Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00003196
Parecer: P000062012
Nº do Documento: PPA25092014000600
Descritores: MINISTÉRIO DA SOLIDARIEDADE E DA SEGURANÇA SOCIAL
SECRETARIA-GERAL
DESPACHO
ACÓRDÃO ANULATÓRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
JUROS DE MORA
DIREITO DE REGRESSO
SOLIDARIEDADE LEGAL
Livro: 00
Numero Oficio: 1231
Data Oficio: 03/05/2012
Pedido: 03/07/2012
Data de Distribuição: 03/29/2012
Relator: MANUELA FLORES
Sessões: 01
Data da Votação: 09/25/2014
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: MSSS
Entidades do Departamento 1: MINISTRO DA SOLIDARIEDADE E DA SEGURANÇA SOCIAL
Posição 1: HOMOLOGADO
Data da Posição 1: 05/27/2015
Privacidade: [01]
Data do Jornal Oficial: 01-07-2015
Nº do Jornal Oficial: 126
Nº da Página do Jornal Oficial: 17609
Indicação 2: ASSESSOR: SUSANA PIRES
Área Temática:DIR ADM*ADM PUBL/DIR CONST
Ref. Pareceres:P000392010Parecer: P000392010
Legislação:CPTA ART10 ART57 ART158 N1 ART173 ART175 N3 ART179 N4 ART189 N1; CCIV ART512 N1 ART513 ART524 ART804 A 806; PORT 291/03 DE 08/04; CRP66 ART17 ART18 N1 ART22 ART205 N2; RCJ (DL 34/2008 DE 26/02) ART38; CCJ (DL 224-A/96 DE 26/11) ART73-A A 73-F; DL 74/70 DE 02/03 ART1 ART3 ART4; DL 793/76 DE 05/11; DL 275-A/93 DE 09/08; DL 503/99 DE 20/11; L 67-A/2007 DE 31/12; L 80/2013 DE 28/11; DL 48051 DE 21/11/1967 ART2 ART3; L 67/2007 DE 31/12 ART6 ART7 ART8 ART10; L 31/2008 DE 17/07; DL 167-C/2013 DE 31/12 ART4 B) ART9; DL 211/2006 DE 27/10 ART4 B) ART10; DL 2/2005 DE 05/01 ART4 N2 ART14
Direito Comunitário:
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:AC TAFA DE 08/02/2010
AC TCA SUL DE 23/03/2011 P7016/10
AC STA DE 15/05/2003 P038575A
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: 1.ª – O ordenamento jurídico português não prevê o exercício de direito de regresso entre serviços do Estado, do mesmo ministério ou de vários ministérios, relativamente ao pagamento de indemnização por atuação ou omissão administrativa ilícita;

2.ª – Apenas em matéria de responsabilidade do Estado por custas se consagra direito de regresso quando forem vários os serviços que deram origem à causa (cfr. artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 74/70, de 2 de março, na redação dada pelo artigo 132.º da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, e artigo 38.º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro);

3.ª – Assim, não é possível exercer direito de regresso para divisão do montante de juros de mora pagos pela Secretaria-Geral do Ministério da Solidariedade e da Segurança Social, no âmbito da execução de acórdão anulatório de despacho ministerial punitivo, com vista à reconstituição da situação.

Texto Integral:


Senhor Ministro da Solidariedade,
Emprego e Segurança Social,
Excelência:




I


Solicitou Vossa Excelência a emissão de parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sobre a divisão do montante de juros de mora pagos pela Secretaria-Geral do Ministério da Solidariedade e da Segurança Social no âmbito da execução do acórdão anulatório na Ação Administrativa Especial n.º 174/06.7BEALM, de 08.02.2014, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.

Cumpre, pois, emitir o parecer.


II


1. Com vista a um melhor enquadramento da questão colocada, reproduz-se, de seguida, quase na íntegra, o Parecer n.º 114, de 22 de fevereiro de 2012, da Direção de Serviços Jurídicos e Contencioso da Secretaria-Geral do (agora) Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, que esteve na base do pedido do presente parecer:

«3. Por Acórdão de 08.02.10, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada (TAFA), prolatado na ação administrativa especial n.° 174/06.7BEALM interposta pelo ex-provedor da Casa Pia de Lisboa, foi declarada a nulidade do despacho ministerial de 21.11.05, que, no culminar de procedimento disciplinar, lhe aplicou a pena de inatividade, pelo período de dois anos, a substituir pela perda de pensão por igual período, «(...) com as consequências legais, ou seja a prolação de nova decisão administrativa, tendo em conta a matéria dada por provada nos autos, e ainda, com as demais consequências legais, designadamente o reembolso do A. pela suspensão do pagamento da pensão.», (fls. 86 do aludido Acórdão junto ao Proc. 142/06-DSJC).

Em sede de execução de julgado, atento que a Caixa Geral de Aposentações (CGA) procedeu, em 02.06.10, ao pagamento ao acima identificado exequente, a título de retroativos, do montante de € 94,518,20, conforme materialidade arrolada e assente nos autos de execução 174/06.7BEALM-A que antecede, julgou o TAFA procedente a aludida ação executiva para pagamento de quantia certa, «(...) em consequência, condeno o Executado, a pagar ao Exequente, a quantia referente aos juros de mora que resultar da aplicação da taxa de 4% relativamente a cada importância parcelar (mensal) em dívida, desde a data do respetivo vencimento até 2 de junho de 2010, a pagar no prazo de 30 (trinta) dias. (...). Em caso de incumprimento do pagamento, no prazo de 30 (trinta) dias, prosseguirá a execução nos termos do artigo 179.° n.º 4 do CPTA.», (fls. 6 da aludida sentença).

