Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002606
Parecer: I000172005
Nº do Documento: PIN24102005001700
Descritores: ACORDO INTERNACIONAL
CONVENÇÃO BILATERAL
CRIME ORGANIZADO TRANSNACIONAL
COOPERAÇÃO JUDICIÁRIA INTERNACIONAL EM MATÉRIA PENAL
AUXILIO JUDICIÁRIO MÚTUO
TERRORISMO
BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PROTECÇÃO DE TESTEMUNHAS
PROTECÇÃO DE DADOS
Livro: 00
Numero Oficio: 969
Data Oficio: 02/15/2005
Pedido: 02/16/2005
Data de Distribuição: 03/03/2005
Relator: FÁTIMA CARVALHO
Sessões: 00
Data Informação/Parecer: 10/24/2005
Sigla do Departamento 1: MJ
Entidades do Departamento 1: MIN DA JUSTIÇA
Privacidade: [09]
Indicação 2: ASSESSOR:MARIA JOSÉ RODRIGUES
Texto Integral:

Senhor Conselheiro Procurador-Geral da República,
Excelência:



I

Por ofício subscrito pelo Chefe de Gabinete de Sua Excelência o Ministro da Justiça foi solicitado parecer da Procuradoria-Geral da República acerca do Projecto de Acordo entre o Governo da Roménia e o Governo da República Portuguesa com vista à cooperação no combate ao crime organizado, ao tráfico ilícito de droga e de substâncias psicotrópicas e precursores, ao terrorismo e a outros crimes graves, cujo texto, em língua inglesa, foi enviado por anexo.

Cumpre, pois, emitir parecer, restrito à matéria de legalidade, nos termos do artigo 37º, alínea a), do Estatuto do Ministério Público, tendo em vista a compatibilização do respectivo normativo com as normas e princípios do nosso ordenamento jurídico interno.

II

1. O projecto enviado é constituído por um preâmbulo e por 14 artigos.

Através do preâmbulo, as Partes afirmam-se conscientes da necessidade de proteger a vida, a propriedade, os direitos fundamentais e as liberdades dos seus cidadãos contra a crescente ameaça da criminalidade internacional organizada, e afirmam-se preocupadas com o crescente abuso de estupefacientes, de substâncias psicotrópicas e precursores, bem como com o crescente alargamento mundial do respectivo tráfico ilícito, manifestam a sua vontade de reunir esforços para prevenir e combater actos terroristas, e reconhecem as vantagens da cooperação internacional como factor da maior importância na prevenção e combate efectivos ao crime transnacional.

Por outro lado, consignam a conformação do Acordo às vinculações internacionais assumidas, designadamente com referência aos seguintes textos de direito internacional:

- Convenção Única sobre Estupefacientes (Nova Iorque, 1961), alterada pelo Protocolo de Geneve, de 25 de Março de 1972; Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas (Viena, 21 de Fevereiro de 1971; Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas (Viena, 20 de Dezembro de 1988); Convenção relativa ao Branqueamento, Detecção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime (Estrasburgo, 8 de Novembro de 1990); Convenção Europeia para a Repressão do Terrorismo (Estrasburgo, 27 de Janeiro de 1977); The Global Action Plan (Nova Iorque, 23 de Fevereiro de 1990); Resoluções adoptadas pelo IX Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes (Cairo, 29 de Abril - 8 de Maio de 1995).


2. Sem preocupações de absoluto rigor na tradução, nesta fase, passamos a sintetizar o articulado que integra o projecto.

O nº 1 do artigo 1º dispõe que as Partes, com respeito pelo seu direito interno, cooperarão e prestarão auxílio mútuo na descoberta e na investigação de infracções criminais de natureza internacional, particularmente, nas seguintes:

a) Actos de criminalidade internacional organizada;
b) Actividades ilícitas de cultivo, produção, aquisição, posse, distribuição, importação, exportação, trânsito e tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e seus precursores;
c) Actos de terrorismo e extremismo internacionais;
d) Infracções criminais contra a vida, saúde, liberdade das pessoas, dignidade humana e contra a propriedade;
e) Actividades ilícitas de produção, aquisição, posse, importação, exportação, trânsito e tráfico de armas, munições, explosivos, substâncias tóxicas, materiais químicos, biológicos, radioactivos e nucleares, tecnologia militar, outros artigos e tecnologias de importância estratégica;
f) Infracções criminais que tenham como objecto pedras e metais preciosos e artigos de valor histórico, cultural e artístico;
g) Fabrico e contrafacção de moeda, títulos de crédito e outros meios de pagamento non-cash, selos, documentos oficiais e outros importantes, bem como a sua distribuição e uso forjados ou contrafeitos;
h) Comércio, operações bancárias e financeiras ilegais e infracções criminais a elas associadas;
i) Lavagem de dinheiro, bem como actos de conversão, transferência, ocultação e simulação dos produtos do crime;
j) Tráfico de seres humanos, exploração de crianças e lenocínio;
k) Tráfico ilegal de órgãos e tecidos humanos;
l) Migração ilegal e residência ilegal de pessoas;
m) Jogo ilegal e formas fraudulentas utilizadas em jogo legal;
n) Furto de automóveis e outras formas fraudulentas de dispor ilegalmente de veículos motorizados;
o) Infracções criminais relacionadas com aplicações e redes informáticas ou cometidas através do uso desses equipamentos;
p) Infracções criminais contra a propriedade intelectual;
q) Corrupção,
i) Infracções criminais relacionadas com o ambiente.

O nº 2 do mesmo artigo prevê que as partes devem, de acordo com o seu direito interno, passar a cooperar no combate aos distúrbios da ordem pública.

