Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00002019
Parecer: CA00272001
Nº do Documento: PCA16012003002701
Descritores: CAÇA
RECURSOS CINEGÉTICOS
BEM JURÍDICO CONSTITUCIONAL
TRANSFERÊNCIA DE GESTÃO
ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO
ZONA DE CAÇA DE INTERESSE MUNICIPAL
INTEGRAÇÃO DE TERRENOS PRIVADOS
CONSENTIMENTO DO TITULAR
DISPENSA
CONSTITUCIONALIDADE
DIREITO DE PROPRIEDADE
DIREITOS FUNDAMENTAIS DE NATUREZA ANÁLOGA
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
RESTRIÇÃO DE DIREITOS
LIMITE IMANENTE
PROTECÇÃO DO AMBIENTE
CONSERVAÇÃO DA VIDA SELVAGEM
DIREITO À NÃO CAÇA
LIBERDADE DE CAÇAR
Livro: 00
Numero Oficio: 00
Pedido: 11/12/2001
Data de Distribuição: 10/22/2002
Relator: FERNANDES CADILHA
Sessões: R1
Data da Votação: 01/16/2003
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: PGR
Entidades do Departamento 1: DESPACHO DE SUA EXA O PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
Privacidade: [01]
Data do Jornal Oficial: 02-10-2003
Nº do Jornal Oficial: 228
Nº da Página do Jornal Oficial: 14916
Indicação 2: ASSESSOR:TERESA BREIA
Área Temática:DIR CONST * DIR FUND / DIR ADM / DIR AMB / DIR REAIS
Ref. Pareceres:P000331998Parecer: P000331998
Legislação:L 173/99 DE 1999/09/21 ART3 E ART12 ART14 N1 B N2 B ART16 ART17; DL 227-B/2000 DE 2000/09/17 ART6 ART8 ART15 ART16 ART24 ART26 ART31 N2 E ART32 ART33 ART53 A ART58; DL 338/2001 DE 2001/12/26; CONST76 ART62 N1 ART66 N1 N2 B; CCIV66 ART334 ART1305 ART1318 ART1319
Direito Comunitário:
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:AC TC 866/96 DE 1996/07/04 (PROCESSO N 3/94) IN DR 292 I SÉRIE DE 1996/12/18 PAG4514
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: 1ª - A nova Lei da Caça, aprovada pela Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, estabelece como princípios basilares da política cinegética nacional o princípio do ordenamento de todo o território e o direito à não caça, entendido como a faculdade de os proprietários ou usufrutuários e arrendatários, neste caso quando o contrato de arrendamento inclua a gestão cinegética, requererem a proibição de caça nos seus terrenos (artigo 3º, alíneas c) e e));

2ª - O princípio do ordenamento do território presssupõe o progressivo desaparecimento do chamado terreno livre, que anteriormente constituia o regime cinegético geral, implicando que, de futuro, a actividade venatória deva ser exercida exclusivamente em áreas delimitadas e sujeitas a planos próprios de gestão e exploração dos recursos cinegéticos;

3ª - No novo conceito de gestão optimizada e uso racional dos recursos cinegéticos, é às zonas de caça nacionais e municipais que cabe exercer a função que era anteriormente cometida às áreas englobadas no regime cinegético geral, e que permitirá o uso livre de terrenos para o exercício da caça por todos os caçadores;

4.ª Deste modo, na linha argumentativa do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 866/96 - que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de diversas disposições regulamentares da anterior Lei da Caça -, e segundo uma interpretação actualista, são essas zonas de caça que asseguram, hoje, a utilização da propriedade privada para fins de realização de um interesse colectivo, quando entendido como o interesse lúdico da caça comum a todos os caçadores;

5.ª Todavia, por virtude da alteração do paradigma da liberdade de caçar, que surge agora confinada a uma actuação ordenada, que visa sobretudo o aproveitamento racional do património cinegético e o desenvolvimento da riqueza e valorização do mundo rural, a função social da propriedade, é, nesse plano, representada sobretudo por referência a valores ambientais;

6.ª Por outro lado, o exercício do direito à não caça, a que alude a segunda parte da conclusão 1ª, impede que terrenos privados possam permanecer integrados em zonas de caça municipais, apesar de não ser legalmente exigível, para efeito da sua criação, o consentimento expresso dos respectivos titulares de direitos reais;

7.ª Em face das antecedentes conclusões, a norma do artigo 16º da Lei da Caça, quando interpretada no sentido de que a integração de terrenos privados em zonas de caça municipais não depende da prévia obtenção do acordo titulares dos direitos reais sobre esses prédios, não enferma de inconstitucionalidade, por violação do direito de propriedade privada consagrado no artigo 62º, n.º 1, da Constituição;

8.ª Nos mesmos termos, e por identidade de razão, não é inconstitucional a norma do n.º 4 do mesmo artigo, no ponto em que permite que, por decisão administrativa, numa zona de caça de interesse municipal, venham a ser incluídos, sem prévio consentimento dos interessados, terrenos antes pertencentes a zonas de caça turísticas ou associativas e relativamente às quais foi declarada a perda do direito de exploração.

Texto Integral:

Senhor Secretário de Estado do
Desenvolvimento Rural,
Excelência:

I

1. Dignou-se Vossa Excelência solicitar a este corpo consultivo a emissão de parecer quanto à interpretação a dar às disposições conjugadas dos artigos 16º e 17º da Lei de Bases Gerais da Caça, aprovada pela Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, mormente no tocante à dispensa do acordo dos proprietários relativamente à criação de zonas de caça de interesse municipal, que, segundo se afirma, “tem constituído motivo de alguma controvérsia e contestação”, designadamente por parte dos proprietários dos terrenos eventualmente abrangidos. ([1])

Depois de invocar o acórdão do Tribunal Constitucional nº 866/96 ([2]), que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas de diplomas regulamentares da anterior Lei da Caça (Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto), que regulavam o suprimento da falta de consentimento expresso dos interessados, e de aludir à doutrina deste Conselho relativamente a aspectos de enquadramento geral da actividade venatória ([3]), o documento em que se solicita a emissão de parecer formula, a dado passo, as seguintes considerações:

“Constituindo os recursos cinegéticos um património natural renovável, a sua exploração deve ser ordenada em todo o território e sujeita a uma gestão optimizada e a um uso racional, que obedeça a princípios de sustentabilidade e de conservação.
O exercício da caça será efectuado em áreas ordenadas, com planos de ordenamento e ou exploração, para a prossecução daqueles objectivos.
Nos termos da Lei (artigo 17º), às zonas de caça municipais têm acesso todos os caçadores, contrariamente ao que sucede nas zonas de caça associativas, onde apenas têm acesso os respectivos associados e os seus convidados, e nas zonas de caça turísticas, onde vigoram as normas gerais de exploração da actividade turística. Isto é, faculta-se a todos os caçadores a possibilidade de caçarem nessas áreas, com as restrições decorrentes dos planos e da concepção ordenada do território cinegético nacional.
Assegura-se, assim, através do livre exercício venatório por parte de todos os caçadores, a satisfação de um interesse colectivo, o interesse lúdico da caça comum a todos os caçadores.
Com toda a plenitude e justificação pode invocar-se a função social da propriedade.
Uma vez que todos os caçadores podem caçar, apenas sendo condicionado o exercício venatório pela prossecução dos princípios da gestão racional e ordenada dos recursos cinegéticos, mantém-se o regime que sempre vigorou sob responsabilidade do Estado, ainda que delegada nestes casos em entidades colectivas sem fins lucrativos.
A ser entendido que para a constituição de zonas de caça municipais é necessário autorização dos proprietários, também teria de ser alargada tal exigência a todos os terrenos que desde sempre se têm mantido sob gestão do Estado, sem excepção. Tal não obsta a que, no entanto, continue a aplicar-se a norma prevista na lei segundo a qual nos terrenos cinegéticos geridos pelo Estado, directamente ou por transferência de gestão noutra entidade, as acções de fomento cinegético, isto é, sementeiras, para alimentação da fauna, a instalação de bebedouros, comedouros, etc., careçam de autorização dos titulares de direitos sobre os terrenos, no respeito pelo princípio da propriedade privada consagrado na Constituição.
Apesar de tudo o que se expõe, tendo-se suscitado dúvidas sobre a natureza do relacionamento do Estado com os proprietários dos terrenos incluídos em zonas de caça municipais definidas conforme o artigo 14º da Lei de Bases Gerais da Caça, solicito a V. Exª. se digne emitir parecer sobre a correcção da norma contida no artigo 17º da Lei nº 173/99, de 21 de Setembro.”

2. Entretanto, também a Federação Nacional de Caçadores e Proprietários, primeiro, e a Associação Nacional de Proprietários e Produtores de Caça, depois ([4]), vieram suscitar a intervenção do Senhor Procurador-Geral da República, para, fazendo uso da competência que lhe está legalmente deferida, requerer ao Tribunal Constitucional, com fundamento em violação do direito de propriedade privada consagrado no artigo 62º da Constituição da República, a declaração de inconstitucionalidade das normas na nova Lei da Caça respeitantes à constituição das zonas de caça municipais.

Após redistribuição, é o momento de emitir o solicitado parecer, tendo já em consideração a ampliação do seu objecto que eventuamente resulte das exposições entretanto endereçadas pelas associações de defesa dos interesses dos caçadores e proprietários agora mencionadas.

II
1. A questão fulcral que cabe dirimir respeita a saber se a criação de zonas de caça de interesse municipal, tal como previsto no artigo 14º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, prescinde do acordo prévio dos proprietários das parcelas de terreno abrangidas, e, em tal hipótese, se a dispensa do consentimento desses proprietários viola o direito de propriedade privada consagrado constitucionalmente.

Importa, num primeiro momento, recolher os elementos legislativos que permitam efectuar o enquadramento sistemático das normas que estão em causa.

A Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro ([5]), que constitui a Lei de Bases Gerais da Caça, doravante designada como Lei da Caça, estabelece as bases da gestão sustentada dos recursos cinegéticos, na qual se incluem a sua conservação e fomento, bem como os princípios reguladores da actividade cinegética e da administração da caça (artigo 1º).

Ao enunciar os princípios gerais da política cinegética nacional, o artigo 3º declara que os recursos cinegéticos constituem um património natural renovável (alínea a), e que a exploração, revestindo-se de interesse nacional, deverá ser ordenada de modo a satisfazer os princípios da sustentabilidade e da conservação da diversidade biológica e genética (alíneas b), c) e d)). Segundo o mesmo preceito, todos têm a faculdade de caçar, salvaguardados os condicionalismos relativos à protecção e conservação das espécies cinegéticas (alínea f)), constituindo os exemplares capturados, em regra, propriedade do caçador (alínea g)).

No entanto, pela primeira vez, é reconhecido o direito à não caça, entendido como “a faculdade dos proprietários ou usufrutuários e arrendatários, neste caso quando o contrato de arrendamento rural inclua a gestão cinegética, requererem, em condições a regular, a proibição da caça nos seus terrenos, desde que, designadamente não sejam titulares de carta de caçador e não façam valer os direitos de propriedade, de usufruto ou de arrendamento de que sejam titulares para fins venatórios ou por forma a inviabilizar zonas de caça já estabelecidas no respectivo território (artigo 3º, alínea e)).

Por outro lado, o artigo 4º atribui ao Estado determinadas tarefas, na prossecução da política cinegética nacional, de entre as quais se destacam a obrigação de “zelar pela conservação dos recursos cinegéticos e incentivar a sua gestão sustentada” e do “promover e incentivar a participação, no ordenamento cinegético, das associações de caçadores, de agricultores, de defesa do ambiente, de produtores florestais, autarquias e outras entidades interessadas na conservação, fomento e usufruto dos recursos cinegéticos, sem prejuízo de direitos reais e pessoais estabelecidos por lei e relacionados com o exercício da caça.”

2. O capítulo III da Lei da Caça, relativo à gestão e ordenamento dos recursos cinegéticos, condensa as disposições que mais directamente interessam à problemática da consulta, e que, por isso mesmo, convirá conhecer na sua integralidade.

Trata-se das normas dos artigos 12º, 14º, 16º e 17º, que prescrevem o seguinte:
“Artigo 12º
Gestão dos recursos cinegéticos

A gestão dos recursos cinegéticos compete ao Estado, podendo ser transferida ou concessionada nos termos da presente lei.”
“Artigo 14º
Zonas de caça

1- As zonas de caça, a constituir de acordo com as normas referidas no artigo anterior, podem prosseguir, designadamente objectivos da seguinte natureza:
a) De interesse nacional, a constituir em áreas que, dadas as suas características físicas e biológicas, permitam a formação de núcleos de potencialidades cinegéticas a preservar ou em áreas que por motivos de segurança justifiquem ser o Estado o único responsável pela sua administração
b) De interesse municipal, a constituir para proporcionar o exercício organizado da caça a um número maximizado de caçadores em condições especialmente acessíveis;
c) De interesse turístico, a constituir por forma a privilegiar o aproveitamento económico dos recursos cinegéticos, garantindo a prestação dos serviços turísticos adequados;
d) De interesse associativo, a constituir por forma a privilegiar o incremento e manutenção do associativismo dos caçadores, conferindo-lhes assim, a possibilidade de exercerem a gestão cinegética.
2- O Estado pode transferir para as associações e federações de caçadores, associações de agricultores de produtos florestais, de defesa do ambiente, autarquias locais ou para outras entidades colectivas integradas por estas:
a) A gestão das zonas de caça de interesse nacional;
b) A gestão das áreas referidas a terrenos cinegéticos não ordenados com vista à constituição de zonas de caça de interesse municipal.
3- A concessão das zonas de caça constituídas ao abrigo dos objectivos definidos nas alíneas c) e d) do nº 1 está sujeita ao pagamento de taxas.
4- O montante das taxas referidas no número anterior é reduzido para metade quando se trate de zonas de caça constituídas ao abrigo dos objectivos definidos na alínea d) do nº 1.
5- O exercício da caça nas zonas de interesse nacional ou municipal está sujeito ao pagamento de taxas.”

“Artigo 16º
Criação das zonas de caça

1- As zonas de caça são criadas pelo Governo através de portaria, que, nos casos de zonas de interesse turístico e associativo, estabelece os termos da concessão.
2- O estabelecimento de zonas de caça mediante concessão carece de acordo prévio escrito dos proprietários ou usufrutuários dos terrenos a integrar e dos arrendatários de prédios rústicos cujo contrato inclua a exploração cinegética, quando os houver.
3- As zonas de caça são criadas por períodos renováveis em termos a regular.
4- Quando seja declarada a perda do direito de exploração de zona de caça, o Governo poderá incluí-la numa zona de interesse nacional ou municipal ou determinar a sua passagem a área de refúgio de caça, em termos a regular.
5- As zonas de caça estabelecidas mediante concessão são constituídas por um prazo mínimo de seis anos.”
“Artigo 17º
Acesso às zonas de caça

1- Às zonas de caça de interesse nacional ou municipal têm acesso todos os caçadores.
2- Às zonas de caça referidas no número anterior têm acesso por ordem de prioridade e segundo critérios de proporcionalidade a regular:
a) Os proprietários, usufrutuários e arrendatários dos terrenos nelas inseridos, bem como os caçadores que integram os respectivos órgãos de gestão;
b) Os caçadores residentes nos municípios onde as mesmas se situam, não associados em zonas de caça integradas na mesma região cinegética;
c) Os caçadores não residentes nos municípios onde as mesmas se situam, não associados em zonas de caça integradas na mesma região cinegética;
d) Os demais caçadores.
3- Às zonas de caça de interesse turístico têm acesso todos os caçadores de acordo com as normas gerais de exploração da actividade turística.
4- Às zonas de caça de interesse associativo têm acesso os respectivos associados e os seus convidados.”