Após notificação do citado Acórdão suscitou-se a questão da determinação da entidade competente para o pagamento dos citados juros, considerando a omissão legislativa sobre a matéria.

Efetivamente, decorre do n.° 1 do artigo 38.° do Regulamento das Custas Processuais (RCP), aprovado pelo artigo 18.° do Decreto-Lei n.º 34/08, de 26.02, republicado no seu Anexo III, com a epígrafe “Responsabilidade do Estado por custas”, que, «As custas processuais, multas e juros de mora devidos por quaisquer entidades públicas são suportados diretamente pelo serviço a que pertença o órgão que, de acordo com a respetiva esfera de competências, deu origem à causa, entendendo-se como tal aquele: a) Que retira utilidade direta ou no qual se projeta o prejuízo derivado da procedência da ação; ou b) A que é imputável o ato jurídico impugnado ou sobre o qual recai o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos.»

Por sua vez, o n.° 2 do citado dispositivo legal determina que, «Quando forem vários os serviços que deram origem à causa, compete à secretaria-geral do ministério (...), proceder ao pagamento, sem prejuízo do direito de regresso, calculado em função da divisão do valor total das custas pelo número de serviços envolvidos.»

Sucede que, no processo em apreço, atendendo a que não se está perante recurso administrativo (n.º 3 do citado artigo 38.° do RCP), não se apresenta claro qual o serviço que deu origem à causa e, consequentemente, deva suportar o pagamento dos juros de mora em causa, porquanto, de acordo com matéria de facto dada como provada no Acórdão de 08.02.10, do TAFA, proferido na ação administrativa especial n.° 174/07.7BEALM:

a) O processo disciplinar foi mandado instaurar, em 01.07.2003, por despacho do Inspetor-Geral do então Ministério da Segurança Social e do Trabalho, na sequência de processo de sindicância à Casa Pia de Lisboa n.° 479/2002;
b) O processo disciplinar foi instruído pela mesma Inspeção-Geral, tendo sido elaborada Nota de Culpa em 04.12.03;
c) No Relatório Final (07.04.2004), o instrutor propôs a aplicação da pena de multa de € 2.000,00, suspensa por um período de 3 anos;
d) Submetida a proposta punitiva ao, à data, Subinspector-‑Geral da Inspeção do Ministério da Segurança Social e do Trabalho, entendeu aquele, a 21.04.04, concordar com a pena proposta exceto quanto à suspensão da execução da mesma;
e) A Inspeção-Geral submeteu à consideração do membro do Governo o Relatório Final, com proposta de aplicação da citada pena mas sem suspensão, tendo sido devolvido a 06.07.04 para efeitos de prolação pelo Inspetor-Geral de despacho de concordância, ou não, o qual se manifesta a 12.07.04 pela anuência com a pena proposta pelo Subinspetor-Geral;
f) A 15.07.04 é o processo novamente devolvido à IG para esclarecer se as infrações imputadas tiverem repercussões financeiras para a Casa Pia, tendo o Subinspetor Geral informado da possibilidade de apuramento de tal questão num outro processo;
g) A Inspeção-Geral reanalisou o processo e emitiu um novo parecer, a 22.10.2004, imputando ao arguido infrações não indicadas na nota de culpa e sem o ouvir sobre as mesmas, alterando a pena inicialmente proposta para a de inatividade, pelo período de dois anos, substituída pela pena de perda de pensão por igual período;
h) A Secretaria-Geral analisou este novo parecer da Inspeção-Geral e concordou com o seu teor;
i) Por despacho de 21.11.2005 do então Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, foi decidido o processo disciplinar e aplicada ao ex-provedor da Casa Pia de Lisboa, l.P. a nova pena proposta pela Inspeção-Geral;
j) Por Acórdão de 08.02.2010, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, foi anulado o despacho ministerial, considerando a punição por infrações sobre as quais o arguido não teve possibilidade de se pronunciar.

Foram, pois, várias as entidades / serviços envolvidas (os) na decisão punitiva que foi aplicada ao ex-provedor da Casa Pia de Lisboa, I.P.

4. Assim, face à complexidade da questão e a omissão legislativa aplicável ao caso concreto, vindo a ser decidido o exercício do direito de regresso relativamente ao pagamento de juros de mora já liquidados através do orçamento desta Secretaria Geral, será de colocar à Procuradoria-Geral da República a prolação de parecer sobre a divisão do montante dos juros de mora entre as diversas entidades envolvidas, ao abrigo do disposto na alínea a) do artigo 37.º da Lei n.º 47/86, de 15.10, na redação introduzida pela Lei n.º 60/98, de 27.08.»


2. Será, ainda, pertinente atentar na sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada na Execução n.º 174/06.7 BEALM-A[1].

Ali se apreciou e decidiu o seguinte:

«3 – Cumpre apreciar e decidir, nos termos do artigo 27.° n.° 1, al. i) do CPTA.

O artigo 173.° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) determina que a Administração fica obrigada a reconstituir a situação que existiria se o ato anulado não tivesse sido praticado, o que implica o pagamento de juros de mora (cfr. Ac. do TCA Sul n.º 07016/10, de 2011-03-23 e Acórdão nele citado – Acórdão do STA de 2003-05-15, in www.dgsi.pt).

Por acórdão transitado em julgado na ação principal foi deliberado:
”I. Julgar procedente, por provada, e presente ação declarando-se a nulidade do ato impugnado, com as consequências legais, ou seja a prolação de nova decisão administrativa, tendo em conta a matéria dada por provada nos autos, e ainda com as demais consequências legais, designadamente o reembolso do A. pela suspensão do pagamento da pensão.”

O ato declarado nulo na ação principal foi a decisão de aplicação da pena de inatividade pelo período de dois anos substituída pela pena de perda de pensão por igual período.

