Pareceres PGR

Parecer do Conselho Consultivo da PGR
Nº Convencional: PGRP00001994
Parecer: P001382001
Nº do Documento: PPA201120030013800
Descritores: AUTARQUIA LOCAL
EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
INDEMNIZAÇÃO
PAGAMENTO
ESTADO
SUBSTITUIÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
RECEITA DO MUNICÍPIO
TRANSFERÊNCIA
ORÇAMENTO GERAL DO ESTADO
FUNDO GERAL MUNICIPAL
FUNDO DE COESÃO MUNICIPAL
RETENÇÃO DE VERBAS
COBRANÇA COERCIVA DE CRÉDITOS
AUTONOMIA LOCAL
AUTONOMIA FINANCEIRA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
LEI DAS FINANÇAS LOCAIS
LEI GERAL
LEI DE VALOR REFORÇADO
CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES
LEI ESPECIAL
LEI POSTERIOR
CONFLITO DE LEIS
COMPARTICIPAÇÃO FINANCEIRA
SUBSÍDIO
PROIBIÇÃO
Livro: 00
Numero Oficio: 4083
Data Oficio: 09/26/2001
Pedido: 09/27/2001
Data de Distribuição: 05/29/2003
Relator: FERNANDA MAÇÃS
Sessões: R1
Data da Votação: 11/20/2003
Tipo de Votação: UNANIMIDADE
Sigla do Departamento 1: MFIN
Entidades do Departamento 1: SE DO TESOURO E DAS FINANÇAS
Posição 1: HOMOLOGADO
Data da Posição 1: 06/29/2004
Privacidade: [01]
Data do Jornal Oficial: 06-08-2004
Nº do Jornal Oficial: 184
Nº da Página do Jornal Oficial: 11922
Indicação 2: ASSESSOR:TERESA BREIA
Área Temática:DIR ADM * ADM PUBL / DIR FINANC / DIR CONST * DIR FUND / DIR CIV * TEORIA GERAL
Ref. Pareceres:P000121984Parecer: P000121984
P000141988Parecer: P000141988
P000741987Parecer: P000741987
P000721993Parecer: P000721993
CA00721993Parecer: CA00721993
P000551996Parecer: P000551996
P000712002Parecer: P000712002
P000752002Parecer: P000752002
P000622003Parecer: P000622003
Legislação:CONST76 ART6 ART112 N3 ART238 N1 N2; CEXP99 ART1 ART12 N1 C ART23 N6 N7 ART71 N1 N4; LFL98 ART2 N3 ART7 N1 N2 N3 ART8 ART11 ART13 ART16; L 3-B/2000 DE 2000/04/04 ART14 N1 N3; L 30-C/2000 DE 2000/12/29 ART9 N1 N3; L 109-B/2001 DE 2001/12/27 ART8 N1 N3; L 32-B/2002 DE 2002/12/30 ART10 N1 N3; CCIV66 ART7 N3
Direito Comunitário:
Direito Internacional:
Direito Estrangeiro:
Jurisprudência:AC TC N82/86 IN DR I N76 DE 1986/04/02
AC TC N452/87 IN DR II N1 DE 1988/01/02
AC TC N361/91 IN DR II N8 DE 1992/01/10
AC TC N358/92 IN DR I N21 DE 1993/01/26
AC TC N260/98 IN DR I N76 DE 1998/03/31
AC TC N631/99 IN DR I N28 DE 1999/12/28
Documentos Internacionais:
Ref. Complementar:
Conclusões: 1ª. A autonomia financeira, enquanto pressuposto essencial do princípio da autonomia das autarquias locais, exige, além dos meios financeiros adequados à prossecução das suas atribuições, que os órgãos autárquicos disponham de liberdade para estabelecer o destino das receitas e para realizar as despesas da autarquia, afectando as primeiras às segundas;
2ª. Do mencionado princípio decorre que a intervenção do legislador, para afectar transferências do Orçamento do Estado a favor das autarquias a determinadas das suas despesas, somente pode considerar-se legítima, desde que respeitado o núcleo essencial da autonomia, e o princípio da inadmissibilidade da afectação de receitas de forma injustificada ou desproporcionada;
3ª. A norma do artigo 8º da Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei nº 42/98, de 6 de Agosto, tem vocação para funcionar como uma regra geral, admitindo a cativação das transferências do Orçamento do Estado, para garantir o pagamento de dívidas das autarquias, desde que as mesmas tenham sido definidas por sentença judicial transitada em julgado ou quando não contestadas junto dos credores no prazo máximo de 60 dias, e não seja ultrapassado o limite percentual de retenção de 15%;
4ª. O nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro, que prevê a cativação de transferências orçamentais, independentemente de quaisquer formalidades, com vista a satisfazer o direito de regresso do Estado, quando este se substitua às autarquias no pagamento de indemnizações por expropriações, configura uma norma especial que prevalece sobre o artigo 8º da Lei das Finanças Locais, por força da regra recebida no nº 2 do artigo 7º do Código Civil (lex specialis derogat legi generali);
5ª. Esta norma, interpretada no sentido de prever uma retenção de transferências do Orçamento do Estado, sem respeitar o limite percentual fixado no artigo 8º da Lei das Finanças Locais, encarada como válvula de segurança instituída a favor dos expropriados, e apenas accionável em situações excepcionais de dificuldades transitórias de tesouraria das autarquias locais, satisfaz as exigências referidas na conclusão 2ª, pelo que não é inconstitucional.

Texto Integral:
Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças,
Excelência:


I

A Câmara Municipal de Valpaços, por ofício dirigido ao Director-Geral do Tesouro, argumentando incapacidade financeira para a médio e longo prazo pagar o valor de indemnizações fixadas por sentença judicial, no âmbito de expropriações litigiosas, solicitou que se procedesse “ao depósito dos referidos montantes, por forma a garantir desde logo o pagamento das indemnizações aos expropriados”[1], ao abrigo das disposições vertidas nos nºs 6 e 7 do artigo 23º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro.

O mencionado ofício termina dizendo que a referida verba iria ser deduzida do montante das transferências do Estado para a Autarquia de Valpaços, nos termos do artigo 8º da Lei nº 42/98, de 6 de Agosto, conforme informação da Direcção-Geral das Autarquias Locais.

A Direcção-Geral do Tesouro procedeu ao depósito do montante das indemnizações em causa a favor do Tribunal Judicial da Comarca de Valpaços, em substituição da Câmara Municipal de Valpaços, solicitando de imediato que o referido crédito fosse regularizado.

O Director-Geral das Autarquias Locais oficiou, então, à Direcção-Geral do Tesouro sobre a forma como seria, na sua óptica, processada a retenção, concluindo que “(...) de acordo com os artigos 8º da Lei nº 42/98, de 6 de Agosto (Lei das Finanças Locais) e 9º da Lei do Orçamento do Estado para 2001, as retenções às transferências dos municípios não podem ultrapassar o valor correspondente a 15% das mesmas (...)”[2].

Sobre a questão, foi elaborada a Nota nº 60/DRR/PA/2001[3], na Direcção-Geral do Tesouro, onde se conclui, em síntese, que em todas as situações em que a Direcção-Geral do Orçamento foi obrigada a substituir-se às entidades expropriantes, procedeu-se de imediato à cativação das transferências orçamentais, conforme o estatuído no nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações.

Na mencionada Nota, pode ler-se, ainda, que, caso “o normativo estatuído pelos Arts. 8º e 9º da Lei das Finanças Locais e da Lei do Orçamento do Estado para 2001, respectivamente, seja aplicado às situações decorrentes do pagamento de encargos desta natureza, (...) está aberto um precedente para as Autarquias Locais se financiarem à custa da Direcção-Geral do Tesouro e à margem do orçamento, originando um acréscimo substancial em termos de despesa orçamental e consequentemente do déficit orçamental”.

De seguida, consultado sobre o assunto, o Departamento Jurídico da Direcção-Geral do Tesouro concluiu concordando com a posição constante da Nota nº 60/DRR/PA/2001 e consequente rejeição da tese sustentada pela Direcção-Geral das Autarquias Locais.

Por sugestão do Auditor Jurídico do Ministério das Finanças, o processo foi, então, enviado ao Conselho Consultivo da Procuradoria-–Geral da República para parecer, por Despacho nº 1371-A/2001, do então Secretário de Estado do Tesouro e das Finanças.

Cumpre, desta forma, emitir o parecer solicitado.