3. De acordo com o estabelecido no seu artigo 46º, a Lei da Caça deveria ser regulamentada no prazo de um ano após a sua publicação, o que determinou o diferimento da sua entrada em vigor para o termo desse prazo (artigo 53º), sendo que uma das matérias a regular seria a respeitante ao regime de criação e funcionamentro das zonas de caça, incluindo a nova figura da zona de caça municipal (artigo 46º, alínea c)) ([6]).

O diploma regulamentar é constituído pelo Decreto-Lei n.º 227-B/2000, de 15 de Setembro ([7]), que dedica todo o seu Capítulo III à gestão e ordenamento dos recursos cinegéticos, com destaque para os mecanismos de transferência de gestão e de concessão e para os procedimentos de criação das zonas de caça.

Após reafirmar, na Secção I desse Capítulo, os princípios gerais enunciados nos artigos 12º e 14º da Lei da Caça, quer quanto à competência estadual em matéria de gestão dos recursos cinegéticos, quer quanto às modalidades de zonas de caça admitidas (artigos 6º e 8º), o artigo 15º do Regulamento, inserido numa Secção II, epigrafada “Transferência de gestão”, retoma a ideia base que se encontra expressa no artigo 14º, n.º 2, daquela Lei de Caça, ao estatuir:

“1- O Estado pode transferir para associações e federações de caçadores, associações de agricultores, de produtores florestais e de defesa do ambiente, autarquias locais ou para outras entidades colectivas integradas por aquelas:
a) A gestão de ZCN;
b) A gestão das áreas referidas a terrenos cinegéticos não ordenados, com vista à constituição de ZCM.
2 – A transferência de gestão das ZCN não pode ser efectuada sempre que estejam em causa razões de segurança ou quando o valor ambiental das áreas a explorar aconselhe a que seja da responsabilidade directa do Estado a sua gestão.”

O específico desenvolvimento desta matéria consta, porém, dos subsequentes artigos 22º a 25º, que será necessário conhecer mais de perto:
“Artigo 22.º
Constituição

1- As ZCN são criadas por portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas ou por portaria conjunta deste Ministro e dos ministros competentes em razão da matéria.
2- AS ZCN são geridas pelas direcções regionais de agricultura e em conjunto com o Instituto de Conservação da Natureza nas áreas classificadas ou, sempre que estejam em causa razões de segurança, pelos serviços competentes do respectivo ministério envolvido.
3- É da responsabilidade da entidade gestora da ZCN, com o apoio da respectiva direcção regional de agricultura, quando solicitado, elaborar os planos de gestão ou de ordenamento e os planos anuais de exploração, bem como suportar os encargos com a sua gestão e funcionamento.
4 – (...)
5 - (...)”

“Artigo 23º ([8])
Transferência de gestão

1- Quando não se verifiquem os requisitos previstos no n.º 2 do artigo 15.º, o Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas pode autorizar a abertura de um processo de candidatura para a transferência de gestão de ZCN.
2- A transferência de gestão é efectuada por períodos de seis anos, através da portaria que estabelece as condições da mesma.
3- A elaboração do plano anual de exploração cabe à entidade gestora da ZCN, que suporta os encargos com a sua gestão e funcionamento e arrecada as receitas resultantes do exercício da caça.
4 – (...)
5 - (...).”

“Artigo 24.º ([9])
Transferência

1- As associações e federações de caçadores, associações de agricultores, de produtores florestais e de defesa do ambiente, autarquias locais ou outras entidades integradas por aquelas, podem requerer a transferência da gestão de terrenos cinegéticos não ordenados, mediante a apresentação de candidatura à direcção regional de agricultura respectiva.
2- Do processo de candidatura deve constar, nomeadamente:
a) Requerimento dirigido ao Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, do qual conste a identificação da entidade que se propõe gerir a ZCM, a localização e a área do terreno cinegético não ordenado para a qual se pretende a transferência;
b) Planta dos terrenos, com indicação dos inseridos em áreas classificadas, em suporte transparente durável, à escala de 1:25000, referenciada à Carta Militar de Portugal ou cartografia em suporte digital, nos termos a definir em portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas;
c) Plano de gestão, contendo, nomeadamente:
i) Apresentação genérica das acções a desenvolver;
ii) Recursos humanos e materiais a disponibilizar pela entidade candidata;
iii) Orçamento previsional e fontes de financiamento para o período de transferência;
iv) Plano anual de exploração para a época venatória em que ocorra a transferência ou para a seguinte, caso o tempo processual não o permita;
v) Proposta dos critérios de proporcionalidade a utilizar para o acesso dos caçadores e sua fundamentação;
vi) Proposta das taxas a cobrar pelo exercício da caça.”
“Artigo 25º
Constituição

1- As ZCM são criadas por portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, que define as condições da transferência de gestão.
2- As ZCM são constituídas por períodos de seis anos.
3- O exercício da caça nas ZCM está sujeito ao pagamento de taxas, cujo montante é fixado por portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas.
4- Para efeitos de assegurar uma melhor eficiência das condições de fomento e conservação das espécies nas ZCM, o exercício da caça não deve ser permitido em pelo menos um décimo da sua superfície.”

Vê-se assim que a criação das zonas de caça de interesse nacional ou municipal são sempre da competência do membro do Governo que tutela a actividade cinegética; mas quanto às primeiras, a respectiva gestão poderá manter-se sob a alçada directa do Estado, através das direcções regionais de agricultura e ou de outros serviços com competências próprias em relação aos terrenos envolvidos, enquanto as segundas são necessariamente objecto de transferência de gestão para os tipos de pessoas colectivas mencionadas que o requeiram.

É distinto, porém, o regime de constituição de zonas de caça turísticas ou associativas.

Conforme prevê o artigo 28º do Regulamento, o Estado pode concessionar a gestão dos recursos cinegéticos a:
a) associações de caçadores com um mínimo de 20 caçadores associados, tendo em vista a constituição de ZCA;
b) entidades públicas ou privadas, que tenham por objecto a exploração de actividades turísticas associadas à actividade cinegética, tendo em vista a constituição de ZCT.

O procedimento para a concessão está, por seu turno, regulado nos artigos 31º a 33º nos termos que seguem:

“Artigo 31º
Requerimento inicial

1- A concessão de zonas de caça é requerida ao Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, mediante pedido apresentado nos serviços das direcções regionais de agricultura, do qual deve constar:
a) A identificação do requerente;
b) O tipo de zona de caça pretendido, prazo de concessão e eventuais períodos de renovação automática;
c) Área total, localização e número de prédios a integrar;
d) Direitos do requerente sobre os prédios.
2- O requerimento deve ser acompanhado dos seguintes documentos:
a) Planta dos terrenos, com indicação dos inseridos em áreas classificadas, em suporte transparente durável, à escala de
1:25 000, referenciada à Carta Militar de Portugal ou cartografia em suporte digital, nos termos a definir em portaria do Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas;
b) Listagem com a identificação dos prédios a integrar e respectivos titulares;
c) Acordos escritos com os titulares de direitos sobre os prédios, nos termos do disposto no artigo seguinte;
d) Projecto do plano de ordenamento e exploração cinegético, do qual devem constar:
(...)
e) No caso de ZCT, o plano de aproveitamento turístico deverá ser instruído com:
(...)”
“Artigo 32º
Acordos

1- Os acordos devem ser subscritos pela entidade que acede ao direito de caça e pelos proprietários ou usufrutuários dos prédios rústicos a integrar na zona de caça e pelos arrendatários, quando os houver e se o contrato de arrendamento incluir a gestão cinegética, e deles devem constar:
a) Identificação dos prédios a integrar na zona de caça;
b) Prazo e condições de eventuais renovações;
c) Montante da renda e modalidades de pagamento;
d) Outras obrigações para ambas as partes.
2- No caso de terrenos do sector público, os acordos devem ser subscritos pelo órgão executivo da entidade pública a que os mesmos estejam afectos.
3- Os acordos referidos no nº 1 são válidos por prazo correspondente ao da concessão pretendida e são renovados automaticamente, caso dos mesmos conste cláusula específica.
4- Para efeitos de renovação automática da concessão, a denúncia dos acordos deve ser feita até um ano antes do termo da concessão ou renovação.
5- Qualquer alteração dos titulares dos direitos sobre os prédios integrados em zona de caça implica a realização de novo acordo, no termo do prazo da concessão ou renovação, caso o novo proprietário manifeste vontade nesse sentido.”
“Artigo 33º
Impossibilidade de acordo prévio

1- Se, apesar de todas as diligências legais efectuadas, designadamente a apresentação de certidão negativa de existência de cadastro, de buscas efectuadas nas repartições de finanças e conservatórias do registo predial ou informação negativa de identificação do parcelário agrícola, não for possível obter o consentimento prévio de algumas das pessoas mencionadas no artigo anterior, por ser desconhecida a sua identidade ou o seu paradeiro, os interessados devem solicitar uma declaração à junta de freguesia que certifique a veracidade das razões que fundamentam a dispensa de acordo prévio.
2- Se a zona de caça incluir terrenos sem o consentimento dos titulares de direitos sobre os prédios, estes podem, a todo o tempo de duração da concessão, mediante comunicação ao Ministro da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas, provocar a exclusão desses terrenos, salvo se, em tempo, for estabelecido acordo com o respectivo concessionário.”

Resta acrescentar que a decisão final pertence ainda ao Ministro da Agricultura, que poderá conceder, por portaria, a zona de caça requerida, ou, por despacho fundamentado, indeferir o pedido de concessão (artigo 36º).

III

1. Como se constata, na exploração da actividade venatória poderão confluir diversas modalidades de gestão, em consonância também com o modelo de ordenamento que tenha sido adoptado: a gestão directa, a transferência de gestão e a concessão.

Nas zonas de caça nacional, há lugar a uma gestão directa por parte do Estado, que, todavia, poderá ser transferida, dentro de certo condicionalismo, para as autarquias locais ou para associações de defesa dos interesses correlacionados com a caça; as zonas de caça municipais são directamente entregues para exploração a estes entes associativos ou às autarquias locais, segundo um procedimento próprio; por fim, as zonas de caça turísticas e as zonas de caça associativas são, respectivamente, concessionadas a pessoas colectivas públicas ou privadas que se dediquem à exploração de actividades turísticas relacionadas com a actividade venatória, ou a associações de caçadores.

Poderá ser de interesse para a temática da consulta aprofundar, em termos doutrinários, o conceito de concessão, por confronto com as concorrentes modalidades de gestão directa ou indirecta da actividade cinegética.

Uma primeira análise das disposições regulamentares permite, contudo, confirmar já um critério que surge plasmado com suficiência no artigo 16º, n.ºs 1 e 2, da Lei da Caça.

O artigo 14º desta Lei, ao reportar-se aos diferentes tipos de zonas de caça, distingue entre a transferência de gestão e a concessão (cfr. nºs 2 e 3); mas o artigo 16º, que estipula os princípios gerais em matéria de criação de zonas de caça, reserva exclusivamente a concessão para a constituição das zonas de caça turísticas e associativas (n.º 1), determinando também que o estabelecimento de zonas de caça mediante concessão carece de acordo prévio escrito dos proprietários ou usufrutuários dos terrenos a integrar, ou dos arrendatários, se for caso disso. Idêntica exigência, porém, não é feita quanto à constituição de zonas de caça de interesse municipal, que opera através da dita transferência de gestão.

Esta diferenciação de regime é assimilada pelo Regulamento, que impõe que o requerimento inicial para a concessão de zonas de caça seja instruído com acordos escritos com os titulares de direitos sobre os prédios (artigo 31º, n.º 2, alínea c)), formalidade que não tem paralelo na correspondente disposição do artigo 24º, relativa ao processo de candidatura para a transferência de gestão de zonas de caça municipais.

Poderá concluir-se, assim, com suficiente segurança, que a criação zonas de caça municipais e a subsequente transferência para entidades associativas ou autarquias locais, não depende de prévio consentimento dos proprietários dos terrenos que venham a ser abrangidos, o que igualmente tem aplicação na hipótese configurada no n.º 4 do artigo 16º, ou seja, quando a inclusão dos terrenos em zona de caça municipal resulte da perda do direito de exploração de zona de caça de outro tipo.

2. Deverá dizer-se, em todo o caso, que a dispensa do consentimento dos titulares do direito de propriedade relativamente ao exercício da caça em terrenos cinegéticos não constitui uma absoluta novidade do direito português.

A anterior Lei da Caça (Lei n.º 30/86, de 27 de Agosto) determinava no seu artigo 21º que o “estabelecimento de uma zona de regime cinegético especial carece de prévios acordos da entidade ou entidades titulares e gestoras dos terrenos a ser submetidos àquele regime, nomeadamente no que respeita à entidade que acede ao direito de caça e terrenos de caça que a eles respeitam.”

Em execução do disposto nessa norma, o artigo 63º, n.ºs 3 a 6, do Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto, ditava o seguinte:

“3- Para efeitos do número anterior, quando não for possível fazer intervir no acordo todos os proprietários e gestores dos terrenos envolvidos, constitui documento bastante a acta de reunião efectuada por iniciativa das autarquias locais onde se situem os terrenos a submeter a regime cinegético especial e da qual constem todos os elementos essenciais do acordo.
4- Para a reunião referida no número anterior devem ser convocados os proprietários e gestores dos terrenos a submeter ao regime cinegético especial, com pelo menos 30 dias de antecedência, por edital afixado nos locais do costume e em três jornais de grande circulação, regionais ou da especialidade, e o acordo resultante da reunião considera-se válido para início da instrução do processo de concessão desde que tenha obtido os votos favoráveis da maioria dos presentes.
5- Os proprietários e gestores que não estiverem presentes à reunião ou não derem o seu acordo poderão apresentar reclamação ao director-geral das Florestas, no prazo de 90 dias, a contar da data da afixação nos lugares do costume das autarquias locais onde se situem os terrenos a submeter ao regime especial, dos editais a anunciar a entrada do pedido de concessão.
6- A DGF excluirá do pedido de concessão os terrenos cujos titulares ou gestores tenham apresentado reclamação nos termos do número anterior.”

O Decreto-Lei n.º 274-A/88, de 3 de Agosto, que, no âmbito do mesmo quadro legislativo, substituiu aquele diploma regulamentar, reproduziu praticamente o regime constante daqueles outros dispositivos, admitindo, inovadoramente, que a reunião destinada a suprir o consentimento dos proprietários pudesse ser efectuada também por iniciativa da Direcção Geral das Florestas, e aditando um novo preceito para identificar os órgãos ou entidades a quem incumbia intervir no acordo relativamente aos terrenos do sector público (artigo 65º, n.ºs 3 e 5).