A presente execução respeita ao efetivo reembolso do A. pela suspensão do pagamento da pensão, situação distinta da prolação de nova decisão administrativa.

No que ao reembolso respeita, resulta dos autos que foi pago pela Caixa Geral de Aposentações ao ora Exequente, o montante da pensão que deixou de auferir desde a aplicação da pena.

Acontece que o direito a receber os vários pagamentos mensais da pensão que o ora Exequente, ao longo dos dois anos, deixou de auferir, traduz-se no cumprimento de uma obrigação pecuniária, que, no caso, deveria ter sido observada anteriormente em cada um dos vários meses em que se foi vencendo encontrando-se o devedor em mora, desde o início do primeiro mês de não pagamento em abril de 2006 até ao pagamento efetuado em junho de 2010.

E o pagamento dos juros, no caso dos autos, integra consequência legal a cumprir pela Administração, em sede de execução de sentença, que consiste na obrigação de reconstituir a situação que existiria se o ato declarado nulo não tivesse sido praticado.

Na verdade, no sumário do Acórdão do STA n.° 038575A de 2003.05.15 pode ler-se que, “a reconstituição deve corrigir não só a falta desse pagamento, mas também a falta da sua tempestividade. A correção dessa falta de oportunidade na satisfação dos abonos faz-se através do pagamento de juros moratórios calculados, à taxa legal, sobre as prestações”, o que se nos afigura acontecer, independentemente de aos juros se fazer ou não menção expressa na ação declarativa.

Ou seja, “o pagamento de juros indemnizatórios pela mora no pagamento de prestações pecuniárias integra-se no universo dos deveres da Administração em execução da sentença”. In acórdão supra.

Em matéria de mora do devedor dispõe o Código Civil, nos seus artigos 804.° a 806.°, o seguinte:
Artigo 804.°

(Princípios gerais)

1 – A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
2 – O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido.
Artigo 805.°

(Momento da constituição em mora)
1 – (…)
2 – Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
(…)
Artigo 806.°

(Obrigações pecuniárias)

1. Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.
2. Os juros devidos são os juros legais, salvo se antes da mora for devido juro mais elevado ou as partes tiverem estipulado um juro moratório diferente do legal.
3. (…).”

Ora, no caso sub judice, o devedor em mora, não é a Caixa Geral de Aposentações porquanto a falta de pagamento atempado não lhe é imputável.

Na verdade, a entidade administrativa que está vinculada, por força do artigo 173.º n.° 1 do CPTA, a reconstituir a situação que existiria se o ato declarado nulo não tivesse sido praticado é o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social demandado na ação principal e nos presentes autos de execução ou o Ministério que atualmente lhe sucedeu (cfr. artigo 174.° do CPTA).

Assim os juros devem ser calculados à taxa legal de 4% prevista na Portaria n.° 291/03, de 8 de abril, relativamente a cada importância parcelar (mensal) em dívida, desde a data do respetivo vencimento.

Em consequência deve a entidade demandada proceder a tal pagamento no prazo de 30 (trinta) dias (cfr. artigo 175.° n.° 3 do CPTA).

Em caso de incumprimento do pagamento, no prazo supra, prosseguirá a execução nos termos do artigo 179.° n.° 4 do CPTA.

4 – DECISÃO

Face ao exposto, tudo visto e ponderado:

I. Julgo a ação procedente por provada, e, em consequência, condeno o Executado, a pagar ao Exequente, a quantia referente aos juros de mora que resultar da aplicação da taxa legal de 4% relativamente a cada importância parcelar (mensal) em dívida, desde a data do respetivo vencimento até 2 de junho de 2010, a pagar no prazo de 30 (trinta) dias.

II. Em caso de incumprimento do pagamento, no prazo 30 (trinta) dias, prosseguirá a execução nos termos do artigo 179.° n.° 4 do CPTA.

III. Custas pelo executado no valor de 0,25 UC (cfr. Tabela II do RCP).

IV. Registe e notifique.»


3. Na sequência da sentença do TAF de Almada acabada de referenciar, viria a ser determinada a liquidação dos juros de mora, sem prejuízo de exercício do direito de regresso[2], como se viu.

Porém, não pode, desde já, deixar-se de sublinhar que naquela sentença se considerou, designadamente, que «a entidade administrativa que está vinculada, por força do artigo 173.º n.º 1 do CPTA, a reconstituir a situação que existiria se o ato declarado nulo não tivesse sido praticado é o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social demandado na ação principal e nos presentes autos de execução ou o Ministério que atualmente lhe sucedeu (cfr. artigo 174.º do CPTA».

E, por outro lado, importa frisar que a questão colocada a este órgão consultivo se prende tão-somente com a «divisão do montante dos juros de mora entre as diversas entidades envolvidas»[3].

Antes de se avançar na análise, afigura-se-nos ser de referir alguns aspetos atinentes às decisões proferidas pelo TAF de Almada.


III


Ora, recorde-se, o acórdão proferido na ação administrativa especial acima identificada declarou a nulidade do despacho de 21 de novembro de 2005 do Ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, e, nos autos de execução daquele acórdão, requerida contra o Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, por sentença também transitada em julgado, foi o Executado condenado a pagar a quantia referente aos juros de mora.

É, portanto, indiscutível que o Ministério se encontrava obrigado ao pagamento daquela quantia.

Com efeito, as decisões dos tribunais são obrigatórias, de acordo, aliás, com o princípio proclamado no n.º 2 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa de que «[a]s decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades».

E, nos termos do n.º 1 do artigo 158.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), com a epígrafe “Obrigatoriedade das decisões judiciais”, «[a]s decisões dos tribunais administrativos são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer autoridades administrativas»[4].

