos, uma adaptação da legislação nacional às soluções do concreto direito internacional convencional em causa[23].


3.3. É dentro destes parâmetros que nos vamos movimentar.

4.


Cabe agora proceder a uma análise um pouco mais detalhada do articulado do Segundo Protocolo.


4.1. Antes de se prosseguir, dado que, para os efeitos do Segundo Protocolo, bens culturais são os como tal definidos pelo artigo 1º da Convenção[24], importa recordar o texto deste preceito:
«Artigo 1.º

Definição de bens culturais

Para fins da presente Convenção são considerados como bens culturais, qualquer que seja a sua origem ou o seu proprietário:

a) Os bens, móveis ou imóveis, que apresentem uma grande importância para o património cultural dos povos, tais como os monumentos de arquitetura, de arte ou história, religiosos ou laicos, ou sítios arqueológicos, os conjuntos de construções que apresentem um interesse histórico ou artístico, as obras de arte, os manuscritos, livros e outros objetos de interesse artístico, histórico ou arqueológico, assim como as coleções científicas e as importantes coleções de livros, de arquivos ou de reprodução dos bens acima definidos;
b) Os edifícios cujo objetivo principal e efetivo seja, de conservar ou de expor os bens culturais móveis definidos na alínea a), como são os museus, as grandes bibliotecas, os depósitos de arquivos e ainda os refúgios destinados a abrigar os bens culturais móveis definidos na alínea a) em caso de conflito armado;
c) Os centros que compreendam um número considerável de bens culturais que são definidos nas alíneas a) e b), os chamados “centros monumentais”.»


4.2. Conforme já se aludiu, o Segundo Protocolo, no que concerne a proteção, contém disposições gerais (Capítulo 2) e disposições atinentes à proteção reforçada (Capítulo 3), figura que introduziu.

Destarte, logo, no artigo 4.º estabelece a relação entre o Capítulo 3 e outras disposições da Convenção e do Protocolo:
«Artigo 4.º

Relação entre o Capítulo 3 e outras disposições da Convenção e do Protocolo
A aplicação das disposições do Capítulo 3 do presente Protocolo não obsta à:

(a) aplicação das disposições do Capítulo I da Convenção e do Capítulo 2 do presente Protocolo;
(b) aplicação das disposições do Capítulo II da Convenção; contudo, apenas são aplicadas as disposições da proteção otimizada nos casos em que, entre Partes no presente Protocolo ou entre uma Parte e um Estado que aceite e aplique o presente Protocolo, em conformidade com o artigo 3.º, parágrafo 2, tenha sido concedido aos bens culturais uma proteção especial assim como uma proteção reforçada.»

Nestes termos, podemos considerar três estatutos de proteção dos bens culturais: proteção geral, proteção especial e proteção reforçada.


4.3. Relativamente à proteção geral será pertinente olhar para o desenvolvimento que o Segundo Protocolo fez no Capítulo 2, que a seguir se reproduz:

«Capítulo 2

Disposições gerais respeitantes à proteção
Artigo 5.º

Salvaguarda dos bens culturais

Medidas prévias tomadas em tempo de paz para a salvaguarda dos bens culturais contra os efeitos previsíveis de um conflito armado, de acordo com o artigo 3.º da Convenção, incluirão, conforme apropriado, a preparação de inventários, o planeamento de medidas de emergência para a proteção contra o fogo ou contra o colapso estrutural, a preparação da deslocação de bens culturais móveis ou a disposição para uma proteção in situ adequada de tais bens culturais e a nomeação das autoridades competentes responsáveis pela salvaguarda dos bens culturais.
Artigo 6.º

Respeito pelos bens culturais

Com o propósito de assegurar o respeito pelos bens culturais em conformidade com o artigo 4.º da Convenção:

(a) uma derrogação com base numa necessidade militar imperativa de acordo com o artigo 4.º, parágrafo 2 da Convenção só pode ser invocada com o intuito de dirigir um ato de hostilidade contra os bens culturais quando e enquanto:

i. esse bem cultural estiver, em virtude da sua função, transformado num objetivo militar; e
ii. não existir qualquer medida exequível disponível para obter uma vantagem militar semelhante à oferecida pelo ato de dirigir um ato de hostilidade contra esse objetivo;

(b) uma derrogação com base numa necessidade militar imperativa de acordo com o artigo 4.º, parágrafo 2 da Convenção só pode ser invocada para a utilização de bens culturais para fins que poderiam expôr esses bens a uma possível destruição ou deterioração quando e enquanto não houver uma escolha possível entre essa utilização dos bens culturais e um outro método exequível para a obtenção de uma vantagem militar semelhante;

(c) a decisão de invocar uma necessidade mititar imperativa será apenas tomada por um chefe de uma formação igual ou superior em importância a uma divisão ou por um chefe de uma formação inferior em importância a uma divisão, quando circunstâncias não permitirem de outro modo;

(d) no caso de um ataque baseado numa decisão tomada em conformidade com a alínea (a), uma advertência prévia eficaz será dada sempre que as circunstâncias o permitirem.
Artigo 7.º

Precauções em caso de ataque

Sem prejuízo de outras precauções exigidas pelo direito internacional humanitário na condução de operações militares, cada Parte no conflito:

(a) fará tudo o que for exequível para verificar que os objetivos a serem atacados não são bens culturais protegidos em virtude do artigo 4.º da Convenção;
(b) tomará todas as precauções exequíveis na escolha de meios e métodos de ataque com vista a evitar e, em qualquer caso, a minimizar uma deterioração ocasional em relação aos bens culturais protegidos em virtude do artigo 4.º da convenção;
(c) abster-se-á de dírigir o lançamento de qualquer ataque que possa causar uma deterioração ocasional em relação aos bens culturais protegidos em virtude do artigo 4.º da Convenção que seria considerado excessivo em relação à vantagem militar concreta e direta antecipada; e
(d) cancelará ou suspenderá um ataque se se tornar manifesto que:

(i) o objetivo é um bem cultural protegido em virtude do artigo 4.º da Convenção;

(ii) o ataque pode causar uma deterioração ocasional em relação aos bens culturais protegidos em virtude do artigo 4.º da convenção que seriam considerados excessivos em relação à vantagem militar concreta e direta antecipada.
Artigo 8.º

Precauções contra os efeitos das hostilidades

As Partes no conflito, o mais amplamente possível:

(a) deslocarão os bens culturais móveis da proximidade de objetivos militares ou providenciarão pela proteção in situ adequada;
(b) evitarão a colocação de objetivos militares na proximidade de bens culturais.
Artigo 9.º

Proteção dos bens culturais em territórios ocupados
1. Sem prejuízo das disposições dos artigos 4.º e 5.º da Convenção, uma Parte que ocupa total ou parcialmente o território de uma outra Parte deve proibir e prevenir em relação ao território ocupado:

(a) qualquer exportação ilícita, outra deslocação ou transferência de proprietário dos bens culturais;
(b) qualquer escavação arqueológica, excetuando-se os casos em que esta for estritamente necessária para salvaguardar, registar ou preservar bens culturais;
(c) qualquer alteração aos bens culturais ou uso diverso dos bens culturais que pretende ocultar ou destruir provas culturais, históricas ou científicas.

2. Qualquer escavação arqueológica, alteração ou uso diverso dos bens culturais em territórios ocupados, salvo se as circunstâncias não o permitirem, serão efetuados em estreita cooperação com as autoridades nacionais competentes do território ocutado.»

Do exame das normas do Capítulo 2, verifica-se, pois, uma maior exigência.

Assim, no que respeita à salvaguarda dos bens culturais, procedeu-se a uma explicitação das medidas a tomar (cfr. artigo 5.º), o que não acontecia no artigo 3.º da Convenção.

Foram também definidas precauções em caso de ataque (cfr. artigo 7.º) e precauções contra os efeitos das hostilidades (cfr. artigo 8.º).

E foi alargada a proteção dos bens culturais em territórios ocupados para além do disposto nos artigos 4.º e 5.º da Convenção (cfr. artigo 9.º).


4.4. Quanto à proteção reforçada, no Capítulo 3 estabelece-se o seguinte:


«Capítulo 3 Da proteção reforçada
Artigo 10.º

Proteção reforçada

Os bens culturais podem ser colocados sob proteção reforçada desde que preencham os três requisitos seguintes:

(a) sejam património cultural da maior importância para a humanidade;
(b) estejam protegidos por medidas internas legais e administrativas adequadas que reconheçam o seu valor cultural e histórico excecional e que asseguram o mais alto nível de proteção;
(c) não sejam utilizados para fins militares ou para proteger locais militares e se uma declaração tiver sido feita pela Parte que tem controlo sob os bens culturais, confirmando que estes não serão utilizados para esses efeitos.
Artigo 11.º

Concessão de proteção reforçada

1. Cada uma das Partes deve submeter ao Comité uma lista dos bens culturais em relação aos quais pretende solicitar a concessão de proteção reforçada.
2. A parte que tem jurisdição ou controlo sob os bens culturais pode solicitar que estes sejam incluídos na Lista a ser elaborada em conformidade com o artigo 27.º, alínea 1 (b). Este pedido inclui todas as informações necessárias relativas aos critérios mencionados no artigo 10.º O Comité pode convidar uma Parte a solicitar que os bens culturais sejam incluídos na Lista.
3. Outras Partes, o “International committee of the Blue Shield" e outras organizações não governamentais especializadas podem recomendar bens culturais específicos ao Comité. Nesses casos, o Comité pode decidir convidar uma Parte a solicitar a inclusão desses bens culturais na Lista.
4. Nem o pedido para a inclusão dos bens culturais situados num território, sobre os quais seja reclamada soberania ou jurisdição por mais de um Estado, nem a inclusão destes bens culturais deve em caso algum prejudicar os direitos das Partes no litígio.
5. O Comité, após a receção de um pedido de inclusão na Lista, informará todas as Partes do mesmo. As partes podem submerer ao Comité objeções fundamentadas relativamente a esse pedido num prazo de seis dias. Essas objeções fundamentadas só serão feitas com base nos critérios mencionados no artigo 10.º. Elas serão específicas e relativas aos factos. O Comité pondera sobre as objeções fundamentadas dando à Parte que solicitou a inclusão uma oportunidade razoável para responder antes de tomar a decisão. Quando tais objeções fundamentadas são apresentadas perante o Comité, as decisões quanto à inclusão na Lista serão tomadas, não obstante o disposto no artigo 26.º, por uma maiora de quatro quintos dos seus membros presentes e votantes.
6. Ao decidir sobre um pedido, o Comité solicitará o parecer de organizações governamentais e não governamentais assim como junto de peritos individuais.
7. Uma decisão para conceder ou negar proteção reforçada só poderá ser tomada segundo os critérios previstos no artigo 10.º
8. Em casos excecionais, quando o Comité tiver concluído que a Parte que solicita a inclusão dos bens culturais na Lista não pode satisfazer os critérios do artigo 10.º, alínea (b), o comité pode decidir conceder a proteção reforçada desde que a Parte requerente apresente um pedido de auxílio internacional, nos termos do artigo 32.º
9. Aquando do romper das hostilidades, uma Parte no conflito pode solicitar, em caso de emergência, a proteção reforçada dos bens culturais sob a sua jurisdição ou controlo mediante uma comunicação desse pedido ao Comité. O Comité transmitirá esse pedido de imediato a todas as Partes no conflito. Nesses casos, o comité tomará em consideração as observações fundamentadas das partes interessadas o mais breve possível. A decisão de conceder proteção reforçada provisória será tomada assim que possível e, não obstante o disposto no artígo 26.º, por uma maioria de quatro quintos dos seus membros presentes e votantes. o Comité pode conceder proteção reforçada provisória na pendência dos resultados do procedimento usual para a concessão de proteção reforçada desde que as disposições do artigo 10.º, alíneas (a) e (c) estejam preenchidas.
10. A proteção reforçada será concedida aos bens culturais pelo Comité desde o momento da sua inscrição na Lista.
11. O Diretor-Geral remeterá, sem demora, ao Secretário-‑Geral das Nações unidas e a todas as Partes uma notificação de qualquer decisão do Comité em incluir bens culturais na Lista.
Artigo 12.º