Finalmente, o Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro, que visou, tal como os dois diplomas que o antecederam, desenvolver o regime jurídico estabelecido pela Lei n.º 30/86, veio instituir um mais complexo processo de suprimento do consentimento dos proprietários que, no essencial, pretendia ampliar as garantias processuais concedidas aos titulares de direitos reais incidentes sobre os terrenos abrangidos por zonas de caça.

Com efeito, no artigo 71º desse diploma, sob a epígrafe “Processo especial”, determinava-se que “Quando em virtude do excessivo parcelamento da propriedade fundiária, não for possível obter os acordos prévios referidos no artigo anterior, o interessado pode requerer à Direcção-Geral das Florestas autorização para promover o processo alternativo previsto nos artigos seguintes.”

Esquematicamente, esse procedimento consistia na convocação de uma assembleia dos proprietários dos terrenos ou de titulares de outros direitos reais menores, por edital da junta de freguesia ou carta registada, quanto aos interessados identificáveis (artigo 72º), a qual deliberava a favor ou contra a constituição da zona de caça (artigos 73º e 74º), facultando-se ainda aos interessados que não tivessem participado na reunião o direito de deduzirem oposição administrativa, mediante requerimento dirigido ao Director-Geral das Florestas (artigo 74º), implicando que os respectivos terrenos, bem como os pertencentes a quem tenha participado na reunião e votado contra a deliberação favorável à concessão, ficassem excluídos da zona de caça (artigo 76º).

Foi justamente sobre estes dispositivos que recaiu o já citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 866/96, que acabou por declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação dos artigos 2º e 62º, nº 1, da Constituição, das normas dos artigos 71º a 76º do Decreto–Lei nº 251/92, de 12 de Novembro, 63º, nºs 3 a 6, do Decreto–Lei nº 311/87, de 10 de Agosto, 65º, nºs 3, 4, 6 e 7, do Decreto–Lei nº 274-A/88, de 3 de Agosto, e do artigo 56º, nºs 3, 4, 6 e 7, do Decreto Regulamentar Regional nº 18/92/M, de 30 de Julho ([10]), na parte em que, em processo especial, impõem a integração nas zonas de caça associativas e turísticas de terrenos relativamente aos quais os respectivos interessados não produziram uma efectiva manifestação de vontade no sentido dessa integração ([11]).

IV
1. Para fundamentar o julgado, o Tribunal Constitucional descreveu desenvolvidamente o enquadramento histórico da disciplina jurídica da caça, excurso esse que, pelo importante contributo que poderá fornecer para a análise interpretativa que cabe agora empreender, será conveniente retomar, sem qualquer compromisso quanto à solução a dar à questão exposta na consulta.

Escreve-se no mencionado acórdão:

“1 – Ao longo dos séculos, confrontaram-se dois sistemas ou concepções sobre o problema fundamental das relações entre o direito da caça, a propriedade da caça e o direito de propriedade: de um lado, a concepção romana segundo a qual os animais selvagens constituíam res nullius de que todos podiam apropriar-se através da occupatio, únicos título de aquisição da propriedade sobre a caça; de outro lado, o sistema germânico, para o qual o direito da caça nada mais era do que uma regalia do senhor feudal, não constituindo a caça mais do que um produto da terra.
No parecer da Câmara Corporativa nº 4/IX, sobre o projecto de lei relativo à lei da caça e do repovoamento cinegético e sobre o projecto da proposta de lei relativo ao regime jurídico da caça, Parecer (IX Legislatura), Ano de 1966, Lisboa, 1968, pp. 258 e segs., tratou-se larga e desenvolvidamente desta matéria e, considerando aqueles dois sistemas vistos à luz das realidades económico-sociais do País, escreveu-se, assim:
‘À concepção germânica da caça como fruto ou produto da terra opõem alguns o argumento de que é artificial no seu fundamento, não servindo para resolver a questão nos países ou nas regiões onde predomina a pequena propriedade, pois que a caça, pela sua mobilidade, nasce num prédio e alimenta-se e vive em vários outros, cuja determinação exacta é na realidade impossível.
É certo que essa concepção se aproxima bastante da realidade quanto à grande propriedade, mas subsiste sempre, em certa medida, a dificuldade de saber se a caça encontrada numa propriedade, porque vive em liberdade natural e por isso difere muito dos animais domésticos, nela nasceu e nela se criou e vive exclusivamente (pense-se sobretudo na caça que se encontra nas extremas dos prédios). Além de que há espécies migratórias – que nem sequer permanecem nas regiões onde nascem.
Por outro lado, argumenta-se que a concepção germânica, aplicada em toda a sua pureza e rigor, poderá levar à extinção de espaços livres, transformando o País ou uma região praticamente numa grande coutada, onde não teriam acesso os caçadores não proprietários ou desprovidos de meios económicos que lhe possibilitem tornar-se arrendatários de reservas de caça.
E isto pode impressionar num país em que a tradição da liberdade de caçar quase atribuiu ao direito à caça a natureza de um direito de personalidade, que, como tal, se compreende seja limitado, mas nunca excluído.
Por outro lado ainda, a concepção germânica pura levaria logicamente a uma situação que o sentimento jurídico das sociedades modernas não poderia deixar de considerar um verdadeiro abuso do direito. Com efeito, o proprietário, dentro de tal concepção, não só pode impedir que outrem cace nos seus terrenos como pode deixar ele próprio de aproveitar a caça aí existente e até destruir os ovos, ninhos e toda a criação, atentando contra uma riqueza pública que importa salvaguardar.
Quer isto dizer que o sistema germânico, na sua pureza, leva a tais extremos que, se quisermos salvá-lo, teremos de limitá-lo, exigindo que o proprietário só possa considerar-se dono da caça sob certas condições, como sejam as de delimitar a sua propriedade e possibilitar o seu aproveitamento racional no interesse próprio ou de terceiro.
Mas reconhece-se geralmente ao princípio germânico a grande virtude de poder contribuir eficientemente para a protecção e fomento das espécies.
Não há dúvida de que, se o proprietário quiser, ninguém melhor do que ele poderá cuidar da defesa da caça que habitualmente viva na sua propriedade. Se ele tiver estímulo à conservação da caça, ele procurará protegê-la tal como protege e defende os frutos da terra. E essa protecção, levada à escala regional ou nacional, será criadora e fomentadora de uma riqueza que a todos acabará por beneficiar.
A concepção romanista da res nullius, ou da liberdade de caçar, tem a seu favor alguns argumentos de valor.
Antes de mais deve reconhecer-se que a caça, pela sua constante mobilidade, como já se assinalou, não vive, excluindo o caso de propriedades de áreas muito extensas, num só prédio, mas reparte a sua vida por vários, cujo número só arbitrariamente poderá fixar-se.
Acresce que a propriedade privada tem o seu fundamento natural no esforço do homem, no suor do seu rosto, aparecendo como o fruto do trabalho, a condensação material dos seus esforços.
E a caça apresenta-se praticamente como uma dádiva da natureza, em que não intervém ou em que só raras vezes intervém, e em pequena medida, o esforço humano.
Por outro lado, sabe-se que a propriedade privada desempenha também uma função social, até por imperativo constitucional, e pode conceber-se que o Estado queira que ela, em geral, suporte o ónus de criar e alimentar as espécies cinegéticas destinadas à usufruição colectiva.
Neste documento recorda-se depois que o princípio romanista, enquanto limitado em certos períodos, beneficiou, entre nós, de uma longa tradição fruto de uma antiga cultura dos povos, que consideravam a caça como ‘coisa comum e não estava portanto no senhorio de coisa alguma, vindo, na continuidade dessa tradição a ser consagrado, por forma inequívoca, no Código Civil de 1867 e a manter idêntico tratamento em todas as leis que vieram depois a ser publicadas sobre o direito da caça e a propriedade da caça, mais concretamente a Lei nº 15, de 17 de Julho de 1913, o Decreto nº 18743, de 12 de Agosto de 1930 (Código da Caça de 1930), o Decreto nº 20199, de 12 de Agosto de 1931 (Código da Caça de 1931), o Decreto-Lei nº 23460, de 17 de Janeiro de 1934, e o Decreto nº 23461, na mesma data.
E, ponderando-se as virtualidades contidas nos dois sistemas, concluiu-se assim:
‘Mas é também fora de dúvida que o princípio romanista, aplicado em toda a sua plenitude, levaria à extinção da fauna cinegética.
A inteira liberdade de caçar, em face de uma legião de caçadores que aumenta progressivamente e de uma área com condições de vida para a caça cada vez mais reduzida, equivaleria à destruição total das espécies dentro de poucos anos.
Isto significa que também a concepção da caça como res nullius não serve nem pode ser aplicada em toda a sua pureza. Chegamos, assim, à conclusão de que nenhum dos sistemas em presença contém em si a virtualidade de solucionar convenientemente o problema venatório se não lhes introduzimos desvios e correcções.
Mas se assim é, se temos de eleger um deles, porque na realidade não dispomos de outros, então parece que estará indicado dar preferência ao sistema tradicional.
E pensa-se que ele poderá conduzir a resultados satisfatórios se houver a decisão necessária para o corrigir de harmonia com as realidades dos tempos de hoje.
Esta correcção consistirá, sobretudo, além da delimitação de locais em que é proibido caçar, no estabelecimento de um sistema de reservas de caça suficientemente amplo e equilibrado, que não tolha em medida incomportável os direitos dos caçadores de limitado poder económico, mas que seja meio eficaz de protecção e desenvolvimento das espécies, em primeiro lugar, que proporcione depois uma maior rendibilidade das terras, especialmente daquelas que não têm ou têm reduzida aptidão para a exploração agrícola ou florestal, e que satisfaça finalmente as necessidades de um turismo rico e exigente, como é o turismo venatório.
Eis o caminho que se nos afigura mais prudente e aconselhável.
Evitar-se-á deste modo a transição brusca de um sistema para outro, através de uma revolução jurídica que não deixaria de ter os seus graves reflexos de ordem social.’

2 – Na continuidade deste parecer, consagrando no essencial as soluções nele preconizadas, veio a ser publicada a Lei nº 2132, de 26 de Maio de 1967, depois regulamentada pelo Decreto nº 47847, de 14 de Agosto de 1967.
Estes diplomas – em sintonia, aliás, com o Código Civil entrado em vigor em 1 de Junho de 1967 – mantiveram-se fiéis à tradição romanista do direito de caça, proclamando como critério geral orientador que a caça, ‘observadas as condições e restrições convencionais e legais, pode ser exercida em todos os terrenos, nas águas interiores, no mar e nas áreas das circunscrições marítimas, sendo certo que, desde logo, se definiram locais onde era defeso caçar ou onde o exercício da caça se achava condicionado pela autorização dos proprietários ou possuidores dos respectivos terrenos (bases XIII a XV).
Simplesmente, partindo da consideração de que ’a inteira liberdade de caçar conduziria ao extermínio das espécies’, foi prevista a constituição de ‘coutadas ou coutos de caça e reservas de caça para protecção e fomento das espécies cinegéticas e para fins científicos’ (base XXVI).
A concessão de coutadas de caça atribuía ao seu titular o direito de caçar nos respectivos terrenos com exclusão de todos os outros caçadores, que somente aí poderiam caçar se dele obtivessem autorização escrita ou o acompanhassem no exercício da caça (base XXVII).
O proprietário dos terrenos, bem como o usufrutuário, o enfiteuta, ou o arrendatário com o consentimento daqueles, individualmente ou em grupo, poderiam requerer a concessão de coutadas de caça, podendo igualmente fazê-lo as comissões venatórias concelhias, desde que provassem o consentimento daquelas pessoas e as associações de caçadores legalmente constituídas, em conjunto com os titulares daqueles direitos ou com o seu consentimento. As câmaras municipais, as juntas de freguesia, as juntas gerais dos distritos autónomos e as misericórdias, quanto aos terrenos por si administrados, e os órgãos locais de administração com competência em matéria de turismo também poderiam requerer a concessão de coutadas de caça, desde que provassem o consentimento dos titulares dos direitos já referidos (base XXVIII).
No processo de concessão de coutadas requerido ao Secretário de Estado da Agricultura, para além de diversas outras exigências e elementos instrutórios, os interessados deveriam juntar aos outros documentos comprovativos da qualidade jurídica que conferia legitimidade para a formulação do pedido (base XXVIII da Lei nº 2132 e artigo 116º, nº 1, do Decreto nº 47847), bem como documento comprovativo do consentimento à sujeição dos terrenos ao regime de coutada por parte dos proprietários, dos usufrutuários, enfiteutas ou arrendatários, nos casos em que não fossem eles os requerentes (artigo 132º do Decreto nº 47847).
Os critérios a seguir na concessão de coutadas, a definição das respectivas áreas, os prazos de concessão, as obrigações dos concessionários, as taxas correspondentes à concessão e outros aspectos do seu regime achavam-se definidos nas bases XXIX a XL da Lei nº 2132.