O artigo 2º dispõe sobre as formas de comunicação entre as Partes, prevendo, para o efeito, os canais diplomáticos e a comunicação através das “Autoridades Competentes” pela implementação do acordo. Para além de aspectos procedimentais de identificação e formas de comunicação entre estas “Autoridades”, designadamente a cooperação directa – de acordo com o seu direito interno e os seus poderes e competências – prevê ainda a celebração de protocolos técnicos de cooperação com vista a alcançar os fins do acordo e a promover a sua implementação.

O artigo 3º prevê que as partes cooperem nos domínios estabelecidos no artigo 1º, de acordo com a sua legislação interna e, em especial, pelos seguintes meios:

a) Troca recíproca de informações sobre: pessoas suspeitas de estarem envolvidas na prática de crimes; organização de gangs criminais; métodos típicos dos infractores ou dos gangs; factos referentes ao tempo, local e forma de cometimento dos crimes; instalações alvo; itinerários e locais de ocultação; origem e destino de objectos de posse ilegal; circunstâncias específicas; informação sobre legislação violada e medidas tomadas para prevenir e evitar a prática desses crimes;
b) Troca de informações sobre actos de terrorismo planeados, especialmente se dirigidos contra interesses das Partes, bem como sobre grupos terroristas cujos membros planeiem, cometam ou tenham cometido tais crimes;
c) Cooperação na procura de pessoas suspeitas de terem cometido crimes ou que se furtem à responsabilidade criminal;
d) Cooperação na procura de pessoas desaparecidas, incluindo identificação de pessoas ou restos mortais de pessoas não identificadas;
e) Cooperação na implementação de medidas referentes a programas de protecção de testemunhas, trocas de informação e experiências sobre tal assunto;
f) Cooperação na procura de objectos furtados e outros objectos relacionados com actividades criminais, incluindo veículos motorizados;
g) Outras medidas policiais necessárias quando solicitadas pela “Autoridade Competente” da outra Parte;
h) Coordenação mútua da cooperação na provisão de pessoal, assistência técnica e organizacional com vista à detecção e investigação de infracções criminais, incluindo criação de grupos de trabalho conjuntos para coordenar o processo;
i) Organização de reuniões de trabalho sempre que necessárias para a preparação de medidas coordenadas;
j) Troca de informações sobre o resultado de pesquisas criminalísticas e criminológicas, sobre descoberta de crimes e técnicas de investigação, estrutura organizacional das unidades competentes, sistemas e princípios aplicáveis à formação profissional e promoção de peritos, métodos de trabalho e equipamento utilizado;
k) Disponibilização de informação sobre objectos usados na prática de crimes ou deles resultantes, bem como de amostras desses objectos se tal for solicitado pela Autoridade Competente da outra parte;
l) Troca de informações sobre gestão de sistemas de registo de cartões de identidade, de documentos de viagem e de estado civil;
m) Troca de informações sobre organização e implementação da gestão de fronteiras e medidas de controlo associadas;
n) Organização mútua de encontros de especialistas com vista a desenvolverem os seus conhecimentos, compartilhando os meios e métodos de combate ao crime;
o) Troca de textos legislativos e regulamentares, de análise e bibliografia profissional;
p) Partilha de experiências no controlo do consumo ilegal de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e seus precursores com particular atenção à possibilidade de abuso.

Os artigos seguintes – 4º, 5º, 6º e 7º – dispõem sobre a forma como se devem desenvolver os meios de cooperação previstos no artigo 3º.

Em especial, prevê-se que a cooperação se desenvolva com base em programas acordados pelas partes para determinados períodos de tempo, através de protocolos previstos no artigo 2º, ou a solicitação da Autoridade Competente. As solicitações devem ser dirigidas, por escrito, à “Autoridade Competente” da Parte solicitada através do ponto de contacto oficial, podendo a solicitação ser enviada por mail, fax, sistema de comunicação da Interpol ou outro meio acordado pelas Autoridades Competentes; em caso de urgência, pode a solicitação ser feita oralmente, devendo ser confirmada, por escrito, no prazo de 24 horas; a Parte solicitada deve responder sem atraso.

O artigo 6º permite às Partes recusar, total ou parcialmente, um pedido de assistência, informação ou cooperação, se considerar que a satisfação do solicitado é susceptível de atentar contra a soberania, segurança ou outros interesses relevantes ou se contrariar a lei interna ou acordos internacionais a que esteja vinculada. Cada Parte pode também colocar condições relativamente à satisfação da solicitação ou à utilização dos respectivos resultados.

O artigo 7º prevê a utilização da língua inglesa na implementação do acordo, ressalvando a possibilidade de, em casos específicos, as partes acordarem em sentido diverso.

O artigo 8º dispõe sobre protecção de dados pessoais (“Dados”) nas trocas de informações, prevendo que as Partes observem, de acordo com a sua lei interna, as seguintes regras:

a) A Parte que recebe os dados deve utilizá-los apenas para os fins e nas condições indicadas pela Parte que os envia;
b) Se a Parte que envia os dados o solicitar, deve a outra Parte informar sobre a sua utilização,
c) Os dados só podem ser fornecidos à entidade competente para o combate ao crime; só com o acordo escrito da Parte que os envia poderão ser fornecidos a outras entidades;
d) A Parte que envia os dados deve ter obrigação de verificar se os mesmos estão correctos e deve verificar se a transmissão é necessária e adequada. Em caso negativo, deve notificar imediatamente a outra Parte que, no caso de incorrecção, os deve corrigir e, no caso de a transmissão não ser necessária ou adequada, os deve destruir;
e) As pessoas cujos dados foram ou vão ser transmitidos devem, a seu pedido, ser informadas sobre tais dados e uso pretendido, se tal for admitido pela lei interna da Parte solicitada;
f) Sempre que sejam transmitidos dados, a Parte que os envia deve informar a outra Parte sobre o prazo em que, de acordo com a sua lei interna, os mesmos devem ser destruídos, sem prejuízo de os dados referentes a uma pessoa concreta deverem ser destruídos logo que não sejam necessários. A Parte que enviou os dados deve ser informada da destruição. Em caso de cessação do acordo a destruição deve ter lugar, o mais tardar, na data da cessação;
g) As Partes devem registar o envio, a recepção e a destruição dos dados;
h) As Partes devem proteger efectivamente os dados contra o acesso não autorizado e contra alterações e publicação não autorizadas.