Imunidade dos bens culturais sob proteção reforçada
As Partes num conflito assegurarão a imunidade dos bens culturais sob proteção reforçada através da interdição de tornar tais bens objeto de um ataque e de qualquer utilização dos mesmos ou dos seus acessos imediatos em apoio a uma ação milítar.
Artigo 13.º

Perda de proteção reforçada

1. Os bens culturais sob proteção reforçada perderão tal proteção apenas se:

(a) tal proteção for suspensa ou cancelada em conformidade com o artigo 14.º. ou
(b) e, durante o tempo em que os bens culturais, em virtude da sua utilização, estiverem transformados em objetivos militares.

2. Nas circunstâncias prevístas na alínea 1 (b), tais bens culturais só podem ser objeto de um ataque se:

(a) o ataque for o único meio exequível de pôr termo à utilização dos bens culturais referida na alínea 1 (b);
(b) todas as precauções exequíveis sejam tomadas na escolha dos meios e métodos de ataque com vista a pôr termo a tal utilização e a evitar ou, em todo o caso, a minimizar a deterioração dos bens culturais;
(c) a não ser que as circunstâncias não o permitam devido a exígências de legítima defesa imediatas:

(i) o ataque seja ordenado pelo mais alto nível uma operacional de comando;
(ii) uma advertência prévia eficaz é dada às forças contrárias que exigem o fim da utilização referida na alínea 1 (b);e
(iii) seja dado às forças contrárias um tempo razoável para remediarem a situação.
Artigo 14.º

Suspensão e cancelamento da proteção reforçada

1. Quando os bens culturais já não preencherem nenhumdos critérios previstos no artigo 10.º do presente Protocolo, o Comité pode suspender o seu estatuto de proteção reforçada ou cancelar esse estatuto retirando esses bens culturais da Lista.
2. No caso de uma violação grave ao artigo 12.º em relação aos bens culturais que surja da sua utilização em apoio a uma ação militar, o Comité pode suspender o seu estatuto de proteção reforçada. Quando tais violações forem contínuas, o Comité pode excecionalmente cancelar o estatuto de proteção proteção reforçada retirando os bens culturais da Lista.
3. O Diretor-Geral remeterá, sem demora, ao Secretário-Geral das Nações Unidas e a todas as Partes no presente Protocolo uma notificação de qualquer decisão do Comité em suspender ou cancelar a proteção reforçada dos bens culturais.
4. Antes de tomar tal decisão, o Comité assegurará uma oportunidade às Partes para que estas deem a conhecer os seus pontos de vista.»

Neste Capítulo foi, assim, desenhado um modelo de proteção mais elevado para o património cultural da maior importância para a humanidade.


4.5. Merece-nos também particular atenção a matéria do Capítulo 4, desde logo, o artigo 15.º que prescreve:
«Artigo 15.º

Graves violações ao presente Protocolo

1. Qualquer, pessoa comete uma infração nos termos do presente Protocolo se essa pessoa cometer de forma intencional e em violação à Convenção ou ao presente Protocolo qualquer dos seguintes atos:

(a) tornar os bens culturais sob proteção reforçada objeto de um ataque;
(b) utilizar os bens culturais sob proteção reforçada ou os seus acessos imediatos em apoio a uma ação militar;
(c) destruição importante ou apropriação dos bens culturais protegidos nos termos da Convenção e do presente Protocolo;
(d) tornar os bens culturais protegidos nos termos da Convenção e do presente Protocolo objeto de um ataque;
(e) roubo, pilhagem ou desvio dos bens culturais ou atos de vandalismo contra os bens culturais protegidos, nos termos da Convenção.

2. Cada Parte adotará as medidas necessárias para considerar como infração penal, nos termos do seu direito interno, as infrações previstas no presente artigo e puni-las através de sanções apropriadas. Ao fazê-lo, as Partes observarão os princípios gerais do direito e do direito internacional incluindo as normas que estendem a responsabilidade criminal individual a pessoas que não cometerem diretamente o ato.»