3 – Após o 25 de Abril, depois de o Decreto-Lei nº 354-A/74, de 14 de Agosto, ter aprovado diversas alterações ao regime de caça e o Decreto–Lei nº 733/74, de 21 de Dezembro, definir o regime de exploração das coutadas com fins turísticos, por se entender que ‘a concessão de coutadas, sob a capa de medida de protecção e de fomento da caça, mais não constituiu do que uma fonte de privilégios a que urge por termo, lançando-se, entretanto, as bases de um verdadeiro ordenamento cinegético do território’, foi editado o Decreto–Lei nº 407-C/75, de 30 de Julho, cujo artigo 1º extinguiu todas as coutadas com fins turísticos (nº 1), devendo os respectivos concessionários proceder ao arrancamento dos sinais convencionais e à adequada alteração das tabuletas até 1 de Agosto de 1975 (nº 2).
Entretanto, já na vigência do sistema jurídico-normativo ancorado na Constituição de 1976, foram publicados diversos diplomas relativos ao regime da caça, enfermando, porém, todos eles de um carácter fragmentário e conjuntural, sem uma perspectiva sistemática e global das diversas e complexas questões que nesta matéria se colocam.
Este objectivo veio a ser intentado pela Lei nº 30/86, de 27 de Agosto (Lei da Caça), através da qual se procurou definir um quadro normativo que conciliasse ‘os diferentes interesses em presença de caçadores nacionais e caçadores locais, agricultores, Administração e público em geral, compatibilizando-os com o ordenamento jurídico geral da legislação europeia e com as necessidades de protecção, conservação e fomento dos recursos cinegéticos e da natureza em geral do nosso país’ (cfr., sobre os respectivos trabalhos parlamentares, Diário da Assembleia da República, 1ª série, nºs 17 e 18, de 20 e 21 de Dezembro de 1985, e 74, de 28 de Maio de 1986, e 2ª Série, nº 69, de 28 de Maio de 1986).
Em conformidade com este diploma, a caça pode ser exercida em todos os terrenos, nas áreas de jurisdição marítima e nas águas interiores, observadas as condições e restrições convencionais e legais (artigo 13º).
No entanto, em ordem à protecção de pessoas e bens, estabelece-se uma proibição de caçar em todas as áreas onde o acto venatório constitua perigo para a vida, saúde ou tranquilidade das pessoas ou constitua meio de graves danos para os bens, condicionando-se, por outro lado, o exercício da caça em determinadas áreas e terrenos sem o consentimento de quem de direito (artigo 14º, nºs. 1 e 2).
Para efeitos de organização da actividade venatória e do ordenamento do património cinegético nacional, os terrenos de caça podem ser sujeitos ao regime cinegético geral ou ao regime cinegético especial, sendo que no primeiro caso o acto venatório pode ser praticado sem outras limitações senão as fixadas nas regras gerais da lei e dos seus regulamentos, enquanto no segundo caso a respectiva gestão fica sujeita a planos de ordenamento e exploração subordinados aos princípiods seguintes: o plano de ordenamento definirá as medidas a adoptar e as acções a empreender que visem o fomento, a conservação e a exploração racional da caça com vista a alcançar e manter o melhor aproveitamento das potencialidades cinegéticas do terreno em questão; o plano de exploração fixará os períodos, processos e meios de caça, o número de exemplares de cada espécie que poderá ser abatido, os regimes de admissão de caçadores e tudo o mais necessário à correcta aplicação do plano de ordenamento no terreno em questão (artigo 19º, nºs 1 a 5).
As zonas de regime cinegético especial podem ser zonas de caça nacionais, zonas de caça sociais, zonas de caça associativas e zonas de caça turísticas (artigo 19º, nº 6).
(...) ([12])
A Lei nº 30/86, começou por ser regulamentada pelo Decreto–Lei nº 311/87, de 10 de Agosto.
Todavia, menos de um ano decorrido sobre a edição deste diploma, verificando-se que nele se continham algumas deficiências, resultantes não só da omissão de aspectos importantes para uma conveniente definição das regras a observar na prática do acto veneratório como ainda nos capítulos da administração e fiscalização da caça e organização venatória», optou-se pela sua revogação integral e pela aprovação de um novo texto normativo, concretamente o Decreto–Lei nº 274-A/88, de 3 de Agosto.
Simplesmente, passados cerca de quatro anos sobre a sua publicação, foi novamente sentida a necessidade de se proceder «à sua reformulação geral, tendo em atenção os proveitosos ensinamentos resultantes da sua aplicação».
E na concretização deste objectivo foi editado o Decreto–Lei nº 251/92, de 12 de Novembro, visando, tal como os dois diplomas que o antecederam, proceder ao desenvolvimento do regime jurídico estabelecido pela Lei nº 30/86.
Entretanto, a Lei nº 28/89, de 22 de Agosto, veio aplicar à Região Autónoma da Madeira, com as necessárias adaptações, a Lei nº 30/86, havendo o Decreto Legislativo Regional n.º 20/90/M, de 27 de Agosto, procedido às adaptações ditadas pelas especificidades regionais, cabendo depois a sua regulamentação ao Decreto Regulamentar Regional nº 18/92/M, de 30 de Julho.”


V
1. A linha argumentativa em que assenta o julgamento de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional, quanto às sobreditas disposições regulamentares da anterior Lei da Caça, relaciona-se com a impossibilidade de legitimar a liberdade do acto venatório, no tocante as zonas do regime cinegético especial que então estavam em causa, por referência à função social da propriedade.

No domínio da Lei n.º 30/86, os terrenos de caça subdividiam-se, para efeitos da organização da actividade venatória e do ordenamento do património cinegético nacional, em terrenos sujeitos ao regime cinegético geral ou ao regime cinegético especial (artigo 19º, nº 1) ([13]).

Encontravam-se submetidos ao regime cinegético geral os terrenos onde o acto venatório pudesse ser praticado sem outras limitações senão as fixadas em geral para o exercício da caça – carta de caçador; licença de caça (artigos 6º a 9º e 19º, nº 2) ([14]).

As zonas do regime cinegético especial eram, por sua vez, definidas como “superfícies contínuas demarcadas de aptidão cinegética, cuja gestão fica sujeita a planos de ordenamento e de exploração” - artigo 19º, nº 3.

Integrando o regime cinegético especial, poderiam ser constituídos quatro tipos de zonas de caça - zonas de caça nacionais, zonas de caça sociais, zonas de caça associativas e zonas de caça turísticas -, que eram criadas pelo Governo, ouvido o Conselho Nacional de Caça e de Conservação da Fauna, sob a forma de decreto–lei, quando se tratasse de zonas de caça nacionais, ou de portaria, nos restantes casos (artigos 19º, nº 6, e 20º).

As zonas de caça nacionais ([15]) eram constituídas por tempo indeterminado em terrenos cujas características, do ponto de vista das suas potencialidades cinegéticas, justificassem ser o Estado o único responsável pela sua administração (artigo 24º, nºs 1 e 4).

Incidiam sobre terrenos públicos, ou sobre terrenos privados, quando o Estado obtivesse para tal a concordância das respectivas entidades titulares e gestoras e aí o exercício de caça era aberto a nacionais e estrangeiros, embora o plano de exploração devesse reservar uma parte da utilização para os caçadores residentes no concelho ou concelhos abrangidos pela zona de caça (artigo 24º, nºs 2 e 3).

As zonas de caça sociais ([16]) visavam também proporcionar a todos os caçadores nacionais o exercício organizado da caça por tempo indeterminado e em condições especialmente acessíveis, competindo a sua administração ao Estado, ainda que com a possível colaboração de autarquias locais, comissões de compartes, associações de caçadores e entidades gestoras dos terrenos abrangidos (artigo 25º, nºs 1 e 3).

As zonas de caça sociais eram constituídas de preferência em terrenos dos sectores público ou cooperativo, mas poderiam sê-lo também em terrenos de sector privado, desde que para tal houvesse concordância dos respectivos interessados (artigo 25º, nº 2), sendo certo que uma percentagem das admissões ficava reservada para os caçadores residentes no concelho ou concelhos onde as mesmas se situassem (artigo 25º, nºs. 7 e 8).

As zonas de caça associativas ([17]) eram aquelas cujo aproveitamento cinegético fosse exercido por associações, sociedades ou clubes de caçadores que se propusessem custear ou realizar acções de fomento e conservação da fauna cinegética, nelas assegurando o exercício venatório (artigo 26º, nº 1).

Eram instaladas de preferência em terrenos dos sectores privado ou cooperativo, mas poderiam sê-lo também em terrenos do sector público, quando os serviços do Ministério da Agricultura considerassem inadequada a constituição nesses terrenos de zonas de caça nacionais e sociais (artigo 26º, nº 2).

A exploração das zonas de caça associativas era concedida por períodos renováveis (artigo 26º, nº 3) e nelas o exercício da caça era reservado, em regra, apenas aos associados (artigo 26º, nº 9).

As zonas de caça turísticas ([18]) constituiam-se com vista ao aproveitamento turístico dos recursos cinegéticos, garantindo, para além da exploração da caça, a prestação dos serviços turísticos adequados (artigo 27º, nº 1).

Eram instaladas de preferência em terrenos dos sectores cooperativo ou privado, mas poderiam sê-lo também em terrenos do sector público, quando os serviços competentes considerassem vantajosa a sua criação nestes terrenos (artigo 27º, nº 2).

A exploração de zonas de caça turísticas podia ser levada a efeito pelo Estado, pelas autarquias, por empresas turísticas, por sociedades dos titulares e gestores dos respectivos terrenos, às quais competia elaborar os planos de ordenamento, de exploração e de aproveitamento turístico (artigo 27º, nºs 3 e 5).

A exploração das zonas de caça turísticas era concedida por períodos renováveis (artigo 27º, nº 4) e o exercício da caça nessas zonas era facultado a caçadores nacionais e estrangeiros em igualdade de circunstâncias (artigo 27º, nº 6).

2. Como pode observar-se, no regime da anterior Lei da Caça, a constituição de uma zona de regime cinegético especial – incluindo as zonas de caça nacionais e sociais - estava dependente da prévia anuência dos titulares dos direitos reais incidentes sobre os prédios a integrar.

Essa matéria foi, porém, sucessivamente regulamentada pelos artigos 63º do Decreto-Lei n.º 311/87, de 10 de Agosto, 65º do Decreto-Lei n.º 254-A/88, de 3 de Agosto, 71º a 76º do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro - disposições sobre as quais, como vimos, o Tribunal Constitucional foi chamado a emitir um juízo de constitucionalidade -, e mais tarde, na sequência do supracitado acórdão, pelos artigos 75º e 76º do Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto.

Na análise dessa questão, o acórdão n.º 866/96 parte do princípio de que “o direito de propriedade constitucionalmente consagrado não beneficia de uma garantia em termos absolutos, havendo de conter-se dentro dos limites e nos termos definidos noutros lugares do texto constitucional, merecendo, desde logo, particular saliência o estatuto específico da propriedade relativa a meios de produção (artigo 82º, nº 83º, 89º e 97º da Constituição).”

E acrescenta que, desde que seja “consentido, como regra geral, o exercício da caça em todos os terrenos, nas águas de jurisdição marítima e nas águas interiores, não podem os respectivos titulares, salvo as excepções contidas na lei, opor-se, em tais circunstâncias, à prática da actividade cinegética, achando-se sujeitos ao trânsito dos caçadores pelas suas propriedades e ao abate e apreensão das espécies que ali sejam encontradas.”

Todavia, quanto a saber em que medida o exercício da actividade cinegética poderá condicionar o direito de propriedade, o Tribunal distingue entre as situações específicas que poderão estar em causa. Se o legislador pretende assegurar a satisfação de um interesse colectivo, entendido como o interesse lúdico da caça comum a todos os caçadores - como sucede em relação à actividade que possa desenvolver-se nas zonas do regime cinegético geral, em que o exercício da caça é livre –, o ónus que impende sobre os proprietários dos terrenos abrangidos poderá considerar-se legitimado pela própria função social da propriedade.

Não assim nas zonas de caça concessionadas, “nas quais a actividade cinegética apenas pode ser exercida por grupos restritos de caçadores a troco de pagamento pecuniário dirigido a entidades privadas que visam, se não primordialmente, ao menos complementarmente, a realização de resultados económico-financeiros,” e em que, portanto, “não pode já invocar-se como causa justificativa daquele condicionamento a função social da propriedade, pois que não se verifica aí a existência de um interesse colectivo capaz de justificar o sacrifício da liberdade de decisão dos proprietários.”

VI
1. Como facilmente ressalta no confronto com a disciplina agora sucintamente delineada, a nova Lei da Caça introduziu significativas alterações no sistema legal, impedindo que a doutrina do Tribunal Constitucional se torne automaticamente transponível para o novo regime jurídico.

Em primeiro lugar, a nova Lei prevê que a exploração dos recursos cinegéticos deva ser ordenada em todo o território (artigo 3º, n.º 1, alínea c)).

O princípio do ordenamento de todo o território nacional, para efeitos da prossecução da política cinegética nacional, implica a progressiva eliminação do chamado terreno livre, onde qualquer pessoa poderia exercer o acto venatório desde que detentora da documentação legalmente exigível ([19]). Desaparece assim a distinção entre regime cinegético geral e regime cinegético especial, que provinha da Lei n.º 30/86. Para futuro, todos os terrenos onde seja possível e exercício da actividade cinegética são integrados em zonas de caça especificadas, segundo a nomenclatura e a caracterização que se encontram definidas nos artigos 16º e 17º da nova Lei.

Como corolário lógico deste novo critério de organização venatória, a Lei da Caça estabelece disposições transitórias não só destinadas a assegurar a conversão das concessões existentes à data da entrada em vigor da nova lei em algum dos tipos legais agora previstos (artigos 49º e 50º) ([20]), como também a providenciar quanto ao regime aplicável aos terrenos cinegéticos se e enquanto não tiverem sido objecto de ordenamento (artigo 48º).

A alteração do regime cinegético, e sobretudo a abolição das áreas de regime geral, determinou também a reformulação do direito de acesso às zonas de caça, aspecto que, como vimos, tinha assumido um peso determinante na linha argumentativa do Tribunal Constitucional para efeito de declarar a inconstitucionalidade das disposições regulamentares editadas ao abrigo da Lei n.º 30/86, que previam mecanismos de suprimento do consentimento dos interessados.

Conforme resulta do artigo 17º, às zonas de caça de interesse nacional ou municipal têm acesso todos os caçadores, ainda que esse acesso se efective segundo regras de preferência proporcional em que relevam certos elementos individuais de conexão com as áreas onde tais zonas de caça estão implantadas (cfr. artigo 17º, n.º 2).

No tocante, porém, às zonas de caça turísticas e associativas, valem correspondentemente as regras aplicáveis às figuras análogas do regime anterior, e que são naturalmente ditadas pelas características próprias do funcionamento dessas zonas de caça. Em qualquer desses casos, ocorre um condicionamento do direito à caça, que é determinado, ou pelo interesse económico que está subjacente à actividade turística, e que se pretende incentivar através da concessão de uma zona de caça, ou pelo interessse de grupo que constitui o substracto de uma associação de caçadores, interesses que a lei, do mesmo modo, quer privilegiar através do incremento do associativismo ligado à gestão dos recursos cinegéticos.

2. Não obstante a radical modificação do regime jurídico, é possível detectar um plano de correspondência ou de sobreposição com a disciplina legal anterior.

As zonas de caça nacionais e municipais substituem, de algum modo, as antecedentes áreas englobadas no regime cinegético geral, sendo através dessas específicas modalidades de organização venatória que fica agora assegurado o uso livre de terrenos para o exercício da caça.

Todos os caçadores (qualquer caçador) podem (pode) caçar nos terrenos que integram as zonas de caça nacionais ou municipais (artigos 17º, n.º 1, da Lei da Caça e 9º e 16º do Regulamento). O que sucede é que o exercício dessa faculdade é limitado pela concorrência de caçadores que beneficiam de prioridade na entrada da zona de caça, segundo critérios de proporcionalidade, a fixar nas respectivas portarias de constituição (artigo 16º, n.º 2, do Regulamento), em função de um certo tipo de conexão com as áreas envolvidas (titularidade dos terrenos, proximidade do local de residência) ([21]).

Assim, e considerando apenas a perspectiva que mais interessa à temática da consulta, a mais importante novidade introduzida pela Lei da Caça de 1999 reconduz-se à aplicação de um critério conformador do exercício da caça, que deixa de ser uma actividade susceptível de ser desenvolvida em terrenos livres (no sentido de que em determinados locais se encontrava apenas condicionada por certos requisitos subjectivos - carta de caçador e licença de caça – ou temporais – períodos venatórios), para passar a ser encarada como actividade integrada em áreas delimitadas que disporão de planos próprios de exploração e de gestão dos recursos cinegéticos.

Mas essa consequência deriva, não da diferente estruturação do zonamento de caça e das alterações produzidas no respectivo regime de acesso, mas da adopção de um princípio de ordenamento do território que implica a progressiva abolição do regime cinegético geral, que incluia justamente os terrenos onde o acto venatório poderia ser praticado sem outras limitações que não fossem as estabelecidas, em geral, para todos os caçadores.

É assim de aceitar de plano que as zonas de caça nacionais e as zonas de caça municipais desempenhem hoje a função que era atribuída, no regime anterior, aos terrenos do regime cinegético geral ([22]).

E é essa aptidão para assegurarem o exercício da caça em regime tendencialmente aberto que explica que a nova Lei tenha dispensado o acordo prévio dos titulares dos direitos sobre os terrenos que venham a integrar essas modalidades de zona de caça, no que se estabelece um segundo plano de correspondência entre as zonas de caça nacionais e municipais e o anterior regime cinegético geral.