Deve acrescentar-se que estando em causa um despacho ministerial devia, como foi, ser demandado o Ministério respetivo, por força do disposto no n.º 2 do artigo 10.º do CPTA, que, no caso do Estado, confere personalidade judiciária aos ministérios, quando a ação tenha por objeto a ação ou omissão de uma entidade pública.

De todo o modo, pese embora esta especificidade, há naturalmente que considerar o princípio da legitimação passiva constante do n.º 1 daquele artigo 10.º do CPTA – e concretizado mais à frente no artigo 57.º –, segundo o qual «[c]ada ação deve ser proposta contra a outra parte na relação material controvertida e, quando for caso disso, contra as pessoas ou entidades titulares de interesses contrapostos aos do autor».

Assim, face ao que se vem de expor, na relação em apreço, que envolveu Luís Rebelo, ex-Provedor da Casa Pia de Lisboa, o então Ministério da Solidariedade e da Segurança Social estava obrigado ao pagamento dos juros de mora.

Abordemos então a problemática do “direito de regresso”.


IV


1. Na consulta é feita, nos termos acima reproduzidos, referência ao artigo 38.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP)[5], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, e que a seguir, pelo seu interesse se transcreve:
«Artigo 38.º

Responsabilidade do Estado por custas

1 – As custas processuais, multas e juros de mora devidos por quaisquer entidades públicas são suportados diretamente pelo serviço a que pertença o órgão que, de acordo com a respetiva esfera de competências, deu origem à causa, entendendo-se como tal aquele:

a) Que retira utilidade direta ou no qual se projeta o prejuízo derivado da procedência da ação; ou
b) A que é imputável o ato jurídico impugnado ou sobre o qual recai o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos.

2 – Quando forem vários os serviços que deram origem à causa, compete à secretaria-geral do ministério ou, quando pertençam a diferentes ministérios, à secretaria-geral daquele que figure primeiramente na Lei Orgânica do Governo em vigor no momento da liquidação, proceder ao pagamento, sem prejuízo do direito de regresso, calculado em função da divisão do valor total das custas pelo número de serviços envolvidos.
3 – O pagamento de custas, de multas processuais ou de juros de mora referentes a processos judiciais que tenham por objeto atos dos membros do Governo proferidos no âmbito de recursos administrativos compete aos serviços que praticaram a decisão recorrida.
4 – Quando a entidade responsável nos termos dos números anteriores não possua personalidade jurídica, as custas são suportadas pela pessoa coletiva que exerça tutela sobre aquela ou a quem incumba a gestão financeira da referida entidade.
5 – A responsabilidade por custas processuais, multas e juros de mora deferida aos serviços dos ministérios e prevista nos números anteriores é independente da previsão legal, nas respetivas leis estatutárias, de receitas próprias.»

Este preceito procede, essencialmente, à divisão da responsabilidade entre os serviços do Estado pelo pagamento de custas processuais, multas e juros de mora.


2. Mas, antes do mais, importa atentar na génese daquele preceito, devendo, para este efeito, começar por aludir à Reforma do Contencioso Administrativo.

Na verdade, uma das inovações da Reforma foi consagrar o princípio da sujeição das entidades públicas ao pagamento de custas, pretendendo-se assegurar uma efetiva igualdade processual entre a Administração e os cidadãos[6].

Assim, o n.º 1 do artigo 189.º do CPTA[7], com a epígrafe “Custas”, estatui que «[o] Estado e as demais entidades públicas estão sujeitos ao pagamento de custas», remetendo-se no n.º 2 para regulação própria no Código das Custas Judiciais.

E, com efeito, mediante as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de dezembro, ao Código das Custas Judiciais[8], aquele princípio foi projetado e estendido aos processos de natureza cível, como aliás, é explicitado no preâmbulo daquele decreto-lei:

«Procede-se, igualmente, a uma profunda alteração do regime de isenção de custas, consagrando-se o princípio geral de que, salvo ponderosas exceções, todos os sujeitos processuais estão sujeitos ao pagamento de custas, independentemente da sua natureza ou qualificação jurídicas e desde que possuam capacidade económica e financeira para tal, sendo as exceções a esta regra equacionadas, sem qualquer prejuízo para os interessados, em sede de apoio judiciário.
Neste particular, estende-se aos processos de natureza cível o princípio geral de sujeição do Estado e das demais entidades públicas ao pagamento de custas judiciais, consagrado, por unanimidade dos partidos com assento na Assembleia de República, no novo Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aprovado pela Lei n.º 15/2002, de 22 de fevereiro, alterada pela Lei n.º 4-A/2003, de 19 de fevereiro. Com efeito, e por maioria de razão, não faria sentido que, sendo essa a regra na jurisdição administrativa, a mesma não fosse também aplicável na jurisdição comum.
Tal medida reveste caráter essencial para a concretização plena do direito fundamental de acesso à justiça e aos tribunais, garantindo uma efetiva igualdade processual entre a Administração e os cidadãos. Introduz-se, pois, também neste domínio, um fator de responsabilização acrescida do Estado e das demais entidades públicas pelas consequências derivadas das suas atuações e do seu comportamento processual, contribuindo, com claros benefícios para a comunidade globalmente considerada, para a moralização e racionalização do recurso aos tribunais».

A regulação das custas do processo judicial administrativo passou então a constar dos artigos 73.º-A a 73.º-F do CCJ.


3. Posteriormente, a Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, conferiu nova redação ao artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 74/70[9], de 2 de março, que se reveste de interesse na questão em apreço.