Este artigo prevê, pois, cinco infrações consideradas graves violações.

E deve salientar-se aqui que o n.º 2 do artigo 15.º impõe a criminalização daquelas infrações.

Por sua vez, o artigo 16.º [25] refere-se às medidas legislativas necessárias para cada Parte estabelecer a sua jurisdição em relação às infrações previstas no artigo 15.º, impondo no caso das infrações previstas nas alíneas a), b) e c) do n.º 1 o princípio da universalidade.

Deve de seguida mencionar-se o artigo 21.º [26], com a epígrafe “Medidas relativas a outras violações”, que estabelece que, sem prejuízo do disposto no artigo 28.º da Convenção, a que nos referimos já supra, cada Parte adotará as medidas legislativas, administrativas ou disciplinares necessárias para fazer cessar[27] os seguintes atos quando cometidos intencionalmente:

– qualquer utilização dos bens culturais em violação à Convenção ao Protocolo;
– qualquer exportação ilícita, outra deslocação ou transferência de proprietário dos bens culturais do território ocupado em violação à Convenção ou ao Protocolo.

Portanto, ao já previsto no artigo 28.º da Convenção, acrescenta o Segundo Protocolo a obrigação de adotar medidas relativamente aos dois tipos de atos que enuncia no artigo 21.º

5.


5.1. Aqui chegados, importa convocar, em alguma medida, o nosso ordenamento jurídico-constitucional vigente.

Recorde-se, ainda, que o conceito de património cultural surge na Constituição de 1976, contudo o legislador constituinte não terá sido significativamente sensível à problemática da defesa do patrimonio cultural, inserindo tão-somente uma norma de preservação, defesa e valorização do património cultural (artigo 78.º [28]).

É a primeira revisão constitucional[29], em 1982, que elevará a proteção e a valorizaçáo do património cultural a "tarefa fundamental do Estado", aliás, a par da defesa da natureza e do ambiente e da preservação dos recursos naturais[30] [alínea e) do artigo 9.º], e apresentará um novo artigo 78.º [31], sobre fruição e criação cultural, mais abrangente e com direitos e deveres relativos ao patrimonio.

E na segunda revisão constitucional[32] a defesa do património cultural será mesmo incluída no normativo sobre a “ação popular” (artigo 52.º, n.º 3[33]), eliminando-se o n.º 3 do artigo 78.º, que consagrava uma formulação mais mitigada.

A introdução de pleno dos direitos culturais no contexto constitucional tem convocado a designação de “Constituição cultural”[34].


5.2. Recorde-se também que foi a Lei n.º 13/85, de 6 de julho, designada por Lei do Património Cultural (LPC), que consolidou a noção de património cultural, revelando uma conceção abrangente.

À Lei n.º 13/85 viria a suceder-lhe a Lei n.º 107/2001, de 8 setembro, que estabelece as bases da política e do regime de proteção e valorização do património cultural (atual LPC) apresentando-se, portanto mais ambiciosa[35]. Como escreve Casalta Nabais, «[d]e um lado, não é apenas uma lei de bases do regime jurídico do património cultural, mas também, e antes de mais, uma lei de bases da política do património cultural. Do outro lado, procura conter as bases do regime não apenas da proteção mas igualmente da valorização dos bens culturais»[36].

O n.º 2 do artigo 1.º explicita que «[a] politica do património cultural integra ações promovidas pelo Estado, pela Regiões Autónomas, pelas autarquias locais e pela restante Administração Pública, visando assegurar, no território português, a efetivação do direito à cultura e à fruição cultural e a realização dos demais valores e das tarefas e vinculações impostas, neste domínio, pela Constituição e pelo direito Internacional». Não se esqueceu aqui a remissão para o direito internacional, ao contrário do que acontecia com a 1.ª LPC, como aliás, ocorrerá noutros pontos do diploma.

Nos termos do n.º 1 do artigo 2.º, «integram o património cultural todos os bens que, sendo testemunhos com valor de civilização ou de cultura portadores de interesse cultural relevante, devam ser objeto de especial proteção e valorização».

«O interesse cultural relevante, designadamente histórico, paleontológico, arqueológico, arquitetónico, linguístico, documental, artístico, etnográfico, cientifico, social, industrial ou técnico, dos bens que integram o património cultural refletirá valores de memória, antiguidade, autenticidade, originalidade, raridade, singularidade ou exemplaridade» (n.º 3 do artigo 2.º).

E «[c]onstituem ainda, património cultural quaisquer outros bens que como tal sejam considerados por força de convenções internacionais que vinculem o Estado Português, pelo menos para os efeitos nelas previstos» (n.º 5 do artigo 2.º).

No n.º 1 do artigo 14.º definem-se bens culturais e no n.º 1 do artigo 16.º estabelece-se que a proteção legal dos bens culturais assenta na classificação e na inventariação.

Na economia da presente informação interessa destacar o Título XI (“Da tutela penal e contraordenacional”), em especial o seu Capítulo I (artigos 100.º a 103.º), com a epígrafe “Da tutela penal”,

De acordo com o disposto no artigo 100.º, aos crimes praticados contra bens culturais aplicam-se as disposições previstas no Código Penal, com as especialidades constantes da Lei n.º 107/2001.

