Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00003393
Parecer: I000382016
Nº do Documento: PPA21042017003800
Descritores: AVIAÇÃO CIVIL
INFRAÇÕES COMETIDAS A BORDO DE AERONAVE CIVIL
DIREITO PENAL INTERNACIONAL
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO ESPAÇO
PODERES DO COMANDANTE
MEDIDAS DE POLÍCIA
DETENÇÃO
DESEMBARQUE COERCIVO
ESTADO DO TERRITÓRIO DE ATERRAGEM
ESTADO DO REGISTO DA AERONAVE
CONVENÇÃO DE TÓQUIO (1963)
PROTOCOLO DE MONTREAL (2014)
ORGANIZAÇÃO DA AVIAÇÃO CIVIL INTERNACIONAL (OACI)
Livro: 00
Numero Oficio: 6708
Data Oficio: 12/14/2016
Pedido: 12/15/2016
Data de Distribuição: 12/22/2016
Relator: ANDRÉ FOLQUE
Sessões: 00
Data da Votação: 04/24/2017
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Data Informação/Parecer: 04/21/2017
Data do Despacho da PGR: 04/24/2017
Sigla do Departamento 1: MNE
Entidades do Departamento 1: MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS
Privacidade: [09]
Indicação 2: ASSESSORA: SUSANA PIRES DE CARVALHO
Área Temática:DIR INT PUBL*TRATADOS
Ref. Pareceres:P000301990Parecer: P000301990
P000932005Parecer: P000932005
P000102014
Legislação:L47/86 DE 15/10; L9/2011 DE 12/04; DL45904 DE 05/09/1964; DL386/72 DE 12/10; D451/72 DE 14/11; DPR22/98 DE 17/06; RAR32/98 DE 17/06; CPENAL ART4º B) ART2000; DL254/2003 DE 18/10; DL71/84 DE 27/02; DL208/2004 DE 19/08; DL289/2003 DE 14/11; DL33252 DE 20/11/1943; ; CONST76 ART8 N3 ART272 N2 N3
Direito Comunitário:REGULAMENTO(CE)N2330/2002 DO PE E DO CONS DE 16/12
TUE ART5
TFUE ART3
AC TJUE DE 05/11/2002
Direito Internacional:CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE O DIREITO DOS TRATADOS ENTRE ESTADOS DE 23/05/1969
CONVENÇÃO DA HAIA PARA A REPRESSÃO DA CAPTURA ILÍCITA DE AERONAVES DE 16/09/1970
CONVENÇÃO DE PEQUIM SOBRE A REPRESSÃO DE ATOS ILÍCITOS RELACIONADOS COM A AVIAÇÃO CIVIL INTERNACIONAL DE 10/09/2010
CONVENÇÃO DE TÓQUIO DE 14/09/1963
CONVENÇÃO DE CHICAGO DE 07/12/1944
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: I) O Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, introduz alterações, aditamentos e uma revogação à Convenção de Tóquio, de 14 de setembro de 1963, há muito ratificada por Portugal;
II) Do ponto de vista da conformidade constitucional, nada desaconselha a vinculação da República Portuguesa ao Protocolo de Montreal;
III) O papel essencial de ambos os instrumentos no direito internacional é o de convencionar um regime para as medidas de polícia a bordo de aeronaves civis contra comportamentos gravemente indisciplinados ou desordeiros e o de reconhecer a jurisdição de vários Estados para crimes cometidos a bordo, perdurando a articulação com outras convenções internacionais vocacionadas, a título principal, para reprimir a captura ilícita de aeronaves, desvio de rota sob coação e outros crimes associados ao terrorismo;
IV) Embora sejam contempladas medidas de polícia muito genéricas em matéria de ordem pública a bordo, o que poderia suscitar questões de conformidade com o artigo 272.º, n.º 2 e n.º 3, da Constituição, a verdade é que a convenção internacional não consagra normas exequíveis por si mesmas, cumprindo ao legislador providenciar pelo mínimo de tipicidade das medidas a adotar sobre passageiros desordeiros pelo comandante da aeronave ou pelos membros da tripulação de cabina;
V) A vinculação portuguesa ao Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, não obriga a modificações de vulto no direito interno português, sem prejuízo da necessidade de algumas adaptações por parte do Decreto-Lei n.º 254/2003, de 18 de outubro;
VI) Do ponto de vista do direito da União Europeia, não se vê impedimento à ratificação portuguesa do citado Protocolo de Montreal, pois não invade domínio reservado à celebração de acordos pela União Europeia nem se vê que possa afetar o direito derivado que vem sendo dimanado nesta matéria;
VII) O Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, deve submeter-se às formalidades previstas para os tratados internacionais, importando a ratificação pelo Presidente da República, nos termos do artigo 135.º, alínea b), da Constituição, precedida por resolução da Assembleia da República, que, de acordo com o artigo 161.º, alínea i), da Constituição, aprove a vinculação da República Portuguesa.

Texto Integral:


Senhor Ministro
dos Negócios Estrangeiros ,

Excelência:



Solicita Vossa Excelência a este órgão do Estado que se pronuncie a respeito da oportunidade e interesse por parte da República Portuguesa em vincular-se ao Protocolo assinado em Montreal, a 4 de abril de 2014, e que altera a Convenção Relativa às Infrações e a Certos Outros Atos Cometidos a Bordo de Aeronaves, assinada em Tóquio, a 14 de setembro de 1963.
O pedido vem acompanhado por tradução oficial para língua portuguesa da versão autêntica em língua inglesa do mencionado Protocolo, certificada pelo Senhor Presidente da Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC).
Distribuído por despacho de Sua Excelência a Conselheira Procuradora-Geral da República[1], cumpre-nos emitir informação, o que faremos a partir do enquadramento da Convenção de Tóquio no direito internacional aeronáutico, seguindo-se uma análise das relações do seu conteúdo com o direito interno português e com o direito da União Europeia, considerando cada uma das alterações veiculadas pelo Protocolo assinado em Montreal, em 4 de abril de 2014.
De acordo com as características da função consultiva deste órgão, tal como resultam da competência enunciada no artigo 37.º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público[2], a informação incidirá em aspetos estritamente jurídicos, ora no que concerne à compatibilidade do Protocolo de Montreal com as normas e princípios constitucionais, ora na articulação com atos legislativos e regulamentares sobre cujas normas prevalece, nos termos do artigo 8.º, n.º 2, da Constituição, desde que a República Portuguesa venha a vincular-se, em cumprimento dos preceitos constitucionais, das normas da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados entre Estados, de 23 de maio de 1969, e segundo as disposições específicas do Protocolo.

§1.º – Convenções internacionais multilaterais sobre segurança a bordo de aeronaves civis.

A Convenção de Tóquio Relativa às Infrações e a Certos Outros Atos Cometidos a Bordo de Aeronaves, de 14 de setembro de 1963, foi ratificada por Portugal, sem reservas, depois de aprovado o Decreto-Lei n.º 45 904, de 5 de setembro de 1964[3]. Com efeito, o instrumento de ratificação foi depositado em 25 de novembro de 1964.
Entraria em vigor na ordem jurídica internacional e na ordem jurídica interna das Partes Contratantes, a 4 de dezembro de 1969, nos termos do seu artigo 21, ou seja, no 90.º dia imediatamente subsequente ao depósito do 12.º instrumento de vinculação perentória. Conta atualmente com 186 Partes[4].
O conteúdo e âmbito material desta Convenção devem ser observados em conjunto com a Convenção da Haia, de 16 de setembro de 1970, para a Repressão da Captura Ilícita de Aeronaves[5] e com a Convenção de Montreal, de 23 de setembro de 1971, para a Repressão de Atos Ilícitos Contra a Segurança da Aviação Civil[6], complementada esta última pelo Protocolo de Montreal, de 24 de fevereiro de 1988, para a Repressão de Atos Ilícitos de Violência nos Aeroportos ao Serviço da Aviação Civil Internacional[7].
Acresce ainda a Convenção de Pequim, de 10 de setembro de 2010, Sobre a Repressão de Atos Ilícitos relacionados com a Aviação Civil Internacional[8], que, embora vise complementar a Convenção da Haia, de 16 de setembro de 1970, ainda não se encontra em vigor.
A primeira e única iniciativa de modificar a Convenção de Tóquio, de 14 de setembro de 1963, ocorre com o presente Protocolo de Montreal, cujo texto foi adotado na Conferência Internacional de Direito Aeronáutico sob os auspícios da Organização da Aviação Civil Internacional (OACI) e que decorreu em Montreal entre 26 de março e 4 de abril de 2014.
Desde então, encontra-se aberto para assinatura dos Estados que tomaram parte na Conferência (Artigo XVI) sem prejuízo de os Estados poderem de imediato vincular-se (Artigo XVII), segundo as formalidades internas de cada Estado e sem prejuízo da ulterior adesão dos demais Estados que sejam membros da OACI.
Até ao presente momento, ainda não entrou em vigor na ordem jurídica internacional, visto que apenas cinco Estados signatários depositaram o instrumento de ratificação (o Reino do Bahrein, a República Gabonesa, a República Cooperativa da Guiana, a República de Malta e a República de Moçambique) e outros três Estados vincularam-se por adesão (a República do Congo, o Reino Hachemita da Jordânia e a República Dominicana)[9].
A entrada em vigor apenas se produzirá no primeiro dia do segundo mês consecutivo ao 22.º depósito[10].