II

O diferendo que opõe a Direcção-Geral das Autarquias Locais à Direcção-Geral do Tesouro gira fundamentalmente em torno do sentido e alcance que se der à norma do nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações, sobretudo no confronto com o disposto no artigo 8º da Lei nº 42/98, de 6 de Agosto - Lei das Finanças Locais (LFL)[4].

O nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro, tem o seguinte conteúdo:

“O Estado, quando satisfaça a indemnização, tem direito de regresso sobre a entidade expropriante, podendo, para o efeito, proceder à cativação de transferências orçamentais, independentemente de quaisquer formalidades”.

A Direcção-Geral do Tesouro vê nesta norma a consagração de um direito de regresso “reforçado” que permite a cativação automática e global das transferências do orçamento, correspondente ao valor das dívidas das respectivas autarquias ao próprio Estado, independentemente de quaisquer formalidades[5].

Para a Direcção-Geral das Autarquias Locais, a retenção unilateral a que alude o preceito terá de fazer-se com observância dos limites constantes do artigo 8º da Lei nº 42/98.

É o seguinte o conteúdo deste preceito:
“Artigo 8º
Dívidas das autarquias
Quando as autarquias tenham dívidas definidas por sentença judicial transitada em julgado ou por elas não contestadas junto dos credores no prazo máximo de 60 dias, após a respectiva data de vencimento, pode ser deduzida uma parcela às transferências resultantes da aplicação da presente lei, até ao limite de 15% do respectivo montante global.”

Enunciada em termos sumários a questão que vem posta, consideramos que a sua solução implica que se verifique, por um lado, se há de facto conflito directo entre os preceitos em causa e como resolvê-lo. No caso de se concluir pela prevalência do nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações, impõe-se, por outro lado, indagar se são admissíveis retenções às transferências do Estado para as autarquias, sem observância dos limites condensados no artigo 8º da LFL. Dito por outras palavras, haverá que apreciar a legitimidade da intervenção do legislador, à luz da garantia da autonomia constitucional das autarquias, em especial na sua vertente financeira.

III

A resposta ao problema posto impõe um excurso ainda que breve sobre a problemática da autonomia local.

1. Entre os princípios fundamentais da Constituição da República de 1976 encontra-se o do respeito, imposto ao Estado na sua organização, da autonomia[6] das autarquias locais[7] (artigo 6º da CRP).
O princípio da autonomia local pressupõe e exige, entre outros, os seguintes direitos:
“a) O direito e a capacidade efectiva de as autarquias regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob a sua responsabilidade e no interesse das respectivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos (...)”, o que constitui o seu domínio reservado de intervenção;
“b) O direito de participarem na definição das políticas públicas nacionais que afectem os interesses próprios das respectivas populações;
c) O direito de partilharem com o Estado ou com a região as decisões de interesse comum (...);
d) O direito de, sempre que possível, regulamentarem a aplicação das normas ou planos nacionais por forma a adaptá-–los convenientemente às realidades locais (...)”[8].

A capacidade para regulamentarem e gerirem, sob a sua responsabilidade, os interesses das respectivas populações, pressupõe, desde logo, a disponibilidade de recursos financeiros, ou seja, a dotação das autarquias com meios financeiros próprios.

Ao pronunciar-se sobre esta temática, concluiu este corpo consultivo que o respeito pelo princípio da autonomia das autarquias locais implica “conferir-lhes competência exclusiva em certas matérias e reconhecer-lhes o direito a um orçamento com receitas e despesas próprias”[9].

No mesmo sentido, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA ponderam que “a garantia institucional da autonomia local requer, entre outras coisas, que as autarquias disponham de meios financeiros suficientes (para o desempenho das atribuições de que são constitucional ou legalmente incumbidas) e autónomos (a fim de o exercício de competências e atribuições não ficar dependente dos meios financeiros do poder central, como comparticipações, subsídios, etc.,) e que gozem de autonomia na gestão desses meios (autonomia financeira)”[10].

De igual modo, para CASALTA NABAIS[11], “a autonomia financeira constitui um dos aspectos essenciais, um pressuposto mesmo da autonomia local, maxime municipal. (...) na ausência de um tal vector autonómico, não se encontram reunidas as condições duma efectiva autonomia das comunidades locais. O que implica que as autarquias disponham de receitas suficientes para a prossecução integral das suas atribuições, receitas que hão-de ser aplicadas livremente, de acordo com orçamentos próprios, às despesas que, por sua vez, devem ser decididas por exclusiva autoridade dos órgãos autárquicos”.

A estreita relação entre autonomia local e autonomia financeira tem sido realçada pelo Tribunal Constitucional, designadamente no Acórdão nº 82/86, quando afirma: que “as autarquias locais só poderão ser verdadeiramente autónomas, só poderão ser poder local, se dispuserem de meios financeiros necessários ao cumprimento dos seus fins”[12].

Em suma, tanto a doutrina como a jurisprudência convergem no sentido de que a autonomia financeira se traduz num meio indispensável à realização plena do princípio da autonomia.


2. A matéria da autonomia financeira das autarquias locais é objecto do artigo 238º da Constituição, que recebe os princípios fundamentais nesta matéria.

Do preceito, sob a epígrafe “Património e finanças locais”, cumpre destacar o seu nº 1, onde se estatui que “As autarquias locais têm património e finanças próprios”[13].

Por seu lado, o nº 2 remete para o legislador ordinário o estabelecimento do regime das finanças locais, impondo-lhe como objectivo “a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades” [14].

Este preceito, nas vozes autorizadas de GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, consagra “o princípio constitucional do equilíbrio financeiro, primeiro, entre o Estado e as autarquias locais, e, depois, das autarquias locais entre si. No primeiro caso, trata-se do equilíbrio financeiro vertical, porque através dele se pretende assegurar uma distribuição equilibrada (‘justa repartição’) das receitas entre o Estado e as pessoas colectivas territoriais autónomas. No segundo caso, trata-se do equilíbrio financeiro horizontal, pois visa-se corrigir as desigualdades entre autarquias do mesmo grau.

“(...) Um instrumento específico do equilíbrio financeiro – vertical e horizontal – é o fundo de equilíbrio financeiro (Lei nº 1/87, art. 7º), anualmente financiado pelo orçamento do Estado e repartido pelos municípios de acordo com determinados critérios. O montante do financiamento do fundo pelo Estado há-de ser suficiente para alcançar a justa repartição das receitas públicas, tendo em conta, por um lado, o volume das receitas próprias dos municípios e, por outro lado, a extensão das suas tarefas e a dimensão das suas necessidades quando confrontadas com as do Estado”[15].

A autonomia financeira das autarquias pressupõe que uma parte significativa das suas receitas sejam receitas próprias, embora se admita que também possam alcançar a sua suficiência financeira à custa de transferências da administração estadual. Ponto é que “tais transferências obedeçam a critérios objectivos legalmente definidos que não impliquem qualquer tipo de vinculação ou de dependência face à administração estadual, nem constituam o suporte de intoleráveis desigualdades económicas e fiscais entre as autarquias”[16].

Como este corpo consultivo já teve oportunidade de ponderar, tendo por referência a anterior Lei das Finanças Locais, “o sistema de transferências financeiras obrigatórias do Estado para as Autarquias instituído a partir e com base nesta é constituído pelo chamado Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF)”[17].

Para o Tribunal Constitucional[18] o FEF “é um elemento constitutivo da autonomia financeira das autarquias locais, que dá cumprimento às imposições constitucionais de ‘justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias locais’ e da ‘necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau’ (art. 240º, nº 2, da Constituição). Pelo que a fórmula que preside à determinação do FEF não pode ser alterada em termos que o reduzam a um montante que comprometa o núcleo essencial da autonomia local, muito embora essas imposições constitucionais não imponham a fixação dum ‘concreto montante’ que seja garantido para cada ano económico.”

Actualmente, o anterior Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF)[19] foi substituído pelos actuais Fundo Geral Municipal (FGM)[20] e Fundo de Coesão Municipal (FCM)[21], no respeitante aos municípios, e pelo Fundo de Financiamento das Freguesias (FFF), no que se refere às freguesias[22].


2.1. O regime da autonomia financeira encontra-se definido na actual Lei das Finanças Locais, que atribui aos órgãos autárquicos os poderes de: elaborar, aprovar e alterar planos de actividades e orçamentos; elaborar e aprovar os documentos de prestação de contas; arrecadar e dispor de receitas próprias, ordenar e processar as despesas autorizadas por lei; e gerir o seu património (cfr. artigo 2º, nº 3).