A entender-se, pois, como propende a considerar o Tribunal Constitucional, que o interesse colectivo susceptível de ser realizado através da actividade cinegética é apenas o interesse lúdico da caça comum a todos os caçadores, não poderá deixar de reconhecer-se que, no regime actual, são tais zonas de caça que prosseguem a realização desse objectivo.

3. Essa perspectiva, aliás, parece ser confirmada por outros elementos legislativos que concretizam o sistema de administração próprio de cada um dos diferentes tipos de ordenamento cinegético.

Como se observou, as zonas de caça nacionais ficam na dependência directa do Estado, através das direcções regionais de agricultura e, em casos especificados, de outros organismos públicos, aos quais compete elaborar os planos de exploração e suportar os encargos com a sua gestão e funcionamento (artigo 22º, n.º s 2 e 3, do Regulamento).

Todavia, sempre que não estejam em causa razões de segurança ou especiais valores ambientais que aconselhem que seja o Estado a administrá-las directamente, é admitida a transferência de gestão, por períodos de 6 anos, para associações e federações de caçadores, associações de agricultores, de produtores florestais, de defesa do ambiente, autarquias locais ou associações de freguesias ou municípios, caso em que transitam para estas entidades as correspondentes obrigações gestionárias (artigo 15º, n.º 2, e 23º do Regulamento).

Ao contrário, as zonas de caça municipais estão necessariamente sujeitas a um modelo de gestão indirecta, que é exercida pelas autarquias ou entes associativos, por períodos de 6 anos, mediante transferência do Estado (artigos 15º, n.º 1, alínea b), e 24º do Regulamento).

A transferência de gestão é, neste caso, o mecanismo pelo qual se constitui a zona de caça, que, como se depreende do disposto no artigo 15º, n.º 1, alínea b), há pouco citado, deverá incidir sobre terrenos ainda não ordenados para fins cinegéticos, representando, assim, uma forma de incentivar o ordenamento do território mediante a instituição de zonas de caça de interesse municipal que segundo a própria definição legal se destinam a proporcionar o exercício organizado da caça a um número maximizado de caçadores em condições particularmente acessíveis (artigo 8º, n.º 1, alínea b), da Lei da Caça).

Em qualquer destas modalidades – gestão directa ou gestão indirecta –, está presente uma forte componente de realização do interesse público, que surge associado, não só à conservação dos recursos cinegéticos e à sua exploração racional e sustentada - que constitui, de resto, uma das principais tarefas do Estado, neste âmbito ([23]) –, como também à satisfação do jus venandi, que, como direito subjectivo público, ao Estado cabe, em primeira linha, salvaguardar.

Neste contexto, a transferência de gestão não é mais do que um processo de descentralização administrativa, visando desonerar a administração estadual e repartir as tarefas que cabem ao Estado por outras entidades – autarquias locais, associações de caçadores, associações de defesa do ambiente – que, pela maior proximidade com as populações locais e a realidade dos interesses em jogo, poderão estar melhor posicionadas para a realização do fim público ([24]).

E neste ponto cabe recordar que a circunstância de poderem candidatar-se à transferência de gestão entes associativos privados, e designadamente federações e associações de caçadores, não permite inferir que as zonas de caça nacionais transferidas e as zonas de caça municipais assim constituídas passem a ostentar um estatuto diverso daquele que legal e regulamentarmente lhes está cometido.

Enquanto entidades gestoras, esses entes associativos estão sujeitos às mesmas obrigações que qualquer outra pessoa colectiva pública ou privada que preencha os requisitos de candidatura, e não poderão deixar de cumprir as regras de exploração e funcionamento que sejam aplicáveis ao tipo de zonamento em causa.

Como é de concluir, as zonas de caça nacionais e as zonas caça municipais cuja gestão se encontre entregue a federações ou associações de caçadores, segundo o procedimento de transferência de gestão, não se confundem com as zonas de caça associativas, que, podendo igualmente ser atribuídas a associações de caçadores, o são de acordo com regras procedimentais e critérios de decisão diferentes e para a realização de finalidades inteiramente distintas.


VII
1. O actual panorama do regime jurídico da caça não ficaria completo se não pudessemos volver a nossa atenção, por momentos, sobre o modo de constituição das zonas de caça turísticas e associativas, que, por contraposição às analisadas situações de transferência de gestão, é sempre efectuada por concessão.

Nas zonas de caça deste tipo, a actividade venatória só pode ser exercida por grupos restritos de caçadores e é necessário o prévio acordo dos proprietários e gestores de terrenos privados que nelas se destinem a ser incorporados, tal como sucedia para a generalidade das zonas de caça integradas no anterior regime cinegético especial (artigo 21º da Lei n.º 30/86).

Todavia, já no domínio da Lei de 1986, a exploração das zonas de caça turísticas e associativas, ao contrário do que se previa para as restantes espécies do regime cinegético especial - zonas de caça nacionais e sociais – era necessariamente conferida por concessão, regime que agora se mantém.

2. O parecer n.º 33/98 já citado, analisando o modo de constituição das zonas de caça no regime anterior, descreveu o conceito de concessão em termos que mantêm hoje plena validade, e que passaremos a acompanhar.

Escreveu-se:

“A concessão entendida como um título jurídico unilateral, tal como a autorização e a licença, enquadra-se na categoria dos actos administrativos permissivos, que poderão definir-se como os actos que “facultam ou permitem a alguém a adopção de uma conduta que está vedada” (x) (x1).
MARCELLO CAETANO caracteriza a concessão como o acto administrativo pelo qual é permitido a um particular o exercício temporário, por sua conta e risco, de um ou mais direitos exclusivos de certa pessoa colectiva de direito público, para esse efeito transferidos para o concessionário.
Assim, para que haja concessão - como refere o mesmo autor - é preciso que se trate de direitos reservados em exclusivo a Administração e que esta transfira o exercício (conservando a titularidade) por prazo determinado ou enquanto lhe .aprouver, para outrem, que procederá por sua conta e risco mas devendo observar as condições e cláusulas prescritas para a respectiva actividade” (x2).
Na linha da doutrina italiana, ROGÉRIO SOARES distingue entre concessões translativas e concessões constitutivas. Na primeira categoria inscrevem-se os actos pelos quais a Administração transmite a um particular poderes de uso especial sobre bens públicos (concessão de terras) ou o investe na situação de titular de um serviço público (concessão de transportes colectivos, de distribuição de água, electricidade ou gás); na segunda entram os actos pelos quais a Administração confere ao particular o direito de utilização sobre bens dominais com compressão dos direitos da Administração (uso privativo de domínio público, exploração de águas públicas ou jazigos minerais) (x3) (x4) (x5).
Embora se traduza numa técnica autorizativa, a concessão diferencia-se da simples autorização.
Entende-se por autorização, em sentido rigoroso, ‘o acto administrativo que permite a alguém o exercício de um seu direito ou poderes legais’ (x6).
O destinatário da autorização ‘possui, pois, um direito ou certo poder mas o exercício deles está-lhe vedado antes que intervenha previamente o consentimento da Administração fundado na apreciação de circunstâncias de interesse público que possam tornar conveniente ou inconveniente esse exercício’.
O traço distintivo entre as duas figuras reside na titularidade originária do direito: a autorização pressupõe que o particular é já titular de um direito e limita-se a remover as restrições de ordem pública que poderiam obstar ao seu livre exercício; a concessão corresponde à outorga de um direito novo que deste modo vem enriquecer o património jurídico do concessionário (x7).
Outra categoria de actos autorizativos cujo enquadramento dogmático poderá ter interesse aflorar é a licença.
A licença é geralmente definida como o acto administrativo que permite a alguém a prática de um acto ou o exercício de uma actividade relativamente proibidos.
A proibição diz-se relativa ‘quando a lei admite que a actividade proibida seja exercida nos casos ou pelas pessoas que a Administração permita. Aqui, portanto, o administrado não tem direitos, visto que em princípio a actividade é proibida; mas a Administração pode conferir o poder de exercê-la mediante licença’ (x8).
A licença distingue-se pois da autorização na medida em que, neste caso, “o particular já é titular do direito e apenas o exercício desse direito está dependente de autorização administrativa. Na licença, o particular não é titular de nenhum direito face à Administração e a actividade que ele se propõe desenvolver é até, em princípio proibida pela lei; mas a própria lei admite que, em certos casos e a título excepcional, a Administração Pública possa permitir o exercício dessa actividade” (x9) (x10) (x11).
Por seu turno, a licença diferencia-se da concessão no ponto em que, nesta, não está em causa a mera possibilidade do exercício de uma actividade que está proibida à generalidade dos indivíduos, mas o poder de uso especial sobre coisas ou direitos que se integram inicialmente na própria titularidade de Administração ou âmbito de uma competência administrativa.
Em termos esquemáticos, a distinção entre as diversas categorias poderá estabelecer-se do seguinte modo: a autorização incide sobre o exercício de um direito ou actividade lícita sobre a qual subsistem restrições de interesse público; a licença permite o exercício de uma actividade relativamente proibida; a concessão transfere para o particular o poder de utilização de bens ou o direito de exploração de actividades que se enquadram originariamente na titularidade ou competência administrativa (x12).”

3. Em linhas gerais, o processo constitutivo das zonas de caça agora em apreço obedece ao seguinte regime:

- as zonas de caça turísticas destinam-se a realizar o aproveitamento económico dos recursos cinegéticos, garantindo a prestação dos serviços turísticos adequados (artigo 14º, n.º 1, alínea c), da Lei da Caça);

- as zonas de caça associativas são constituídas a favor de associações de caçadores por forma a privilegiar o incremento e manutenção do associativismo dos caçadores, conferindo-lhes assim, a possibilidade de exercerem a gestão cinegética (artigo 14º, n.º 1, alínea d), da Lei da Caça);

- o estabelecimento das zonas de caça é efectuado mediante concessão, pelo prazo mínimo de 6 anos, sujeito a renovação, e carece de acordo dos proprietários (artigo 16º, n.ºs 2 e 3, da Lei da Caça e 10º do Regulamento);

- às zonas de caça turísticas têm acesso todos os caçadores de acordo com as normas gerais de exploração da actividade turística (artigo 17º, n.º 3, da Lei da Caça);

- as zonas de caça associativas o exercício de caça é reservado aos associados e seus convidados (artigo 17º, n.º 4, Lei da Caça);

- as zonas de caça concessionadas estão sujeitas à aplicação de sanções, designadamente à de suspensão de exploração cinegética, por incumprimento das obrigações decorrentes da concessão (artigo 45º do Regulamento);

- as mesmas zonas de caça podem extinguir-se por um dos seguintes modos: caducidade, decorrido o prazo da concessão; denúncia por parte do Estado, findo esse prazo; revogação, a pedido do concessionário, ou com fundamento em inconveniência para o interesse público, ou ainda por incumprimento das obrigações a que o concessionário estava obrigado ou quando deixem de se verificar os requisitos da concessão (artigos 46º e 47º do Regulamento);

- é devida justa indemnização no caso de revogação por inconveniência (artigo 47º, n.º 2, do Regulamento).

Como se verifica, a concessão de zonas de caça turísticas e associativas conferem a uma entidade pública ou privada, ou a uma associação de caçadores, um direito reservado de exploração cinegética dentro de um determinado espaço territorial mediante a imposição de certas obrigações, que se traduzem na execução de planos de gestão e de exploração e nas correspondentes acções de fiscalização, que têm por finalidade última contribuir, no interesse geral, para a conservação e fomento dos recursos cinegéticos.

O estabelecimento de um prazo mínimo de concessão pretende instituir uma garantia de estabilidade que se destine a assegurar ao concessionário, não só a possibilidade de amortização dos custos do plano de intervenção, como um grau mínimo de rendibilidade da exploração.

Por outro lado, no uso de um poder de controlo administrativo, o concedente poderá efectuar o resgate da concessão, por razões de interesse público, e mediante o pagamento de uma indemnização, e revogá-la por incumprimento das obrigações a que o concessionário está vinculado.

Todas estas regras constituem elementos típicos da disciplina jurídica geral da concessão. Mas importa ainda efectuar uma precisão no que se refere à espécie em causa.

A concessão de zonas de caça associativas não se destina a transferir para a associação requerente o direito de exploração de caça em determinado território. Esse direito não preexiste na titularidade da Administração e não é, como tal, susceptível de ser transmitido. É antes um direito imanente à própria constituição de zonas de caça.

A Administração, no uso de uma competência administrativa inerente à gestão dos recursos cinegéticos e da actividade venatória, limita-se a autorizar a delimitação de determinados terrenos para efeito de, neles, os membros da associação requerente, ou aqueles que por ela foram autorizados, poderem exercer o direito de caça com exclusão dos restantes caçadores.

Trata-se, por isso, de condicionar o exercício da caça, restringindo em relação a determinados espaços o direito geral de caça em benefício de grupos restritos de caçadores, que mantêm nessas zonas um direito exclusivo de aproveitamento cinegético.

A concessão assume, neste caso, uma natureza constitutiva, implicando a atribuição ex novo ao concessionário de um direito que deriva do exercício de um poder de regulação da Administração em matéria de organização venatória ([25]).

Em face dessa sua característica, a concessão não provoca uma qualquer compressão de direitos ou bens que se encontrem na titularidade da Administração, antes produz uma retracção do espaço submetido ao regime cinegético de vocação genérica - e, portanto, do direito geral de caça - na razão proporcionalmente inversa à área que passa a ser afectada às zonas de caça concessionada.

Esta perspectiva conduz-nos ainda a uma outra conclusão: é que o exercício da caça, enquanto interesse social ou comunitário ou interesse individual ou grupal, passa a correlacionar-se, não já com os modelos de exploração cinegética, mas com os títulos jurídicos pelos quais são constituídas as zonas de caça.


VIII
Por tudo quanto antes se expôs, a doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional a que se tem feito referência, embora tirada na vigência da Lei n.º 30/86, na medida em que faz reverter o juízo de inconstitucionalidade, em relação a certas disposições regulamentares dessa Lei, à incompatibilização com a função social da propriedade privada (entendida esta como uma utilização norteada pela realização de um direito geral de caça), poderia ser transposta para o regime actual com base na dicotomia entre zonas de caça nacionais e municipais/zonas de caça turísticas e associativas.

Dito de outro modo: é possível aplicar o critério jurisprudencial, no que se refere à conformidade constitucional da dispensa de acordo prévio para a constituição de zonas de caça, aos modelos de zonamento previstos na nova Lei, segundo um plano de correspondência em que, do ponto de vista dos fins cinegéticos a prosseguir, as zonas de caça nacionais e municipais equivaleriam ao antigo regime cinegético geral e as zonas de caça turísticas e associativas ao regime cinegético especial.

Na verdade, estavam então em causa disposições que previam um processo de suprimento do acordo dos titulares de direitos reais sobre terrenos que se pretendia virem a integrar zonas de caça do regime especial – então constituídas pelas zonas de caça turísticas e associativas -, entendendo o acórdão do Tribunal Constitucional que no caso em que “a actividade cinegética apenas pode ser exercida por grupos restritos de caçadores a troco de pagamento pecuniário dirigido a entidades privadas que visam, se não primordialmente, ao menos complementarmente, a realização de resultados económico-financeiros, não pode já invocar-se como causa justificativa daquele condicionamento a função social da propriedade, pois que não se verifica aí o sacrifício de um interesse colectivo capaz de justificar o sacrifício da liberdade de decisão dos proprietários.”