§2.º – A Convenção de Tóquio, de 14 de setembro de 1963, em especial.

Retomando a Convenção de Tóquio, de 14 de setembro de 1963, importa começar por registar o seu carácter eminentemente obrigacional.
Na generalidade, as suas normas criam direitos e deveres para os Estados, mas não podem ser aplicadas sem a interposição do direito interno de cada uma das Partes Contratantes.
Não obstante cuidar-se de crimes com relevância para a comunidade internacional, uma vez que a segurança a bordo de aeronaves civis transcende o interesse singular de cada Estado, trata-se de um instrumento de direito penal internacional e não de direito internacional penal. Com efeito, não se definem crimes internacionais, antes se incumbem as Partes Contratantes a punir certos comportamentos a bordo que interfiram ilicitamente com a segurança e tranquilidade dos passageiros.
É particularmente significativo o contexto histórico da sua aprovação: os casos de captura ilícita ou desvio de aeronaves civis eram em número e repercussão despiciendos e o fenómeno do terrorismo aéreo era ainda praticamente ignorado.
Compreende-se que, a título principal, vise regular a posição dos vários Estados que apresentem uma conexão relevante com determinado voo civil para garantir a ordem a bordo e diminuir o risco de eventuais crimes praticados durante um voo não ficarem impunes nem suscitarem demasiados conflitos positivos de jurisdição sancionatória.
É essa uma das mais importantes missões para que é convocado o direito penal internacional, desde que os Estados e as organizações internacionais tomaram consciência da sua necessidade para a eficácia da ação penal, não tanto em relação aos crimes que lesam bens jurídicos da humanidade (v.g. genocídio, trafico de escravos), no âmbito do direito internacional penal, mas principalmente no que diz respeito a delitos que adquirem, podem adquirir ou devem adquirir relevância em mais do que uma ordem – na expressão de INÊS FERREIRA LEITE[11], infrações com elementos de extraneidade.
A mais importante obrigação decorrente da Convenção de Tóquio é porventura a de as Partes adotarem «todas as providências adequadas para que o legítimo comandante da aeronave retome ou conserve o comando desta» (artigo 11, n.º 1) no pressuposto de um ato de interferência ilícita ou na iminência da sua prática, definindo-se como tais os comportamentos que, a bordo, com uso de violência ou sua ameaça, assumam por apoderamento ou simplesmente perturbem o comando de uma aeronave em voo (idem).
E estipula-se uma obrigação qualificada para o Estado em cujo território a aeronave aterre: «permitir aos passageiros e à tripulação o prosseguimento da viagem o mais rapidamente possível e restituir a aeronave e a respetiva carga aos seus legítimos possuidores» (artigo 11, n.º 2).
As Partes comprometem-se a punir certos comportamentos que perturbem gravemente a ordem pública a bordo ou que sejam gravemente lesivos de certos bens jurídicos, mas devolve-se ao direito interno de cada um dos Estados a incumbência de concretizar os tipos de ilícitos[12] praticados a bordo de aeronaves em voo[13] e de fixar as sanções aplicáveis: infrações penais[14] e outros comportamentos que, embora não criminalizados, comprometam a ordem pública no interior da aeronave e a respetiva segurança («…possam pôr ou ponham em perigo a segurança da aeronave, ou das pessoas e bens, ou que ponham em perigo a boa ordem e disciplina a bordo[15]»).
Consignou-se, pela primeira vez[16], num tratado multilateral aberto, o dever de punir o delito de interferência no voo de aeronaves, o qual pode ser incriminado ou representar simplesmente um ilícito administrativo ou de mera ordenação social.
Diríamos, embora sem inteiro rigor, que as perturbações ilícitas a bordo, não assumindo relevo penal, teriam natureza disciplinar. Sem inteiro rigor, pois deve distinguir-se um poder propriamente disciplinar sobre os membros da tripulação e um poder disciplinar sobre os passageiros que o é em sentido impróprio, na falta de uma relação hierárquica.
Já em matéria de jurisdição criminal, o direito interno do Estado de registo da aeronave concorre[17] com o direito interno do Estado cujo território se encontre a ser sobrevoado, à semelhança do que se admite para os navios mercantis em águas interiores ou em águas costeiras territoriais de um Estado diferente do Estado do pavilhão.
A concorrência de jurisdições vale também para efeitos de extradição, pois segundo o disposto no artigo 16, n.º 1, «as infrações praticadas a bordo de aeronaves registadas em um Estado Contratante são consideradas, para fins de extradição, como tendo sido praticadas tanto no lugar em que ocorreram como no território do Estado de registo da aeronave».
De todo o modo, a Convenção não institui para as Partes Contratantes nenhum dever especial de extradição (artigo 16, n.º 2).
Tão-pouco se convencionou uma jurisdição universal, como vimos ser próprio dos crimes internacionais hoc sensu.
Na verdade, apenas os delitos de pirataria aérea parecem reunir consenso em torno da jurisdição universal.
A pirataria aérea, contudo, pressupõe uma agressão perpetrada ou a cometer a partir de uma outra aeronave. Como tal, os agentes que se encontrem a bordo, embora na linguagem corrente possam ser considerados piratas, juridicamente não podem ser acusados por crimes de pirataria aérea.
A generalidade dos crimes contra a segurança a bordo são o apoderamento ilícito, a sabotagem e o desvio da rota em busca de asilo no território de determinado Estado[18].
Estes crimes, porém, não são objeto da Convenção de Tóquio, mas das citadas convenções adotadas posteriormente – da Haia (1970) e de Montreal (1971). Isto, a um tempo em que a captura ilícita de aeronaves e a tomada de reféns entre os passageiros e os tripulantes ainda começara apenas a sua escalada.
Como melhor se verá, a Convenção de Tóquio e o Protocolo Adicional aberto à ratificação visam a preservação da ordem pública a bordo e a segurança de pessoas e bens, ocupando-se principalmente de delitos comuns com a particularidade de serem cometidos em voo.
No mais, cuidam de aspetos de cooperação judiciária internacional e de cooperação aeronáutica civil entre as Partes Contratantes.
Por definição, os comportamentos ilícitos a bordo cabem à jurisdição do Estado do registo da aeronave (cfr. artigo 3, n.º 1), sem excluir, porém, o exercício da competência penal em conformidade com as leis nacionais (cfr. n.º 3). Quer isto dizer que se o direito interno de um determinado Estado repudiar a jurisdição dos seus tribunais não é a Convenção de Tóquio a impor‑lha.
Mas, um desígnio essencial da Convenção de Tóquio é precisamente o de legitimar os Estados a exercerem poderes jurisdicionais relativamente a certos atos ilícitos praticados a bordo de aeronaves cujo registo seja de outras Partes Contratantes.
É certo que sobre qualquer Estado vinculado pela Convenção, mas que não seja o do registo da aeronave, recai o impedimento de perturbar o voo a fim de exercer a sua competência penal ou de investigação criminal (cfr. artigo 4).
No entanto, abrem-se exceções significativas dentro dos pressupostos seguidamente discriminados (artigo 4, alíneas a) a e)) e que podemos caracterizar como relativamente amplos:

– Se a infração produzir efeitos no território desse Estado, afetar a sua segurança ou constituir violação das suas prescrições legais ou regulamentares respeitantes ao voo ou à manobra de aeronaves;

– Se tiver sido cometida por um nacional desse Estado, contra um nacional desse Estado ou alguém que possua residência permanente no território desse Estado; ou

– Se a intervenção desse Estado se mostrar necessária ao cumprimento de um outro tratado multilateral.

Por outro lado, a Convenção de Tóquio, de 14 de setembro de 1963, investe o comandante da aeronave nos necessários poderes de autoridade a bordo, designadamente a fim de adotar medidas de polícia, contando com o apoio da tripulação e dos passageiros que a tanto se disponham (cfr. artigos 6 e seguintes).
Entre essas medidas de polícia figuram a detenção (artigo 6, n.º 1, alínea c)), o desembarque compulsivo dos passageiros desordeiros ou a quem for imputada a prática de um ilícito penal com ou sem aterragem intercalar (artigo 8, n.º 1) e a sua entrega às autoridades do território de desembarque (artigo 9, n.º 1).
O exercício destes poderes encontra, todavia, limitações de vulto em benefício do Estado de registo da aeronave:
«Artigo 5
1 – As disposições do presente capítulo não são aplicáveis às infrações e atos cometidos, ou prestes a ser cometidos, por uma pessoa a bordo de uma aeronave em voo no espaço aéreo do Estado de registo, sobre o alto mar ou sobre outra região situada fora do território de um Estado, a não ser que o último ponto de descolagem ou o próximo ponto de aterragem previsto esteja situado num Estado que não seja o de registo, ou se a aeronave voar posteriormente com a referida pessoa a bordo no espaço aéreo de um Estado diferente do de registo.»