O artigo 9º estabelece que as Partes devem assegurar a protecção dos dados, das informações, materiais e equipamentos trocados, nos termos do Acordo, em conformidade com a lei interna da Parte que os forneceu, e ainda que o nível de segredo que tenha sido por esta estabelecido não poderá ser alterado sem o seu acordo.

Nos termos do artigo 10º, as informações, amostras e equipamentos recebidos não podem ser enviados para um outro Estado, salvo acordo escrito da parte que os enviou.

Os artigos 11º e 12º dispõem sobre aspectos funcionais ou logísticos, designadamente sobre a designação de um oficial de ligação, que promoverá os contactos e facilitará as comunicações e outras formas de cooperação técnica, sobre os custos a suportar e sua repartição ou afectação nas diversas hipóteses de cooperação e actividades previstas.

O artigo 13º ressalva, mais uma vez, que o Acordo não poderá afectar direitos e obrigações das Partes resultantes de outros acordos internacionais, bilaterais ou multilaterais.

O último artigo (14º) dispõe sobre ratificação e entrada em vigor, duração (sem limite de prazo, podendo ser denunciado a qualquer momento por qualquer das Partes), condições e produção de efeitos da denúncia, alterações (por acordo, mediante proposta de uma das Partes), e forma de resolver divergências sobre interpretação e implementação (através de consultas entre as Partes).




III

1. Tal como é amplamente reconhecido, o fenómeno da globalização, que caracteriza as actuais estruturas económicas e sociais, ditou também a internacionalização da criminalidade, sobretudo da criminalidade organizada. A internacionalização do crime implicou que a comunidade internacional se organizasse para a combater com eficácia, recorrendo, cada vez mais, à cooperação internacional, à celebração de tratados, acordos e convenções, à harmonização das legislações internas, com vista a uma actuação operante face aos novos modelos da criminalidade.

Conforme sintetizam ANABELA RODRIGUES e LOPES DA MOTA[1], «A globalização é hoje o novo paradigma da política criminal: frente à internacionalização do crime, urge responder com a internacionalização da política do combate ao crime».

2. Diversos instrumentos internacionais, de carácter multilateral, a nível mundial ou regional, ou de carácter bilateral, têm vindo a consagrar a cooperação no combate à criminalidade e, em particular à criminalidade organizada e transnacional.

O Estado Português encontra-se vinculado nesta matéria a diversos instrumentos de direito internacional firmados sobretudo ao nível das Nações Unidas, do Conselho da Europa e da União Europeia, bem como a diversos acordos de natureza bilateral[2].

2.1. Pelas conexões que apresenta com o projecto em apreço e por ter sido igualmente ratificada pela República da Roménia, cabe referir que pelo Decreto nº 19/2004, de 2 de Abril, do Presidente da República, foi ratificada a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 5 de Novembro de 2000[3]. Pelo mesmo decreto presidencial foi designada como Autoridade Central para os efeitos previstos na Convenção, a Procuradoria-Geral da República.

Esta Convenção aplica-se às seguintes infracções criminais, sempre que sejam de natureza transnacional e envolvam um grupo criminoso organizado: participação em grupo criminoso organizado; branqueamento do produto do crime; corrupção; obstrução à justiça; infracções graves, sendo como tal consideradas, aquelas a que corresponda uma pena privativa de liberdade não inferior a 4 anos, ou pena superior.

Por outro lado, para efeito de aplicação da Convenção, entende-se por grupo criminoso organizado «um grupo estruturado de três ou mais pessoas, existindo durante um período de tempo e actuando concertadamente com a finalidade de cometer um ou mais crimes graves ou infracções estabelecidas na presente Convenção, com a intenção de obter, directa ou indirectamente, um benefício económico ou outro benefício material» (artigo 2º, alínea a)).

Para os mesmos efeitos, a infracção terá caracter transnacional, nos termos do artigo 3º, nº 2, se:
a) For cometida em mais de um Estado;
b) For cometida num só Estado, mas uma parte substancial da sua preparação, planeamento, direcção, ou controlo tenha lugar noutro Estado;
c) For cometida num só Estado, mas envolva a participação de um grupo criminoso organizado que pratique actividades criminosas em mais de um Estado;
d) For cometida num só Estado, mas produza efeitos substanciais noutro Estado.

A Convenção contém disposições sobre criminalização e medidas de combate às infracções a que respeita, bem como sobre a perda, apreensão e disposição de bens e instrumentos utilizados ou destinados a ser utilizados na prática dos respectivos crimes, e dos produtos dos mesmos, bem como normas sobre procedimentos judiciais, julgamento, sanções e extradição, tudo com referência ao mesmo elenco de infracções.