E isso porque aí prevalece “a satisfação de interesses de grupos restritos de cidadãos, ao contrário do que acontece quando está em causa a realização de interesses da generalidade dos caçadores.”

Dentro da mesma lógica, haverá de concluir-se, que o falado condicionamento do direito de propriedade é já admissível em relação às áreas em que o exercício da caça é livre, pois aí pretende-se assegurar “a satisfação de um interesse colectivo, o interesse lúdico da caça comum a todos os caçadores”, pelo que o ónus que incide sobre os proprietários de consentirem e não se oporem ao desenvolvimento dessa mesma actividade é constitucionalmente legitimado pela própria função social da propriedade.

Ora, já houve oportunidade de referir que a nova Lei da Caça não produziu uma alteração substancial no que concerne à configuração do direito geral de caça.

O que aconteceu é que foi acolhido um novo conceito de política cinegética, que visa o ordenamento de todo o território nacional, e pelo qual se pretende obter a progressiva abolição dos terrenos livres que antes constituiam o regime cinegético geral, implicando que o direito subjectivo público que se traduz no exercício da actividade venatória passe a ser exercitado por todos os caçadores - apenas com certas limitações resultantes da aplicação de regras de preferência - nas zonas de caça agora designadas como zonas de caça nacionais e zonas de caça municipais.

Temos assim que as mesmas razões que levaram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade das normas regulamentares da Lei n.º 30/86, que se bastavam com um consentimento presumido dos proprietários para efeito dos seus terrenos serem incorporados em zonas de caça turísticas ou associativas, poderiam conduzir mutatis mutandis a formular idêntico juízo de desconformidade constitucional relativamente a um procedimento administrativo similar que se encontrasse previsto na nova Lei para as mesmas espécies de zonamento cinegético.

E a contrario, não haverá violação do direito de propriedade quando, em idêntica situação, o consentimento ficto se destine à constituição de zonas de caça nacionais ou municipais e, por conseguinte, tenha por finalidade última a satisfação de um interesse comum à generalidade dos caçadores.

Ponto é que o critério jurisprudencial, com as consequências acabadas de assinalar, possa também ser perfilhado por este Conselho.

É essa análise que se fará de seguida.

IX
1. O artigo 62º, n.º 1, da Constituição da República reconhece expressamente o direito à propriedade privada, destacando-o da sua tradicional colocação entre os direitos fundamentais para o situar entre os direitos económicos ([26]).

A sua inserção sistemática é efectuada num contexto mais imediato, em que se incluem referências ao direito ao trabalho, aos direitos sociais dos trabalhadores, ao direito à segurança social, ao direito à protecção da saúde, ao direito à habitação, ao direito ao ambiente (artigos 58.º e segs.), bem como à iniciativa privada, cooperativa e autogestionária (artigo 61.º); e num outro, mais vasto, em que se alude à realização da democracia económica, social e cultural (artigo 2.º, 2.ª parte), à igualdade entre os portugueses (artigo 9.º, alínea d)), à correcção das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento (artigos 81.º, alínea b), 103.º, n.º 1, e 104.º), à propriedade pública dos recursos materiais e dos meios de produção de acordo com o interesse colectivo (artigo 80.º, alínea d)) ([27]).

Esse enquadramento evidencia que o direito de propriedade é concebido pela ordem jurídica para a realização de fins económicos e sociais que se não reconduzem apenas aos fins individuais do seu titular ([28]).

Naquilo que representa um espaço de autonomia perante o Estado, o direito de propriedade constitui um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias e beneficia, como tal, de uma garantia institucional ([29]).

A circunstância de o artigo 62º não estabelecer de modo explícito quaisquer restrições à propriedade privada, não permite extrair que elas estejam vedadas. A norma contempla o direito de propriedade nos termos da Constituição, o que significa que o direito é reconhecido e salvaguardado em sintonia com os princípios e valores que a enformam, ou seja, dentro dos limites e nos termos previstos e definidos noutros lugares da Lei Fundamental ([30]).

É essa interligação ao direito positivado na Constituição que justifica a desnecessidade de uma expressa alusão à função social da propriedade.

Entre nós, ALVES CORREIA ([31]) defende que a função social é abertamente admitida como um limite imanente ao direito de propriedade privada e ao direito de iniciativa económica, razão pela qual se pode assegurar que se trata de direitos fundamentais previamente restringidos pela Constituição. O artigo 62.º não admite expressamente a possibilidade de emanação de leis ordinárias restritivas precisamente porque a Constituição já tomou a seu cargo a tarefa de proceder à articulação do direito de propriedade privada com outros direitos fundamentais, bens ou interesses jurídicos igualmente dignos de tutela e com aquele eventualmente colidentes ([32]).

O limite imanente, segundo o mesmo autor, pode deduzir-se conjuntamente dos artigos 61.º, n.º 1, e 89.º da CRP: o primeiro refere que a iniciativa económica privada deve processar-se tendo em conta o interesse geral, enquanto no segundo se estabelece a possibilidade de virem a ser objecto de expropriação os bens sociais em abandono, ou seja os bens que não estejam a ser explorados de modo socialmente útil.

Outros autores, repudiando embora a ideia dos limites imanentes, consideram que a função social da propriedade privada deriva directamente de um determinado conjunto de normas constitucionais que apontam para a realização da democracia económica, social e cultural (artigo 2.º da CRP), e a promoção da igualdade entre os portugueses (artigo 9.º, n.º 1, alínea d), da CRP), a correcção das desigualdades na distribuição do rendimento (artigos 81.º, n.º1, alínea b), 106.º, n.º 1, e 107.º da CRP), bem como na apropriação colectiva dos meios de produção e solos, de acordo com o interesse público, designadamente com o interesse público ambiental (artigo 80.º, alínea c), da CRP) ([33]).

À luz de qualquer destas posições, o direito de propriedade só é constitucionalmente garantido enquanto ainda puder ser reconduzido a uma forma legítima de utilização da propriedade, isto é, a uma forma que ainda revele uma conformidade com a função social da propriedade. E de tal modo, que o exercício de tal direito em manifesta contrariedade com os fins constitucionalmente incluídos em tal direito fundamental revestiria a qualidade de um abuso de direito. Paralelamente, às leis que de alguma forma procedam a intervenção no âmbito e no conteúdo do direito de propriedade privada não pode ser atribuído um sentido restritivo, mas, antes um sentido meramente conformador ou aclarador das limitações constitucionalmente introduzidas.

Numa outra perspectiva, GOMES CANOTILHO ([34]) considera que os direitos fundamentais, configuram um tatbestand alargado, no qual, prima facie, cabem todas as formas de exercício do direito, com excepção apenas daquelas que a própria norma exclui de forma explícita. A norma positivadora do direito não pode, assim, ser concebida previamente como uma norma de conteúdo restrito, a menos que seja a Constituição a impor ou autorizar o legislador ordinário que imponha restrições ao seu conteúdo.

Assim, segundo este autor, “não basta recorrer a limites imanentes para justificar uma concepção restritiva do Tatbestand de um direito. Todavia, a posteriori, através do jogo de “argumento e contra-argumento”, da ponderação de princípios jurídico-constitucionais, pode chegar-se à necessidade de uma optimização racional, controlável, adequada e contextual, de várias constelações de princípios jurídico-constitucionais. Esta optimização é possível porque os princípios transportam dimensões objectivas possibilitadoras de uma ponderação de bens jurídico-constitucionais efectuada a partir da própria Constituição.” ([35])

2. Um primeiro afloramento da ideia de função social da propriedade consubstancia-se, no que se refere aos bens produtivos, no interesse social de incremento da produção e de aumento de riqueza, do qual decorrem dois tipos de consequências: a protecção do utilizador produtivo e a desprotecção do proprietário que não o usa proveitosamente (v. g., o artigo 89º da CRP, que permite a expropriação e a entrega em arrendamento ou por concessão de exploração dos bens de produção em abandono) ([36]).

As formas mais evidentes de desprotecção traduzem-se na expropriação e na extinção do direito por não uso (usucapião), mecanismos que pretendem penalizar a passividade ou a inércia do titular do direito, equiparando-as a comportamentos anti-económicos e anti-sociais do exercício do direito subsumíveis ao tipo legal de abuso de direito ([37]).

Num segundo momento, a função social da propriedade concretiza-se na satisfação de necessidades e de interesses de certas categorias de cidadãos, que o legislador constitucional considera prioritárias. Neste plano, a propriedade constui um instrumento de realização tendencial do princípio da igualdade ([38]).

São exemplos ilustrativos, a incumbência estadual em matéria de construção de habitações económicas e sociais e promoção do acesso à habitação própria (artigo 65º, n.º 2, alínea b), e n.º 3), e a salvaguarda da situação específica da propriedade dos trabalhadores emigrantes relativamente ao regime geral de expropriação de meios de produção em abandono (artigo 88º, n.º 1).

3. Uma questão que poderá colocar-se, e que tem particular relevância para a problemática da consulta, é a de saber se o princípio constitucional da função social da propriedade poderá ter consequências directas no ordenamento jurídico ou carece de aplicação concreta através da legislação ordinária.

O artigo 1305º do Código Civil não define o direito de propriedade, limitando-se a enumerar as faculdades essenciais que o integram (direitos de uso, fruição e disposição da coisa).

A norma não repercute qualquer ideia ligada à função social da propriedade. Unicamente, na sua parte final, ressalva a possibilidade de a lei ordinária estabelecer limitações ao exercício do direito (O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas).

Estas poderão ser determinadas por razões de interesse público ou resultar da simples concorrência de certos interesses particulares ([39]).

No primeiro caso, estão as restrições determinadas pelas mais diversas finalidades ligadas à prossecução de interesses colectivos: segurança, defesa nacional, ordenamento do território, polícia da edificação, património arquitectónico e cultural, circulação rodoviária ou ferroviária, saúde. Enquadram-se nesta hipótese a criação de zonas de protecção de instalações militares, de hospitais e de escolas, bem como das faixas costeiras ou fluviais; o jus non aedificandi em relação a áreas de reserva agrícola ou ecológica; o estabelecimento de regras urbanísticas e de construção de edifícios; a classificação de imóveis de interesse público.

Outras manifestações desse tipo de limitação aos direitos reais são constituídas pelos institutos da expropriação por utilidade pública, da requisição e das servidões administrativas ([40]).

No concernente às restrições de interesse particular, têm especial relevo as emergentes de relações de vizinhança, como são todas as mencionadas nos artigos 1346.º, 1347.º, 1351.º, 1360.º, 1365.º 1366.º ([41]), bem como as que derivam do exercício pelo proprietário do direito de escavação (artigo 1348.º), de tapagem (artigo 1356.º), de reparação ou reconstrução de parede ou muro comum (artigo 1375.º), e, em geral, as diferentes formas de servidão predial (artigo 1543.º e seguintes).

Estas restrições poderão assim entender-se como limitações especiais ao direito de propriedade, já que a credencial legitimadora resulta directamente da disposição do artigo 1305º do Código Civil.

Ao contrário, a função social da propriedade como uma limitação de carácter geral ao exercício do direito apenas poderá provir da aplicação directa do texto constitucional.

Neste sentido se pronuncia, respondendo à questão colocada, OLIVEIRA ASCENSÃO. Distinguindo entre a repercussão sobre normas e a repercussão sobre situações jurídicas, o autor refere que a função social da propriedade como princípio geral não carece de regulamentação legal, pelo que é à luz desse princípio que deverão ser apreciadas as normas constantes das leis ordinárias, a ponto de todas as regras que com ele se tornem incompatíveis deverem considerar-se revogadas.” ([42])

Na mesma linha de entendimento, o autor considera que o preceito constitucional se revela ainda decisivo para a interpretação das fontes actuais de direito ([43]).

Já no que se refere à repercussão sobre as situações jurídicas, a questão mostra-se ultrapassada pela consagração, em termos de grande amplitude, do princípio do abuso do direito.

Ao reputar como ilegítmo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, o artigo 334º do Código Civil apela a considerações funcionais e finalistas, dando expressa cobertura às exigências da função social do direito, e, nesses termos, acolhe também, na legislação ordinária, o princípio da função social da propriedade ([44]).

Por referência à ideia de abuso de direito, como figura residual, os direitos reais ficam assim genericamente delimitados pela necessidade de não proceder em contravenção com a finalidade económico-social do direito – realidade que se enquadra no conceito amplo de função social ([45]).

X
1. Sabe-se que no nosso ordenamento jurídico, mercê de uma tradição romanista, o direito à caça não integra o conteúdo do direito de propriedade, pois exerce-se relativamente a coisas que não são consideradas frutos do objecto do direito de propriedade – o prédio. Com efeito, as espécies cinegéticas não integram a qualificação de fruto dada pelo art. 212.º, n.º 1, do Código Civil, integrando-se no conceito de res nullius, e como tal susceptíveis de ocupação.

Tradicionalmente, o fundamento do direito à caça radica num princípio geral de liberdade, nos termos do qual é permitido aos cidadãos desenvolver toda e qualquer actividade a que se determinem desde que não vedada pelo ordenamento jurídico ([46]), e o direito à caça chegou mesmo a ser caracterizado como um direito de personalidade ([47]).

Numa primeira análise, a diferença de natureza existente entre o direito à caça e o direito de propriedade não implica que a actividade desenvolvida no âmbito de cada um deles não se repercuta no conteúdo do outro. Ao permitir-se o exercício da actividade venatória em todos os terrenos, está a ser comprimido o direito de propriedade pelo direito de caça de terceiros, devido ao atravessamento e permanência nos terrenos de caça, por força da prática dos actos venatórios tendentes à captura da fauna cinegética.

Nesta perspectiva, o que poderia diferenciar essa relação entre o direito de propriedade e o direito de caça, por referência a um regime cinegético aberto ou fechado, é que, enquanto num caso a oneração do direito de propriedade é justificada por uma actvidade susceptível de ser exercida por todos os caçadores licenciados – fundando-se essa oneração em interesses sociais ou comunitários -, já no outro, representado particularmente pelas zonas de caça turísticas e associativas, tal oneração aparece mais remotamente ligada a uma função social ou comunitária ([48]).

2. Todavia, hoje, a clássica dicotomia entre a tutela dos interesses dos caçadores e a tutela dos interesses dos proprietários, que desde sempre tem vindo a influenciar o legislador, encontra-se ultrapassada pelo reconhecimento e plena afirmação de um interesse fundamental de natureza pública que se traduz na preservação do património cinegético e no seu racional aproveitamento ([49]).

Com efeito, o relacionamento da pessoa com o ambiente que a Constituição consagra (artigo 66º, n.º 1) e a função do Estado na manutenção da estabilidade ecológica (artigo 66º, n.º 2, alínea b)), são de algum modo incompatíveis com a concepção romanista do homem caçador, dono da terra e dos seus recursos e com a ideia de que há uma libedade, quase inata, de caçar ([50]).