Quer isto dizer que os poderes de autoridade do comandante são definidos, em princípio, pelo direito interno do Estado de registo da aeronave, conquanto o espaço aéreo e os locais de precedente descolagem e de próxima aterragem possam legitimar a aplicação das disposições do capítulo III da Convenção, as quais, no essencial regem as medidas de polícia a bordo.
Se a aeronave se encontrar em voo no espaço aéreo do Estado de registo, à superfície do alto mar ou sobre o espaço aéreo deste ou ainda sobre outra região fora da jurisdição aérea de um qualquer Estado, a autoridade a bordo é regulada pelo direito do Estado de registo.
E sê-lo-á, bem assim, se estiver a sobrevoar o território de outro Estado mas tiver descolado do território do Estado de registo e deslocar-se em sua direção para ali aterrar[19].
Por conseguinte, os poderes de autoridade do comandante, tal como são enunciados nos artigos 6 e seguintes da Convenção de Tóquio valem nas seguintes três previsões:

- Ter a aeronave descolado de um Estado que não o de registo;

- Ter a aeronave como próximo ponto de aterragem o território de um Estado que não o de registo;

- Encontrar-se a aeronave em voo no espaço aéreo de um Estado que não o de registo.

Os poderes de autoridade do comandante, segundo o disposto no artigo 6 da Convenção obedecem ao pressuposto de um juízo de prognose formulado a partir da sua prudência e experiência profissional – «fundadas razões para crer que uma pessoa praticou, ou está prestes a praticar, a bordo uma infração ou um ato previstos no artigo 1, n.º 1».
Por seu turno, as medidas a adotar não se encontram previstas taxativamente, senão a medida do desembarque forçado (artigo 8) mas devem obedecer ao princípio da proporcionalidade: devem ser razoáveis e limitar-se ao necessário, ainda que importem fazer uso da força ou de outro meio coercivo ou compulsório.
Por último, as medidas subordinam-se estritamente a três fins, de acordo com o artigo 6, n.º 1:

- Garantir a segurança da aeronave ou das pessoas ou bens a bordo;

- Manter a ordem e a disciplina a bordo;

- Permitir a entrega do agente perturbador às autoridades competentes ou desembarcá-la.

No n.º 2 do mesmo artigo, configuram-se os pressupostos de facto que habilitam qualquer membro da tripulação[20] a adotar as providências razoáveis e institui-se um dever de auxílio relativamente às ordens do comandante por parte dos tripulantes. Para os passageiros, embora os pressupostos de facto sejam análogos devem configurar-se como previsões de legítima defesa ou de estado de necessidade[21].
Conquanto seja lícito ao comandante requerer auxílio aos passageiros ou a um determinado passageiro, estes não se encontram juridicamente obrigados a prestar-lho[22].
Com efeito, apenas os tripulantes de cabine se encontram investidos de competências de polícia, sendo adestrados na sua formação em matéria de segurança a bordo e podendo dispor de equipamento apto a imobilizar passageiros gravemente desordeiros.
As medidas adotadas cessam, nos termos do artigo 7, logo que o agente seja entregue às autoridades locais, após aterragem.
O desembarque coercivo, como vimos, encontra-se previsto no artigo 8.
Por sua vez, nos artigos 12 e seguintes, convencionou-se uma obrigação de os Estados Contratantes aceitarem a entrega do agente, ainda que os factos imputados não sejam qualificados como ilícitos perante o seu direito interno, mas tão-só perante a ordem jurídica do Estado de registo da aeronave (artigo 9, n.º 1).
O destino da pessoa desembarcada depende de algumas contingências, o que se procura regulamentar no artigo 14.
Assim, pode dar-se o caso de o sujeito desembarcado recuperar as condições de prosseguir a viagem, mas recusar-se a reembarcar (n.º1) ou dever permanecer no território de aterragem «para fins de procedimento criminal ou de extradição» (artigo 15, n.º 1).
Nessas eventualidades, assim como na de o Estado de aterragem recusar-se a admiti‑lo, sem que o indivíduo seja seu nacional nem tenha no seu território residência permanente, o referido Estado fica porém incumbido de o reenviar para o território pátrio, para o território da residência permanente ou simplesmente de volta ao território onde iniciara a viagem aérea.
A manter-se detido ou simplesmente entregue ao Estado de aterragem, de quem não é nacional nem ali possui residência permanente, o indivíduo deve ser considerado em trânsito (artigo 14, n.º 2 e n.º 3), mas nem por isso pode ser-lhe dispensado um tratamento menos favorável do que o previsto para os nacionais do Estado de aterragem (artigo 15, n.º 2).
Na hipótese de o território em que se produz a aterragem pertencer a um Estado não Contratante ou cujas autoridades recusem o desembarque, as medidas adotadas a bordo conservam-se até que o sujeito possa ser entregue às autoridades competentes (artigo 7, n.º 1, alínea a)), o mesmo valendo em caso de aterragem forçada sem que o comandante possa «entregar a pessoa às autoridades competentes» (artigo 7, n.º 1, alínea b)) ou se o visado aceitar prosseguir a bordo sob as medidas adotadas (artigo 7, n.º 1, alínea c)).
Aplicado preferentemente o direito interno do Estado de registo da aeronave, é muito importante que cada Estado defina os poderes de autoridade pública a bordo das aeronaves civis que lhe dizem respeito, até porque há um domínio em que, indiscutivelmente, só essas normas se aplicam: os voos domésticos.
Em certo sentido, as aeronaves civis em voo são comparadas a «ilhas voadoras» do Estado de matrícula[23].
A verdade é que sobre a Convenção de Tóquio, de 14 de setembro de 1963, têm vindo a pesar crescentes expostulações quanto à necessidade de introduzir alguns aperfeiçoamentos.
É-lhe apontado atribuir um papel excessivo ao Estado de registo da aeronave, tanto no que respeita à jurisdição sobre delitos criminais como à polícia dos atos de indisciplina cometidos a bordo e à aplicação das normas do capítulo III (poderes de autoridade do comandante).
O problema seria muito mais grave não fora a larga maioria dos Estados serem Partes Contratantes.
De resto, a Convenção é criticada pela relativa opacidade das regras de distribuição das competências jurisdicionais. Nas palavras de LUIS TAIPA SALINAS[24], «a principal dificuldade para o êxito e a aplicação da Convenção de Tóquio, reside na questão das competências jurisdicionais e, como consequência, na extradição dos presumíveis delinquentes».
Lamenta o Autor[25] não ter sido pactuado um primado de jurisdição «a favor do Estado que resolva definitivamente a questão, independentemente do que pudesse logo aplicar-se, por possuir materialmente o delinquente».
E prossegue[26]:

«É certo que o artigo 3 estabelece a afirmação perentória de que ‘o Estado onde a aeronave está registada é competente para conhecer das infrações e outros atos praticados a bordo’, mas esta afirmação geral e simples, que teria sido eficaz se acompanhada da entrega por parte dos Estados onde se tenha refugiado ou tenha sido retido o delinquente, assenta na mesma Convenção de Tóquio com as várias exceções que a neutralizam».

Conclui LUIS TAIPA SALINAS[27] com uma apreciação genérica dos méritos e fragilidades da Convenção de Tóquio na sua versão originária:

«A consideração geral sobre a Convenção de Tóquio é a de que, não sendo suficiente para resolver o problema em termos absolutos e contendo algumas medidas bem parcimoniosas e cautelosas em matéria de jurisdição e de extradição, decorrentes da diversidade de sistemas legislativos e da não excessiva preocupação que naquele tempo se sentia por estas figuras de delitos, pode considerar-se um primeiro passo dado na esfera internacional para tratar de definir estes novos delitos, outorgar alguns poderes aos Comandantes das aeronaves e assentar bases de partida para o estabelecimento de uma jurisdição penal».

O Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, pretende reduzir as fragilidades a que se expõe a redação originária da Convenção de Tóquio.
Na sua 70.ª sessão, Assembleia Geral da Associação do Transporte Aéreo Internacional (ATAI[28]), reunida em Doha, em 2 de junho de 2014, adotou, por unanimidade, uma resolução que apela aos governos para que vinculem os respetivos Estados ao Protocolo.
Um estudo desta associação de companhias aéreas relata estatisticamente a ocorrência de um incidente com passageiros indisciplinados por cada 1600 voos, o que terá somado, entre 2007 e 2013, um total de 28 400 incidentes registados, e dos quais, cerca de 1/5, obrigaram a intervenção policial ou de outras forças de segurança. Não obstante, segundo a ATAI, só muito raramente tais passageiros são confrontados com procedimentos sancionatórios, permanecendo impunes.
O Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, visa reduzir, ainda que moderadamente, o papel do Estado de registo ou de matrícula da aeronave, seja pela distinção entre este último e o Estado da nacionalidade do operador, seja pela ampliação do papel dos Estados em cujos territórios aterrem ­ – como destino previsto ou de forma incidental – aeronaves civis com indivíduos a quem sejam imputadas infrações penais cometidas a bordo ou comportamentos desordeiros graves.
Ao que parece, a prática de pavilhões de conveniência não é frequente na aeronáutica[29], mas, por um lado, não há um princípio de direito internacional que imponha uma ligação substancial[30] e, por outro, é cada vez mais corrente que o operador do voo não seja nacional do Estado de matrícula da aeronave[31]. Um Estado pode matricular aeronaves pertencentes a companhias aéreas estrangeiras e aplica-lhe o seu direito interno, mas apenas como e quando estiver ao seu alcance.

Já para o caso de companhias aéreas plurinacionais, como a Scandinavian Airlines Service (SAS) ou a Air Afrique, o Conselho da OACI adotou uma resolução, em 1967, que exige um registo conjunto para os fins do artigo 77 da Convenção de Chicago e mais obriga a que um dos Estados de registo seja designado de comum acordo como depositário das reclamações de outros Estados[32].
Na mesma linha, a Convenção de Tóquio não descurou esta hipótese para os fins respetivos, tendo ficado estipulado no artigo 18 o seguinte:

«Se os Estados Contratantes constituem para o transporte aéreo organizações de exploração em comum ou organismos internacionais de exploração, que utilizem aeronaves não registadas em nenhum Estado, designarão, conforme as circunstâncias do caso, qual de entre aqueles Estados será considerado, para os fins da presente Convenção, como o de registo, designação de que devem dar conhecimento à Organização Internacional de Aviação Civil, que do facto informará todos os Estados Partes na presente Convenção».

Nesta matéria, o Protocolo de Montreal não traz consigo nenhuma inovação. Embora venha aditar um Artigo 18 bis, o seu teor nada tem a ver com o objeto do Artigo 18[33].


§3.º – O direito interno ordinário em matéria de aplicação da lei penal, do direito contraordenacional e das medidas de polícia a bordo de aeronaves civis.

De acordo com o artigo 4.º, alínea b), do Código Penal, a lei penal portuguesa aplica-se a factos praticados a bordo de aeronaves portuguesas, ou seja, cujo Estado de registo seja Portugal, mas com exceção do que tiver sido internacionalmente convencionado em contrário.
Entre essas exceções não se conta a Convenção de Tóquio, de 14 de setembro de 1963, pois em nada diminui a jurisdição criminal ao Estado de registo, chegando mesmo a garantir no artigo 3.º, n.º 3, que a sua aplicação não exclui «o exercício da competência penal em conformidade com as leis nacionais».
Tão-pouco procede à definição integral de crimes e respetivas penas, devolvendo a cada um dos Estados a obrigação de o fazerem internamente.
Nesta linha, o Decreto-Lei n.º 254/2003, de 18 de outubro[34], veio dispor sobre «a prevenção e repressão de atos de interferência ilícita cometidos a bordo de aeronave civil, em voo comercial, por passageiros desordeiros» (artigo 1.º).
No essencial, «através da tipificação de contraordenações, do agravamento dos limites mínimos e máximos de crimes já tipificados no Código Penal e do alargamento da aplicação no espaço das leis penal e contraordenacional portuguesa[35]» (idem).
No preâmbulo, apontam-se como motivações principais destas medidas, por um lado, fazer executar um projeto de legislação típico recomendado, em 2001, pela Organização da Aviação Civil Internacional, por outro lado, o Regulamento (CE) n.º 2320/2002, do Parlamento e do Conselho, de 16 de dezembro, relativo ao estabelecimento de regras comuns no domínio da segurança da aviação civil.
Acabámos de verificar que o Código Penal se limita a estabelecer a aplicação da lei penal portuguesa aos crimes praticados a bordo de aeronaves de matrícula portuguesa (artigo 4.º, alínea b)).
Ora, é o Decreto-Lei n.º 254/2003, de 18 de outubro, que vai mais longe, na linha da Convenção de Tóquio, de 14 de setembro de 1963.
MIGUEL ÂNGELO CARMO[36] chama a atenção justamente para o «alargamento da aplicação no espaço da lei penal (e contraordenacional portuguesa) no que respeita a atos ilícitos cometidos a bordo de aeronaves alugadas, com ou sem tripulação, a um operador que tenha a sua sede em território português[37], e a bordo de aeronaves de matrícula estrangeira que se encontrem a sobrevoar espaço aéreo português, desde que o local de aterragem seguinte seja em território nacional e o comandante da aeronave entregue o presumível infrator às autoridades portuguesas competentes (…)».
No domínio das infrações criminais, previu-se e estatuiu-se tipicamente o seguinte:
«Artigo 4.º
(Crimes)
1 – É punido com a pena aplicável ao respetivo crime quem, a bordo de uma aeronave civil em voo comercial, praticar:
a) Crimes contra a vida;
b) Crimes contra a integridade física;
c) Crimes contra a liberdade pessoal;
d) Crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual;
e) Crimes contra a honra;
f) Crimes contra a propriedade.
2 – Se a prática de qualquer crime compreendido no número anterior criar um perigo para a segurança da aeronave, o agente é punido com a pena que ao caso caberia agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão, e 900 dias, tratando-se de pena de multa.
3 – Quem, a bordo de uma aeronave civil em voo comercial desobedecer a ordem ou instrução legítima destinada a garantir a segurança, a boa ordem e a disciplina a bordo, dada pelo comandante da aeronave ou por qualquer membro da tripulação em seu nome, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
4 – Quem, a bordo de uma aeronave civil em voo comercial, difundir informações falsas sobre o voo, causando alarme ou inquietação entre os passageiros, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».

Este regime, por conseguinte, procede a um agravamento das penas criminais no pressuposto de aos crimes considerados acrescer um efeito de perigo[38] na segurança da aeronave (n.º 2), um crime especial de desobediência, relativamente a ordens em matéria de segurança, ordem e disciplina a bordo (n.º 3) e um novo crime material ou de resultado que consiste em criar alarme ou inquietação a bordo por meio da difusão de informações falsas sobre o voo (n.º 4).
Pressuposto essencial é tratar-se de aeronave civil em voo comercial, o que nos devolve às definições consignadas, nos termos que se transcrevem:

«Artigo 2.º
Definições
Para efeitos do disposto no presente decreto-lei, entende-se por:
a) ‘Voo comercial’ a operação de aeronave que envolva o transporte de passageiros, carga ou correio efetuada mediante qualquer tipo de remuneração;
b) ‘Aeronave em voo’, desde o momento em que, terminado o embarque, tenham sido fechadas todas as portas exteriores, até ao momento em que uma dessas portas seja aberta para desembarque. Em caso de aterragem forçada, o voo é considerado como estando a decorrer até que a autoridade competente se responsabilize pela aeronave, bem como pelas pessoas e bens a bordo».

Por seu turno, proíbem-se outras condutas a título de responsabilidade contraordenacional:
«Artigo 5.º
(Contraordenações)
1 – Para efeitos de aplicação do regime das contraordenações aeronáuticas civis, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro, constituem contraordenações muito graves[39]:
a) Entrar a bordo de uma aeronave civil em voo comercial sob influência de bebida alcoólica, substância psicotrópica ou produto com efeito análogo e, nesse estado, comprometer a segurança da aeronave, seus ocupantes ou bens;
b) Consumir bebidas alcoólicas a bordo de uma aeronave civil em voo comercial e, nesse estado, comprometer a segurança da aeronave, seus ocupantes ou bens;
c) Fumar a bordo de uma aeronave civil em voo comercial, quando tal seja proibido;
d) Utilizar telemóvel ou qualquer outro mecanismo eletrónico a bordo de uma aeronave civil em voo comercial, quando tal seja proibido.
2 – O consumo de bebidas alcoólicas que integram o serviço de restauração da aeronave é limitado em número, consoante o tipo e duração do voo, nos termos da regulamentação complementar.
3 – O disposto nas alíneas c) e d) do n.º 1 e no n.º 2 é obrigatoriamente comunicado aos passageiros no início de cada voo e, sempre que possível, aquando da aquisição do titulo de transporte.
4 – A punição por contraordenações pode ser publicitada, nos termos previstos no artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro[40]».