E preveem-se três crimes: o crime de deslocamento (artigo 101.º [37]), o crime de exportação ilícita (artigo 102.º [38]) e o crime de destruição de vestígios (artigo 103.º [39]).

Quanto à norma que prevê o crime de exportação ilícita, como refere Paulo de Sousa Mendes[40], «dá cumprimento aos compromissos internacionais do Estado português assumidos com a adesão às convenções da UNESCO de 1970 e da UNIDROIT de 1995, no que respeita ao controlo da exportação de bens culturais e aos procedimentos de restituição em caso de exportação ilícita e furto ou roubo, cumprindo-se ainda, no tocante ao direito comunitário (agora direito da União Europeia), o Regulamento n.º 3911/92 (alterado em 1996 e 2001)»[41].

E os tipos de crime de deslocamento e de destruição de vestígios, como também refere aquele Autor, «dão corpo aos compromissos internacionais do Estado português decorrentes da adesão à Convenção Europeia para a Proteção do Património Arqueológico, do Conselho da Europa, assinada em Londres, em 1969, e revista em La Valetta, em 1992»[42].


5.3. Sublinhe-se que, pese embora a referência na Lei do Património Cultural ao Código Penal, em matéria de património cultural, as previsões ali contidas são muito escassas.

Com efeito, para além de eventual aplicação, por exemplo, das normas sobre furto qualificado (artigo 204.º) ou dano qualificado (artigo 213.º), o artigo 242.º [43], relativo à “Destruição de monumentos”, foi revogado pela Lei n.º 31/2004, de 22 de julho, que adaptou a legislação penal portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional, tipificando as condutas que constituem crimes de violação do direito internacional humanitário, e a que nos vamos referir de seguida.


5.4. A Lei n.º 31/2004, de 22 de julho, com efeito, aprovou a lei penal relativa às violações do direito internacional humanitário[44].

E, de entre os crimes aqui previstos cabe fazer ressaltar os crimes de guerra contra a propriedade a que se reporta o artigo 15.º:
«Artigo 15.º
Crimes de guerra contra a propriedade
Quem, no quadro de um conflito armado internacional ou no quadro de um conflito armado de caráter não internacional:

a) Subtrair, destruir ou danificar bens patrimoniais em larga escala ou de grande valor, sem necessidade militar ou de forma ilegal e arbitrária;
b) Atacar, destruir ou danificar edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos culturais ou históricos, sítios arqueológicos, hospitais e lugares onde se agrupem doentes e feridos, sempre que não se trate de objetivos militares;
c) Saquear uma cidade ou uma localidade, mesmo quando tomada de assalto;

é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.»

Sem prejuízo, naturalmente, de serem considerados outros tipos legais de crime como previstos nas alíneas b) e c) do artigo 11.º (“Crimes de guerra por utilização de métodos de guerra proibidos”), isto é:

Quem, no quadro de um conflito armado de caráter internacional ou conflito armado de caráter não internacional, atacar bens civis, ou seja, bens que não sejam objetivos militares, ou atacar, por qualquer meio, aglomerados populacionais, habitações ou edifícios que não estejam defendidos e que não sejam objetivos militares.


5.5. Ora, apesar da relevância da Lei acabada de mencionar, não será despiciendo referir também o Código de Justiça Militar (CJM), aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de novembro[45].

Assim, no domínio dos crimes de guerra, o artigo 46.º do CJM prescreve:
«Artigo 46.º
Crimes de guerra contra o património

Aquele que, sendo português, estrangeiro ou apátrida residindo ou encontrando-se em Portugal, ou contra essas pessoas, em tempo de guerra:

a) Subtrair, destruir ou danificar bens patrimoniais em larga escala ou de grande valor, sem necessidade militar e de forma ilegal e arbitrária;
b) Atacar, destruindo ou danificando, edifícios consagrados ao culto religioso, à educação, às artes, às ciências ou à beneficência, monumentos culturais ou históricos, sítios arqueológicos, sempre que não se trate de objetivos militares;
c) Saquear um local ou aglomerado populacional, mesmo quando tomados de assalto;

é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.»

E pode também ser de considerar outras normas, como as constantes das alíneas b) e c) do artigo 42.º [46].

Aliás, nota-se o paralelismo entre as previsões dos crimes militares acabados de referir e dos citados crimes da Lei penal aprovada pela Lei n.º 31/2004.


5.6. Merece-nos, ainda, referência, apesar do seu âmbito europeu, a recente Lei n.º 30/2016, de 23 de agosto, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva 2014/60/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, e que estabelece o regime da restituição de bens culturais que tenham saído ilicitamente do território de um Estado membro da União Europeia[47].

6.


6.1. Do que se vem de explanar[48], afigura-se-nos que o Segundo Protocolo à Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, agora em apreço, não suscita qualquer problema de compatibilidade com normas constitucionais ou infraconstitucionais.

E, tratando-se, como se realçou, do instrumento jurídico mais aprofundado e inovatário no domínio da proteção jurídica dos bens culturais em caso de conflito armado, haverá, aliás, toto o interesse na sua adesão.


6.2. Há, todavia, principalmente, um aspeto que nos parece merecer, ainda, alguma reflexão.

Como vimos, o Segundo Protocolo introduziu um regime de proteção reforçada dos bens culturais, gozando os bens que integrem a Lista dos Bens Culturais sob Proteção Reforçada de imunidade nos termos dos artigo 12.º

Em sintonia, ao prever no artigo 15.º as infrações consideradas graves violações, enunciou nas alíneas a) e b) do n.º 1 atos atinentes aos bens culturais sob proteção reforçada.