As receitas próprias das autarquias são as que resultam designadamente da cobrança de certos impostos, percentagens destes e taxas, do produto das taxas, tarifas e preços cobrados pela prestação de serviços, da aplicação de coimas, do rendimento dos bens próprios ou do produto da respectiva alienação, etc. (cfr. artigo 16º da LFL)[23].

A maior parte das receitas municipais são, no entanto, constituídas por transferências do Orçamento do Estado.

Nestas transferências contam-se, por um lado, a transferência constituída pelo FGM (artigo 11º da LFL) e o FCM (artigo 13º da LFL)[24], e, por outro, as transferências extraordinárias e especiais concretizadas nos subsídios e comparticipações específicas.

Em matéria de comparticipações e subsídios, o nº 1 do artigo 7º da LFL estabelece, como regra, que os mesmos não são permitidos. Neste sentido, segundo o nº 2 do mesmo preceito, apenas excepcionalmente poderão ser “inscritas no Orçamento do Estado, por ministério, verbas para financiamento de projectos das autarquias locais de grande relevância para o desenvolvimento regional e local, quando se verifique a sua urgência e a comprovada e manifesta incapacidade financeira das autarquias para lhes fazer face”.

O Governo também está autorizado a tomar providências orçamentais necessárias à concessão de auxílios financeiros às autarquias, em situações excepcionais elencadas no nº 3 do artigo 7º da LFL:
“a) Calamidade pública;
b) Municípios negativamente afectados por investimento da responsabilidade da administração central;
c) Edifícios sede de autarquias locais, negativamente afectados na respectiva funcionalidade;
d) Circunstâncias graves que afectem drasticamente a operacionalidade das infra-estruturas e dos serviços municipais de protecção civil;
e) Instalação de novos municípios ou freguesias;
f) Recuperação de áreas de construção clandestina ou de renovação urbana quando o seu peso relativo transcenda a capacidade e a responsabilidade autárquica nos termos da lei”.

Com relevo para a resolução da situação objecto deste parecer, importa destacar, na actual LFL, uma norma específica relativa a deduções nas transferências do Orçamento do Estado para os municípios.

Trata-se do seu artigo 8º que tem, recorde-se, o seguinte conteúdo:
“Artigo 8º
Dívidas das autarquias
Quando as autarquias tenham dívidas definidas por sentença judicial transitada em julgado ou por elas não contestadas junto dos credores no prazo máximo de 60 dias, após a respectiva data de vencimento, pode ser deduzida uma parcela às transferências[25] resultantes da aplicação da presente lei até ao limite de 15% do respectivo montante global”[26] [27].

Esta norma insere-se no modelo de cobrança de dívidas das autarquias mediante deduções em importâncias a haver por estas e provenientes de transferências do Orçamento do Estado, com exemplos detectados desde os anos 30[28], em especial, nas leis que aprovavam os orçamentos do Estado.

A justificação para este tipo de normas terá apoio na ideia segundo a qual a autonomia financeira não significa “isenção de cumprimento pontual das dívidas e encargos livremente assumidos ou por lei impostos às autarquias locais (...)”[29].

O problema está em compatibilizar estes mecanismos de retenção automática forçada com as exigências decorrentes designadamente do princípio da autonomia financeira das autarquias.

No caso da norma em apreço, a retenção nela prevista fica subordinada à verificação dos seguintes requisitos:

- prévia verificação judicial da dívida[30], ou a sua não contestação junto dos credores no prazo máximo de 60 dias[31];
- observância de um limite percentual de retenção de 15%.

Para além destes pressupostos, o preceito não faz qualquer restrição, quer quanto à natureza das dívidas quer no que se refere à categoria de entidades públicas beneficiárias[32].

Por outro lado, este corpo consultivo já teve oportunidade de ponderar, em anteriores pareceres, que o limite de 15% se mostra adequado a permitir conter a retenção de verbas do Orçamento do Estado em moldes susceptíveis de não ofender a autonomia financeira das autarquias locais[33] [34].

Afigura-se, desta forma, que o preceito tem vocação para funcionar como uma regra geral[35], admitindo a cativação de transferências do Orçamento do Estado, para garantir o pagamento de quaisquer dívidas das autarquias a entidades públicas, desde que verificados os pressupostos nele condensados, a saber: terem sido definidas por sentença judicial transitada em julgado ou por elas não contestadas junto dos credores no prazo máximo de 60 dias, a contar da respectiva data de vencimento; respeitarem o limite percentual de retenção de 15%.

Coerentemente com esta regra geral, verifica-se que, a partir da entrada em vigor da Lei nº 42/98, as disposições das leis anuais do Orçamento do Estado, ao estabelecerem em que moldes é que são permitidas deduções nas transferências financeiras para pagamento de dívidas das autarquias, passaram a remeter para o regime geral nela consagrado[36].


3. Nesta sequência, em face das considerações acabadas de fazer, coloca-se com acuidade, na perspectiva do parecer, o problema de saber se o nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações deve ou não ser igualmente interpretado em conformidade com o disposto no artigo 8º da Lei nº 42/98.


3.1. A resposta tem de ser negativa, pelo menos a partir da Lei nº 109-B/2001, que aprovou o orçamento de 2002.

Com efeito, o nº 1 do artigo 8º deste diploma permite a retenção das transferências correntes e de capital do Orçamento do Estado para as autarquias para satisfação de débitos, ”vencidos e exigíveis, constituídos a favor da Caixa Geral de Aposentações, da ADSE, da Segurança Social e da Direcção-Geral do Tesouro, e ainda em matéria de contribuições e impostos, bem como dos resultantes da não utilização indevida de fundos comunitários”.

O nº 3 estabelece expressamente que tais transferências, “salvaguardando o regime especial previsto no Código das Expropriações, só poderão ser retidas nos termos previstos no artigo 8º da Lei nº 42/98, de 6 de Agosto”.

A salvaguarda do regime especial, previsto no Código das Expropriações, é repetida no nº 3 do artigo 10º da Lei nº 32-B/2002, da forma seguinte:

“As transferências referidas no nº 1, no que respeita a débitos das autarquias locais, salvaguardando o regime especial previsto no Código das Expropriações, só poderão ser retidas nos termos previstos no artigo 8º da Lei nº 42/98, de 6 de Agosto, na redacção dada pela Lei nº 94/2001, de 20 de Agosto.”

Temos assim que, a partir da Lei do Orçamento para o ano de 2002, passou a haver norma expressa a resolver o problema da eventual incompatibilidade entre os dois preceitos, no sentido da prevalência do regime consagrado no nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações.

Sempre se adianta, porém, que apesar de o problema se encontrar aparentemente resolvido a partir daquela data, não estamos dispensados de indagar se existe de facto conflito entre os preceitos em causa e como resolvê-lo, uma vez que a situação objecto do presente parecer se reporta a transferências relativas ao ano de 2000.

Por outro lado, continua a subsistir o problema de saber se o regime de retenções consagrado no nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações colide ou não com as exigências constitucionais decorrentes do princípio da autonomia local financeira.


3.2. Regressemos, então, à análise das relações entre os complexos normativos em causa.

Para melhor compreensão do nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações, é preciso ter presente o estatuído no seu nº 6, que consagra a garantia pelo Estado do pagamento da justa indemnização.

De acordo com este preceito, o Estado passa a responder subsidiariamente[37] pelo pagamento da justa indemnização correspondente a toda e qualquer expropriação, mesmo daquelas que sejam da responsabilidade dos municípios[38].

O princípio geral que vigora quanto à forma de pagamento da indemnização é o de que, em princípio, este há-de ser feito na sua totalidade em dinheiro e de uma só vez[39].

“A explicação para este regime-regra reside - segundo ALVES CORREIA[40] - na circunstância de a indemnização por expropriação dever garantir à entidade expropriada uma compensação plena da perda patrimonial suportada, em termos de a colocar, ainda que abstractamente, na posição de adquirir outro bem de igual natureza e valor, que substitua aquele que lhe foi retirado. (...) o pagamento de um quantitativo pecuniário de modo fraccionado, mediante prestações que se prolongam no tempo, não satisfaz, em regra, aquela finalidade essencial da indemnização”[41].

Um dos objectivos que presidiu à feitura do novo Código das Expropriações foi o reforço das garantias dos expropriados[42], destacando-se “as melhorias introduzidas no domínio da observância do princípio da contemporaneidade do pagamento da indemnização em relação ao momento em que o expropriado se vê privado de um bem que lhe pertencia (...)”[43].