Conforme refere SÉRVULO CORREIA ([51]), “a abertura do Direito Constitucional português aos valores ambientais não retirou aos animais caçáveis a natureza jurídica de res nullius nem eliminou como posição tutelável o interesse lúdico de caçar. O que sucede é que, por força da evolução constitucional e, no seu rasto, da do direito legislado, os recursos cinegéticos e o acto venatório não podem ser olhados, de um prisma jurídico, apenas à luz dessa natureza.”

O mesmo autor escreve ainda a este propósito:

“A Constituição estabelece como tarefa fundamental do Estado a de defender a natureza e o ambiente e preservar os recursos naturais (artigo 9.º, alínea e)). Designadamente, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios, com o envolvimento e participação dos cidadãos, promover o aproveitamento natural dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e estabilidade ecológica (artigo 66.º, n.º 2, alínea d)).
A Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 11/87, de 7 de Abril), depois de inserir a permanência da vida selvagem entre os objectivos e medidas fundamentais da política do ambiente (artigo 4.º, alínea n)), inclui a fauna entre os componentes ambientais naturais (artigo 6.º, alínea f)) e prevê legislação especial que promova a salvaguarda, conservação e exploração das espécies com interesse económico ou social, garantindo o seu potencial genético e que regule a valorização, fomento e usufruição dos recursos animais cinegéticos (artigo 16.º, n.ºs 1 e 4).
Deste modo, aquilo que era há algumas décadas atrás fundamentalmente olhado pelo ordenamento jurídico como mero objecto da actividade cinegética passou a ser encarado como um valor ambiental em si próprio, protegido pela Constituição e abrangido pelos princípios do Direito do Ambiente em matéria de protecção de fauna e dos seus habitats. A própria actividade cinegética deixa de ser encarada apenas como um modo lúdico de esforço desportivo e de ocupação de res nullius para ser enquadrada sob regras de exploração ordenada de recursos naturais inspiradas pelos princípios da sustentabilidade e da conservação da diversidade biológica e genética.”

Assim se compreende também que, no direito comparado, o legislador crescentemente tenha vindo a ocupar-se da caça não tanto a título de actividade individual mas de ordenamento de um recurso natural finito e ameaçado de extinção, carecido de conservação, fomento e exploração racional ([52]).

Podemos, pois, concluir que a caça, entendida como o conjunto dos recursos cinegéticos, constitui um bem jurídico-constitucional, que, como tal, deve ser considerado, numa perspectiva de componente ambiental, digno de protecção jurídica e constitucionalmente garantida ([53]), e que impõe uma gestão optimizada e um uso racional, no respeito pela conservação da natureza e pela estabilidade ecológica.

E, deste modo, o apelo à função social do direito de propriedade deve envolver também a ponderação do contributo que, nesse âmbito, a exploração ordenada dos recursos cinegéticos, através do exercício da caça, poderá oferecer em favor do desenvolvimento da riqueza e da valorização do mundo rural ([54]).

Ora, justamente, estes – estabilidade ecológica e exploração ordenada de recursos – são dois dos princípios basilares da politica cinegética nacional, assim consagrados no artigo 3º, alíneas a) e b), da nova Lei da Caça, e que se encontram concretizados e desenvolvidos em numerosas disposições dessa Lei e do seu Regulamento.

Parece assim ser de aceitar que a actividade venatória, ainda que num plano diverso daquele que vinha sendo tradicionalmente considerado, merece hoje - e porventura mais intensamente, dado o seu actual enfoque como actividade de interesse público, e não apenas de interesse particular ([55]) - a tutela da Constituição e da lei no confronto com o direito de propriedade privada.

XI

1. Como se assinalou, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 866/96 declarou a inconstitucionalidade de certas normas dos diplomas regulamentares da anterior Lei da Caça, por violação do direito de propriedade privada, em resultado de tais normas permitirem a integração em zonas de caça turísticas e associativas de terrenos relativamente aos quais os respectivos interessados não manifestaram uma vontade explícita nesse sentido.

Para assim decidir, como também se anotou, o aresto restringe a função social da propriedade, como factor legitimador de um consentimento presumido, às áreas do então chamado regime cinegético geral, dado que era aí que a prática venatória era livre, e, por conseguinte, só nesses locais a propriedade privada assegurava a satisfação do interesse colectivo, entendido como “o interesse lúdico da caça comum a todos os caçadores.”

No entanto, o jus venandi, configurando-se como um direito subjectivo público, parece revestir a mesma natureza, quer seja exercido em terrenos de uso tendencialmente livre, como sucede nas zonas de caça nacionais e municipais, quer nas áreas de ingresso condicionado, como se verifica nas zonas de caça turísticas ou associativas([56]).

Nesta acepção, o direito subjectivo ao exercício da caça deve ser universalmente reconhecido e não são os diferentes graus de constrição que resultam do regime de acesso aplicável aos diversos tipos de zonamento, conforme a classificação legalmente prevista, que deverá influir como elemento de ponderação quanto à função social da propriedade.

Em todo o caso, a destrinça efectuada pelo Tribunal Constitucional perde toda a consistência a partir do momento em que a nova Lei da Caça passa a sujeitar todo o território à regra do ordenamento, implicando que, de futuro, não seja já possível exercer o acto venatório senão em zonas de acesso controlado.

Na lógica do acórdão, o princípio do ordenamento do território para fins cinegéticos redundaria no desaparecimento da função social da propriedade, quando é certo que esse mesmo princípio, visando a optimização da gestão e o uso racional do património cinegético, reforça, ao invés de atenuar, uma proveitosa utilização da propriedade, em termos de benefício social.

2. De todo o modo, mesmo partindo do pressuposto em que assenta o acórdão do Tribunal Constitucional, pelo qual a função social da propriedade, no quadro geral da actividade conegética, é aferida à luz de um critério quantitativo, medido pelo nível de constrangimento que poderá colocar-se no acesso dos caçadores às zonas de caça, não há ainda base suficiente para excluir os terrrenos privados que integram as actuais zonas de caça nacionais ou municipais dessa função social.

É que – como se observou – essas modalidades de zona de caça são precisamente aquelas em que, no regime vigente, é assegurado o acesso tendencial de todos os caçadores à prática da actividade venatória. E, nessa perspectiva, são essas zonas de caça que sucedem agora aos terrenos livres que compunham o anterior regime cinegético geral e possibilitam a realização do interesse lúdico da caça comum a todos os caçadores.

Acresce que, para este efeito, não há motivo para distinguir entre os terrenos que integram as zonas de caça municipais constituídas originariamente através do procedimento definido no artigo 24º do Regulamento da Caça, e aqueles que venham a ser incluídos numa das zonas desse tipo, nos termos do n.º 4 do artigo 16º da Lei da Caça, em consequência da declaração da perda do direito de exploração de zonas de caça turísticas ou associativas a que primitivamente se encontrassem adstritos ([57]).

Na verdade, nesta última hipótese, embora se trate de uma integração derivada, e não originária, os prédios em causa passam a ficar submetidos a um regime em tudo idêntico ao previsto, conforme os casos, para as zonas de caça nacionais ou municipais e por isso, também, afectos ao interesse social que essas modalidades visam realizar, justificando-se assim, por identidade de razão, a dispensa do acordo prévio dos interessados (embora estes o tenham concedido, ainda que presumidamente, para efeito da constituição das zonas de caça turísticas ou associativas a que os terrenos estavam inicialmente vinculados).

É, pois, idêntico o fundamento material que justifica a dualidade de regimes, no que respeita à obtenção de consentimento dos titulares dos direitos reais, consoante se trate da constituição de zonas de caça nacionais e municipais ou zonas de caça turísticas e associativas, e mesmo que, no caso zonas de caça municipais, estas resultem da integração de terrenos que antes estavam afectados a zonamentos de diferente tipo.

3. Um outro elemento tem, porém, um relevo não despiciendo na resolução da questão suscitada na consulta.

O artigo 3º, alínea e), da Lei da Caça reconhece o direito à não caça, entendido como a “faculdade de os proprietários ou usufrutuários e arrendatários, neste caso quando o contrato de arrendamento inclua a gestão cinegética, de requererem a proibição de caça nos seus terrenos, passando estes a constituir áreas de não caça.” ([58])

Este direito tem diversas concretizações no Regulamento da Caça e, em especial, nos artigos 26º e 53º a 58º, que regulam, designadamente, o procedimento destinado a obter o reconhecimento do direito por via administrativa.

O direito à não caça constituiu, a par com o já referido princípio do ordenamento do território, a principal inovação da Lei da Caça de 1999.

Por via do efectivo exercício desse direito, o titular de um prédio rústico, ou arrendatário, quando o arrendamento inclua a gestão cinegética, poderá impedir que esse prédio seja utilizado para a actividade venatória (artigo 53º).

Do mesmo modo, esses mesmos interessados poderão opôr-se à integração dos seus terrenos numa zona de caça municipal, quando pretendam que passem a constituir zonas de caça turísticas ou associativas (artigo 26º).

A introdução desta nova figura obsta, pois, a que possa considerar-se violado o direito fundamental de propriedade quando se verifique a inclusão de terrenos em zonas de caça municipais (ou nacionais), sem acordo prévio escrito dos proprietários. Isso porque, para além de todas as razões anteriormente expostas que justificam o sacrifício de uma das faculdades inseridas nesse direito à luz da função social da propriedade, no específico quadro da actividade cinegética, os titulares de direitos reais poderão, a todo o momento, subtrair os seus prédios ao exercício da actividade venatória, afastando, por manifestação de vontade própria, a situação de tolerância ou de consentimento tácito que a desnecessidade de um autorização prévia poderia propiciar ([59]) ([60]).

Da mesma forma – embora essa matéria não tenha sido aflorada no pedido de consulta -, o direito à não caça desvaloriza qualquer argumento que, na linha do acórdão do Tribunal Constitucional, vise inconstitucionalizar a anuência presumida, no caso de reconhecida impossibilidade de acordo prévio, no procedimento de concessão de zonas de caça ([61]).

Também neste caso, se a zona de caça vier a incluir terrenos sem o consentimento expresso dos respectivos titulares, estes podem, em qualquer momento, durante o prazo da concessão, provocar a exclusão desses terrenos, obviando à ocorrência de uma violação do direito de propriedade.

XII

Termos em que se formulam as seguintes conclusões:

1ª - A nova Lei da Caça, aprovada pela Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, estabelece como princípios basilares da política cinegética nacional o princípio do ordenamento de todo o território e o direito à não caça, entendido como a faculdade de os proprietários ou usufrutuários e arrendatários, neste caso quando o contrato de arrendamento inclua a gestão cinegética, requererem a proibição de caça nos seus terrenos (artigo 3º, alíneas c) e e));

2ª - O princípio do ordenamento do território presssupõe o progressivo desaparecimento do chamado terreno livre, que anteriormente constituia o regime cinegético geral, implicando que, de futuro, a actividade venatória deva ser exercida exclusivamente em áreas delimitadas e sujeitas a planos próprios de gestão e exploração dos recursos cinegéticos;

3ª - No novo conceito de gestão optimizada e uso racional dos recursos cinegéticos, é às zonas de caça nacionais e municipais que cabe exercer a função que era anteriormente cometida às áreas englobadas no regime cinegético geral, e que permitirá o uso livre de terrenos para o exercício da caça por todos os caçadores;

4.ª Deste modo, na linha argumentativa do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 866/96 - que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade de diversas disposições regulamentares da anterior Lei da Caça -, e segundo uma interpretação actualista, são essas zonas de caça que asseguram, hoje, a utilização da propriedade privada para fins de realização de um interesse colectivo, quando entendido como o interesse lúdico da caça comum a todos os caçadores;

5.ª Todavia, por virtude da alteração do paradigma da liberdade de caçar, que surge agora confinada a uma actuação ordenada, que visa sobretudo o aproveitamento racional do património cinegético e o desenvolvimento da riqueza e valorização do mundo rural, a função social da propriedade, é, nesse plano, representada sobretudo por referência a valores ambientais;

6.ª Por outro lado, o exercício do direito à não caça, a que alude a segunda parte da conclusão 1ª, impede que terrenos privados possam permanecer integrados em zonas de caça municipais, apesar de não ser legalmente exigível, para efeito da sua criação, o consentimento expresso dos respectivos titulares de direitos reais;

7.ª Em face das antecedentes conclusões, a norma do artigo 16º da Lei da Caça, quando interpretada no sentido de que a integração de terrenos privados em zonas de caça municipais não depende da prévia obtenção do acordo titulares dos direitos reais sobre esses prédios, não enferma de inconstitucionalidade, por violação do direito de propriedade privada consagrado no artigo 62º, n.º 1, da Constituição;

8.ª Nos mesmos termos, e por identidade de razão, não é inconstitucional a norma do n.º 4 do mesmo artigo, no ponto em que permite que, por decisão administrativa, numa zona de caça de interesse municipal, venham a ser incluídos, sem prévio consentimento dos interessados, terrenos antes pertencentes a zonas de caça turísticas ou associativas e relativamente às quais foi declarada a perda do direito de exploração.





[1]) Ofício n.º 1239, de 10 de Abril de 2001, recebido na Procuradoria-Geral da República no dia imediato.
[2]) Publicado no Diário da República, I Série, de 18 de Dezembro (pronunciou-se sobre a inconstitucionalidade das normas dos artigos 71º a 76º do Decreto-Lei n.º 251/92, de 12 de Novembro).
[3]) Parecer n.º 33/98, de 28 de Maio de 1998, publicado no Diário da República, II Série, de 27 de Agosto desse ano.
[4]) Comunicações datadas, respectivamente, de 13 de Julho e de 24 de Outubro de 2001, entradas na Procuradoria-Geral da Repúbica em 23 de Julho e nesta última data.
[5]) Rectificada por Declaração n.º 16-B/2000, publicada no Diário da República, I Série, de 30 de Novembro.
[6]) Este desiderato foi enunciado no preâmbulo do diploma regulamentar (Decreto-Lei n.º 227-B/2000, de 15 de Setembro), onde se esclarece que a zona de caça municipal pretende “ser aberta a todos os caçadores e gerida por associações de entidades de interessados na fruição ordenada de recursos cinegéticos.”
[7]) Alterado pelo Decreto-Lei n.º 338/2001, de 26 de Dezembro.
[8]) O Decreto-Lei n.º 338/2001, de 26 de Dezembro, aditou o n.º 5, sem relevo, no entanto, para a economia do parecer.
[9]) Alterado pelo Decreto-Lei n.º 338/2001, de 26 de Dezembro.
[10]) O Decreto Regulamentar Regional nº 18/92/M regulamentou o Decreto Legislativo Regional n.º 20/90/M, de 27 de Agosto, que, na sequência da Lei nº 28/89, de 22 de Agosto, adaptou às especificidades regionais a Lei nº 30/86.
[11]) Na sequência da declaração de inconstitucionalidade, foi publicado o Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 e Agosto, que revogou o anterior Regulamento da Caça, e enunciava como um dos seus propósitos “eliminar a constituição de zonas de regime especial ao abrigo do processo de edital”, tendo, para tanto, instituído um regime similar ao que consta agora do artigo 33º do Decreto-Lei n.º 227-B/2000, de 15 de Setembro.
[12]) Suprimiram-se aspectos descritivos da constituição e funcionamento das zonas de caça, no regime da Lei n.º 30/86, que serão retomados adiante no quadro analítico de aproximação à problemática da consulta.
[13]) Uma desenvolvida descrição do regime jurídico da caça, no domínio da Lei n.º 30/86, poderá ver-se no parecer do Conselho Consultivo n.º 33/98 já citado.
[14]) O regime cinegético geral abrange o terreno livre que não esteja sujeito às regras de proibição previstas nos artigo 25º e segs. do Regulamento da Caça (Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto), nem se encontre abrangido por zonas de regime cinegético especial (artigo 60º, n.º 2).
[15]) Cfr. artigos 62º, alínea a), 63º, nº 1, 65º e 68º do Decreto–Lei nº 136/96, de 14 de Agosto.
[16]) Cfr. artigos 62º, alíneas b), 63º, nº 2, 65º e 69º do Decreto–Lei nº 136/96, de 14 de Agosto.
[17]) Cfr. artigos 62º, alínea c), 63º, nº 3, 64º, nº 3, 64º e 70º do Decreto–Lei nº 136/96, de 14 de Agosto.
[18]) Cfr. artigo 62º, alínea d), 63º, nº 4, 64º e 71º do Decreto–Lei nº 136/96, de 14 de Agosto.
[19]) Cfr. LUÍS ALBERTO LANÇA (Lei da Caça e Regulamento Anotados, Coimbra, 2001, pág. 10), que considera que esse princípio, a par do direito à não caça, previsto na alínea e) do mesmo artigo, constitui uma das medidas mais importantes e inovadoras do novo regime.
[20]) Esta matéria foi regulamentada pelos artigos 164º e 165º do Decreto-Lei n.º 227-B/2000.
[21]) Adopta-se aqui um mecanismo similar ao previsto na anterior Lei da Caça para as zonas de caça nacionais e as zonas de caça sociais, que igualmente contemplavam critérios preferenciais de admissão, que, embora não inteiramente coincidentes com os que são agora considerados, também apontavam para o favorecimento de caçadores residentes nas áreas abrangidas pela zona de caça (cfr. artigos 24º, n.º 5, e 26º, n.º 7, da Lei n.º 30/86)