Cabe dizer que o Decreto-Lei n.º 74/70 inseria, originariamente, disposições destinadas a tomar as providências necessárias no sentido de se constituir em operações de tesouraria as reservas pecuniárias para ocorrer a despesas com a cobertura dos riscos por prejuízos causados no património do Estado, provenientes de circunstâncias acidentais ou fortuitas, e à responsabilidade pelos danos derivados de quaisquer acidentes no trabalho resultantes do exercício normal das funções dos servidores do Estado ou de quaisquer indivíduos que lhe prestem serviço[10], bem como a despesas que o Estado seja compelido a pagar por sentença dos tribunais com trânsito em julgado e com indemnizações para compensação de danos causados a terceiros (cfr. n.º 1 do artigo 1.º).

Assim, de acordo com o disposto no seu artigo 1.º, no orçamento do Ministério das Finanças, no capítulo consignado à Secretaria-Geral, é anualmente inscrita uma verba destinada ao pagamento daquelas despesas (cfr. n.º 1), sendo o montante da verba determinado pelo Ministro das Finanças (cfr. n.º 2).

O artigo 3.º estabelece, no seu n.º 1, que os processos das correspondentes despesas continuarão a ser organizados nos serviços que derem lugar ao respetivo encargo até à fase de se ordenar o pagamento, altura em que transitarão para a Secretaria-Geral do Ministério das Finanças.

O referido artigo 4.º, na sua versão originária, dispunha:

« Art. 4.º – 1. As disposições deste decreto-lei não se aplicam aos serviços com autonomia administrativa e financeira e àqueles que tenham receitas próprias.
2 – É revogado o artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 38 523, de 23 de novembro de 1951, mantendo-se em vigor o seu § único, para aplicação aos serviços que menciona.»

Na sua versão atual, após a redação dada pelo artigo 132.º da Lei n.º 67-A/2007, dispõe:
«Artigo 4.º
[...]
1 – As disposições do presente decreto-lei não se aplicam aos serviços com autonomia administrativa e financeira, nem aos dotados de autonomia administrativa e receitas próprias não consignadas, independentemente do valor dessas receitas.
2 – ……………………………………………………………………..
3 – As custas processuais, multas, atos avulsos e juros de mora inerentes a processos judiciais devidos por quaisquer entidades públicas são suportados diretamente pelo serviço a que pertença o órgão que, de acordo com a respetiva esfera de competências, deu origem à causa, entendendo-se como tal aquele:

a) Que retira utilidade direta ou no qual se projeta o prejuízo derivado da procedência da ação; ou
b) A que é imputável o ato jurídico impugnado ou sobre o qual recai o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos.

4 – Quando forem vários os serviços que deram origem à causa, compete à secretaria-geral do ministério ou, quando pertençam a diferentes ministérios, à secretaria-geral daquele que figure primeiramente na Lei Orgânica do Governo em vigor no momento da liquidação, proceder ao pagamento, sem prejuízo do direito de regresso, calculado em função da divisão do valor total das custas pelo número de serviços envolvidos.
5 – O pagamento de custas, de multas processuais ou de juros de mora referentes a processos judiciais que tenham por objeto atos dos membros do Governo proferidos no âmbito de recursos administrativos compete aos serviços que praticaram a decisão recorrida.
6 – Quando a entidade responsável nos termos dos números anteriores não possuir personalidade jurídica, as custas são suportadas pela pessoa coletiva que exerça tutela sobre aquela ou a quem incumba a gestão financeira da referida entidade.
7 – Os encargos referidos no n.º 3 decorrentes de atos praticados pelo Conselho de Ministros são suportados pela Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, para a qual a Secretaria-Geral do Ministério das Finanças e da Administração Pública transfere as correspondentes verbas, quando for necessário, mediante autorização do membro do Governo responsável pela área das finanças.»

Pode, pois, constatar-se que o supramencionado artigo 38.º do RCP, ou melhor, os seus n.os 1 a 4 correspondem, respetivamente, aos n.os 3 a 6 do preceito que se acaba de reproduzir[11].

De novo, no artigo 38.º do RCP, temos apenas o n.º 5 que, como se viu, estabelece que a responsabilidade por custas processuais, multas e juros de mora deferida aos serviços dos ministérios é independente da previsão legal, nas respetivas leis estatutárias, de receitas próprias.

Conforme sublinha Salvador da Costa, «[i]sto significa que o sistema da divisão interna da responsabilidade pelo pagamento de custas, multas e juros de mora abstrai da circunstância de alguns dos ministérios ou serviços inscrever ou não receitas próprias no respetivo orçamento»[12].


4. Aqui chegados, fica devidamente enquadrado o artigo 38.º do RCP, cujo campo de aplicação é o pagamento de custas, multas e juros de mora relativos aos processos judiciais.

De todo o modo, atentando no seu n.º 1, temos que o pagamento deve ser suportado pelo serviço a que pertença o órgão que originou a causa e que, conjugando a parte final do proémio com as duas alíneas, se estabelecem duas hipóteses de causalidade.

Na primeira hipótese, o órgão que originou a causa é aquele que retira utilidade direta ou no qual se projeta o prejuízo derivado da procedência da ação.

Na segunda hipótese, o órgão que originou a causa é aquele a quem é imputável o ato jurídico impugnado ou sobre o qual recai o dever de praticar os atos jurídicos ou observar os comportamentos pretendidos.

Ora, a segunda hipótese reporta-se, justamente, ao domínio do contencioso administrativo, em particular à ação administrativa especial, assentando no órgão a quem é imputável o ato impugnado ou sobre quem recaia o dever de o praticar ou de proceder de determinada forma.

Assim, se à situação que nos foi apresentada fosse de aplicar o normativo constante do artigo 38.º do RCP – o que não é o caso, por não se tratar de matéria de custas –, face ao disposto na parte final do proémio do n.º 1 em conjugação com a sua alínea b), teríamos que a responsabilidade pelo pagamento em causa caberia também ao Ministério que efetivamente procedeu ao pagamento.