Neste sentido, um dos pontos fulcrais que norteou a reforma do Código das Expropriações incidiu, nas palavras do Secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, no “estabelecimento das medidas necessárias para assegurar o funcionamento dos princípios da paridade temporal, o mesmo é dizer que o Código reforça e esclarece o direito de o expropriado e demais interessados receberem não só a parte não controvertida da indemnização, mas também aquela sobre a qual subsista litígio, esta, naturalmente, a título provisório. Este sistema é complementado pela ampliação da responsabilidade do Estado, que passa a responder, subsidiariamente, pelo pagamento da justa indemnização”[44].

Compreende-se, agora, melhor o sentido e alcance da norma do nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações, cujo conteúdo convém recordar:

“O Estado, quando satisfaça a indemnização, tem direito de regresso sobre a entidade expropriante, podendo, para o efeito, proceder à cativação de transferências orçamentais, independentemente de quaisquer formalidades”.

Assim sendo, sempre que o Estado, na sequência da aplicação desta norma, se substitua a uma autarquia no pagamento das indemnizações fixadas pelo tribunal, passa a ter sobre a mesma direito de regresso em relação às quantias indemnizatórias que adiantou.

A singularidade da situação está na forma encontrada pelo legislador para regular a concretização desse direito de regresso: através da cativação das transferências do Orçamento do Estado, sem quaisquer formalidades.

A utilização da expressão “sem quaisquer formalidades”, parece apontar no sentido de que a retenção há-de processar-se de forma global e automática.

E compreende-se que assim seja. O que a lei pretende é instituir um mecanismo que funcione como garantia do pagamento[45] da justa indemnização ao expropriado, e não resolver eventuais problemas financeiros das autarquias.

Se a retenção das transferências não se efectivasse de forma global, aquele mecanismo seria facilmente subvertido em expediente de financiamento extraordinário das autarquias, à margem do orçamento próprio.


3.2.1. A breve incursão, acabada de fazer, sobre a razão de ser da solução acolhida no Código das Expropriações, coloca-nos em melhor posição para tentar configurar as relações entre ambas as normas.

Confrontando o nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações com o artigo 8º da LFL, vemos que as duas normas têm em comum o facto de se reportarem à retenção de transferências do Orçamento do Estado para as autarquias por dívidas por estas contraídas.

No entanto, ressaltam também algumas diferenças.

Enquanto o artigo 8º da LFL reporta a dedução nele prevista a quaisquer dívidas das autarquias, o artigo 23º, nº 7, do Código das Expropriações, restringe a cativação de transferências orçamentais a dívidas resultantes de indemnizações por expropriação.

Por outro lado, o artigo 8º da LFL permite a dedução somente em relação a dívidas reconhecidas por sentença transitada em julgado ou quando não contestadas junto dos credores no prazo máximo de 60 dias.

No caso do artigo 23º, nº 7, do Código das Expropriações, uma análise incidente apenas na respectiva literalidade aponta no sentido de a cativação das transferências resultar, de forma directa e imediata, do exercício do direito de regresso por parte do Estado.

No entanto, subjacente ao direito de regresso existe uma sentença transitada em julgado a condenar a autarquia local no pagamento de determinada indemnização. Nas situações em que esta não possa satisfazer de imediato a dívida, aparece então o Estado a substituir-se a ela no pagamento, mas a dívida não deixa de se encontrar fixada por sentença transitada em julgado. Afigura-se, pois, não existir, do ponto de vista substancial, diferença neste aspecto.

Por outro lado, precisamente porque a cativação tem como causa directa a substituição do Estado no pagamento de dívidas da autarquia, compreende-se que o nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações não preveja a sua aplicação a situações de dívidas não contestadas junto dos credores no prazo máximo de 60 dias.

Do mesmo modo, vimos também que na previsão do artigo 8º da LFL cabiam dívidas de quaisquer entidades públicas, enquanto que no caso do nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações apenas o Estado pode beneficiar da cativação nele regulada, com vista, precisamente, a concretizar o seu direito de regresso.

Mas o que ressalta como mais característico, no confronto dos dois preceitos, é o facto de o artigo 8º da LFL estabelecer, como vimos, um limite máximo, de 15%, para a dedução que permite nas transferências para as autarquias locais, enquanto o nº 7 do artigo 23º prima pela ausência de qualquer limite de natureza quantitativa.

Ao conferir ao Estado (Administração central) um poder discricionário de retenção de verbas do Orçamento, sem sujeição a qualquer limite expresso, o preceito acaba, também nesta dimensão, por se afastar do regime regra do artigo 8º da LFL.

Um fundamento razoável para esta solução pode ser encontrado na proibição legal de quaisquer formas de subsídios ou comparticipações financeiras aos municípios por parte do Estado, prevista, como já foi referido, no artigo 7º da LFL.

Proibição que é ainda decorrência do “princípio constitucional da autonomia financeira das autarquias locais e das finalidades que a Constituição impõe ao regime das finanças locais – ‘justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias’ e, numa vertente do tratamento igualitário dos entes locais, “a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau”[46].

Como foi realçado, a fórmula do legislador do Código das Expropriações enquadra-se no movimento de reforço das garantias dos expropriados. Mas tal objectivo não pode ser alcançado à custa de princípios imperativos de legalidade financeira.

Ora, se se interpretasse o nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações no sentido de que a cativação de transferências nele previstas não é para ser efectivada de forma global e automática, estaria encontrada uma forma de financiamento das autarquias à margem das situações admitidas excepcionalmente nos nºs 2 e 3 do artigo 7º da LFL, com a consequente subversão não só dos critérios objectivos de acesso aos meios financeiros como do próprio princípio de autonomia[47].

Por outro lado, como já vimos, a interpretação do preceito sufragada no presente parecer é a que se afigura mais adequada aos objectivos visados pelo legislador.

Com efeito, não se deve perder de vista que o mecanismo de substituição do Estado, no pagamento das dívidas por expropriações da responsabilidade das autarquias, tal como foi gizado, há-de ser encarado como uma válvula de segurança instituída a favor dos expropriados, a que as autarquias apenas devem recorrer em situações excepcionais de dificuldades transitórias de tesouraria.

Por tudo quanto foi exposto, cremos poder extrair, com razoável segurança, uma vontade inequívoca do legislador, expressa em termos literais, no sentido de configurar a cativação de transferências orçamentais, no contexto do Código das Expropriações, através de um regime específico e privativo diferenciado relativamente ao regime geral do artigo 8º da LFL.
Afigura-se, desta forma, perfeitamente plausível situar a relação entre ambos os diplomas no quadro das relações entre lei geral e lei especial (posterior).

Segundo a doutrina, são normas especiais as que consagram uma disciplina nova ou diferente da estabelecida na lei geral para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou relações[48].

Trata-se de uma relação de especialidade material, que tem a ver com o domínio de aplicação, “devendo assim considerar-se especiais aquelas cujo domínio de aplicação se traduz por um conceito que é espécie em relação ao conceito mais extenso que define o campo de aplicação da norma geral e que figura como seu género”[49].

Dada a diversidade das funções que as normas especiais podem ser chamadas a desempenhar, são igualmente distintas, segundo tais funções, as relações lógico-jurídicas intercorrentes entre as normas gerais e as especiais assinaladas pela doutrina[50].

Assim, se as normas especiais se apresentam como desenvolvimentos destinados quer a concretizar princípios gerais ou como complementos deles, quer a integrar os aspectos específicos não contemplados naqueles princípios, a doutrina fala em relações de acumulação. Mas as normas especiais também podem apresentar-se, em um ou outro ponto, como desvio ou derrogação aos princípios gerais, dando origem às denominadas relações de conflito.

Relações de conflito que são resolvidas em conformidade com a regra, recebida no nº 2 do artigo 7º do Código Civil, segundo a qual, a lei especial prevalece sobre a lei geral (lex specialis derogat legi generali).

Retomando o caso em apreço, vimos que a norma contida no nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações apresenta previsão e âmbito mais restritos, bem como conteúdo parcialmente antagónico ou incompatível relativamente ao artigo 8º da LFL, configurando, desta forma, um conflito internormativo, que conduz à inaplicação da norma geral, nos termos expostos.
IV

Resta, agora, examinar se a solução encontrada é constitucionalmente legítima.

1. A autonomia financeira exige, além dos meios financeiros adequados à prossecução das suas atribuições, que os órgãos autárquicos disponham de liberdade para estabelecer o destino das receitas e para realizar as despesas da autarquia, afectando as primeiras às segundas[51] [52].

Neste sentido, constitui jurisprudência reiterada do Tribunal Constitucional[53] que a gestão dos meios patrimoniais das autarquias há-de ser determinada autonomamente pelos órgãos livremente eleitos do poder local, de acordo com orçamentos próprios.