Originariamente, fixaram-se coimas com valores a aplicar entre €250,00 e €3740,00, nos termos do artigo 6.º. Esta norma viria, porém, a ser revogada expressamente pelo artigo 22.º, alínea m), do Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de agosto.
No artigo 8.º, estabelece-se a aplicação subsidiária, primeiro, do regime das contraordenações aeronáuticas civis; depois, do Código Penal e legislação complementar respetiva[41].
Os poderes de autoridade pública do comandante da aeronave encontram-se consignados, fundamentalmente, no Decreto-Lei n.º 71/84, de 27 de fevereiro, o qual aprovou o Estatuto do Comandante de Aeronave.
No seu artigo 76.º, o Decreto-Lei n.º 289/2003, de 14 de novembro[42], não vai muito além da confirmação das disposições daquele outro diploma: responsabilidade pela segurança operacional e pela segurança de pessoas e bens a bordo, autoridade com poderes de direção subordinada aos fins de segurança.
O Estatuto do Comandante de Aeronave aplica-se às aeronaves nacionais de transporte aéreo (artigo 1.º), como também às estrangeiras que usem aeroporto ou aeródromos portugueses, mas «sem prejuízo da aplicação de tratado ou convenção internacional em contrário» (n.º 2), o que se combina precisamente com as disposições do capítulo III da Convenção de Tóquio de 14 de setembro de 1963.
Compete ao comandante, designadamente «exercer, nos termos do presente Estatuto, a autoridade sobre a tripulação da aeronave» (artigo 3.º, n.º 1, alínea c)) e «manter a ordem e a disciplina a bordo» (alínea d)).
Em tudo mais, assistem aos comandantes de aeronaves os poderes «conferidos aos comandantes dos navios mercantes» por via do artigo 2.º do Regulamento de Navegação Aérea, aprovado pelo Decreto n.º 20 062, de 25 de outubro de 1930[43], o que nos remete para o Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 33 252, de 20 de novembro de 1943.
Nos termos do Código Penal e Disciplinar da Marinha Mercante, o capitão que «é o indivíduo encarregado do governo e expedição do navio» (artigo 4.º, alínea b)) e «o chefe da equipagem da embarcação, a bordo ou fora dela» (artigo 5.º) «tem sobre os oficiais, restante gente da equipagem, pessoal auxiliar e passageiros a autoridade que exigir a disciplina de bordo, a segurança da embarcação, o cuidado das fazendas e o bom êxito da viagem» (artigo 9.º).
Como tal, incumbe-lhe «empregar todos os meios para pôr os agentes de qualquer crime em estado de não prejudicarem» (artigo 17.º[44]).
Nos artigos 136.º a 139.º incriminam-se diversos comportamentos insubordinados ou desobedientes seja por parte da tripulação, seja da parte dos passageiros.


§4.º ­– Do direito da União Europeia.

Dispensamo-nos de passar em revista, sem prejuízo para a economia da consulta, a progressiva aquisição de atribuições por parte da União Europeia em matéria de transporte aéreo e suas condições de segurança (safety) e polícia (security)[45].
No que concerne à ação externa, e em linhas gerais, pode dizer-se que a tónica da política da União Europeia neste domínio releva sobretudo para os acordos bilaterais e em aspetos de natureza comercial. Os aspetos de segurança e polícia têm sido objeto de atenção, mas fundamentalmente a respeito de voos intracomunitários.
É indispensável, no entanto, saber em que medida os seus Estados Membros conservam poderes de negociação e de conclusão de tratados, ou seja, se este poderes são ou não partilhados com o Conselho e a Comissão.
De acordo com o artigo 5.º do Tratado da União Europeia, esta não dispõe de atribuições por natureza: « (…) a União atua unicamente dentro dos limites das competências que os Estados Membros lhe tenham atribuído nos Tratados para alcançar os objetivos fixados por estes últimos» (n.º 2), o que vale tanto para o domínio interno como internacional[46].
Todavia, há domínios em que as atribuições são exclusivas, o que vale, por conseguinte, para «celebrar acordos internacionais quando tal celebração esteja prevista num ato legislativo da União, seja necessária para lhe dar a possibilidade de exercer a sua competência interna, ou seja suscetível de afetar regras comuns ou de alterar o alcance das mesmas» (artigo 3.º, n.º 2, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia).
À partida, as estipulações do Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, não parecem caber em domínio exclusivo da União Europeia, atendendo, em especial ao enunciado dos domínios de competência exclusiva (artigo 3.º, n.º 1, do TFUE), a saber:

- União aduaneira;

- Concorrência para efeito de mercado interno;

- Política monetária, relativamente aos Estados que deixaram de ter moeda própria;

- Conservação de recursos biológicos marinhos, no âmbito da Política Comum de Pescas;

- Política comercial comum.


A verdade é que foi justamente no domínio do transporte aéreo que se abriu um litígio entre a Comissão e oito Estados Membros, dando lugar ao que se denominou jurisprudência Céus Abertos.
Entendeu o Tribunal de Justiça, por acórdão de 5 de novembro de 2002, que os acordos bilaterais outorgados entre esses oito Estados e os Estados Unidos da América invadiam um domínio da política de transportes que fora progressivamente preenchido por direito derivado da União Europeia[47].
Explica GEERT DE BAERE[48] que, fundamentalmente, o Tribunal considerou que, embora de modo reflexo, o direito derivado «proibira definitivamente carreiras aéreas de Estados terceiros operando na Comunidade com novos produtos ou tarifas mais baixas».
Cita todavia o parecer do Advogado-Geral TIZZANO[49] que enuncia uma importante advertência:

«Devo apontar, contudo, que, para o efeito de admitir que são afetadas normas comuns, não basta referir efeitos genéricos de natureza económica que os acordos possam ter no funcionamento do mercado interno; o que se requer, ao invés, é especificar em pormenor que aspetos da legislação da Comunidade podem ser prejudicados pelos acordos».

A verdade é que a União Europeia vem produzindo, no domínio da segurança do transporte aéreo, numerosos e significativos regulamentos, cuja aplicação na ordem jurídica interna é imediata, de acordo com o artigo 8.º, n.º 3, da Constituição.
No entanto, no caso do Protocolo de Montreal, estamos bem longe dos efeitos diretos ou mesmo indiretos dos acordos bilaterais que o TJUE condenou com um outro motivo determinante: a discriminação de companhias aéreas pertencentes a outros Estados Membros[50].
Já tivemos ocasião de referir o Regulamento (CE) n.º 2320/2002, do Parlamento e do Conselho, de 16 de dezembro, relativo ao estabelecimento de regras comuns no domínio da segurança da aviação civil[51], o qual surgiu na linha de preocupações justificadas pelos crimes aéreos cometidos em 11 de setembro de 2001, no espaço aéreo dos Estados Unidos da América. Entendeu-se que os controlos e medidas de segurança previstos ao nível da OACI e dos tratados multilaterais gerais eram insuficientes, havendo o Espaço Económico Europeu de incrementar medidas de polícia mais exigentes, designadamente em matéria de controlo no embarque dos passageiros, restrições à bagagem de mão e acesso ao cockpit das aeronaves.
O citado Regulamento, que esteve parcialmente na génese do Decreto‑Lei n.º 254/2003, de 18 de outubro, veio a ser revogado e substituído pelo Regulamento (CE) n.º 300/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2008, relativo ao estabelecimento de regras comuns no domínio da segurança da aviação civil[52].
Pretende-se fixar uma base interpretativa para o anexo 17 da Convenção de Chicago[53] e cuidar especificamente de atos de interferência ilícita nas aeronaves civis que ponham em causa a segurança da aviação civil[54].
No que concerne à Convenção de Tóquio, o Regulamento afirma não pôr em causa as obrigações assumidas pelos Estados Contratantes. Visa instituir medidas mais criteriosas «aplicáveis a bordo, ou durante o voo, de aeronaves de transportadoras aéreas comunitárias[55]».
Mais ainda. O Regulamento já vem cuidar da presença de agentes de segurança a bordo das aeronaves civis, antecipando-se, de algum modo, ao Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014. Trata-se de uma opção deixada aos Estados Membros.
São considerados artigos proibidos as «armas, explosivos ou outros dispositivos, suscetíveis de ser utilizados para a prática de atos de interferência ilícita que ponham em causa a segurança da aviação civil» (artigo 3.º, 7)).
Por seu turno, em termos que suscitariam as maiores dúvidas de inconstitucionalidade, em sede própria, um passageiro é considerado potencialmente causador de distúrbios quando tiver sido «expulso de um país, uma pessoa considerada inadmissível por motivos relacionados com a imigração ou uma pessoa sujeita a uma medida judicial de coação».
Releva fundamentalmente o enunciado no n.º 10 do Anexo I[56], motivo que justifica a sua transcrição integral:
«10. MEDIDAS DE SEGURANÇA DURANTE O VOO
1. Sem prejuízo das regras de segurança operacional da aviação aplicáveis:
a) Durante o voo, deve ser impedida a entrada de pessoas não autorizadas na cabina de pilotagem;
b) Durante o voo, os passageiros potencialmente causadores de distúrbios devem ser submetidos a medidas de segurança adequadas;
2. Devem ser tomadas medidas de segurança adequadas, como seja a formação da tripulação técnica e do pessoal de cabina, para impedir atos de interferência ilícita durante um voo.
3. Não são permitidas armas a bordo de uma aeronave, com exceção das que são transportadas no porão, salvo quando tenham sido preenchidas as condições de segurança exigidas nos termos da respetiva legislação nacional e os Estados envolvidos o autorizem.
4. O disposto no ponto 3 aplica-se igualmente aos agentes de segurança a bordo que transportem armas».