[22]) Neste sentido, SÉRVULO CORREIA, Zonas de Caça Associativas e Consentimento dos Proprietários, “Estudos em Homenagem ao Professsor Doutor Soares Martinez”, Vol. I, Coimbra, 2000, pág. 767.
[23]) E por isso mesmo é que nem sempre é legalmente admissível transferir a gestão de zonas de caça nacionais para organismos infra-estaduais.
[24]) Quanto ao conceito, ver VITAL MOREIRA (Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, págs. 142 e segs.), que admite que a descentralização, num sentido funcional ou técnico, e não meramente territorial, poderá ser efectuada para entidades que não disponham de personalidade jurídica de direito público.
x) MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 10ª ed., tomo I, Coimbra, 1991, pág. 458.
x1) A figura jurídica que aqui é analisada não se confunde com a concessão-contrato, em que os direitos e deveres recíprocos do concedente e do concessionário são definidos com base num acordo de vontades. É o caso da concessão de serviços públicos ou de obras públicas que seguem o regime dos contratos administrativos.
Na concessão entendida como acto administrativo, a vontade do concessionário representa apenas um pressuposto ou requisito de eficácia do acto (cfr. GARRIDO FALLA, Tratado de Derecho Administrativo, vol I, 9ª edição, Tecnos, pág. 439, e ENZO SILVESTRI, Concessione, “Enciclopédia del Diritto”, vol VIII, Giuffrè Editore, pág. 374).
x2) MARCELLO CAETANO, ob. cit., pág. 460.
x3) ROGÉRIO SOARES, Direito Administrativo. Lições ao Curso Complementar de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito de Coimbra no ano lectivo de 1977/78, Coimbra, 1978, págs. 108-110.
x4) Quanto a esta distinção, SANDULLI, Diritto Amministrativo, I Tomo, XV ed., Jovene Editore, Napoli, 1989, págs. 621-622; SILVESTRI, ob cit., pág. 372; GUIDO LANDI e GIUSEPPE POTENZA, Manuale de Diritto Amministrativo, 10ª ed., Giuffré Editore, Milano, 1997, pág. 202, CERULLI IRELLI, Corso di Diritto Amministrativo, G. Giappichelli Editore, Torino, pag. 539-540.
x5) BRUNO CAVALLO estabelece uma especialidade no conceito de concessão constitutiva, ao referenciar a atribuição de um direito novo ao destinatário, não a uma situação jurídica anteriormente existente na esfera jurídica de Administração, mas ao exercício de um poder público por parte da autoridade administrativa. Ao procurar distinguir a concessão constitutiva da concessão translativa, o autor refere: “Il fenomeno non è riscontrabile nella concessione c.d. constitutive in cui l’attribuzione ex novo al destinatario di una situazione soggettiva non deriva dal trasferimento di una simmetrica situazione esistente nella sfera giuridica dell’amministrazione concedente (le concessioni di sedi farmaceutiche, delle c.d. piazze notarili): la costituzione di questo nuovo “diritto” si ricollega, comunque, ad un potere pubblico di esclusiva spettanza dell’amministrazione agente.” (Provvedimenti e Atti Amministrativi, Trattato di Diritto Amministrativo, diretto dal Prof. Giuseppe Santaniello, Vol. XIII, Cedam, 1993, págs. 97-98).
x6) MARCELLO CAETANO, ob. cit., pág. 459.

x7) GARCIA ENTERRIA/TOMÁS RAMON FERNANDEZ, Curso de Derecho Administrativo, II tomo, 3ª ed., Civitas, pág. 142.
No mesmo sentido, ENZO SILVESTRI, ob. cit., pág. 370-371 (“Enquanto a concessão atribui ao sujeito novos direitos ou faculdades, a autorização não confere uma nova situação activa que não se encontre já compreendida na sua natural capacidade e liberdade, mas faz com que o titular fique legitimado a agir”).
x8) MARCELLO CAETANO, ob. cit., págs. 459-460.
x9) FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, vol. III, Lições aos alunos do curso de Direito, em 1988-89, Lisboa, 1989, pág. 130.
No mesmo sentido, ESTEVES DE OLIVEIRA, Direito Administrativo, vol. I, Lisboa, 1980, pág. 558, onde refere: “o efeito dos actos de autorização incide apenas sobre a possibilidade do exercício e não sobre a titularidade ou existência do poder ou do direito subjectivo”; ao passo que pelas licenças “se permite a um particular que exerça uma actividade ou se utilize de uma coisa proibidos à generalidade dos indivíduos”.
x10) SÉRVULO CORREIA caracteriza a distinção entre a autorização e a licença nos seguintes termos: a autorização é “a necessária verificação de que do exercício de um direito ou de uma actividade lícita não resulta prejuízo para o interesse público. A licença permite o exercício ou uma actividade relativamente proibida” (Noções de Direito Administrativo, vol I, Lisboa, pág. 250).
x11) A problemática da licença foi analisada no Parecer nº 42/93, ainda inédito, que, neste ponto, estamos a seguir de perto.
x12) Como se observa no parecer que vimos de acompanhar, as figuras jurídicas da licença e da concessão concorrem no quadro da regulamentação jurídica do exercício da caça; por um lado, é atribuída aos particulares uma licença individual da caça, que passa por constituir um dos requisitos de que depende a prática em geral dos actos venatórios; por outro lado, o aproveitamento cinegético de determinados espaços é objecto de concessão.
A licença (que caracteristicamente reveste a feição de uma autorização permissiva) autoriza o titular a poder exercer a actividade venatória dentro do restante condicionalismo que se encontra definido na lei, designadamente quanto aos locais, aos períodos e aos processos de caça; a concessão tem por objecto uma determinada área na qual se reserva ao concessionário o direito de exploração cinegética, mediante o cumprimento de determinadas obrigações.

[25]) Esta conceptualização da figura jurídica da concessão é admitida por BRUNO CAVALLO, conforme se deixou anteriormente referido [cfr. supra VII. 2. (nota x5)].
[26]) GOMES CANOTILHO/VITALMOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra, 1993, pág. 331; JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3.ª edição revista e actualizada, Coimbra, 2000, pág. 529.
[27]) JORGE MIRANDA, ob. cit., pág. 526.
[28]) ANA PRATA, A Tutela Constitucional da Autonomia Privada, Coimbra, pág. 177.
[29]) JORGE MIRANDA, ob. cit., pág. 526.
[30]) Idem, pág. 529.
[31]) O Plano Urbanístico e o Princípio da Legalidade, Coimbra, 1989, págs. 321-322.
[32]) Uma análise das diversas posições doutrinárias quanto à consagração do princípio da função social da propriedade, pode ver-se em ELIZABETH FERNANDEZ, O Direito ao Ambiente e Propriedade Privada (Aproximação ao Estudo da Estrutura e das Consequências das Leis-reserva portadoras de Vínculos Ambientais), Coimbra, 2001, págs.198 e segs.
[33]) JORGE MIRANDA, ob. cit., pág. 526; MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, vol. I, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1979, pág. 577.
[34]) Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 2.ª edição, págs.1147-1148.
[35]) Sobre a teoria dos limites imanentes, ainda JORGE MIRANDA, ob. cit., págs. 332 e segs.; VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, Coimbra, págs. 275 e segs.; CASALTA NABAIS, Os Direitos Fundamentais na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, 1990, págs. 23 e segs.
[36]) No sentido exposto, ANA PRATA, ob. cit., pág. 166.
[37]) Idem, pág. 171.
[38]) Idem, págs. 181-182. No mesmo sentido, JORGE MIRANDA, ob.cit., pág. 529.
[39]) Para maiores desenvolvimentos, CARVALHO FERNANDES; Lições de Direitos Reais, 3.ª edição, Quid Juris, págs. 199 e segs. Sobre esta matéria, também, o parecer do Conselho Consultivo n.º 36/2000, que aqui se seguiu momentaneamente.
[40]) A expropriação e a requisição estão expressamente previstas no artigo 62.º, n. º2, da CRP, que funciona como norma de autorização e de garantia. O respectivo regime, a que genericamente se referem os artigos 1308.º a 1310.º do Código Civil, está especialmente regulamentado no Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 169/98, de 18 de Setembro (cfr., artigos 80.º a 87.º quanto à requisição de imóveis). A constituição das servidões administrativas está igualmente prevista no artigo 8.º do Código das Expropriações, aplicando-se-lhes com as necessárias adaptações, salvo o disposto em legislação especial, o regime constante desse diploma: Estão aqui em causa, essencialmente, servidões de margem, de aqueduto público, de linhas férreas, eléctricas, telefónicas ou telegráficas, bem como servidões aeronáuticas ou militares.
[41]) É o caso das restrições relativas à emissão de fumos, à produção de ruídos, e à construção de instalações ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas; das que se destinam a evitar o devassamento ou gotejamento; e das inerentes ao escoamento natural das águas e protecção de árvores ou arbustos na proximidade das estremas dos prédios.
[42]) Direito Civil. Reais, 5.ª edição (reimpressão), Coimbra, 198.
[43]) Ibidem. No mesmo sentido, MENEZES CORDEIRO, ob. cit., pág. 577.
[44]) Idem, págs. 198-200.
[45]) MENEZES CORDEIRO, ob. cit., pág. 579.
[46]) RENATO ALESSI, Enciclopedia del Diritto, Vol. V, 1959, p.750
[47]) MANSO PRETO, Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol II, Coimbra, entrada “Caça”, pág. 18.
[48]) Cfr. JAIME VALE, A Situação dos Titulares de Direitos sobre Terrenos de Caça no Actual Regime Jurídico, in “XX Aniversário do Provedor de Justiça. Estudos”, Lisboa, 1995, págs. 67-68, que aqui se seguiu quase textualmnete.
[49]) CARLOS BERNARDES COELHO, O Direito de Caçar e o Direito de Propriedade. Alguns Tópicos sobre a sua Evolução em Portugal, “Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente”, n.º 1, Junho de 1994, pág. 160.
[50]) É este ponto de vista que surge sublinhado na declaração de voto da Conselheira FERNANDA PALMA, junta ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 866/96.
[51]) Ob. cit., pág. 775.
[52]) Ibidem.
[53]) SÉRVULO CORREIA, ob. cit., pág. 777.
[54]) Reforça este entendimento, o facto de a gestão das zonas de caça nacionais e municipais poder ser transferida, não apenas para federações e associações de caçadores, mas também para associações de agricultores, de produtores florestais e de defesa do ambiente, o que sugere que a exploração do espaço cinegético poderá não ser predominantemente dirigida par a prática do acto venatório.
[55]) Nesse sentido aponta a caracterização da exploração dos recursos cinegéticos como de interesse nacional e a obrigatoriedade do seu ordenamento em todo o território (artigo 3º, alína c)).
[56]) Este é um dos aspectos em que assenta a crítica formulada no voto de vencido do Conselheiro RIBEIRO MENDES proferido relativamente ao acórdão do Tribunal Constitucional, e que merece também a anuência de SÉRVULO CORREIA (ob. cit., págs. 770-771).
[57]) A situação prevista no artigo 16º, n.º 4, parece ser a mais particularmente visada no pedido de consulta.
[58]) A disposição encontra-se reproduzida no artigo 53º do Regulamento, cujo n.º 2 estabelece um requisito negativo, correspondente ao constante da segunda parte da alínea e) do artigo 3º da Lei da Caça (“O requerente não pode ser titular de carta de caçador e, no caso de pessoas colectivas, o objecto social não pode contemplar a exploração dos recursos cinegéticos, nem os elementos que integram os órgãos sociais serem titulares de carta de caçador”).
[59]) Neste sentido, SÉRVULO CORREIA, ob. cit., pág. 755.
[60]) O direito à não caça afasta ainda a possível violação do princípio da proporcionalidade que seja imputada a uma medida legislativa que imponha, contra vontade dos respectivos proprietários, em vista à satisfação do interesse público subjacente ao jus venandi, a integração de terrenos privados em zonas de caça. Nesses termos, a não exigência do consentimento prévio dos titulares dos direitos reais para a criação de zonas de caça municipais, conforme o disposto no artigo 16º da Lei da Caça, fica a coberto da doutrina firmada no acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 4 de Abril de 1999 (Processo Chassagnou e outros vs França): neste aresto concluiu-se que a integração forçada de terrenos numa Associação Comunal de Caça, permitida no âmbito do direito françês, constitui uma medida desproporcionada e, como tal, violadora do artigo 1º do Protocolo n.º 1 anexo à Declaração Europeia dos Direitos do Homem, norma que impõe o respeito pela propriedade privada e que apenas permite o estabelecimento de limitações a esse direito por razões de interesse público.
[61]) Sublinhe-se que o artigo 33º do Regulamento da Caça veio estipular um regime semelhante ao já previsto no Decreto-Lei n.º 136/96, de 14 de Agosto (artigo 176º), que igualmente conferia aos interessados a faculdade de excluirem os seus prédios de zonas de caça turísticas ou associativas, no caso em que se tivesse presumido o consentimento por impossibilidade prática de obter acordo prévio. Esse diploma havia sido publicado na vigência da Lei n.º 30/86, em resultado da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, declarada pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 866/96, o que explica que o consentimento tácito obtido nas condições definidas no correspondente artigo da novo Regulamento não suscite agora dúvidas do ponto de vista da sua conformidade constitucional.