Também a doutrina converge no sentido de que a autonomia – maxime a autonomia financeira – anda ligada a uma ideia de independência decisória dos organismos ou entes públicos. Assim sendo, os órgãos autárquicos hão-de dispor de poderes de decisão, além do mais, para gerir o património e as finanças locais.

A autonomia financeira implica, desde logo, a autodeterminação financeira, de tal modo que “a vida financeira das autarquias não fique dependente de actos discricionários do poder central”[54].

Consequentemente, devem considerar-se afastados, em princípio, os subsídios e comparticipações, “considerados como instrumentos de dependência das autarquias locais relativamente ao poder central e fonte de discriminação entre elas.” No mesmo sentido, é ainda questionável a possibilidade de a lei admitir a retenção unilateral de recursos a que as autarquias tenham direito por transferência do orçamento do Estado, para efeito de pagamento de dívidas das respectivas autarquias[55].

Segundo alguma doutrina, o legislador, ou qualquer outro órgão do Estado, estaria mesmo impedido de “interferir no destino a dar às receitas autárquicas através, por exemplo, da consignação ou afectação destas a algumas despesas autárquicas, ou na realização das despesas”[56].

Embora a questão seja controversa, cremos que da Constituição não resulta uma proibição abstracta e absoluta nesta matéria. O que pode retirar-se com alguma segurança é que “o legislador não é livre de proceder à retenção em certo ano económico, de uma qualquer percentagem do FEF, para afectar a quaisquer despesas do Estado”[57]. Tudo dependerá do contexto concreto da dimensão financeira da autarquia, das finalidades da retenção e dos montantes a reter.

O Tribunal Constitucional, chamado por diversas vezes a pronunciar-se sobre esta questão – da legitimidade da intervenção do legislador para afectar certas receitas autárquicas a determinadas das suas despesas – firmou jurisprudência no sentido de que a “afectação de receitas é constitucionalmente admissível, respeitados que sejam certos limites – limites que decorrem da necessidade de deixar sempre intocado o núcleo essencial da autonomia e da inadmissibilidade de proceder à afectação de receitas, desnecessária ou injustificadamente, ou, ainda, em termos desproporcionados”[58].

Não será, desta forma, de admitir, diz-se no mesmo Acórdão, “uma afectação de receitas sistemática – uma afectação de receitas tal que vá atingir o núcleo essencial da autonomia. E, do mesmo passo, será constitucionalmente ilegítima uma afectação de receitas sem qualquer justificação ou fundamento material ou que se revele excessiva”.

A jurisprudência vertida no aresto que acabamos de citar versou sobre a apreciação da conformidade constitucional de uma norma emitida pelo Governo e através da qual foram afectadas receitas autárquicas a determinadas despesas autárquicas, no plano dos orçamentos de cada autarquia[59].

No Acórdão do Tribunal Constitucional nº 361/91, concluiu-se, por aplicação da mesma jurisprudência, pela conformidade constitucional das normas da Lei do Orçamento que determinavam, de forma unilateral pelo Estado[60], a retenção na fonte de 0,25% do Fundo de Equilíbrio Financeiro (FEF) e a posterior inscrição do produto de tal retenção no orçamento próprio das Comissões de Coordenação Regionais para custear as despesas com o pessoal técnico dos Gabinetes de Apoio Técnico (GAT).


2. A situação regulada no nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações é algo diversa da apreciada no acórdão atrás mencionado.

No caso sub judicio, a retenção ou cativação das transferências orçamentais tem em vista satisfazer, de forma directa e imediata, o direito de regresso do Estado, quando este se substitua aos municípios no pagamento de indemnizações derivadas de processos expropriatórios.

Temos, assim, que o destino da retenção é o de suportar os custos ou despesas que são, em última análise, da responsabilidade das próprias autarquias e visam a satisfação das suas atribuições.

Na verdade, a expropriação de imóveis somente é legítima se fundada na utilidade pública e for compreendida nas atribuições da entidade expropriante (cfr. artigo 1º do Código das Expropriações).

Paralelamente, no que concerne à eventual ofensa dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, importa acentuar que não se encontra fixada qualquer percentagem limite a reter.

De todo o modo, não se afigura previsível a ocorrência de situações em que a percentagem a reter afecte de forma intolerável as normas e princípios constitucionais, nomeadamente a garantia da “justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias locais”, consagrada no artigo 238º, nº 2, da Constituição, ou a própria autonomia local na sua dimensão financeira.

Com feito, além de a possibilidade de expropriar se compreender em termos gerais na prossecução das atribuições dos municípios, a resolução de requerer a declaração de utilidade pública deve mencionar, entre outros elementos, “a previsão do montante dos encargos a suportar com a expropriação” [alínea c) do artigo 10º do Código das Expropriações]. Por outro lado, o requerimento da declaração de utilidade pública, que é remetido ao membro do Governo competente para a emitir, deve ser instruído, entre outros documentos, com “indicação da dotação orçamental que suportará os encargos com a expropriação e da respectiva cativação, ou caução correspondente” [alínea c) do artigo 12º do Código das Expropriações].

Fica desta forma assegurado que a utilidade pública da expropriação só poderá ser declarada se o expropriante tiver capacidade financeira para o pagamento das indemnizações[61].

Não estamos, por conseguinte, a reportarmo-nos a despesas extraordinárias, mas a despesas que se encontram devidamente orçamentadas e cabimentadas, que decorrem da gestão normal e programa de actividades do município.

Não se vislumbra, pois, como tal solução possa afectar a capacidade das autarquias para decidir das suas despesas e de prever, com suficiente segurança, o montante das receitas próprias para tanto disponíveis.

Por último, pelas razões aduzidas no ponto III. 3.2.1, não se afigura também injustificada ou desproporcionada, a admissibilidade de cativação de transferências sem quaisquer limites, no contexto do Código das Expropriações. Designadamente na parte em que se deixou sublinhado que as autarquias locais apenas devem accionar o mecanismo instituído no nº 7 do artigo 23º daquele Código em situações excepcionais de dificuldades transitórias de tesouraria[62].


3. Impõe-se ainda uma nota final.

A solução a que chegámos pode ainda suscitar dúvidas, perante o eventual valor reforçado da Lei das Finanças Locais.

Com efeito, leis com valor reforçado são actos legislativos dotados de uma “posição de proeminência - funcional, não hierárquica - relativamente a outros actos legislativos, a outras leis, a qual se traduz numa específica força formal negativa: na impossibilidade de serem afectados por leis posteriores que não sejam dotadas da mesma função”[63], com afastamento do princípio geral lex posterior legi anteriori derogat.

A questão foi abordada, embora de forma incidental, pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 82/86[64], antes da segunda revisão constitucional, a propósito das relações entre a lei das Finanças Locais e a lei do Orçamento do Estado.

O Tribunal Constitucional não tomou propriamente posição sobre tal problemática, limitando-se a ponderar, a dado passo, “(...) que, ainda que se pudesse sustentar o valor reforçado da Lei das Finanças Locais, daí não poderia concluir-se que tivesse valor hierárquico superior ao da Lei do Orçamento do Estado. Simplesmente, estas conclusões teriam de ser examinadas à face dos dados decorrentes da 2ª. revisão constitucional, em especial o disposto nos artigos 115º, nº 2, e 281º, nº 1, alínea b), da actual redacção da Constituição”.

Posteriormente, no Acórdão nº 358/92[65], tendo já em conta as alterações introduzidas nesta matéria pela segunda revisão constitucional[66], concluiu-se que “(...) na ausência de uma definição expressa, o assinalado valor reforçado há-de decorrer da conjugação de dois critérios essenciais, o da sua proeminência funcional enquanto fundamento material da validade normativa de outros actos e o da sua força formal negativa, enquanto portadora de uma especial protecção face aos efeitos derrogatórios produzidos por lei posterior. Um e outro critério deverão operar sempre em função dos enunciados linguísticos da própria Constituição”.

Aplicando os critérios mencionados[67] ao caso em análise, o Tribunal não considerou nenhum deles idóneo a conferir valor reforçado à Lei das Finanças Locais.

Com efeito, começando pelo enunciado linguístico da Constituição, em especial do artigo 240º,[68] não decorre que a Lei das Finanças Locais “(...) seja fundamento material de validade de qualquer outra lei ou que beneficie de uma especial capacidade derrogatória ou de protecção face à sua derrogação por lei posterior”.