Recorde-se: tornar os bens culturais sob proteção reforçada objeto de um ataque [alínea a)]; e utilizar os bens culturais sob proteção reforçada ou os seus acessos imediatos em apoio a uma ação militar [alínea b)].

E, conforme se assinalou supra[49], o n.º 2 do artigo 15.º impõe à Partes a criminalização das infrações previstas no n.º 1.

Ora, do traçado, conquanto não exaustivo, que fizemos do direito interno, além de se constatar as dispersão normativa da tutela penal dos bens culturais, verificamos, no que neste momento nos interessa, que as normas acima citadas da Lei n.º 31/2004[50], de 22 de julho – o artigo 15.º e as alíneas b) e c) do artigo 11.º –, e do Código de Justiça Militar[51] – artigo 46.º e alíneas b) e c) do artigo 42.º – não consideram especificamente os atos relativos a bens culturais sob proteção reforçada, de acordo com o regime desenhado no Segundo Protocolo.

E acrescente-se, nem tinham de o fazer porque Portugal ainda não tinha aderido ao Segundo Protocolo.

À data tal não se impunha portanto. Porém, face à obrigação decorrente do n.º 2 do artigo 15.º, o Segundo Protocolo parece exigir mais.

Com efeito, extrai-se claramente do articulado do Segundo Protocolo, e em especial da análise do n.º 1 do artigo 15.º, a intenção de considerar per se os atos atinentes a bens culturais sob proteção reforçada no sentido dado por aquele Protocolo.

Assim, a meu ver, deve merecer ponderação a introdução de tipos legais de crimes que contemplem especificamente os atos enunciados nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 15.º do Segundo Protocolo e se insiram, naturalmente, na política legislativa penal portuguesa, com vista à tutela penal dos bens culturais sob proteção reforçada.

7.


Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1.ª – O Segundo Protocolo à Convenção para a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado (Protocolo), adotado em 26 de março de 1999, constitui o instrumento de direito internacional mais aprofundado e inovatório no domínio da proteção jurídica dos bens culturais em caso de conflito armado;

2.ª – A adesão ao Protocolo não suscita incompatibilidade com normas constitucionais ou infraconstitucionais;

3.ª – Todavia, nos termos expostos no ponto 6.2., os compromissos decorrentes da adesão reclamam alguma adaptação do nosso ordenamento jurídico.




Lisboa, 31 de janeiro de 2017

A Procuradora-Geral-Adjunta


(Maria Manuela Flores Ferreira)




[1] Ofício n.º 5595, de 24 de outubro de 2016.
[2] Para o efeito, ter-se-á por base a tradução elaborada na Procuradoria-Geral da República e remetida ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, em 30 de maio de 2003, através do ofício n.º 24615/2003, o que, aliás, mereceu concordância (cfr. ofício n.º 6024, de 11 de novembro de 2016, do Gabinete do Ministro dos Negócios Estrageiros).
[3] Cfr. Diário da República, I Série-A, n.º 76, de 30 de março de 2000.
[4] Cfr. Diário da República, I Série-A, n.º 76, de 30 de março de 2000.
[5] Cfr. Aviso n.º 9/2001, publicado no Diário da República, I série-A, n.º 40 de 16 de fevereiro de 2001.
[6] Cfr. Diário da República, I Série-A, n.º 163, de 16 de julho de 2001.
[7] Cfr. Diário da República, I Série-A, n.º 304, de 30 de dezembro de 2004.
[8] O depósito do instrumento de adesão foi feito conforme o Aviso n.º 228/2005, publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 99, de 23 de maio de 2005.
[9] Vide, a propósito, por exemplo, Manuela Galhardo, “As convenções da UNESCO no domínio do património cultural”, in Direito do Património Cultural, Instituto Nacional de Administração, 1996, pág. 96.
[10] Integrado no Capítulo VII, com a epigrafe “Da execução da Convenção”.
[11] Capítulo II do Regulamento.
[12] Cfr. I (§§ 1 a 4).
[13] Cfr. II (§ 5).
[14] Cfr. o exórdio do Segundo Protocolo.
[15] A redação, na íntegra, do artigo 3.º do Segundo Protocolo é a seguinte:
«Artigo 3.º