A aplicação de sanções fica a cargo dos Estados Membros, conquanto se exija que sejam «efetivas, proporcionadas e dissuasivas» (artigo 21.º).


§5.º – Das inovações contidas no Protocolo de Montreal de 4 de abril de 2014.

Cuidaremos, seguidamente, de recensear as inovações a que se propõe o Protocolo de Montreal, adotado em 4 de abril de 2014, a fim de verificar se algum condicionalismo constitucional ou outro impedem ou desaconselham a sua aprovação e ratificação.
Ao nível das definições, no Artigo II, são alterados os conceitos de aeronave em voo e o de Estado de registo da aeronave (artigo 1, n.º 3, da Convenção de Tóquio).
Ao passo que o voo se dava por iniciado logo que começasse o emprego da força motriz, o Protocolo de Montreal relega-o para o encerramento de todas as portas exteriores, findo o embarque.
O termo do voo, que coincidia com o da aterragem, prevê-se que passe a ser o da abertura de uma das portas exteriores para desembarque.
Introduz-se ainda uma menção à hipótese de aterragem forçada para determinar que a situação jurídica de aeronave em voo apenas cessa com a responsabilização da autoridade competente pela aeronave, pessoas e bens que estejam a bordo.
Por outro lado, o conceito jurídico de Estado de origem do operador passa a poder concorrer com o de Estado de registo da aeronave.
Na verdade, ao tempo da aprovação da Convenção de Tóquio a aviação comercial identificava as companhias aéreas com um determinado Estado de registo. Atualmente, são numerosas as companhias aéreas de feição marcadamente comercial e que não se identificam como companhias de bandeira. Com isto e com o aluguer de aeronaves civis por operadores é mais frequente a dissociação entre o Estado que atribui a matrícula da aeronave e o Estado da nacionalidade do operador.
O Artigo III do Protocolo de Montreal vem alargar a cláusula de salvaguarda de direitos humanos que já se encontrava no artigo 2, de modo a impedir que as normas convencionais deste instrumento possam servir de fundamento à aplicação de leis penais «de caráter político ou baseadas em discriminação racial, religiosa, nacionalidade, origem étnica, opinião política ou sexo».
Consagram-se proibições de discriminação que vão mais longe do que as reconhecidas como parte do jus cogens[57].
O Artigo IV vem tonar mais claro que a jurisdição penal, conquanto seja, em princípio do Estado de registo da aeronave, admite o concurso da jurisdição:

- Do Estado de aterragem, desde que o presumível infrator ainda se encontre a bordo;

- Do Estado de origem do operador se a aeronave for «alugada sem tripulação a um operador que tenha a sua sede nesse Estado ou, no caso de isso não se verificar, que se encontre estabelecido nesse Estado».

E, por conseguinte, a obrigação que parecia recair só no Estado de registo de adotar medidas legislativas para garantir o cumprimento da Convenção, incumbe doravante todas as Partes Contratantes a ter de providenciar por medidas legislativas que assegurem esse mesmo cumprimento, seja na qualidade de Estado de aterragem, seja na qualidade de Estado de origem do operador.
Aproveita-se para caraterizar melhor a jurisdição do Estado de aterragem, determinando que, sem prejuízo da eventual jurisdição concorrente do Estado de origem do operador, aquela tem como pressupostos:

- O seu território ter sido o último ponto de descolagem ou ser o próximo ponto de aterragem e a aeronave ali vier aterrar (regressando ao ponto de última partida, no primeiro caso) conservando a bordo o presumível infrator;

- Haver perigo para a segurança da aeronave, das pessoas e bens a bordo, «perturbando a boa ordem e disciplina a bordo».

Por sua vez, o Artigo V vem aditar um novo parágrafo ao artigo 3.º cujo teor visa harmonizar o exercício de poderes de jurisdição concorrentes.
Trata-se de instituir uma obrigação de meios sobre o Estado de registo da aeronave. Ao exercer os poderes jurisdicionais que lhe assistem sobre atos ilícitos cometidos a bordo, deve articular-se com a atividade de outros Estados a serem exercidos, ao mesmo tempo, no âmbito de poderes jurisdicionais concorrentes.
O cumprimento deste dever tem como pressuposto que o Estado de registo da aeronave haja sido notificado por outro Estado ou tenha tido conhecimento de uma investigação ou de um processo judicial iniciados. Salvaguarda-se expressamente o disposto no artigo 13 da Convenção, parecendo-nos que, no essencial, releva o enunciado no n.º 5.
Por um lado, a detenção por um Estado de alguém que se encontrasse a bordo de aeronave estrangeira, a pedido do comandante, deve comunicar essa mesma detenção, não apenas ao Estado do registo da aeronave, como também ao da nacionalidade do detido.
Por outro lado, as conclusões de um inquérito ou de outra forma de investigação por qualquer um dos Estados devem ser dados a conhecer aos demais Estados com cuja jurisdição haja elementos de conexão.
O Artigo VI do Protocolo vem revogar o disposto no artigo 5, n.º 2, da Convenção, em cujo teor se definia a extensão do conceito de voo. Como já vimos, tal definição é modificada, de modo a privilegiar o encerramento e abertura de portas da aeronave, transitando para o artigo 1, n.º 3 da Convenção.
Por meio do artigo VII, modifica-se o teor do artigo 6 da Convenção, relativo aos poderes de autoridade do comandante, por via de dois aditamentos.
Assim, o novo n.º 3 vem instituir poderes de polícia a agentes de segurança que se encontrem a bordo «ao abrigo de um acordo bilateral ou multilateral entre os Estados contratantes».
Ao contrário do que sucede com os passageiros, o agente de segurança, mesmo agindo sem autorização do comandante não está vinculado aos pressupostos do estado de necessidade.
Ele «pode tomar todas as medidas preventivas razoáveis (…) quando tiver fundadas razões para crer que essas medidas são urgentes para proteger a segurança da aeronave, das pessoas ou dos bens a bordo, de um ato de interferência ilícita e, caso o acordo o permita, da prática de infrações graves».
O novo n.º 4 tem um alcance interpretativo – deixar claro que esta atribuição de poderes a agentes de segurança não constitui nenhuma obrigação para os Estados de patrulharem as respetivas aeronaves ou de firmarem acordos que autorizem «que agentes de segurança a bordo estrangeiros atuem no seu território».
O Artigo VIII do Protocolo altera o enunciado do artigo 9 da Convenção. Se na redação originária o poder de o comandante da aeronave entregar às autoridades de um território de aterragem o presumível autor de uma infração ou suspeito de estar prestes a cometê-la tinha de basear-se num juízo de ilicitude segundo a lei do Estado de registo, pretende-se com a nova redação do n.º 1 ampliar esse juízo de ilicitude ao discernimento do comandante: «em seu entender». De outro modo, o comandante teria de ser um profundo conhecedor das mutações no direito interno dos Estados de registo das aeronaves que pilotasse.
A redação do n.º 2 e a do n.º 3 são conservadas integralmente, dispondo sobre o dever de comunicação às autoridades locais do desembarque de passageiro ou tripulante que está em vias de lhes ser entregue.
O Artigo IX modifica o artigo 10 da Convenção, em matéria de justificação da ilicitude das medidas contra a pessoa visada, desde que em conformidade com a Convenção.
A modificação porém consiste apenas em aditar à redação originária uma expressa referência ao agente de segurança que, como se viu, passa a dispor de um estatuto próprio no artigo 6.
O Artigo X acrescenta um artigo 15 bis à Convenção e possui o seguinte teor:
«1 – Os Estados Contratantes devem tomar as medidas que sejam necessárias para serem despoletados[58] os processos penais, administrativos ou qualquer outro tipo de processo judicial contra toda a pessoa que, a bordo de uma aeronave cometa uma infração ou um ato previstos no n.º 1 do artigo 1, em especial:
a) Ofensa à integridade física ou ameaça de cometer tal ofensa contra um membro da tripulação; ou
b) Recusa em obedecer às instruções legítimas dadas pelo comandante da aeronave, ou em seu nome, com a finalidade de garantir a segurança da aeronave, das pessoas ou dos bens a bordo da mesma;
2 – Nenhuma das disposições da presente Convenção deve afetar o direito de cada Estado Contratante de introduzir ou de manter na sua legislação nacional medidas apropriadas para punir atos de interferência ilícita cometidos a bordo».