O artigo 18º, sobre “Auxílio judiciário”, dispõe que «Os Estados Partes deverão prestar reciprocamente todo o auxílio judiciário possível no âmbito das investigações, processos e procedimentos judiciais relativos às infracções previstas pela presente Convenção...», prevendo o nº 3 que o auxílio judiciário possa ser solicitado para os seguintes efeitos:
a) Recolha de testemunhos ou de depoimentos;
b) Notificação de actos judiciais;
c) Realização de buscas, apreensões e congelamentos;
d) Exame de objectos e de locais;
e) Fornecimento de informações, de elementos de prova e de pareceres de peritos;
f) Fornecimento de originais ou de cópias certificadas de documentos e de processos pertinentes, incluindo documentos administrativos, bancários, financeiros ou comerciais e documentos de empresas;
g) Identificação ou localização dos produtos do crime, bens, instrumentos ou outros elementos para fins probatórios;
h) Facilitação da comparência voluntária de pessoas no Estado Parte requerente;
i) Prestação de qualquer outro tipo de assistência compatível com o direito interno do Estado Parte requerido.

Os preceitos seguintes dispõem sobre investigações conjuntas, técnicas especiais de investigação, transferência de processos penais, estabelecimento de antecedentes penais, protecção das testemunhas, assistência e protecção às vítimas, cooperação entre autoridades competentes para a aplicação da lei, recolha, intercâmbio e análise de informações sobre a natureza da criminalidade organizada, formação e assistência técnica, prevenção, etc.

Esta Convenção tem um âmbito de aplicação delimitado, visto que se restringe a determinados tipos de crimes, e desde que assumam natureza transnacional e envolvam um grupo criminoso organizado.

Já o Projecto de Acordo em análise respeita a um conjunto mais alargado de infracções criminais, desde que assumam natureza transnacional. Por outro lado, conforme iremos analisar, os meios de cooperação previstos neste instrumento apresentam-se mais difusos e abrangentes, exorbitando por vezes do campo da cooperação judiciária e não assentam, necessariamente, na existência de um processo.
3. No âmbito do direito interno, o regime da cooperação judiciária internacional em matéria penal encontra-se consagrado na Lei nº 144/99, de 31 de Agosto[4], observando o princípio da reciprocidade e subordinando-se à protecção dos interesses da soberania, da segurança, da ordem pública e de outros interesses da República Portuguesa constitucionalmente definidos.

São contempladas as seguintes formas de cooperação: extradição, transmissão de processos penais, execução de sentenças penais, transferência de pessoas condenadas a penas e medidas de segurança privativas da liberdade, vigilância de pessoas condenadas ou libertadas condicionalmente, auxílio judiciário mútuo em matéria penal.

Por seu turno, o auxílio judiciário mútuo compreende a comunicação de informações, de actos processuais e de outros actos públicos admitidos pelo direito português, quando se afigurarem necessários à realização das finalidades do processo, bem como os actos necessários à apreensão ou à recuperação de instrumentos, objectos ou produtos da infracção» e compreende, nomeadamente:
a) A notificação de actos e entrega de documentos;
b) A obtenção de meios de prova;
c) As revistas, buscas, apreensões e perícias;
d) A notificação e audição de suspeitos, arguidos, testemunhas ou peritos;
e) O trânsito de pessoas;
f) As informações sobre o direito português ou estrangeiro e as relativas aos antecedentes penais de suspeitos, arguidos e condenados.

O Título IV deste diploma, referente a “Auxílio judiciário mútuo em matéria penal” dispõe sobre o modo como deve ser solicitado e satisfeito o pedido de auxílio, o direito aplicável, a proibição de utilizar as informações obtidas, a confidencialidade, a tramitação processual, contendo normas específicas para as diversas modalidades de auxílio previstas.

4. Entre os instrumentos de direito internacional de natureza convencional assumem particular destaque, na nossa Lei Fundamental, os tratados e os acordos, sendo o primeiro conceito adoptado num sentido restrito, respeitando apenas aos tratados solenes - que, além do mais, exigem a ratificação do Presidente da República -, respeitando os acordos aos «tratados sob forma simplificada» que, após aprovados por Decreto do Governo ou Resolução da Assembleia da República, apenas exigem a assinatura do Presidente da República[5].

Segundo AZEVEDO SOARES[6], «o acto jurídico plurilateral, concluído entre sujeitos de direito internacional e submetido por estes à regulamentação específica deste direito, tanto pode ter a designação de carta, acordo, estatuto, pacto, convenção, tratado, protocolo, declaração, etc. O que define, portanto, esta nossa fonte de direito é o seu carácter plurilateral, a submissão da sua regulamentação ao direito internacional e a sua conclusão entre sujeitos deste ramo de direito, de nada importando, internacionalmente, a designação que lhe seja atribuída, em cada caso concreto».

Nos termos do artigo 8º da Constituição, o direito convencional vigora na ordem interna enquanto vincular o Estado Português, após ratificação ou aprovação e publicação das respectivas convenções, não sendo pacífica a questão da prevalência do direito convencional sobre o direito ordinário interno, embora a tese positiva colha importantes argumentos doutrinais[7].

Quanto ao acordo a que nos reportamos, para além de se dever conformar às normas e princípios constitucionais e de ordem pública, deve ainda compatibilizar-se com o direito interno infra-constitucional (cuja conformação o próprio projecto ressalva em diversos momentos), designadamente com a lei da cooperação judiciária, enquanto «modelo a seguir na elaboração de específicas vinculações bilaterais»[8].

IV

1. Os considerandos introdutórios do Projecto de Acordo em análise contêm a enunciação de princípios e a proclamação de vontades, em moldes habituais, não suscitando qualquer observação. Realça-se que, logo nesse momento, as Partes ressalvam o respeito pelo seu direito interno e pelos compromissos a que, no âmbito do direito internacional, se encontram já vinculadas.

Também nesse local, as partes evidenciam o seu particular empenho em combater a criminalidade transnacional organizada.