É certo que o n.º 2 do antigo 38.º do RCP consagra o direito de regresso, mas para a situação que prevê, ou seja quando exista uma pluralidade de serviços – do mesmo ministério ou de vários ministérios – que deram origem à causa, sendo que quanto a este último aspeto haverá, naturalmente, que convocar o nº 1 do artigo 38.º, nos termos a que acabámos de aludir.

Ora, precisamente, naquele sentido, não encontramos, no caso sob consulta, uma pluralidade de serviços que tenham dado causa ao pagamento dos juros de mora.


V


Cabe, agora, alargar o nosso olhar sobre o ordenamento jurídico, com vista a análise de normas relativas a direito de regresso que possam relevar na economia da presente consulta.

Assim, não será despiciendo recordar o que nos artigos 2.º e 3.º estabelecia o Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de novembro de 1967[13], que regulava, em tudo o que não estivesse previsto em leis especiais, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas públicas no domínio dos atos de gestão pública:

Art. 2.º – 1. O Estado e demais pessoas coletivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de atos ilícitos culposamente praticados pelos respetivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício.
2. Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e demais pessoas coletivas públicas gozam do direito de regresso contra os titulares do órgão ou os agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo.
Art. 3.º – 1. Os titulares do órgão e os agentes administrativos do Estado e demais pessoas coletivas públicas respondem civilmente perante terceiros pela prática de atos ilícitos que ofendam os direitos destes ou as disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, se tiverem excedido os limites das suas funções ou se, no desempenho destas e por sua causa, tiverem procedido dolosamente.
2. Em caso de procedimento doloso, a pessoa coletiva é sempre solidariamente responsável com os titulares do órgão ou os agentes.»

Consagrava-se, pois, o direito de regresso do Estado e demais pessoas coletivas públicas contra os titulares do órgão ou os agentes culpados nos termos do n.º 2 do artigo 2.º

Mas no âmbito do Estado, e também das outras pessoas coletivas públicas, não se prevê a responsabilização dos serviços que tenham dado origem às ofensas resultantes de atos ilícitos, não se prevendo, consequentemente, neste plano, direito de regresso.

Dito de outra forma, não encontramos aqui, obviamente, nenhuma norma paralela à constante, hoje, do n.º 2 do artigo 38.º do RCJ.

Como é sabido, a Constituição da República Portuguesa consagra no artigo 22.º[14], em termos amplos, o princípio da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas, devendo notar-se a referência à solidariedade da obrigação de indemnizar.

Com efeito, estatui a responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas «… em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício…».

Nos dizeres de Maria da Glória Garcia:

«A referência à solidariedade traduz, em nosso entender, a vontade de plasmar na Constituição uma particular conceção do Estado e da sua organização. Por outras palavras, o apelo ao regime da solidariedade não pretende proteger, de um modo mais efetivo, o direito do particular à indemnização do dano que sofreu. Pretende, sim, apelar à maior diligência de todos quantos trabalham no Estado, na prossecução das funções que lhe estão legalmente cometidas»[15].

Deve, contudo, lembrar-se que, pese embora a relevância da previsão constitucional, só mais de 30 anos depois, após um complexo processo legislativo, entra em vigor, em 30 de janeiro de 2008, a Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro[16], que aprovou o novo regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas (RRCE)[17] [18].

E, apesar deste novo regime não ser aplicável na situação sob consulta, vejamos se trouxe algo de novo na matéria que nos interessa.

O novo normativo regula três vertentes da responsabilidade civil extracontratual: responsabilidade pelo exercício da função administrativa, responsabilidade pelo exercício da função jurisdicional e responsabilidade pelo exercício da função político-legislativa.

Ora, se bem que as inovações mais significativas sejam justamente nestas duas últimas vertentes, pela primeira vez, reguladas em termos sistemáticos, houve, também, no domínio da responsabilidade pelo exercício da função administrativa importantes alterações.

Assim, deverá destacar-se, entre outros aspetos, o estabelecimento da obrigatoriedade do exercício do direito de regresso (artigo 6.º do RRCE[19]) e de duas presunções de culpa leve na responsabilidade delitual (n.os 2 e 3 do artigo 10.º do RRCE[20]).

No que concerne à responsabilidade por facto ilícito, nos termos do n.º 1 do artigo 7.º do RRCE, «[o] Estado e as demais pessoas coletivas de direito público são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício».

Já, em caso de dolo ou culpa grave, os titulares de órgãos, funcionários e agentes são responsáveis pelos danos que resultem de ações ou omissões ilícitas (cfr. n.º 1 do artigo 8.º do RRCE) e o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público são responsáveis de forma solidária com os respetivos titulares de órgãos, funcionários e agentes, se aquelas ações ou omissões tiverem sido cometidas por estes no exercício das suas funções e por causa desse exercício (cfr. n.º 2 daquele artigo 8.º).

E sempre que satisfaçam qualquer indemnização nos termos do n.º 2 do artigo 8.º, «o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público gozam de direito de regresso contra os titulares de órgãos, funcionários ou agentes responsáveis, competindo aos titulares de poderes de direção, de supervisão, de superintendência ou de tutela adotar as providências necessárias à efetivação daquele direito, sem prejuízo do eventual procedimento disciplinar» (cfr. n.º 3 do mesmo artigo).

Aliás, «[s]empre que, nos termos do n.º 2 do artigo 10.º, o Estado ou uma pessoa coletiva de direito público seja condenado em responsabilidade civil fundada no comportamento ilícito adotado por um titular de órgão, funcionário ou agente, sem que tenha sido apurado o grau de culpa do titular do órgão, funcionário ou agente envolvido, a respetiva ação judicial prossegue nos próprios autos, entre a pessoa coletiva de direito público e o titular de órgão, funcionário ou agente, para apuramento do grau de culpa deste e, em função disso, do eventual exercício do direito de regresso por parte daquela» (n.º 4 do artigo 8.º).