Nem mesmo fazendo apelo ao facto de a Lei das Finanças Locais ser encarada como uma lei “’(...) constitucionalmente necessária’, no sentido em que a ela cabe definir um quadro legal (com ‘vocação permanente’) da autonomia financeira do poder local”, também na óptica do Acórdão que vimos seguindo, esta interpretação teleológica por si só não parece poder fundamentar o alegado valor reforçado da Lei das Finanças Locais.

A quarta revisão constitucional introduziu uma definição de lei com valor reforçado, no artigo 112º, nº 3, da Constituição.

De acordo com este preceito, “têm valor reforçado, além das leis orgânicas, as leis que carecem de aprovação por maioria de dois terços, bem como aquelas que, por força da Constituição, sejam pressuposto normativo necessário de outras leis ou que por outras devam ser respeitadas.”

A fórmula utilizada mostra-se tão ampla e difusa que é considerada pela doutrina desprovida de utilidade[69], do ponto de vista dogmático, mantendo-se, desta forma, intocada a jurisprudência do Tribunal Constitucional[70].

A qualificação da Lei das Finanças Locais como lei reforçada é também dificultada pelo facto de não aparecer incluída nos exaustivos, embora não taxativos, elencos de leis reforçadas elaborados pela doutrina.

JORGE MIRANDA[71], depois de proceder à distinção entre leis reforçadas em sentido lato e leis reforçadas em sentido estrito[72], propõe reduzir para seis as espécies de leis reforçadas: “a) lei do regime do estado de sítio; b) leis orçamentais; c) leis de enquadramento; d) leis de autorização legislativa; e) leis de bases; f) estatutos político-administrativos das regiões autónomas”.

Nem mesmo o recurso ao “critério mais vago e sibilino”[73] de todos os individualizados na parte final do artigo 112º, nº 3, da Constituição, quando refere que são consideradas reforçadas as leis que “devem ser respeitadas por outras leis”, é susceptível de inverter esta tendência.

Com efeito, continuaria a faltar o apoio na Constituição quanto às exigências de conformidade ou de compatibilidade reportadas à Lei das Finanças Locais.

V

Termos em que se extraem as seguintes conclusões:

1ª. A autonomia financeira, enquanto pressuposto essencial do princípio da autonomia das autarquias locais, exige, além dos meios financeiros adequados à prossecução das suas atribuições, que os órgãos autárquicos disponham de liberdade para estabelecer o destino das receitas e para realizar as despesas da autarquia, afectando as primeiras às segundas;


2ª. Do mencionado princípio decorre que a intervenção do legislador, para afectar transferências do Orçamento do Estado a favor das autarquias a determinadas das suas despesas, somente pode considerar-se legítima, desde que respeitado o núcleo essencial da autonomia, e o princípio da inadmissibilidade da afectação de receitas de forma injustificada ou desproporcionada;


3ª. A norma do artigo 8º da Lei das Finanças Locais, aprovada pela Lei nº 42/98, de 6 de Agosto, tem vocação para funcionar como uma regra geral, admitindo a cativação das transferências do Orçamento do Estado, para garantir o pagamento de dívidas das autarquias, desde que as mesmas tenham sido definidas por sentença judicial transitada em julgado ou quando não contestadas junto dos credores no prazo máximo de 60 dias, e não seja ultrapassado o limite percentual de retenção de 15%;


4ª. O nº 7 do artigo 23º do Código das Expropriações, aprovado pela Lei nº 168/99, de 18 de Setembro, que prevê a cativação de transferências orçamentais, independentemente de quaisquer formalidades, com vista a satisfazer o direito de regresso do Estado, quando este se substitua às autarquias no pagamento de indemnizações por expropriações, configura uma norma especial que prevalece sobre o artigo 8º da Lei das Finanças Locais, por força da regra recebida no nº 2 do artigo 7º do Código Civil (lex specialis derogat legi generali);


5ª. Esta norma, interpretada no sentido de prever uma retenção de transferências do Orçamento do Estado, sem respeitar o limite percentual fixado no artigo 8º da Lei das Finanças Locais, encarada como válvula de segurança instituída a favor dos expropriados, e apenas accionável em situações excepcionais de dificuldades transitórias de tesouraria das autarquias locais, satisfaz as exigências referidas na conclusão 2ª, pelo que não é inconstitucional.