2. Os conceitos de criminalidade organizada e de criminalidade transnacional convocam alguma elaboração doutrinária já que se trata de conceitos algo difusos sem uma definição jurídica precisa. Particular contributo para o preenchimento destes conceitos poder-se-á encontrar na Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional e nas definições conceptuais que contém.

A informação-parecer deste Conselho, com o nº 146/2001, de 16 de Maio de 2002, elaborada no âmbito do respectivo processo de ratificação, contém importantes desenvolvimentos sobre tal matéria, afigurando-se pertinente transcrever as seguintes passagens:

«(...) O conceito de crime organizado ou de criminalidade organizada é algo que releva mais do campo da criminologia que do plano jurídico. É um conceito criminológico que não tem correspondência plena numa figura legal, embora uma adequada captação jurídica do fenómeno tenha sempre de passar pela incriminação da participação em associação criminosa. Mas a criminalidade organizada não se esgota na organização: exprime-se ainda num conjunto vasto de actividades delituosas (e mesmo não delituosas) desenvolvidas por essa estrutura.
(...)
Mas, mesmo do ponto de vista criminológico, não é um conceito seguro, havendo uma imprecisão nos seus contornos.
(...)
. Por sua vez, várias teorias têm sido ensaiadas com vista à caracterização do crime organizado. Designadamente, o modelo de MALTZ, já clássico na matéria, identificava nove elementos essenciais: corrupção, violência, sofisticação, continuidade, estrutura, disciplina, actividades diversificadas, envolvimento em actividades empresariais legítimas e hierarquia – mas reconhecendo a não ocorrência, por vezes, de alguns desses elementos e a sua variabilidade em termos de grau ou intensidade (x1).
(...)
CLÁUDIA MARIA CRUZ SANTOS, sem aderir propriamente a um qualquer modelo, assinala a existência de um consenso relativamente alargado, entre os vários autores, quanto a três elementos: actividade permanente e racionalizada em moldes empresariais com intuito de obter lucro por meios ilícitos; utilização ou iminência de utilização de violência; e corrupção de funcionários – a que acrescerá, como consequência da globalização, a internacionalização (x2)».

Sobre o conceito de transnacionalidade adoptado naquela Convenção escreveu-se no mesmo parecer:

«(...) A transnacionalidade é definida com base na existência de elementos de conexão dos factos a dois ou mais Estados, embora seja irrelevante que a actuação principal tenha decorrido num só Estado.
(...)
No direito nacional, o princípio da territorialidade constitui princípio-regra do regime de aplicação da lei penal no espaço: segundo o artigo 4.º, al. a), do Código Penal, “a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados (...) em território português”. Mas aquilo que deva ser considerado facto praticado em território português é estabelecido pelo artigo 7.º do mesmo diploma, que consagra o critério da ubiquidade ou solução plurilateral: “O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, (...) como naquele em que o resultado típico (...) se tiver produzido.”
Tendo o crime um qualquer elemento de conexão com o território nacional, seja pelo lado da acção seja pelo lado do resultado, será considerado como praticado em Portugal, ainda que pelo critério da ubiquidade se deva também ter por praticado no estrangeiro. Prevalece, assim, o princípio da territorialidade (x3).
Ao dizer a lei interna que releva para considerar o facto como praticado em território português o ter-se nele actuado parcialmente, resulta claro que o carácter transnacional do facto criminoso não obsta à sua criminalização pela lei interna (x4) – o que revela a conformidade desta com o critério de transnacionalidade usada pela Convenção)».

3. O artigo 1º do Projecto de Acordo contém o elenco das principais infracções criminais, de natureza internacional, em cuja descoberta e investigação as partes se propõem cooperar e prestar auxílio mútuo.

As infracções elencadas encontram, de um modo geral, correspondência no nosso direito interno, suscitando-nos reservas as seguintes menções:

– Na alínea a) a menção específica aos actos de criminalidade internacional organizada suscita as observações precedentes. De facto, parece que se pretende incluir nesta previsão toda a actividade desenvolvida pelos grupos criminosos organizados desde que se verifique o elemento de internacionalidade. No nosso direito interno a promoção, constituição, pertença ou apoio a um grupo ou associação que tem por finalidade a prática de crimes integra o crime de associação criminosa previsto e punido pelo artigo 299º do Código Penal; a doutrina aceita, hoje, que não existe qualquer restrição em função do tipo de crimes cuja prática seja visada, quer no domínio do designado direito penal primário quer do direito penal secundário (que releva de valores supra-individuais ligados à actividade económica ou social).

– A alínea c) refere-se a actos de terrorismo e de extremismo internacionais, sendo que, já nos considerandos, as Partes haviam destacado o seu empenho em unir esforços na prevenção e combate aos actos terroristas. Ora, se no nosso direito interno o terrorismo, bem como a constituição, adesão, apoio a organização terrorista e o terrorismo internacional estão previstos e tipificados como infracções criminais (actualmente. na Lei nº 52/2003, de 22 de Agosto - Lei de Combate ao Terrorismo[9]), já o conceito de extremismo, com importante significado político e sociológico, e relevando no campo dos motivos ou da determinação, não encontra qua tale autonomia e expressão nas normas penais.

– As actividades ilícitas previstas na alínea e) encontram correspondência, de um modo geral, no crime de perigo comum previsto e punido no artigo 275º do Código Penal (“Substâncias explosivas ou análogas e armas”) em cuja integração material cabe a generalidade das substâncias, materiais e armas aqui previstas. Já a menção a artigos ou tecnologias de importância estratégica, bem como a armas e tecnologia militar se inserirão, actualmente, no campo dos crimes estritamente militares, previstos e punidos pelo Código de Justiça Militar, relativamente aos quais a Lei de Cooperação Judiciária apenas permite a cooperação se também estiverem previstos na lei comum.