Temos, assim, quando se trate de ações ou omissões ilícitas cometidas com dolo ou culpa grave, responsabilidade solidária do Estado (e demais entidades públicas) e os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes[21], devendo aquele, obrigatoriamente exercer o direito de regresso.

Deve sublinhar-se que, portanto, o RRCE não prevê também o exercício de direito de regresso entre serviços do Estado (ou das demais entidades públicas).


VI

1. Aqui chegados, há que realçar alguns pontos.

Na presente consulta, não está em causa o procedimento do pagamento da quantia relativa aos juros de mora em que o Ministério foi condenado pelo TAF de Almada.

Suscita-se, sim, a questão de eventual exercício do direito de regresso face às várias «entidades/serviços envolvidas (os) na decisão punitiva».

E, nos termos em que a questão é colocada, pretende-se, pois, saber da possibilidade de direito de regresso, não relativamente ao titular do órgão que emitiu a decisão punitiva, mas relativamente às entidades/serviços envolvidos. Daí referir-se a «divisão dos juros de mora».

Nesta perspetiva, parece ser de considerar os serviços do próprio Ministério condenado ao pagamento, face à natureza dos serviços referenciados.

Com efeito, a referida Inspeção-Geral é um serviço central e integra a administração direta do Estado no âmbito do, hoje, Ministério da Solidariedade, Emprego e Segurança Social (MSESS)[22].

De todo o modo, não se trata de uma situação de corresponsabilidade de várias pessoas coletivas, que nos poderia remeter para uma hipótese de concausalidade enquadrável no artigo 497.º do Código Civil.


2. O direito de regresso, como se escreve no Parecer n.º 39/2010, de 3 de fevereiro de 2011[23], «constitui uma figura jurídica presente nas obrigações solidárias, definidas no artigo 512.º, n.º 1, do Código Civil. Neste tipo de obrigações, cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera. Segundo o artigo 524.º do mesmo Código, «[o] devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete».

O regime da solidariedade só existe quando provém da lei (solidariedade legal) ou quando é estipulado pelas partes (solidariedade convencional), conforme preceitua o artigo 513.º do Código Civil».

Ora, estando afastada a hipótese de solidariedade convencional, constata-se do excurso feito, que não existe norma que estabeleça um regime de solidariedade entre os diversos serviços do Estado, salvo em matéria de custas[24].

De todo o modo, mesmo que se aplicasse ao caso em apreciação – o que não é possível, como se disse – o estabelecido quanto a custas, não haveria lugar a direito de regresso, pois, como vimos, a responsabilidade pelas custas caberia ao serviço a que pertence o órgão que emitiu o ato jurídico impugnado.

É certo que, conforme se assinalou já supra, no contencioso administrativo, na ação administrativa especial é conferida legitimidade passiva, no caso do Estado, aos ministérios, a quem é atribuída personalidade judiciária, por força do disposto no n.º 2 do artigo 10.º do CPTA.

E podemos, naturalmente, ter uma ação proposta contra vários Ministérios, que podem vir a ser condenados ao pagamento de uma quantia a título de indemnização.

Porém, não pode deixar-se de considerar que, desde logo, se trata da pessoa coletiva Estado, e que apenas por uma ficção legal é atribuída personalidade judiciária aos ministérios.

E depois, repete-se, não existe norma que preveja o exercício de direito de regresso entre serviços do Estado, ressalvada a regulação em matéria de custas.

Assim, no âmbito do contencioso administrativo, perante a condenação de um ou vários Ministérios ao pagamento de uma quantia a título de reconstituição face a uma atuação ou omissão administrativa ilegal, haverá que ter em consideração, designadamente, o modelo desenhado pelo Decreto-Lei n.º 74/70 e numa fase executiva ou pré-executiva a regulação do processo para execução de sentenças de anulação de atos administrativos constante do CPTA (artigos 173.º a 179.º [25]).


3. Voltando à questão sob consulta, na ausência de normativo que preveja o exercício de direito de regresso entre serviços do Estado relativamente a indemnização por atuação ou omissão administrativa ilegal, não é possível a divisão do montante de juros de mora pagos pela Secretaria-Geral do Ministério da Solidariedade e da Segurança Social no âmbito da execução do acórdão anulatório na Ação Administrativa Especial n.º 174/06.7 BEALM, do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.


VII


Em face do exposto, formulam-se as seguintes conclusões:

1.ª – O ordenamento jurídico português não prevê o exercício de direito de regresso entre serviços do Estado, do mesmo ministério ou de vários ministérios, relativamente ao pagamento de indemnização por atuação ou omissão administrativa ilícita;

2.ª – Apenas em matéria de responsabilidade do Estado por custas se consagra direito de regresso quando forem vários os serviços que deram origem à causa (cfr. artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 74/70, de 2 de março, na redação dada pelo artigo 132.º da Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro, e artigo 38.º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro);

3.ª – Assim, não é possível exercer direito de regresso para divisão do montante de juros de mora pagos pela Secretaria-Geral do Ministério da Solidariedade e da Segurança Social, no âmbito da execução de acórdão anulatório de despacho ministerial punitivo, com vista à reconstituição da situação.



ESTE PARECER FOI VOTADO NA SESSÃO DO CONSELHO CONSULTIVO DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA, DE 25 DE SETEMBRO DE 2014.


Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha – Maria Manuela Flores Ferreira (Relatora) – Paulo Joaquim da Mota Osório Dá Mesquita – Maria de Fátima da Graça Carvalho – Manuel Pereira Augusto de Matos – Fernando Bento – Luís Armando Bilro Verão.