[1]) Cfr. o ofício nº 235, de 5 de Julho de 2000.
[2]) Cfr. Proc. 05.03.08 –1.
[3]) Datada de 20 de Março de 2001. O parecer foi objecto de redistribuição por Despacho do Senhor Procurador-Geral da República de 29 de Maio de 2003.
[4]) Diploma objecto de rectificação por Declaração de Rectificação nº 13/98, de 25 de Agosto, Diário da República, I Série-A, nº 180, de 6 de Agosto, tendo sido sucessivamente alterado pela Lei nº 87-B/98, de 31 de Dezembro, Lei nº 3-B/2000, de 4 de Abril, Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, Lei nº 94/2001, de 20 de Agosto, e Lei Orgânica nº 2/2002, de 28 de Agosto.
[5]) Cfr. a Informação nº 1072/2001.
[6]) “A autonomia é um atributo, uma qualidade, uma particular aptidão de certos entes públicos, que se caracteriza pelo reconhecimento de que esses entes dispõem de capacidade para administrar os seus próprios interesses, através do desenvolvimento de uma actividade com as mesmas características e uma eficácia jurídica semelhante à actividade administrativa do Estado” (cfr. VIEIRA DE ANDRADE/PEDRO GONÇALVES, “Autonomia e Atribuições das Autarquias Locais”, Manual do Eleito Local, CEFA, Coimbra, 1994, p. 20). A autonomia pode desdobrar-se, segundo VITAL MOREIRA, Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra Editora, Coimbra, 1997, pp. 170 ss., em autonomia jurídica, autogoverno, autodeterminação, autonomia estatutária, autonomia regulamentar, autonomia administrativa, autonomia disciplinar, autojurisdição e autonomia financeira.
[7]) Este princípio compreende, entre outras, as seguintes manifestações: autonomia administrativa; autonomia normativa; autonomia organizatória; autonomia financeira; e autonomia patrimonial (cfr. VIEIRA DE ANDRADE/PEDRO GONÇALVES, ob. cit., pp. 25 ss.). CASALTA NABAIS, prefere falar em vectores da autonomia local, destacando os seguintes: a autonomia normativa, a autonomia política, a autoadministração, a «autonomia» administrativa e a autonomia financeira ( cfr. “A autonomia local: alguns aspectos gerais”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Coimbra, 1993, pp. 184 ss.).
[8]) Cfr. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 1994, vol. I, p. 428.
[9]) Cfr. o Parecer nº 12/84, de 27 de Abril de 1984, Diário da República nº 229, II Série, de 2 de Outubro de 1984. Sobre autonomia, em especial financeira, das autarquias, cfr., entre outros, os seguintes pareceres: nº 14/88, de 28 de Setembro de 1989, Diário da República nº 63, II Série, de 16 de Março de 1991; 74/87, de 3 de Dezembro de 1987, Diário da República, nº 116, II Série, de 19 de Maio de 1988; 72/93, de 14 de Abril de 1994, Diário da República, nº 269, II Série, de 21 de Novembro de 1995.
[10]) Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 889. No mesmo sentido, cfr. SOUSA FRANCO, Finanças do Sector Público. Introdução aos Subsectores Institucionais, AAFDL, 1991, pp. 465 ss.
[11]) Cfr. “O Quadro Jurídico das Finanças Locais em Portugal”, Fisco, nº 82/83, Ano IX, pp. 7/8. No mesmo sentido, CÂNDIDO DE OLIVEIRA, Direito das Autarquias Locais, Coimbra Editora, Coimbra, p. 286. De igual modo, nas palavras impressivas de VITAL MOREIRA, ob. cit., p. 199, “Sem autonomia financeira, isto é, sem a garantia de receitas próprias e a capacidade de as afectar segundo orçamento próprio às despesas definidas e aprovadas com independência, não é concebível administração autónoma.”
[12]) Diário da República, I Série, nº 76, de 2 de Abril de 1986. No Acórdão nº 631/99, Diário da República, I Série-A, de 28 de Dezembro de 1999, reafirma-se que sem autonomia financeira “não há condições para uma efectiva autonomia”.
[13]) A autonomia financeira consiste, precisamente, segundo TEIXEIRA RIBEIRO, “(...) em o serviço possuir receitas próprias e orçamento próprio” (cfr. Lições de Finanças Públicas, Coimbra, 1977, p. 5).
[14]) Neste sentido, para SOUSA FRANCO, “o regime das finanças locais deve, segundo a Constituição, obedecer aos princípios da solidariedade e da igualdade activa” (cfr. Finanças Públicas e Direito Financeiro, 4ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pp. 213 ss.).
[15]) Cfr. ob. cit., pp. 890-891.
[16]) Cfr. CASALTA NABAIS, “A autonomia local”..., cit., p. 194.
[17]) Cfr. o Parecer nº 55/96, de 23 de Janeiro de 1997. Por sua vez, no Parecer nº 74/87 pode ler-se que “O Fundo de Equilíbrio Financeiro constitui, assim, ‘um mecanismo através do qual se efectuam as transferências financeiras da administração central para a local’, traduzindo, como se referiu, uma fonte substancial de financiamento (de atribuição de receitas) às comunidades locais”.
[18]) Cfr. o Acórdão nº 358/92, Diário da República, I Série, nº 21, de 26 de Janeiro de 1993.
[19]) O FEF foi originariamente instituído pela Lei nº 1/87, de 2 de Janeiro. Sobre as suas finalidades, forma de cálculo e natureza jurídica, cfr., entre outros, os pareceres nºs 74/87 e 55/96.
[20]) Este fundo “visa dotar os municípios de condições financeiras adequadas ao desempenho das suas atribuições, em função dos respectivos níveis de funcionamento e investimento” (artigo 11º da LFL).
[21]) Este fundo “visa reforçar a coesão municipal, fomentando a correcção de assimetrias, em benefício dos municípios menos desenvolvidos e é distribuído com base nos índices de carência fiscal (ICF) e de desigualdade de oportunidades (IDO), os quais traduzem situações de inferioridade relativamente às correspondentes médias nacionais” (artigo 13º da LFL).
[22]) No sistema anterior, as transferências do Estado para as autarquias locais eram todas canalizadas por aquele Fundo, que era em cada ano igual à previsão do FEF do ano anterior corrigida pelo coeficiente de variação (progressão ou regressão) da previsão do IVA para esse ano face à previsão das cobranças do ano anterior. Das verbas recebidas por conta do FEF, cada município transferia para as suas freguesias 5%. Para uma análise dos vários aspectos deste novo regime, cfr. CASALTA NABAIS, “O novo regime das finanças locais”, Forum Iustitiae, Ano I, nº 8, 2000, pp. 30 ss.
[23]) Para uma caracterização das receitas municipais, cfr. CASALTA NABAIS, “O Quadro Jurídico”..., cit., pp. 9 ss.
[24]) As transferências financeiras para as autarquias são reguladas no artigo 10º da LFL.
[25]) O preceito reporta-se às transferências operadas ao abrigo do Fundo Geral Municipal e do Fundo de Coesão Municipal, regulados nos artigos 10º ss. da mesma lei.
[26]) Trata-se da versão final fixada pela Lei nº 94/2001 que, no segmento “ou por elas não contestadas junto dos credores no prazo máximo de 60 dias”, acrescentou o inciso “após a respectiva data de vencimento”.
[27]) A norma similar da Lei das Finanças Locais anterior (Lei nº 1/87, de 6 de Janeiro), prescrevia o seguinte:
“Artigo 17º
Dívidas ao sector público
Quando os municípios tenham dívidas às entidades não financeiras do sector público, pode ser deduzida uma parcela às suas transferências correntes e de capital, até ao limite de 15%, desde que aquelas dívidas se encontrem definidas por sentença judicial transitada em julgado”.
[28]) Cfr. o Parecer nº 14/88, em especial, a nota (7) e pp. 19 ss.
[29]) Cfr. o Parecer nº 14/88.
[30]) Previne-se, desta forma, qualquer violação ao princípio da reserva do poder judicial. A questão suscitou-se a propósito dos diplomas que regularam a intervenção do Governo na resolução das dívidas dos municípios à EDP. Sobre esta problemática, cfr. VIEIRA DE ANDRADE, “Distribuição pelos Municípios da energia eléctrica em baixa tensão”, Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, Tomo I, 1989, pp. 17 ss. Ver também o Parecer nº 72/93 e o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 260/98, de 5 de Março, Diário da República nº 76, I Série, de 31 de Março.
[31]) O artigo 17º da Lei 1/87 não contemplava esta hipótese.
[32]) Repare-se que o artigo 17º da Lei 1/87 referia-se a dívidas de “entidades não financeiras” do sector público. Por outro lado, como ficou consignado no Parecer nº 72/93-Compl., de 17 de Maio de 2001, “a mera literalidade da epígrafe do artigo 8º da Lei nº 42/98 poderia, quando confrontada com a do artigo 17º da Lei nº 1/87, sugerir (...) que permitiria até a retenção parcial de transferências para pagamento de dívidas a entidades não públicas”. No mesmo parecer conclui-se, porém, que a análise da redacção das correspondentes normas das iniciativas legislativas que deram azo à Lei nº 42/98 revela que a retenção de transferências destina-se somente a garantir dívidas a entidades públicas. Para maiores desenvolvimentos, cfr. o Parecer nº 72/93-Compl., em especial a nota (8) e Proposta de Lei nº 180/VII, Relatório e parecer da Comissão de Administração do Território, Poder Local, Equipamento Social e Ambiente, Diário da Assembleia da República, II Série-A, nº 59, de 12 de Junho de 1998, pp. 1274 ss.
[33]) Neste sentido, cfr. os pareceres nºs 14/83 e 55/96. A doutrina formulada teve como referência a norma do artigo 17º da Lei nº 1/87, mas a verdade é que aquela norma tinha conteúdo muito próximo do artigo 8º da actual Lei das Finanças Locais.
[34]) Ver o Parecer nº 14/83 sobre os trabalhos preparatórios relativos ao artigo 17º da Lei 1/87. Nesses trabalhos ressalta a preocupação em evitar que tais normas possam traduzir-se numa ingerência inadmissível do Governo na vida financeira das autarquias.
[35]) Neste sentido, cfr. o Parecer nº 72/93 - Compl.
[36]) Cfr. o artigo 14º da Lei nº 3-B/2000, de 4 de Abril, que aprovou o Orçamento do Estado para 2000. O nº 1 do preceito permite a retenção das transferências correntes e de capital do Orçamento do Estado para as autarquias para satisfação de débitos, ”vencidos e exigíveis, constituídos a favor da Caixa Geral de Aposentações, da ADSE, da Segurança Social e da Direcção-Geral do Tesouro, e ainda em matéria de contribuições e impostos, bem como dos resultantes da não utilização indevida de fundos comunitários”. Por sua vez, o nº 3 estabelece expressamente que tais transferências “só poderão ser retidas nos termos previstos no artigo 8º da Lei nº 42/98, de 6 de Agosto”. Preceito similar é repetido: no nº 3 do artigo 9º da Lei nº 30-C/2000, de 29 de Dezembro de 2000, que aprovou o Orçamento do Estado para 2001; no nº 3 do artigo 8º da Lei nº 109-B/2001, de 27 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2002; e no nº 3 do artigo 10º da Lei nº 32-B/2002, de 30 de Dezembro, que aprovou a Lei do Orçamento do Estado para 2003.