– A menção da alínea h) a “comércio, operações financeiras e bancárias ilegais e infracções criminais associadas” carecerá de uma interpretação que tenha em conta a sua integração sistemática, afigurando-se que apenas podem constituir seu objecto as referidas práticas ilegais (que emergem da actividade comercial, financeira e bancária) desde que, simultaneamente, constituam infracções criminais, ou seja, os dois segmentos da norma deverão ser interpretados em termos cumulativos.

– A menção da alínea i) a “lavagem de dinheiro, bem como actos de conversão, transferência, ocultação e simulação dos produtos do crime”, deve corresponder ao conceito de “branqueamento” que, na nossa ordem jurídica interna, apenas constitui infracção criminal, prevista e punida pelo artigo 368º-A do Código Penal[10], se estiverem em causa vantagens provenientes de determinados crimes nele elencados, a saber: lenocínio, abuso sexual de crianças ou de menores dependentes, extorsão, tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, tráfico de armas, fraude fiscal, tráfico de órgãos ou tecidos humanos, tráfico de espécies protegidas, tráfico de influência, corrupção e demais infracções previstas no artigo 1º da Lei nº 36/94, de 29 de Setembro, (peculato, participação económica em negócio, administração danosa em unidade económica do sector público, fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito, infracções económico-financeiras cometidas de forma organizada, com recurso à tecnologia informática, infracções económico-financeiras de dimensão internacional ou transnacional), e demais crimes puníveis com pena de prisão cujos limite mínimo seja superior a seis meses e máximo seja superior a cinco anos.

– O nº 2 do artigo 1º prevê a cooperação das Partes, de acordo com o seu direito interno, no combate aos distúrbios de ordem pública. Sobressai alguma indefinição sobre a concretização desta forma de cooperação sendo que, tal como está redigido, este dispositivo terá em vista situações de segurança interna, afigurando-se-nos que extravasa do campo da investigação e da prevenção criminal, e, em última análise, do combate ao crime, que delimitam o âmbito de aplicação do Projecto de Acordo.

4. Quanto às diversas formas previstas para a comunicação entre as Partes cabe realçar que esta matéria se mostra regulada na Lei de Cooperação Judiciária que, além do mais, designou, a Procuradoria-Geral da República como Autoridade Central, para efeitos de recepção e transmissão das comunicações (artigo 21º da Lei nº 144/99).

5. O artigo 3º prevê as formas especiais pelas quais a cooperação se deve desenvolver nos domínios definidos no artigo 1º, sem prejuízo do disposto nas respectivas leis nacionais. Tais formas especiais de cooperação merecem-nos as seguintes observações:

– As alíneas a) e b), referentes a troca de informações (a segunda, em caso de preparação da prática de crimes de terrorismo bem como sobre os seus agentes), contém uma especificação pormenorizada que, aparentemente, excede as hipóteses contempladas - embora a título não exaustivo – no artigo 145º, f), da Lei nº 144/99, a propósito do âmbito objectivo do auxílio judiciário mútuo, que apenas refere «As informações sobre o direito português ou estrangeiro e as relativas aos antecedentes penais de suspeitos, arguidos e condenados».

Trata-se de uma forma de cooperação em matéria de informação (intelligence) que se enquadra nos valores mais amplos da prevenção criminal e da segurança que se afigura aceitável.

A fórmula aberta utilizada pelo legislador, e os objectivos prosseguidos pela política de cooperação, tornam, aliás, aceitáveis as diversas hipóteses previstas no Projecto. Ressalva-se que o termo gang não tem entre nós expressão normativa acolhendo antes o Código Penal o conceito de associação criminosa, nos termos já mencionados, bem como o conceito de bando, nos casos dos crimes contra o património e de tráfico de droga[11] [12].

– Também a cooperação com vista à descoberta do paradeiro de suspeitos e pessoas evadidas à acção da justiça, à procura e identificação de pessoas desaparecidas, bem como à localização de objectos e produtos do crime (alíneas c), d) e f), do mesmo artigo) se mostra concordante com os mesmos princípios, estando a matéria referente à procura e apreensão de produtos, objectos e instrumentos do crime especificamente prevista no artigo 160º da Lei nº144/99, no âmbito dos actos particulares de auxílio judiciário.

– A cooperação na implementação de programas de protecção de testemunhas não merece qualquer reserva, sendo certo que a matéria se mostra consagrada na Lei nº 93/99, de 14 de Julho, regulamentada pelo Decreto-Lei nº 190/2003, de 22 de Agosto, e compreende, além do mais, o “programa especial de segurança” que contém algumas medidas cuja execução pode exigir a cooperação de outros Estados[13].
– Já a matéria que é objecto da alínea g) – outras formas de cooperação policial necessárias, desde que solicitadas pela Autoridade Competente – assumindo-se como fórmula aberta a formas de cooperação não especificadas não pode, ipso facto, deixar de suscitar reservas.

– Quanto às restantes formas de cooperação, previstas nas alíneas h) a k), e n) a p), do mesmo artigo 3º do Projecto de Acordo, genericamente referentes à cooperação nos domínios técnico, académico, de pesquisa, ou ainda à partilha de experiências e saberes, à realização de reuniões de trabalho entre profissionais, ou à prestação de informações sobre legislação e regulamentação aplicáveis, se mostram concordantes com os fins prosseguidos pela cooperação judiciária.

– Outras medidas, previstas nas alíneas l) e m), relevam de exigências de segurança dos Estados, não se inserindo no domínio específico do combate à criminalidade e da cooperação judiciária. Assim, aspectos como a troca de informações sobre gestão e controlo de fronteiras ou sobre sistemas de registo de documentos de identificação ou de viagem, extravasarão o objecto deste acordo, caso se pretenda que o mesmo se insira apenas naquele domínio específico.