Campo de aplicação
1. Para além das disposições que serão aplicadas em tempo de paz, o presente Protocolo será aplicado nas situações referidas no artigo 18.º, parágrafos 1 e 2 da Convenção e no artigo 22.º, parágrafo 1.
2. Quando uma das Partes num conflito não estiver vinculada pelo presente Protocolo, as Partes no presente Protocolo permanecerão vinculadas por este nas suas relações recíprocas. Elas estarão ligadas ainda pelo presente Protocolo relativamente a um Estado Parte no conflito que não esteja vinculado pelo Protocolo, se este último tiver declarado aceitar as disposições do presente Protocolo e desde que as aplique.»
[16] Estamos neste ponto a seguir a Informação-parecer n.º 146/2001, de 16 de maio de 2002.
[17] Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, pág. 85, sendo certo que essa opinião já vem a ser sustentada desde a 1.ª edição da obra: cfr. Constitução da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 1978, pág. 44.
[18] Manual do Direito Constitucional, tomo II, 3.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1991, págs. 37-40.
[19] Cfr. «As Relações entre Ordem Internacional e Ordem Interna na atual Constituição Portuguesa», in Ab Vno ad Omnes-75 Anos de Coimbra Editora, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, págs. 275-301, concretamente págs. 284-291.
[20] Manual do Direito Internacional Público, 3.ª edição (reimpressão), Almedina, Coimbra, 1997, págs. 116-124.
[21] Direito Interncional Público-Conceito e Fontes, vol. I, Lex, Lisboa, 1998, págs. 430-437.
[22] Assim Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., 3.ª edição, págs. 86-87, e Jorge Miranda, As Relações…, cit., págs. 291-293. Do mesmo modo, André Gonçalves Pereira/Fausto de Quadros, ob. cit., pág. 121, e Eduardo Correia Batista, ob. cit., págs. 438-442, defendem o valor supralegal do direito internacional, em particular daquele cuja posição relativa poderia ser mais controversa, o direito internacional convencional.
[23] Discute-se na doutrina Portuguesa acerca das consequências dessa desconformidade entre a norma legal e a norma convencional (quando não seja reparada) Para Gomes Canotilho/Vital Moreira trata-se de uma ilegalidade equiparada à decorrente de violação de leis dotadas de supremacia sobre outras leis e sujeita a um regime especial de fiscalização pelo Tribunal Constitucional (ob. cit.,3.ª edição, págs. 87-88). Segundo Jorge Miranda, essa desconformidade, que se reconduz a uma ilegalidade sui generis, determina a ineficácia jurídica da norma legal, não produzindo esta os seus efeitos típicos enquanto a convenção vincular internacionalmente o Estado português (As Relações…, cit.,págs. 291-293). Por sua vez, André Gonçalves Pereira/Fausto de Quadros aderem igualmente à solução da ineficácia ou inaplicabilidade da lei interna que viole uma convenção internacional (ob. cit., pág 123). Já Eduardo Correia Batista sustenta a invalidade ou revogação do direito interno contrário a direito internacional convencional (ob. cit., pág. 442).

[24] Cfr. Artigo 1.º, alínea b), do Segundo Protocolo.
[25] A redação do artigo 16.º é a seguinte:
«Artigo 16.º

Jurisdição

1 Sem prejuízo do parágrafo 2, cada Parte tomará as medidas legistativas necessárias para estabelecer a sua jurisdição em relação às infrações previstas no artigo 15.º nos seguintes casos:

(a) quando tal infração é cometida no território desse Estado;
(b) quando o presumível infrator é um nacional desse Estado;
(c) no caso de infrações previstas no artigo 15, alíneas (a) a (c), quando o presumível infrator se encontrar no seu território.

2 Em relação ao exercício da jurisdição e sem prejuízo do artigo 28.º da Convenção:

(a) o presente Protocolo não impede o incorrer da responsabilidade criminal individual ou ao exercício da jurisdição nos termos do direito nacional ou internacional que possa ser aplicado ou que possa afetar o exercício da jurisdição, nos termos do direito consuetudinário;
(b) Exceto na medida em que um Estado que não é Parte no presente Protocolo aceite e aplique as disposições do mesmo em conformidade com o artigo 3.º, parágrafo 2, os membros das forças armadas e os nacionais de um Estado que não é Parte no presente Protocolo, excetuando-se aqueles nacionais que se encontram ao serviço das forças armadas de um Estado Parte no presente Protocolo, não incorrem em responsabilidade criminal individual por força do presente Protocolo nem o presente Protocolo impôe uma obrigação de estabelecer jurisdição em relação a tais pessoas ou uma obrigação de as extraditar.»
[26] A redação do artigo 21.º, de acordo com a tradução que se está a seguir, é:
«Artigo 21.º

Medidas relativas a outras violações

Sem prejuízo do disposto no artigo 28.º da Convenção, cada Parte adotará as medidas legislativas, administrativas ou disciplinares necessárias para punir os seguintes atos quando cometidos intencionalmente:

(a) qualquer utilização dos bens culturais em violação à convenção ou ao presente Protocolo;
(b) qualquer exportação ilícita, outra deslocação ou transferência de proprietário dos bens culturais do território ocupado em violação à convenção ou ao presente Protocolo.»
[27] Numa apreciação prefunctória, e de acordo com o texto na língua francesa a que acedemos, parece-me preferível “para fazer cessar” a “para punir”, como consta da tradução.
[28] O artigo 78.º, integrado no capítulo lV (Direitos e deveres culturais), do Título lll (Direitos e deveres económicos, sociais e culturais), da Parte I (Direitos e deveres fundamentais), com a seguinte redação originária:
«Artigo 78.º

(Património cultural)
O Estado tem obrigação de preservar, defender e valorizar o património cultural do povo português. »
[29] Lei Constitucional n.º 1/82, de 30 de setembro.
[30] A que se viria a acrescentar o ordenamento do território na segunda revisão constitucional.
[31]
«Artigo 78.º
(Fruição e criação cultural)
1. Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural.
2. lncumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais:

a) lncentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos, em especial dos trabalhadores, aos meios e instrumentos de ação cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio;
b) Apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e coletiva, nas suas multiplas formas e expressões, e uma maior circulação das obras e dos bens culturais de qualidade;
c) Promover a salvaguarda e a valorização do património cultural, tornando-o elemento vivificador da identidade cultural comum;
d) Desenvolver as relações culturais com todos os povos, especialmente os de língua portuguesa e assegurar a defesa e a promoção da cultura portuguesa no estrangeiro;
e) Articular a política cultural e as demais políticas sectoriais.