[37]) Transitada em julgado a decisão que fixar o valor da indemnização, o juiz do tribunal da 1ª instância ordena a notificação da entidade expropriante para depositar os montantes em dívida (cfr. nº 1 do artigo 71º do Código das Expropriações). Nos termos do disposto no nº 4 do mesmo preceito, “não sendo efectuado o depósito no prazo fixado, o juiz ordenará o pagamento por força das cauções prestadas pela entidade expropriante ou outras providências que se revelarem necessárias, após o que, mostrando-se em falta alguma quantia, notificará o serviço que tem a seu cargo os avales do Estado para que efectue o depósito do montante em falta, em substituição da entidade expropriante”.
[38]) Cfr. ALVES CORREIA, “A Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre Expropriações por Utilidade Pública e o Código das Expropriações de 1999”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 132º, Nºs 3911 e 3912, p. 49.
[39]) Neste sentido, o nº 1 do artigo 67º do Código das Expropriações dispõe que “as indemnizações por expropriações por utilidade pública são pagas em dinheiro, de uma só vez, salvo as excepções previstas nos números seguintes”. O Código anterior já dispunha de norma com o mesmo conteúdo e, em ambos os códigos, o limite máximo fixado para o pagamento em prestações é de três anos (cfr. nº 5 do artigo 67º do Código de 1999 e nº 5 do artigo 65º do Código de 1991, aprovado pelo Decreto-Lei nº 438/91, de 9 de Novembro). Na versão do Código de 1978, aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/78, de 11 de Dezembro, o pagamento em prestações, além de mais facilitado, podia ir até 10 anos (cfr., em especial, o nº 2 do artigo 84º e o artigo 85º).
[40]) Cfr. “Formas de pagamento da indemnização na expropriação por utilidade pública”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Ferrer-Correia), Coimbra, 1997, p. 356.
[41]) No Acórdão nº 115/88, Diário da República, II Série, nº 205, de 5 de Setembro, de 1988, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade das normas dos artigos 13º e 17º do Decreto-Lei nº 576/70, de 24 de Novembro, porque “(...) competindo à Administração definir o número de anos ao longo dos quais se desenvolverá o processo de pagamento, estabelecer o montante e o tempo de cada prestação e fixar a taxa dos respectivos juros (...)”, tal regime não satisfazia, entre o mais, o conceito de justa indemnização constante do nº 2 do artigo 62º da Constituição.
[42]) Cfr. a Exposição de motivos da Proposta de Lei nº 252/VII, Diário da Assembleia da República, 2º Suplemento, II Série A, Número 45, de 18 de Março de 1999.
[43]) Cfr. ALVES CORREIA, “A Jurisprudência do Tribunal Constitucional”..., cit., Nºs 3908 e 3909, p. 332. Sobre o pagamento contemporâneo, cfr. OSVALDO GOMES, Expropriações por Utilidade Pública, 1ª ed., Texto Editora, Lisboa, 1997, p. 265.
[44]) Palavras proferidas na apreciação da generalidade da referida Proposta de Lei nº 252/VII, Diário da Assembleia da República, I Série, de 29 de Abril de 1999, pp. 2815 ss.
[45]) Que tem de traduzir-se numa compensação plena e observar o princípio da contemporaneidade.
[46]) Cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 631/99.
[47]) Note-se que, no caso, segundo dados do processo, a aplicação do limite fixado no artigo 8º da LFL iria protelar a devolução do pagamento adiantado pelo Estado durante cerca de 21 prestações mensais.
[48]) BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1994, p. 95; cfr. também OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito. Introdução e teoria geral, 10ª ed., Almedina, Coimbra, 1997, p. 519.
[49]) Cfr. DIAS MARQUES, Introdução ao Estudo do Direito, 2ª ed., PF, Lisboa, 1994, p. 181.
[50]) Veja-se o parecer nº 62/2003, de 26 de Setembro de 2003, cuja doutrina se acompanha de muito perto. Trata-se de uma temática muito estudada por este corpo consultivo, em especial, nos seguintes pareceres: 55/92, de 22 de Outubro de 1993; 35/92, de 9 de Junho de 1994; 37/2002, de 23 de Outubro; 99/2002, de 26 de Setembro; 35/2003, de 15 de Maio de 2003; e 74/2003, de 23 de Outubro
[51]) Cfr. CASALTA NABAIS, “Considerações Sobre a Autonomia Financeira das Universidades Portuguesas”, Separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Estudos de 1987, p. 45. Propriamente sobre a autonomia local, cfr., do mesmo autor, “A autonomia local”..., cit., pp. 143 ss., e o “O Quadro Jurídico”..., cit., p. 9.
[52]) Segundo o nº 1 do artigo 9º da Carta Europeia de Autonomia Local, “As autarquias têm direito, no âmbito da política económica nacional, a recursos próprios adequados, dos quais podem dispor livremente no exercício das suas atribuições” (aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República nº 28/90, de 23 de Outubro e ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 58/90, da mesma data).
[53]) Cfr., entre outros, os Acórdãos nºs. 452/87, Diário da República, II Série, nº 1, de 2 de Janeiro de 1988; e 361/91, Diário da República, II Série, nº 8, de 10 de Janeiro de 1992.
[54]) Cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., p. 889.
[55]) Cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ibidem.
[56]) CASALTA NABAIS, “O Quadro Jurídico”..., cit., p. 9.
[57]) Cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 361/91.
[58]) Cfr. o citado Acórdão nº 452/87.
[59]) O Tribunal Constitucional considerou não ser materialmente inconstitucional a norma que previa a afectação das receitas provenientes das taxas municipais de registo e licenciamento de cães às despesas inerentes à profilaxia da raiva, traduzindo uma verdadeira consignação de receitas.
[60]) As normas em causa constavam do artigo 46º da Lei nº 101/89, de 29 de Dezembro e, bem assim, do artigo 46º da Lei nº 65/90, de 28 de Dezembro.
[61]) Neste sentido, cfr. o artigo 16º, nº 1, do Código das Expropriações, aprovado pelo Decreto-Lei nº 845/78, de 1976. O objectivo do legislador, tendo em conta o carácter gravoso do instituto expropriatório, era o de garantir antecipadamente “ao particular que não sofrerá qualquer dano patrimonial por efeito da expropriação sem a correspondente indemnização”, cfr. ALVES CORREIA, “As Garantias do Particular na Expropriação por Utilidade Pública”, Separata do volume XXIII do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1982, p. 161.
[62]) O acabado de afirmar não exclui que em casos excepcionais possam verificar-se situações anómalas em que a autarquia se veja confrontada com o aumento inesperado do montante das indemnizações, em termos que possam pôr em causa os princípios mencionados no texto. Tais situações hão-de merecer certamente uma ponderação casuística, em conformidade com as circunstâncias do caso concreto.
[63]) Cfr. JORGE MIRANDA, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, p. 287. Ver igualmente, no mesmo sentido, GOMES CANOTILHO, “A Lei do Orçamento na Teoria da Lei”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, (Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro), Coimbra, 1979, p. 558.
[64]) Também esta instância consultiva tem abordado em diversos pareceres a problemática ligada ao conceito de lei com valor reforçado, podendo ver-se, entre os mais recentes, os seguintes pareceres:71/2002, de 14 de Agosto de 2002; e 75/2002, de 26 de Setembro de 2002.
[65]) Diário da República, I Série-A, nº 21, de 26 de Janeiro de 1993.
[66]) Antes de 1989, o conceito de lei reforçada era meramente doutrinal. A segunda revisão constitucional veio consagrá-lo expressamente ao conferir “valor reforçado” às leis orgânicas, no artigo 115º, nº 2, e ao falar em leis de “valor reforçado” como padrões de legalidade no âmbito da competência de fiscalização concreta e sucessiva abstracta do Tribunal Constitucional [nos artigos 280º, nº 2, alínea a), e 281º, nº 1, alínea b)].
[67]) O carácter heterogéneo das leis reforçadas leva os autores a apontarem vários critérios que, segundo GOMES CANOTILHO, “se entrecruzam na delimitação material deste tipo de leis.” O autor aponta, como tais, os critérios seguintes: o “da parametricidade aferido por um processo judicial de fiscalização; o “da parametricidade específica; o “da forma e especificidades procedimentais; o “da ‘maioria reforçada’; o “da parametricidade geral” (cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Almedina, Coimbra, 2002, pp. 776 ss.).
[68]) Que corresponde, actualmente, ao artigo 238º da Constituição.
[69]) Para JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo V, 2ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2000, pp. 347-48, “a fórmula utilizada mostra-se tão embastecida que se torna dogmaticamente inútil. Em vez de conglobar diversos elementos numa noção operacional, faz-se um mero somatório de procedimentos de espécies legislativas”. Para BLANCO DE MORAIS, As Leis Reforçadas, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 656, a alteração introduzida redundou em “desfigurar o conceito dogmático de lei reforçada e transformá-lo num ‘albergue espanhol’ de leis de regime jurídico totalmente dissemelhante, amalgamadas à força num inextricável ‘bloco de legalidade’ com o qual as leis ordinárias simples passarão a ser confrontadas”.
[70]) É o que se retira do recente Acórdão nº 478/2001, disponível no endereço http:tribunalconstitucional.pt/acordãos01401-500/47801.htm.
[71]) Cfr. Manual..., cit., p. 355. Ver, também, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., cit., pp. 775 ss. e BLANCO DE MORAIS, ob. cit., pp. 646 ss.
[72]) Em sentido lato, “são leis reforçadas, leis ordinárias reforçadas ou leis de valor reforçado quaisquer leis dotadas de força jurídica específica (...). Em sentido estrito, “são leis reforçadas todas as que possuam força específica independentemente de concatenação leis gerais da República-decretos legislativos regionais; são, por exclusão de partes, todas as leis autonomizadas em virtude da sua instrumentalidade para determinados fins ou institutos” (cfr. Manual...cit., p. 348).
[73]) A expressão é de GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., cit., p. 779.