6. Os artigos seguintes, dispondo sobre o modo como se processam os pedidos de cooperação, deverão ter em conta, no que respeita às entidades competentes, aos requisitos que os pedidos de cooperação devem observar e à respectiva tramitação, o que especificamente dispõe a Lei nº 144/99, designadamente nos artigos 20º (“Língua aplicável”), 21º (“Tramitação do pedido”), 22º (“Formas de transmissão do pedido”) e 23º (“Requisitos do pedido”), sendo que se não patenteiam relevantes divergências.

7. O artigo 8º do Projecto de Acordo refere-se ao envio e protecção de dados pessoais, estabelecendo algumas regras a observar pelas Partes, de acordo com o seu direito interno.

Tais regras mostram-se globalmente conformes às exigências da lei interna, mostrando-se conveniente, a este propósito, consignar alguns aspectos gerais do regime jurídico interno vigente nesta matéria[14]: o artigo 35º da Constituição e as normas contidas na Lei de Protecção de Dados Pessoais - Lei nº 67/98, de 26 de Outubro[15].

Prescreve o artigo 35º da Constituição:
«Artigo 35º
Utilização da Informática
1. Todos os cidadãos têm o direito de acesso aos dados informatizados que lhes digam respeito, podendo exigir a sua rectificação e actualização, e o direito de conhecer a finalidade a que se destinam, nos termos da lei.
2. A lei define o conceito de dados pessoais, bem como as condições aplicáveis ao seu tratamento automatizado, conexão, transmissão e utilização, e garante a sua protecção, designadamente através de entidade administrativa independente.
3. A informática não pode ser utilizada para tratamento de dados referentes a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica, salvo mediante consentimento expresso do titular, autorização prevista por lei com garantias de não discriminação ou para processamento de dados estatísticos não individualmente identificáveis.
4. É proíbido o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei.
5. É proíbida a atribuição de um número nacional único aos cidadãos.
6. A todos é garantido livre acesso às redes informáticas de uso público, definindo a lei o regime aplicável aos fluxos de dados transfronteiras e as formas adequadas de protecção de dados pessoais e de outros cuja salvaguarda se justifique por razões de interesse nacional.
7. Os dados pessoais constantes de ficheiros manuais gozam de protecção idêntica à prevista nos números anteriores, nos termos da lei.»

A Lei nº 67/98, de 26 de Outubro, que concretiza o transcrito preceito constitucional, proclama no seu artigo 2º o princípio geral de que «o tratamento de dados pessoais deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais».

Nas alíneas a) e b) do artigo 3º, fornece, para efeitos de sua aplicação, as definições de «dados pessoais» e de «tratamento de dados pessoais» que convém reter:

Dados pessoais: «qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social»;
Tratamento de dados pessoais («tratamento»): «qualquer operação ou conjunto de operações sobre dados pessoais, efectuadas com ou sem meios automatizados, tais como a recolha, o registo, a organização, a conservação, a adaptação ou alteração, a recuperação, a consulta, a utilização, a comunicação por transmissão, por difusão ou por qualquer outra forma de colocação à disposição, com comparação ou interconexão, bem como o bloqueio, apagamento ou destruição».
Insere-se no âmbito deste diploma o tratamento dos dados pessoais que tenham por objectivo a segurança pública, a defesa nacional ou a segurança do Estado.

O artigo 8º dispõe sobre a criação e manutenção de registos centrais e tratamento de dados pessoais referentes a suspeitas de actividades ilícitas, infracções penais e contraordenacionais, prevendo, quanto ao tratamento destes dados, a prévia autorização da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) e a pré-ordenação à consecução das finalidades legítimas do responsável bem como a salvaguarda de direitos, liberdades e garantias do titular, que se mostrem prevalecentes. No caso de tratamento de dados destinados à investigação criminal estabelece-se o princípio de que se devem limitar «ao necessário para a prevenção de um perigo concreto ou repressão de uma infracção determinada, para o exercício de competências previstas no respectivo estatuto orgânico ou noutra disposição legal e ainda nos termos de acordo ou convenção internacional de que Portugal seja parte».

A Lei regula, ainda, o exercício de diversos direitos reconhecidos ao titular (de informação, de acesso, de oposição), e estabelece normas sobre segurança e confidencialidade do tratamento.

Particular pertinência assume o artigo 19º, que estabelece os seguintes princípios aplicáveis à transferência de dados pessoais para fora da União Europeia (sendo que a República da Roménia não se integra ainda naquele espaço comunitário):

«Artigo 19º
Princípios
1 – Sem prejuízo do disposto no artigo seguinte, a transferência, para um Estado que não pertença à União Europeia, de dados pessoais que sejam objecto de tratamento ou que se destinem a sê-lo só pode realizar-se com o respeito das disposições da presente lei e se o Estado para onde são transferidos assegurar um nível de protecção adequado.
2 – A adequação do nível de protecção num Estado que não pertença à União Europeia é apreciada em função de todas as circunstâncias que rodeiem a transferência ou o conjunto de transferências de dados; em especial, devem ser tidas em consideração a natureza dos dados, a finalidade e a duração do tratamento ou tratamentos projectados, os países de origem e de destino final, as regras de direito, gerais ou sectoriais, em vigor no Estado em causa, bem como as regras profissionais e as medidas de segurança que são respeitadas nesse Estado.
3 – Cabe à CNPD (Comissão Nacional de Protecção de Dados) decidir se um Estado que não pertença à União Europeia assegura um nível de protecção adequado.
4 – A CNPD comunica, através do Ministério dos Negócios Estrangeiros, à Comissão Europeia os casos em que tenha considerado que um Estado não assegura um nível de protecção adequado.
5 – Não é permitida a transferência de dados pessoais de natureza idêntica aos que a Comissão Europeia tiver considerado que não gozam de protecção adequada no Estado a que se destinam.»