Julga-se que o cumprimento desta norma já se encontra assegurado na ordem jurídica nacional por meio do Decreto-Lei n.º 254/2003, de 18 de outubro.
Temos, seguidamente, o Artigo XI do Protocolo que vem modificar a redação do artigo 16 da Convenção, de modo a incumbir as Partes Contratantes de estabelecerem a sua competência para extraditar pessoas, seja enquanto Estado de registo da aeronave, seja enquanto Estado de aterragem, nos pressupostos do artigo 3, n.º 2 bis, da Convenção.
O Artigo XII do Protocolo vem alterar o disposto no artigo 17 da Convenção de Tóquio.
Trata-se de um dever de diligência que recai sobre os Estados Contratantes na execução das medidas e exercício de poderes que lhes assistam nos termos da Convenção. A finalidade é a segurança «e os demais interesses da navegação aérea, evitando retardar desnecessariamente a aeronave, os passageiros, a tripulação ou a carga».
É aditado um n.º 2 com a redação seguinte:

«2 – A atuação de cada Estado Contratante, em cumprimento das suas obrigações ou no exercício de um poder discricionário, previstos na presente Convenção, deve conformar-se com as obrigações e com as responsabilidades dos Estados no Direito Internacional. A este respeito, cada Estado Contratante deve tomar em consideração os princípios do processo devido e do tratamento equitativo».

Pretende-se afirmar que o exercício de poderes pelos Estados Contratantes nem sempre representa apenas o simples reenvio para a jurisdição interna.
Trata-se de exercer poderes que, em parte, são regulados pelo direito internacional e que fixam em matéria processual um padrão mínimo: processo devido e tratamento equitativo.
De outro modo, a atuação em conformidade com a Convenção de Tóquio não eximiria os Estados Contratantes de responderem internacionalmente por facto ilícito.
As normas constitucionais portuguesas vão bastante além, seja no tocante às garantias do processo penal (artigo 32.º n.º 1 a n.º 9), seja no que diz respeito ao ilícito de mera ordenação social (artigo 32.º, n.º 10) e às medidas de polícia (artigo 272.º, n.º 2 e n.º 3).
Contudo, o juízo de conformidade das normas convencionais internacionais limita-se à aplicação na ordem jurídica interna, de sorte que o referido padrão mínimo pode constituir um acréscimo de proteção por parte de certos Estados Contratantes.
O Artigo XIII do Protocolo vem aditar um artigo 18 bis à Convenção com o sentido de constituir um importante direito para os Estados Contratantes que suportem encargos com a entrega ou desembarque de pessoas do interior de aeronaves.
Trata-se de consagrar o direito à reparação pelos prejuízos causados a imputar à pessoa visada e segundo o direito interno.
É verdade que apesar das alterações, subsiste uma diminuta tipicidade das medidas de polícia a bordo, em termos que poderiam deixar dúvidas acerca da conformidade com o disposto no artigo 272.º, n.º 2 e n.º 3, da Constituição.
Todavia, uma vez que as disposições da Convenção de Tóquio, antes ou depois de alteradas pelo Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, continuam dependentes de norma legislativa interna, cremos que a tipicidade fica minimamente garantida a bordo das aeronaves de registo português e nas demais situações de aplicação da lei portuguesa.
Além dos poderes do comandante neste domínio, valem as medidas previstas no direito processual penal e no direito contraordenacional.
A ser ratificado o Protocolo e uma vez vigente na ordem jurídica portuguesa, justifica-se adaptar o regime jurídico do Decreto-Lei n.º 254/2003, de 18 de outubro, em ordem a consignar a função do eventual agente de segurança, a assinalar a jurisdição portuguesa enquanto Estado da nacionalidade do operador e ainda porventura a condição de Estado de aterragem para esse mesmo efeito.
Por fim, o Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, deve revestir a forma de tratado, seja por se tratar de convenção internacional com traços marcadamente obrigacionais[59], mais do que normativos, seja por não se limitar a uma função concretizadora ou regulamentadora[60] da Convenção de Tóquio, de 14 de setembro de 1963, posto que lhe introduz modificações relevantes.
Por outro lado, com a forma e procedimento dos tratados garante-se a aprovação pela Assembleia da República em matéria que, no plano legislativo seria da sua competência reservada, ao inculcar limitações a direitos, liberdades e garantias e ao comprometer Portugal na definição de crimes e penas (artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e c), da Constituição).


§6.º – Conclusões.

Em face de quanto vem de ser exposto e satisfazendo à solicitação de Sua Excelência o Ministro dos Negócios Estrangeiros, estamos em condições de recensear as conclusões seguintes:

I) O Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, introduz alterações, aditamentos e uma revogação à Convenção de Tóquio, de 14 de setembro de 1963, há muito ratificada por Portugal;
II) Do ponto de vista da conformidade constitucional, nada desaconselha a vinculação da República Portuguesa ao Protocolo de Montreal;
III) O papel essencial de ambos os instrumentos no direito internacional é o de convencionar um regime para as medidas de polícia a bordo de aeronaves civis contra comportamentos gravemente indisciplinados ou desordeiros e o de reconhecer a jurisdição de vários Estados para crimes cometidos a bordo, perdurando a articulação com outras convenções internacionais vocacionadas, a título principal, para reprimir a captura ilícita de aeronaves, desvio de rota sob coação e outros crimes associados ao terrorismo;
IV) Embora sejam contempladas medidas de polícia muito genéricas em matéria de ordem pública a bordo, o que poderia suscitar questões de conformidade com o artigo 272.º, n.º 2 e n.º 3, da Constituição, a verdade é que a convenção internacional não consagra normas exequíveis por si mesmas, cumprindo ao legislador providenciar pelo mínimo de tipicidade das medidas a adotar sobre passageiros desordeiros pelo comandante da aeronave ou pelos membros da tripulação de cabina;
V) A vinculação portuguesa ao Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, não obriga a modificações de vulto no direito interno português, sem prejuízo da necessidade de algumas adaptações por parte do Decreto-Lei n.º 254/2003, de 18 de outubro;
VI) Do ponto de vista do direito da União Europeia, não se vê impedimento à ratificação portuguesa do citado Protocolo de Montreal, pois não invade domínio reservado à celebração de acordos pela União Europeia nem se vê que possa afetar o direito derivado que vem sendo dimanado nesta matéria;
VII) O Protocolo de Montreal, de 4 de abril de 2014, deve submeter-se às formalidades previstas para os tratados internacionais, importando a ratificação pelo Presidente da República, nos termos do artigo 135.º, alínea b), da Constituição, precedida por resolução da Assembleia da República, que, de acordo com o artigo 161.º, alínea i), da Constituição, aprove a vinculação da República Portuguesa.