3. É conferido a todos o direito de promover, nos termos da lei, a prevenção ou a cessação dos fatores de degradação do património cultural.»

[32] Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 julho.
[33]
«Artigo 52.º

(Direito de petição e direito de ação popular)
1............................................................................................................................
2…………………………………………………………………………………………………
3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, nomeadamente o direito de promover a prevenção a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, a degração do ambiente e da qualidade de vida ou a degradação do património cultural, bem como de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização.»

O n º 3 do artigo 52.º da Constituição viria ainda a sofrer alterações, aquando da revisão constitucional de 1997 (Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro), passando a ter a seguinte redação:

«3. É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa do interesse sem causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:

a)Promover a prevençao, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.»
[34] Veja-se, a este propósito, Jorge Miranda, “O Património Cultural e a Constituição – tópicos”, in Direito do Património Cultural, INA, 1996, págs. 256 e ss.
[35] Vide Casalta Nabais, Introdução ao Direito do Património Cultural, 2.ª edição Almedina, julho de 2010, pág. 101.
[36] Ibidem.
[37]
«Artigo 101.º

Crime de deslocamento
Quem proceder ao deslocamento de um bem imóvel classificado, ou em vias de classificação, fora das condições referidas no artigo 48.º, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias.»
[38]
«Artigo 102.º

Crime de exportação ilícita
1 – Quem proceder à exportação ou expedição de um bem classificado como de interesse nacional, ou em vias de classificação como tal, fora dos casos previstos nos n.º 2 ou 3 do artigo 65.º, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2 – Em caso de negligência, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com multa até 120 dias.»
[39]
«Artigo 103.º

Crime de destruição de vestígios
Quem, por inobservância de disposições legais ou regulamentares ou providências limitativas decretadas em conformidade com a presente lei, destruir vestígios, bens ou outros indícios arqueológicos é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias.»
[40] “A Tutela Penal do Património Cultural”, in Direito da Cultura e do Património Cultural, Lisboa, AAFDL, 2011, pág. 488.
[41] Atualmente Regulamento (CE) n.º 116/2009 (versão codificada).
[42] Ob. cit., pág. 489.
[43] Cuja redação era a seguinte:
«Artigo 242.º

Destruição de monumentos
Quem, violando normas ou princípios do direito internacional geral ou comum, em tempo de guerra, de conflito armado ou de ocupação, destruir ou danificar, sem necessidade militar, monumentos culturais ou históricos ou estabelecimentos afetos à ciência, às artes, à cultura, à religião ou a fins humanitários é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.»
[44] Cfr. artigo 1.º
[45] E que entrou em vigor em 14 de setembro de 2004 (cfr. artigo 11.º da Lei).
[46] Cuja redação na íntegra é a seguinte:
«Artigo 42.º

Crimes de guerra por utilização de métodos de guerra proibidos
Aquele que, sendo português, estrangeiro ou apátrida residindo ou encontrando-se em Portugal, ou contra essas pessoas, em tempo de guerra:

a) Atacar a população civiI em geral ou civis que não participem diretamente nas hostitidades;
b) Atacar bens civis, ou seja, bens que não sejam objetivos militares;
c) Atacar, por qualquer meio, aglomerados populacionais, habitações ou edifícios que não estejam defendidos e que não sejam objetivos militares;
d) Lançar um ataque indiscriminado, que atinja a população civil ou bens de caráter civil, sabendo que esse ataque causará perdas de vidas humanas, ferimentos em pessoas civis ou danos em bens de caráter civil que sejam excessivos;
e) Aproveitar a presença de civis ou de outras pessoas protegidas para evitar que determinados pontos, zonas ou forças militares sejam alvo de operações militares;
f) Provocar deliberadamente a inanição da população civil como método de fazer a guerra, privando-a dos bens indispensáveis à sua sobrevivência, nomeadamente impedindo o envio de socorros, tal como previsto nas convenções de Genebra;
g) Declarar ou ameaçar, na qualidade de oficial, que não será dado abrigo;
h) Matar ou ferir à traição combatentes inimigos;
i) Lançar um ataque podendo saber que o mesmo causará prejuízos extensos, duradouros e graves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar global concreta e direta que se previa;
j) Cometer perfídia, entendida como o ato de matar, ferir ou capturar, apelando, com intenção de enganar, à boa fé de um adversário para lhe fazer crer que tem o direito de receber ou a obrigação de assegurar a proteção prevista pelas regras do direito internacional humanitário;
é punido com pena de prisão de 10 a 25 anos.»
[47] O seu âmbito de aplicação encontra-se definido no artigo 2.º:
«Artigo 2.º

Âmbito de aplicação
1 – A presente lei é aplicável a bens culturais que, após 31 de dezembro de 1992, tenham saído ilicitamente do território nacional:

a) Português e se encontrem no território nacional de outro Estado membro da União Europeia;
b) De qualquer Estado membro da União Europeia e se encontrem em território português.

2 – O disposto no número anterior não prejudica a aplicação da presente lei a saídas anteriores em caso de reciprocidade.»
[48] Não pode, porém deixar-se aqui de sublinhar que não foi possível fazer um tratamento mais desenvolvido, designadamente do direito interno, dada a urgência na ultimação da presente informação-parecer.
[49] Cfr. ponto 4.5.
[50] Cfr. ponto 5.4.
[51] Cfr. ponto 5.5.