[1] A nosso pedido foi-nos remetida cópia da sentença através do ofício n.º 762, de 12 de abril de 2012.
[2] Despacho de Sua Excelência o Ministro da Solidariedade e da Segurança Social exarado sobre Nota de 30 de janeiro de 2012.
[3] Ponto 4 do referido Parecer n.º 114.
[4] O n.º 2 do artigo 158.º prescreve que «[a] prevalência das decisões dos tribunais administrativos sobre as das autoridades administrativas implica a nulidade de qualquer ato administrativo que desrespeite uma decisão judicial e faz incorrer os seus autores em responsabilidade civil, criminal e disciplinar, nos termos previstos no artigo seguinte».
[5] O RCP foi já objeto de várias alterações, mantendo-se, porém, a redação originária do artigo 38.º

[6] Vide, por exemplo, Mário Aroso de Almeida/Carlos Alberto Fernandes cadilha, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, Almedina, pág. 902.
[7] Que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2004.
[8] O Código das Custas Judiciais (CCJ), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de novembro, sofreu diversas alterações e foi revogado, a partir de 20 de abril de 2009, pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro.
[9] O Decreto-Lei n.º 74/70 foi alterado pelos Decretos-Leis n.os 793/76, de 5 de novembro, 275-A/93, de 9 de agosto, e 503/99, de 20 de novembro, e pelas Leis n.os 67-A/2007, de 31 de dezembro, e 80/2013, de 28 de novembro.
[10] Cfr. resumo no Digesto.
[11] A correspondência é, aliás, integral, apenas se notando uma pequena diferença na letra do proémio do n.º 1 do artigo 38.º do RCP, que, para efeitos, da presente consulta, não tem relevo.
[12] Regulamento das Custas Processuais Anotado, 2013, 5.ª edição, Almedina, pág. 404.
[13] Revogado, a partir de 30 de janeiro de 2008, pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro de 2007.
[14] Corresponde ao n.º 1 do artigo 21.º da versão originária.
[15] “A Responsabilidade Civil do Estado e das Regiões Autónomas pelo Exercício da Função Político-legislativa e a Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades Públicas pelo Exercício da Função Administrativa”, in Revista do CEJ, 1.º semestre 2010, número 13, Dossiê Temático, Contencioso Administrativo, pág. 309.
[16] Alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de julho.
[17] A demora no desenvolvimento pela legislação ordinária da norma constitucional pode, em alguma medida, justificar-se, por um lado, no caráter inovador do Decreto-Lei n.º 48 051 e, por outro lado, por a norma do artigo 22.º da Constituição dever ser considerada como uma norma de aplicação direta, por força dos artigos 17.º e 18.º, n.º 1, também da Lei Fundamental.
[18] Sobre este novo regime, veja-se, também Marcelo Rebelo de Sousa/André Salgado de Matos, Responsabilidade Civil Administrativa, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, maio de 2008, Luís Cabral de Moncada, Responsabilidade Civil Extra-contratual do Estado, 2008, e Carlos Fernandes Cadilha, “O Novo Regime de Responsabilidade Civil do Estado e Demais Entidades Públicas pelo Exercício da Função Administrativa”, in Revista do CEJ, 1.º semestre 2009, número 11, Dossiê Temático, Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, e Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado, Anotado, Coimbra Editora, 2.ª edição, junho de 2011.
[19]
«Artigo 6.º

Direito de regresso

1 – O exercício do direito de regresso, nos casos em que este se encontra previsto na presente lei, é obrigatório, sem prejuízo do procedimento disciplinar a que haja lugar.
2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, a secretaria do tribunal que tenha condenado a pessoa coletiva remete certidão da sentença, logo após o trânsito em julgado, à entidade ou às entidades competentes para o exercício do direito de regresso.»

[20] A redação na íntegra do artigo 10.º é a seguinte:
«Artigo 10.º

Culpa
1 – A culpa dos titulares de órgãos, funcionários e agentes deve ser apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão, funcionário ou agente zeloso e cumpridor.
2 – Sem prejuízo da demonstração de dolo ou culpa grave, presume-se a existência de culpa leve na prática de atos jurídicos ilícitos.
3 – Para além dos demais casos previstos na lei, também se presume a culpa leve, por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil, sempre que tenha havido incumprimento de deveres de vigilância.
4 – Quando haja pluralidade de responsáveis, é aplicável o disposto no artigo 497.º do Código Civil.»

[21] Se houver pluralidade de titulares de órgãos, funcionários ou agentes responsáveis, a lei consagra o regime de solidariedade, segundo o qual o direito de regresso entre eles existe na medida das respetivas culpas e das consequências que delas advieram, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis (n.º 2 do artigo 497.º do Código Civil, ex vi n.º 4 do artigo 10.º do RRCE, que, aliás, corresponde ao n.º 2 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 48 051).
[22] Cfr. artigos 4.º, alínea b), e 9.º do Decreto-Lei n.º 167-C/2013, de 31 de dezembro, e, anteriormente, artigos 4.º, alínea b), e 10.º do Decreto-Lei n.º 211/2006, de 27 de outubro, e artigos 4.º, n.º 2, e 14.º do Decreto-Lei n.º 2/2005, de 5 de janeiro.
[23] Publicado no Diário da República, II série, n.º 46, de 7 de março de 2011.
[24] Cfr. supra parte IV.
[25] De acordo com o n.º 4 do artigo 179.º, «[q]uando seja devido o pagamento de uma quantia, o tribunal determina que o pagamento seja realizado no prazo de 30 dias, seguindo-se, em caso de incumprimento, os termos do processo executivo para pagamento de quantia certa».