Lisboa, aos 21 de abril de 2017,

O Vogal do Conselho Consultivo,


_________________________________________________________________________
(EDUARDO ANDRÉ FOLQUE DA COSTA FERREIRA)







[1] Por despacho proferido em 22 de dezembro de 2016.
[2] Aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de outubro, na redação que lhe foi conferida pela 14ª alteração, contida na Lei n.º 9/2011, de 12 de abril.
[3] Cfr. Diário do Governo, I Série, n.º 209, de 5 de setembro de 1964.
[4] http://www.icao.int/secretariat/legal (consulta em 7/3/2017).
[5] Aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei n.º 386/72, de 12 de outubro (cfr. Diário do Governo, I Série, n.º 238, de 12 de outubro de 1972).
[6] Aprovada para ratificação pelo Decreto n.º451/72, de 14 de novembro (cfr. Diário do Governo, I Série, n.º 265, de 14 de novembro de 1972).
[7] Ratificado pelo Presidente da República, por meio do Decreto n.º 22/98, de 17 de junho de 1998, precedendo aprovação pela Resolução da Assembleia da República n.º 32/98, de 17 de junho (cfr. Diário da República, I Série-A, n.º 137, de 17 de junho de 1998).
[8] Sobre cujo teor se pronunciou este Conselho através do Parecer n.º 10/2014, de 4 de junho de 2014 (Conselheiro Paulo Dá Mesquita). Esta mesma Convenção dispõe de Um Protocolo Adicional também assinado em Pequim na mesma data sob os auspícios da OACI. De acordo com a informação em linha disponibilizada por esta organização internacional, nenhum instrumento de ratificação foi depositado pela República Portuguesa.
[9] http://www.icao.int/secretariat/legal (consulta em 7/3/2017).
[10] Cfr. Artigo XVIII, 1.
[11] O Conflito de Leis Penais – Natureza e Função do Direito Penal Internacional, Coimbra Ed., Coimbra, 2008, p. 226.
[12] Artigo 1, n.º 1.
[13] Nos termos do Artigo 1, n.º 3, o voo tem início no momento em que começa a ser usada a força motriz para descolar e até ao termo da aterragem, o que, nos termos do n.º 2, compreende a eventualidade de amaragem à superfície do alto mar ou de paragem sobre território de uma das Partes Contratantes. Já para efeito de determinação dos poderes do comandante, o voo tem início com o encerramento das portas de embarque e conclui-se com a abertura para desembarque, além dos casos de aterragem forçada, em que o voo se prolonga «até que as autoridades competentes de um Estado tomem a seu cargo a aeronave, as pessoas e os bens a bordo» (artigo 5, n.º 2).
[14] Artigo 1, n.º 1, alínea a).
[15] Artigo 1, n.º 1, alínea b).
[16] Cfr. LUIS TAPIA SALINAS, Derecho Aeronáutico, 2.º ed., Bosch Ed., Barcelona, p. 681.
[17] V. IAN BROWNLIE, Princípios de Direito Internacional Público (Principles of Public International Law, 4.ª ed., Londres, 1990) Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997, p. 340
[18] Ibidem.
[19] Não raro, os voos internos obrigam a sobrevoar áreas fora da jurisdição do mesmo Estado. Basta pensar nos casos de descontinuidade territorial de alguns Estados.
[20] Sobre as funções do comandante e da tripulação de cabina, v. Deste corpo consultivo, Parecer n.º 93/2005, de 16 de dezembro de 2005, in Diário da República, II Série, n.º 63, de 29 de março de 2006.
[21] Neste sentido, v. PAULO DE SOUSA MENDES, A disciplina dos passageiros no transporte aéreo internacional, in DÁRIO MOURA VICENTE, Direito Aéreo, Coimbra Ed., Coimbra, 2012, p. 559 e seguintes.
[22] O que, em todo o caso, a bordo de aeronaves portuguesas, não cremos que deva afastar a incriminação por omissão comum de auxílio, uma vez verificados os seus pressupostos (cfr. artigo 200.º do Código Penal).
[23] Cfr. MICHAEL AKEHURST, Modern Introduction to International Law, 7.ª ed., Londres, 1997, p. 201.
[24] Ob. cit., p. 682.
[25] Ibidem.
[26] Ibidem.
[27] P. 683.
[28] Ou IATA, no acrónimo inglês: International Air Transport Association.
[29] IAN BROWNLIE, ob. cit., p. 451.
[30] O artigo 17 da Convenção de Chicago de 1944 imita-se a exigir que a aeronave se encontre registada num só Estado.
[31] Cfr. DOMINIQUE CARREAU, Droit international, 4.ª ed., Pedone ed., Paris, 1994, p. 333.
[32] Idem, p. 453.
[33] V. infra.
[34] No uso da autorização legislativa concedida ao Governo pela Assembleia da República, através da Lei n.º 50/2003, de 22 de agosto (cfr. Diário da República, I Série-A, n.º 193, de 22 de agosto de 2003), uma vez que se trata, em parte, de matéria compreendida na reserva relativa da competência legislativa parlamentar («Definição dos crimes, penas medidas de segurança e respetivos pressupostos (…)» – artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição). O diploma conheceu alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de agosto.
[35] Acerca deste regime jurídico, v. PAULO DE SOUSA MENDES, A disciplina dos passageiros no direito aéreo internacional, in DÁRIO MOURA VICENTE (org.), Estudos de Direito Aéreo, Coimbra Ed., 2012, Coimbra, pp. 551 e seguintes.
[36] In PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE/JOSÉ BRANCO (org.), Comentário das Leis Penais Extravagantes, I, UCP Ed., Lisboa, 2010, p. 213.
[37] Para o ilícito de mera ordenação social, v. Também o disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro (regime das contraordenações aeronáuticas civis).
[38] Perigo concreto, v. MIGUEL ÂNGELO CARMO, loc. cit.
[39] Redação alterada pelo Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de agosto.
[40] Redação alterada pelo Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de agosto.
[41] Redação alterada pelo Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de agosto.
[42] Alterado pelo Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de agosto.
[43] Cfr. Diário do Governo, n.º 160, I Série, de 13 de julho de 1931.
[44] No § único, em duvidosa conformidade com a tipicidade das medidas de polícia e com a proibição do excesso, garantidas pelo artigo 272.º, n.º 2, da Constituição, prevê-se que «em caso de insubordinação todos os meios empregados pelo capitão e outras pessoas, necessários para dominar e assegurar a ordem e a disciplina, serão considerados como legítimos».
[45] V. LOURENÇO VILHENA DE FREITAS, A Política Europeia em matéria de Segurança Aérea, in DÁRIO MOURA VICENTE (org.), Direito Aéreo, Coimbra Ed., Coimbra, 2012, pp. 515 e seguintes.
[46] GEERT DE BAERE, European Union external action, in European Union Law (CATHERINE BARNARD/STEVE PEERS), Oxford, 2014, p. 707.
[47] V. por todos, C-466/98 Comissão v. Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte [2002] ECR I-9427.
[48] Ob. cit., p. 716.
[49] Ibidem.
[50] Note-se, de resto, que já um Estado-Membro da União Europeia depositou junto da OACI o seu instrumento de ratificação: a República de Malta.
[51] V. supra §3.º
[52] Jornal Oficial da União Europeia, L 97, de 9 de abril de 2008, pp. 72 e seguintes. Alterado pelo Regulamento (UE) n.º 18/2010 da Comissão, de 8 de janeiro de 2010 (Jornal Oficial da União Europeia, L 7, de 12 de janeiro de 2016, pp. 3 e seguintes). Foi complementado pelo Regulamento (CE) n.º 272/2009, da Comissão, de 2 de abril de 2009 (Jornal Oficial da União Europeia, L 91, de 3 de abril de 2009, pp. 7 e seguintes), por sua vez alterado pelo Regulamento (UE) n.º 297/2010, da Comissão de 9 de abril de 2010 (Jornal Oficial da União Europeia, L 90, de 10 de abril de 2010, pp. 1 e seguintes, pelo regulamento (UE) n.º 720/2011 da Comissão de 22 de julho de 2011 (Jornal Oficial da União Europeia, L 193, de 23 de julho de 2011, p. 19), pelo Regulamento (UE) n.º 1141/2011 da Comissão de 10 de novembro de 2011 (Jornal Oficial da União Europeia, L 293, de 11 de novembro de 2011, p. 22, e pelo Regulamento (UE) n.º 245/2013 da Comissão de 19 de março de 2013 (Jornal Oficial da União Europeia, L 77, de 20 de março de 2013, p. 5). Cfr. Regulamento de Execução (UE) 2015/1998 da Comissão de 5 de novembro de 2015 (Jornal Oficial da União Europeia, L 299, de 14 de novembro de 2015, pp. 1 e seguintes) alterado pelo Regulamento de Execução (UE) 2015/2426 da Comissão de 18 de dezembro de 2015 (Jornal Oficial da União Europeia, L 334, de 22 de dezembro de 2015, p. 5, com retificação publicada no Jornal Oficial da União Europeia, L 165 de 23 de junho de 2016.
[53] Acerca dos anexos à Convenção de Chicago de 1944 e seu valor como fonte de direito pronunciou-se este Conselho Consultivo em sentido desfavorável à receção plena e automática por via do artigo 8.º, n.º 3, da Constituição, através do Parecer n.º 30/90, de 7 de novembro de 1991 (Diário da República, Série II, n.º 111, de 14 de maio de 1992).
[54] Cfr. Considerandos (1) e (2).
[55] Cfr. Considerando (7).
[56] Na redação do Regulamento (UE) n.º 18/2010.
[57] V. JORGE MIRANDA, Curso de Direito Internacional Público, 6.ª ed., Principia Ed., Cascais, 2016, pp. 129 e seguintes.
[58] Note-se que a expressão «despoletados», embora largamente usada com o sentido de «desencadear» tem significado contrário: o de desativar uma arma.
[59] V. EDUARDO ANDRÉ FOLQUE FERREIRA, Os poderes do Presidente da República na conclusão de tratados e acordos internacionais, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Joaquim Moreira da Silva Cunha, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Coimbra Ed., Coimbra, 2005, pp. 235 e seguintes.
[60] Critério adotado por JORGE MIRANDA, in Curso de Direito Internacional Público, 6.ª ed., Principia Ed., Cascais, 2016, pp. 99 e seguintes.