Realça-se, pois, a necessidade de intervenção da CNPD nos termos definidos no preceito transcrito.

8. Por fim, nenhuma observação nos merecem os artigos seguintes do Projecto de Acordo, designadamente:

– Os artigos 9º e 10º, que revelam preocupações de confidencialidade, segredo e protecção relativamente aos dados, informações, objectos, equipamentos fornecidos, e que se mostram consonantes com as disposições que regulam, na lei de cooperação interna, o auxílio judiciário mútuo;

– Os artigos 11º[16] e 12º, referentes a aspectos de funcionalidade, logística e custos, devendo, contudo, ser tomadas em atenção as disposições específicas da lei de cooperação interna, designadamente o artigo 26º que consagra a regra da gratuitidade da execução de um pedido de cooperação mas estabelece, no nº 2, determinadas casos de imputação dos respectivos encargos ao Estado solicitante.


V
Em conclusão:

O Projecto de Acordo entre o Governo da República da Roménia e o Governo da República Portuguesa com vista à cooperação no combate ao crime organizado, ao tráfico ilícito de droga, de substâncias psicotrópicas e precursores, ao terrorismo e outros crimes graves, merece-nos as observações constantes da parte expositiva desta informação/parecer.


Lisboa, 24 de Outubro de 2005

A Procuradora-Geral Adjunta



(Maria de Fátima da Graça Carvalho)





[1]) Para uma Política Criminal Europeia, Coimbra Editora, 2002, página 15.
[2]) Para maior desenvolvimento, nesta parte, cfr. a informação/parecer deste Conselho nº 111/2003, de 3 de Março de 2004.
[3]) Pelo mesmo instrumento jurídico foi também ratificado o Protocolo Adicional Relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças e o Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes por Via Terrestre, Marítima e Aérea, adoptados na mesma ocasião.
[4]) Alterada pela Lei nº 104/2001, de 25 de Agosto, e pela Lei nº 48/2003, de 22 de Agosto. Sobre a matéria, cfr. LOPES DA MOTA, A nova lei de cooperação judiciária internacional em matéria penal.
[5]) Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3ª edição, página 85. Sobre os conceitos e nomenclatura adoptada cfr. informação-parecer nº 2/1998, de 15 de Abril de 1998, deste Conselho.
[6]) Lições de Direito Internacional Público, Coimbra Editora, 1988, 4ª edição, página 123 e seguintes.
[7]) Cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, obra e local citados (anotação ao artigo 8º da Constituição).
A aplicação na ordem interna dos Tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições obedece o direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático.
[8]) Cfr. informação/parecer nº 66/1998, de 15 de Fevereiro de 1999, deste Conselho.
x1) Cfr. CLÁUDIA MARIA CRUZ SANTOS, O Crime de Colarinho Branco, Stvdia Ivridica, nº 56, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 85-86.
x2) Ob. cit., pp. 86-87.
x3) Sobre esta matéria, cfr. GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, I, Verbo, Lisboa/São Paulo, 1997, 291-293.
x4) Aliás, a lei portuguesa ainda poderá ser aplicável mesmo quando a actividade criminosa decorra integralmente fora do território nacional, desde que verificadas as condições do artigo 5º do Código Penal.
[9]) Em cumprimento da Decisão-Quadro nº 20027475/JAI, do Conselho, de 13 de Junho.
10) Introduzido pela Lei nº 11/2004, de 27 de Março.
[11]) Crimes de furto qualificado e de roubo, previstos e punidos, respectivamente, nos 204º, nº 2, alínea g), e 210º, nº 1, alínea b), de tráfico de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e precursores previstos nos artigos 21º e 22º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por força do disposto na alínea j) do artigo 24º.
[12]) Sobre este último conceito, refere MAIA GONÇALVES – Código Penal Anotado, em anotação ao primeiro artigo, que se trata de «associação para a prática reiterada de crimes indeterminados» por contraposição a Komplott «associação para a prática de um ou mais crimes determinados».
[13]) Tais medidas podem consistir, nos termos do nº 2 do artigo 22º daquela Lei, designadamente em:
a) Fornecimento de documentos emitidos oficialmente de que constem elementos de identificação diferentes dos que antes constassem ou devessem constar dos documentos substituídos;
b) Alteração do aspecto fisionómico ou de aparência do corpo do beneficiário;
c) Concessão de nova habitação no país ou no estrangeiro, por tempo indeterminado;
d) Transporte gratuito da pessoa do beneficiário, do agregado familiar e dos respectivos haveres para o local da nova habitação;
e) Criação de condições para angariação de meios de subsistência;
f) Concessão de um subsídio de subsistência por um período limitado.
[14]) Cfr. sobre a matéria a informação/parecer nº 111/2003, deste Conselho, que se segue nesta parte.
[15]) Através desta lei procedeu-se à transposição para a ordem jurídica portuguesa da Directiva nº 95/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995) relativa à protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados.
[16] O artigo 11º prevê a existência de um oficial de ligação, figura definida na Decisão 2003/170/JAI do Conselho da União Europeia, de 27 de Fevereiro de 2003 (JO nº L 67, de 12 de Março de 2003) como «um representante de um Estado-Membro destacado no estrangeiro por uma autoridade policial, num ou mais países terceiros ou em organizações internacionais, a fim de aí estabelecer e manter contactos com as respectivas autoridades com vista a contribuir para a prevenção e investigação de infracções penais».